Inconcebíveis Conceitos: \"La busca de Averroes\" e a abordagem da linguística cognitiva ao problema dos gêneros literários na tradução

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INCONCEBÍVEIS CONCEITOS: LA BUSCA DE AVERROES

Robert de Brose

La Busca de Averroes1 de Jorge Luis Borges mostra-nos o pensador andaluz ʾAbū lWalīd Muḥammad Ibn ʾAḥmad Ibn Rušd (1126-1198), mais conhecido apenas como Ibn Rushd, ou Averroés, na versão latinizada de seu nome, na tarefa de escrever o tratado que o faria afamado: o “Incoerência da Incoerência” (Tahāfut al-Tahāfut, ‫)تهافت التهافت‬, ou, como quer Borges, A Destruição da Destruição2, numa tentativa de refutar o A Incoerência (ou Destruição) dos Filósofos (Tahāfut al-Falāsifa, ‫ )تهافت الفالسفة‬de Al-Ghazali (c. 1058-1111); esse ponto de partida na estória não poderia ter sido melhor escolhido já que nela temos, condensado em poucas linhas, o confronto do transcendentalismo da escola Ash’ari com o racionalismo e o neo-aristotelismo inaugurados por Ibn-Sīna, ou Avicena (c. 980-1037). Esse contraste entre duas abordagens filosóficas distintas manter-se-á como o pano de fundo significativo para toda a obra, já que, muito embora o conto de Borges não trate particularmente de tal embate, ele se ampara na eterna dúvida dos filósofos de saber se é possível conhecer a essência das coisas ou não. Nesse sentido, o conto desenvolve o eterno interesse de Borges pela dimensão ontológica dos nomes, cujo exemplo mais explícito é aquele de seu poema El Golem. No conto em questão, o escopo dessa dúvida epistemológica

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O texto desse conto foi publicado originalmente em 1949 na revista Sur e incluído posteriormente na coleção El Aleph, publicada pela Emecé Editores, em 1974. Neste ensaio, utilizei a reimpressão de 1974, incluída no volume, BORGES. J. L. El Aleph. Alianza Editorial. 1ª ed. revisada. 16ª reimpressão. Madrid, 1997. (Coleção Biblioteca Borges). ISBN 978-84-206-3311-4. 2 O termo tahāfut, derivado do verbo tahāfata é, em si mesmo, e de certa forma ironicamente, pouco compreendido pela crítica moderna. O sentido principal, segundo a maior parte dos estudiosos, é o de “jogarse ou dedicar-se de maneira inconsequente a alguma coisa”, como demonstra um dos ahādith proféticos citados por Al-Ghazali que diz: “Vós vos precipitais (tahāfatūna) inconsequentemente no fogo, como as mariposas, enquanto eu vos agarro pelas dobras de vossas roupas”. Cf. TREIGER, A. Inspired Knowledge in Islamic Thought: Al-Ghazali's Theory of Mystical Cognition and Its Avicennian Foundation. Routledge: Oxon, 2011, pp. 108 et seq.

aparece delimitada pela aporia de Averroés, que o distrai de seu trabalho no Tahāfut, como nos diz o narrador: No la causaba [uma leve preocupação] el Tahafut, trabajo fortuito, sino un problema de índole filológica vinculado a la obra monumental que lo justificaría ante las gentes: el comentario de Aristóteles. Este griego, manantial de toda filosofía, había sido otorgado a los hombres para enseñarles todo lo que se puede saber; interpretar sus libros como los ulemas interpretan el Alcorán era el arduo propósito de Averroes. Pocas cosas más bellas y más patéticas registrará la historia que esa consagración de un médico árabe a los pensamientos de un hombre de quien lo separaban catorce siglos; a las dificultades intrínsecas debemos añadir que Averroes, ignorante del siríaco y del griego, trabajaba sobre la traducción de una traducción. La víspera, dos palabras dudosas lo habían detenido en el principio de la Poética. Esas palabras eran tragedia y comedia. Las había encontrado años atrás, en el libro tercero de la Retórica; nadie, en el ámbito del Islam, barruntaba lo que querían decir. Vanamente había fatigado las páginas de Alejandro de Afrodisia, vanamente había compulsado las versiones del nestoriano Hunáin ibn– Ishaq y de Abu–Bashar Mata. Esas dos palabras arcanas pululaban en el texto de la Poética; imposible eludirlas.

Como sabemos por meio do seu assim chamado comentário médio à Poética, a perplexidade de Averroés não foi fruto da imaginação de Borges, mas uma dificuldade real enfrentada pelo polímata andaluz, e, diga-se de passagem, nem a única, nem a mais pungente, já que outros termos pareceram-lhe igualmente difíceis, como aqueles do passo 1450a 7-14 da Poética, em que Aristóteles lista os seis componentes da tragédia (mythos, ethos, léxis, diánoia, ópsis e melos). No que tange aos dois termos que nos interessam neste ensaio (até mesmo porque uma análise mais detalhada dos outros extrapolaria seu escopo), a saber, tragédia e comédia, a solução encontrada por Averroés foi a de traduzi-los pelas palavras árabes que lhe pareceram equivalentes, respectivamente, madīḥ (louvor) e rijʿa (invectiva), porque era incapaz de ver na descrição aristotélica de tragédia e comédia o seu caráter mimético e, dessa forma, as entendia, analogicamente, como produções artísticas puramente verbais. Quando eu digo que Averroés era não era capaz de “ver” nas descrições aristotélicas algo que hoje nos parece, justamente, evidente, não estou fazendo uso de uma expressão metafórica: por não ter tido qualquer experiência com as manifestações artísticas implicadas pelos termos que tentava traduzir para o árabe, ele era incapaz não apenas de encontrar um

equivalente que lhe servisse de suporte em sua língua de chegada, mas – e isto é mais importante –, era mesmo incapaz de fornecer uma perífrase que pudesse reenquadrar os termos vernáculos madīḥ e rijʿa a partir do contexto em que seus referentes, τραγῳδία e κομῳδία, tinham no texto de partida. No conto de Borges, essa “cegueira” é magistralmente descrita nas cenas em que Averroés contempla as formas implicadas por esses termos que tanto o atormentam sem se dar conta. Num primeiro momento, de sua sacada ele vê um grupo de meninos que brinca imitando a conclamação dos fiéis à oração, um faz-se de muezim, outro de minarete e outro de congregação dos fiéis. Mais tarde, no jantar que oferece a Abulcasis, este reconta a experiência de ter presenciado aquilo que, por sua descrição, imediatamente identificamos com uma peça teatral, mas nem a Averroés, nem aos outros sábios, parecem as palavras de Abulcasis fazer qualquer sentido. Até aqui usei a denominação “termo” para me referir às duas palavras que tanto atormentaram Averroés, seja na ficção ou na realidade, mas evidentemente, as denominações, “termo”, “palavra”, “nome” não descrevem exatamente aquilo que Averroés e nós, muitas vezes, buscamos ao tentar recodificar ideias de uma língua em outra, porque aquilo a que nos referimos são, na verdade, ideias ou, para usar um termo mais preciso, conceitos, que são esquemas mentais complexos codificados pela linguagem. Visto dessa forma, “tragédia” e “comédia” implicam, mais do que um possível (ou impossível) desdobramento semântico em uma perífrase, um conjunto de práticas e expectativas sociais ligadas a sua realização concreta no mundo, bem como as abstrações idealizadas para essas mesmas práticas e expectativas, e a falta de acesso tanto a uma quanto à outra é suficiente para impedir que entendamos o sentido completo desses conceitos. Dessa forma, Averroés não é nem capaz de, frente ao concreto, qual seja, o auto improvisado pelos meninos embaixo de sua sacada (que, ademais, imita uma situação corriqueira do seu dia a dia), proceder à abstração do mesmo em uma forma genérica, nem, face ao abstrato e convencional mundo do teatro chinês, entendê-lo como uma manifestação de uma situação concreta. Não é, dessa forma, capaz de compreender que ambos são práticas idealizadas de um gênero poético chamado “drama”. O problema, contudo, é mais sutil do que uma mera dissonância pragmática entre duas culturas que não compartilham de uma mesma manifestação artística e diz respeito à

natureza da própria linguagem na qual codificamos nossos pensamentos e conceitualizações do mundo. Precisamente, desde Aristóteles, a razão é vista como uma faculdade transcendente do pensamento humano que, muito embora utilize-se da linguagem, não compartilha das limitações dessa e, portanto, teria poderes infinitos em sua capacidade de fazer sentido do mundo. No entanto, com o surgimento da Linguística Cognitiva, sobretudo a partir dos trabalhos de Lakoff e Johnson3, começamos a entender que essa visão idealista dos processos de pensamento humano poderia não corresponder à realidade e, com isso, pôde se chegar a um novo paradigma a partir do qual a razão, ao invés de ser uma faculdade transcendente, seria, na verdade, uma característica emergente de nossas capacidades mentais, e que, ademais, não poderia ser distinguida da própria estrutura linguística que lhe é subjacente. Tampouco a linguagem seria um módulo isolado, inato e independente de outros processos mentais. Ao contrário, há bastante evidências que hoje já provam que a linguagem, ainda que tenha um componente inato, é, em sua grande maioria, moldada pelo mundo e pela natureza peculiar dos nossos corpos, bem como pelas experiências que vivenciamos com eles. No linguajar técnico da LC, a linguagem e, por consequência, a mente, são corporificadas. Dum ponto de vista prático, e para evitarmos uma complicação excessiva nesse ensaio, dizer que a linguagem e a razão são corporificadas equivale a dizer que não há conceitos (isto é: ideias codificadas pela linguagem) transcendentes que possam ser apreendidos por todos aqueles que pertençam a raça humana, o que seria absolutamente plausível se pensássemos na linguagem como um módulo inato, um software, por assim dizer, pré-instalado em todos nós. Ao contrário, o modo como pensamos e o modo como nos expressamos está inextrincavelmente ligado a uma séries de limitações impostas em primeiro lugar pelo nosso corpo, depois pelo nosso mundo, em seguida pela sociedade em que nascemos e assim por diante em círculos cada vez maiores. Isto implica em dizer que não podemos pensar o que quer que queiramos porque a nossa capacidade de pensar ou

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G. Lakoff and M. Johnson, Women, Fire, and Dangerous Things: What Categories Reveal About the Mind. Chicago: University of Chicago Press, 1987 e Metaphors We Live By. Chicago: The University of Chicago Press, 1980.

conceitualizar o mundo organiza-se por meio de categorias que são moldadas por fatores externos. Dessa forma, e voltando ao conto de Borges, a busca de Averroés não é por palavras equivalentes, no árabe, àquelas, quaisquer que elas fossem, que ele encontrou na tradução siríaca sobre a qual trabalhava e que lá estavam pelos termos gregos “tragédia” e “comédia”; sua busca deveria ser por práticas semelhantes, na cultura andaluz do século XII, àquelas do séc. V do período clássico na Grécia. Uma vez, no entanto, que tais práticas imitativas eram desconhecidas dos (e, de fato, proibidas pelos) muçulmanos, a busca de Averroés é uma busca fadada ao fracasso, o que ele tampouco percebe, mas que o narrador que o imagina admite ao final da história. Esse ponto, aliás, não poderia ser suficientemente ressaltado: não é que Averroés, seja na narrativa fictícia de Borges, seja na vida real, tenha se conformado com a equivalência imprecisa de um termo que não tinha paralelo na sua cultura, ele de fato crê ter encontrado, nesta última, uma forma e uma designação que correspondiam fielmente às práticas detalhadas por Aristóteles. A cegueira de Averroés, no entanto, está longe de lhe ser peculiar, e apenas se nos mostra de uma maneira mais saliente porque está enquadrada pelo confronto de duas culturas com conceitos, categorias e hábitos mentais e culturais muito distintos. Dessa forma, o conto de Borges também se afigura como uma reflexão sobre a própria impossibilidade de entender o outro, seja ele alienígena, extemporâneo ou ambos: é uma busca por conceitos inconcebíveis. Digo isso porque, se pensarmos que a categoria superordenada como aquelas que se subordinam a essa, viz.,

TRAGÉDIA

e

COMÉDIA4,

DRAMA,

bem

representam modelos

cognitivos idealizados5, isto é, conceitos complexos e culturalmente determinados cujo esquema imagético se compõe por uma quantidade mínima tanto de elementos absolutamente necessários, quanto de uma outra infinidade de elementos acessórios, então é sempre possível entender, com maior ou menor grau de exatidão, o que essas categorias significam e, a partir daí, operar uma relação de comparação e equivalência com outros modelos cognitivos 4

De acordo com as convenções da Linguística Cognitiva, conceitos são sempre expressos em versalete. Para uma visão introdutória ao que seriam Modelos Cognitivos Idealizados, cf., entre outros, W. Croft and D.A. Cruse, Cognitive Linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, 28 et seq.; G. Fauconnier and E. Sweetser, Spaces, Worlds, and Grammar. University of Chicago Press, 1996, 240 et seq. e Oakley in D. Geeraerts e H. Cuyckens, The Oxford Handbook of Cognitive Linguistics. Oxford University Press, USA, 2010, (Oxford Handbooks), 218 et seq. 5

idealizados que lhe sejam similares. Quando, no entanto, não se tem acesso a algum dos elementos mínimos ou mesmo a todos eles, ou, de outra forma, a um elemento que tenha grande centralidade para a conceitualização de um modelo, então não teremos como entender esse mesmo modelo. Mais importante ainda, muitas vezes sequer saberemos que não o estamos entendendo, uma vez que não teremos condições de avaliar que nossa conceitualização do referido modelo opera por meio de uma analogia com as nossas próprias categorias mentais que podem não ser centrais ou necessárias, ou podem mesmo estar ausentes do modelo cognitivo da língua de partida. Esse é o caso de Averroés, no conto de Borges, mas também é o nosso próprio caso, exceto pelo trágico detalhe que a grande maioria de nós, como aliás o próprio Averroés no conto, não tem consciência de sua própria ignorância. É fácil, por exemplo, olhar com condescendência para Averroés e com uma certa satisfação para nós mesmos, lamentando a ignorância daquele, enquanto nos congratulamos com a nossa própria capacidade de poder compartilhar de uma cultura herdada que nos permitiu entender precisamente o que “tragédia” e “comédia” significam. No entanto, a realidade é que se pudéssemos ser confrontados com a versão original da Oresteia de Ésquilo ou das Aves de Aristófanes, ou mesmo com uma versão reconstruída com o parco conhecimento que temos do teatro antigo, ficaríamos certamente surpresos, se não chocados, em quanto o drama clássico dista, em todos os pontos, do drama moderno, de tal forma que, talvez, apenas um nome, ademais com pouquíssimo significado, os une. Somos incapazes por exemplo, de entender ou de sentir, toda a dimensão religiosa que o drama clássico tinha para uma audiência original, ou de nos identificarmos, se não de uma maneira erudita e artificial, com a natureza eminentemente política da comédia aristofânica e isto porque lenta, mas inexoravelmente, a recepção dos modelos cognitivos idealizados de

DRAMA, TRAGÉDIA

e

COMÉDIA

legados pelos gregos

começaram a se dessincronizar de seus protótipos de modo que, já durante a vida de Aristóteles, no século IV, esses modelos apresentavam diferenças importantes daqueles do século V. Há uma fina ironia, que de certa forma reflete uma atitude ainda majoritária na crítica textual tradicional, tão dependente da letra, em uma das passagens do conto, em que Averroés sente imenso prazer em abrir sua cópia do Kitab al-'Ayn de Al-Khālil, única em toda Andaluz,

que consiste no fato de que toda a imensa quantidade dos livros, dicionários, comentários e recursos bibliográficos de que Averroés dispunha não eram capazes de lhe proporcionar o entendimento de duas palavras que qualquer criança grega, mesmo muitos séculos depois do ocaso do período clássico, deveria ter das palavras (ou nesse caso, seria mais correto dizermos, dos conceitos) “tragédia” e “comédia” em virtude de sua experiência direta com essas formas. Fosse, no entanto, a razão transcendente, como queriam Aristóteles e o próprio Averroés, ela deveria ser capaz de, com seus próprios recursos de abstração, alçar-se acima do tempo e do indivíduo para reconstruir o significado dessas palavras em toda a sua plenitude. Averroés crê-se, por fim, capaz de fazer isso, e fica contente com a solução que encontra para o seu problema, pois sua fé na razão e nos livros, ademais como toda a fé, lhe mune da certeza de que aquilo que imagina é real. Reconfortante para ele, mas dificilmente para nós, é a total ignorância de seu fracasso. O autor que o imagina, no entanto, não só compreende este trágico detalhe, mas também reconhece a sua própria incapacidade de se conectar com uma realidade que, independentemente da quantidade de informações que possamos ter acerca dela, deve ser sempre o construto da imaginação e que um olhar direto e inequívoco sobre ela lhe fora interdito. Quantos de nós, porém, ainda seguem resolutos em nossa certeza de sermos capazes de entender o legado cultural de mundos há muitos perdidos? Sem, no entanto, percebermos que o que vemos é apenas uma imagem no espelho, como o próprio Averroés imaginado por Borges, que desaparece ou se esfacela quando tentamos contemplá-la face a face.

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