Indivíduo e existência: A Náusea em Sartre e o Absurdo em Camus

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Indivíduo e existência: A Náusea em Sartre e o Absurdo em Camus Lucila Lang Patriani de Carvalho∗

RESUMO Em nossa apresentação pretendemos expor e relacionar, respeitando os limites comparativos, a Náusea e o Absurdo conforme são abordados, respectivamente, por Jean-Paul Sartre e por Albert Camus. Ambos os filósofos participaram do cenário e dos debates da filosofia francesa contemporânea e foram amigos próximos, mas romperam mais tarde publicamente por conta de divergências políticas. Para além de suas diferenças filosóficas, podemos destacar como um possível ponto de convergência entre a filosofia de ambos a ideia de náusea e de absurdo. Tanto a náusea quanto o absurdo são estritamente relacionados à existência humana e, mais especificamente, à contingência do indivíduo, bem como à percepção subjetiva desta condição. É no momento em que tematizamos estes assuntos que o próprio sentido da vida e da existência - ou, por outro lado, a ausência deste - é questionado por ambos os filósofos. Para o recorte proposto em nossa exposição, analisaremos os assuntos conforme abordados tanto em textos considerados como propriamente filosóficos – dentre os quais destacaremos trechos pontuais de “O Ser e o Nada”, bem como do ensaio “O Mito de Sísifo” -, como também por meio dos romances escritos por ambos – sobressaindo o tema do recorte aqui proposto, principalmente, em “A Náusea” e “O Estrangeiro”. PALAVRAS-CHAVE: Náusea. Absurdo. Existência. Filosofia Francesa Contemporânea.

A relação entre o francês Jean-Paul Sartre e o argeliano Albert Camus já estava estabelecida mesmo antes de ambos se conhecerem pessoalmente. Em 1938 Camus leu e resenhou A Náusea – no ensaio intitulado “A Náusea, de Jean-Paul Sartre”, assim como Sartre leu e resenhou O Estrangeiro e O Mito de Sísifo entre 1942 e 1943 através do ensaio “Explicação de O Estrangeiro”. A amizade que se iniciou na pré-estreia da peça de Sartre As moscas, em 1943, acabou publicamente, pouco mais de uma década depois, pelas divergências entre ambos, principalmente as de natureza política. O que cabe ressaltar desta relação para este trabalho é



Mestranda em Filosofia pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected] Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 320

que, antes de se conhecerem ou mesmo após o rompimento, ambos os autores se relacionavam e debatiam de algum modo, explicita ou implicitamente. Um biógrafo (Ronald Aronson) que retrata esta amizade e sua desavença apontou que:

Sartre e Camus foram fortemente atraídos um pelo outro, afetaram profundamente um ao outro, se envolveram com e tiveram conflitos na vida íntima um do outro, e permaneceram envolvidos entre si até muito depois da ruptura. Não é mera retórica quando Sartre, em seu panegírico para o amigo afastado, disse que estar separado é ‘apenas um outro modo de estar junto’. (ARONSON, 2007 p.20).

Para este trabalho a Náusea e o Absurdo serão o foco central deste debate entre os autores. Os temas estão presentes no contexto de suas relações mesmo antes deles se conhecerem efetivamente, mas serviram de pretexto para a aproximação pessoal entre ambos, apesar das diferenças que são inerentes à afinidade que encontraram neste relacionamento. Cronologicamente temos, em um primeiro momento, a publicação de A Náusea, em 1938, o primeiro romance (e romance existencialista) de Sartre, e que, logo em seguida, foi resenhada por Camus. No ano de 1942 tivemos, sequencialmente, a publicação de Camus de O Estrangeiro e O Mito de Sísifo, com apenas seis meses de diferença. Pouco tempo depois, houve a publicação do ensaio crítico de Sartre a respeito destas obras e, em 1946 o filósofo francês publica O Ser e o Nada que, entre outras coisas, situa filosoficamente a Náusea. A Náusea é um romance em primeira pessoa, escrito na forma de diário, e nos conta a história de Antoine Roquentin, personagem de meia-idade, letrado, solteiro, com estabilidade financeira e viajado pelo mundo. Grande parte do cotidiano de Roquentin é traçada em torno de seu trabalho de realizar a biografia de um curioso personagem aristocrata: o Marquês de Rollebon. Além desta atividade, sua vivência social é limitada e pontual, se restringindo a idas à biblioteca e cafés, passeios pela cidade e encontros com conhecidos. Neste cenário aparentemente tranquilo e estável é que Sartre aponta o nascimento e a experiência da náusea, a descoberta de Roquentin a respeito da condição de sua existência, fazendo com que este cenário de estabilidade caia. Em seu cotidiano Roquentin será tomado

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pela náusea, percebendo a ausência de sentido de sua realidade, vivenciando o absurdo da existência humana. A náusea vai surgindo lentamente na vida do personagem, até levá-lo a se identificar com a própria náusea, afirmando que: “a Náusea sou eu” (SARTRE, 2006, p. 159). Em determinado ponto do romance – talvez o que se pode considerar como sendo o ponto culminante -, Roquentin consegue se dar conta e teorizar em uma longa exposição esta sensação que vinha lhe acometendo:

A palavra “Absurdo” surge agora sob minha caneta; há pouco no jardim não a encontrei, mas também não a procurava, não precisava dela: pensava sem palavras, sobre as coisas, com as coisas. [...] E sem formular nada claramente, compreendi que havia encontrado a chave da Existência, a chave de minhas Náuseas, de minha própria vida. De fato, tudo o que pude captar a seguir ligase a esse absurdo fundamental. (SARTRE, 2006, p. 162).

Esta tomada de consciência – ou “iluminação” (SARTRE, 2006, p. 159) - a respeito da náusea e do desvelamento da existência ocorre em meio ao episódio mais conhecido d’A Náusea, a saber, a experiência de Roquentin frente à presença de uma árvore bruta de um castanheiro em um jardim:

[...] de repente, ali estava, claro como o dia: a existência subitamente se revelara. Perdera seu aspecto inofensivo de categoria abstrata: era a própria massa das coisas, aquela raiz estava sovada em existência. Ou antes, a raiz, as grades do jardim, o banco, a relva rala do gramado, tudo se desvanecera; a diversidade das coisas, sua individualidade, eram apenas uma aparência, um verniz. [...] Éramos um amontoado de entes incômodos, estorvados por nós mesmos, não tínhamos a menor razão para estar ali, nem uns nem outros, cada ente confuso, vagamente inquieto, se sentia demais em relação aos outros. (SARTRE, 2006, pp. 160- 161).

Esta experiência faz Sartre dar voz ao personagem para discorrer sobre a existência humana, através dos moldes da contingência, e não como uma cadeia necessária, como se talvez pudesse cogitar. O segredo da existência é que esta se dá de modo absolutamente gratuito, absolutamente absurdo:

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Existir é simplesmente estar aqui; os entes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca podemos deduzi-los. [...] nenhum ser necessário pode explicar a existência [a presença de um Deus, por exemplo]: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que se pode dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. (SARTRE, 2006, pp. 164-165).

Antes deste desvelamento Roquentin tenta, desesperadamente, prender-se à ideia de necessidadeda existência: seja através do encadeamento matemático da melodia do jazz “Some of these days” (Ella FitzGerald) que toca no café, por meio de uma música que segue sempre conforme o esperado; ou através da sequência lógica que o personagem busca dar à vida do Marques de Rollebon, elaborando uma biografia póstuma como que se por meio desta pudesse concretizar uma existência necessária. Acima destas tentativas a experiência da náusea revela o absurdo da existência, a sua falta de sentido, a sua contingência, em oposição à falsa necessidade que aparenta permear a vida. É neste cenário, com as considerações a respeito da náusea de Sartre, que passamos para o absurdo de Camus, destacando a afinidade entre ambos os escritores. A nossa proposta é de uma aproximação e não de uma busca de completa identidade entre suas exposições. Assim, partimos da frase de Camus logo no início de O Mito de Sísifo, claramente direcionada a Sartre: “Esse mal-estar diante da desumanidade do próprio homem, essa incalculável queda diante da imagem daquilo que somos, essa “náusea”, como diz um autor dos nossos dias, é também o absurdo.” (CAMUS, 2010, p. 29). O absurdo de Camus, assim como a náusea, tem suas raízes na existência humana. Para Camus o absurdo tem caráter absoluto, determinando o ponto de partida de toda a sua filosofia. Assim sendo, o único problema que deve ser realmente considerado é se a vida vale a pena ou não ser vivida, problematizando a existência humana. É neste contexto que Camus coloca o problema do suicídio, da escolha entre a vida e a morte:

Qual é então o sentimento incalculável que priva o espírito do sono necessário para a vida? Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 323

errôneos, é um mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, porque está privado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo. (CAMUS, 2010, p.21).

O cenário existencial (não existencialista) do absurdo é muito semelhante ao da náusea: a ausência de sentido, a gratuidade da existência, o retrato próprio da condição humana, do “homem em face do mundo”, conforme destaca Sartre (SARTRE, 2005, p. 120) em sua crítica às obras de Camus. É justamente nesta inadequação, no divórcio entre o sujeito e seu mundo que o indivíduo é colocado na situação de um estrangeiro em meio aos outros homens e à realidade – a exemplo do próprio Meursault, personagem central do romance O Estrangeiro. A experiência do absurdo ocorre de modo semelhante ao da “iluminação” de Roquentin a respeito da náusea, quando da experiência do castanheiro. Um dia, como todos os outros em meio à rotina, algo acontece:

Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o “por quê” e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro. “Começa”, isto é o importante. A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura ao mesmo tempo um movimento da consciência. (CAMUS, 2010, p. 27).

O estudo deste momento no qual se instaura a consciência do absurdo é o que faz relevante o mito de Sísifo na análise de Camus. Conforme conta o mito, Sísifo era um homem muito esperto, até que despertou a fúria dos deuses e foi condenado à morte. Como sua morte fora realizada sem homenagens fúnebres, por conta da instrução que o próprio Sísifo dera à sua esposa, Sísifo recebeu o direito de regressar à vida por um único dia para punir sua esposa pela falta cometida. Ocorre que Sísifo não regressou ao Hades (mundo dos mortos) ao término do dia, recebendo então um

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castigo dos deuses que seria pior do que a morte: Sísifo foi condenado a empurrar uma pedra gigantesca encosta acima e, quando chegasse ao topo, a deixaria rolar e retornar para o vale e ele deveria regressar e levá-la novamente para o topo, repetindo pela eternidade a tarefa carente de qualquer sentido. Assim como em um determinado ponto do cotidiano da vida comum se toma consciência da condição humana, o que interessa a Camus na análise de Sísifo é este trágico momento no qual o indivíduo se torna consciente da futilidade, da falta de sentido, do absurdo de sua tarefa, de sua existência, exatamente como o operário em meio à rotina. No caso de Sísifo a conscientização é analogicamente relacionada a seu regresso ao vale para voltar a empurrar a pedra novamente, percebendo a inutilidade de sua tarefa, mesmo porque, conforme destaca Camus, “este mito só é trágico porque seu herói é consciente” (CAMUS, 2010, p. 123).

Deste modo, torna-se perceptível um esboço das afinidades entre Sartre e Camus. A existência ganha traçado a partir da própria condição humana, em uma composição que não está presente nem somente no homem, nem somente no mundo, mas na interação própria entre ambos (SARTRE, 2005, p.119). O desconforto e a inadequação humana na existência são vivenciados tanto por Roquentin em A Náusea como por Meursault em O Estrangeiro. A Náusea, conforme descrita por Sartre (SARTRE, 2006, p. 162), toma dimensões de Absurdo, assim como o Absurdo de Camus também se faz através da Náusea (CAMUS, 2010, p. 29). É esta sintonia temática entre os autores que os levou à amizade que foi posteriormente estabelecida. Mas, apesar desta afinidade, Camus não queria ver com isto seu nome atrelado a Sartre, como somente mais um de seus discípulos. Sendo assim, Camus se esforçou para firmar sua posição longe do Existencialismo, ganhando destaque independente na cena literária e filosófica da França Contemporânea. Apesar da semelhança de concepções que procuramos estabelecer em nosso trabalho, fazendo com que historicamente Sartre e Camus fossem tratados como similares, não podemos

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nos esquecer de suas divergências, principalmente as políticas, fazendo com que fossem considerados opostos. Deste modo, encerramos com a ponderação de Sartre sobre o relacionamento de ambos, que ocorre justamente quando a amizade entre eles chega ao fim, em uma carta pública em resposta a outra de Camus:

Meu caro Camus: Nossa amizade não era fácil, mas sentirei falta dela. Se você a encerra hoje, isso significa, sem dúvida, que ela tinha que acabar. Muitas coisas nos juntavam, poucas nos separavam. Mas ainda assim essas poucas eram demasiadas. (ARONSON, 2007, p. 11)

Sintetizando, assim, o histórico que possui uma composição de semelhanças, por um lado e de diferenças, por outro, que pesaram mais nesta relação.

Referências Bibliográficas

ARONSON, Ronald. Camus & Sartre: O polêmico fim de uma amizade no pós-guerra; trad. Caio Liudvik. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo; trad. Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2010. SARTRE, Jean-Paul. A náusea; trad. Rita Braga. 1. Ed. Especial – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. SARTRE, Jean-Paul. Situações I – crítica literária; trad. Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

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