Indivíduo, poder e sociedade no pensamento político de J. S. Mill

July 9, 2017 | Autor: G. Hessmann Dalaqua | Categoria: John Stuart Mill, Poder, Individuo, Liberdade, Dandismo
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! Anais do ! V Seminário Nacional Sociologia & Política !

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14, 15 e 16 de maio de 2014, Curitiba - PR!

ISSN: 2175-6880

Indivíduo, poder e sociedade no pensamento político de J. S. Mill. Gustavo Dalaqua.1 RESUMO: O trabalho tem como objetivo trazer à luz as noções de indivíduo, sociedade e poder no pensamento político de J. S. Mill. Para tanto, recorreremos, sobretudo, a On Liberty (1859) e Considerations on Representative Government (1861). Desta primeira obra, destacaremos a concepção de poder esposada pelo autor. Segundo Mill, o processo de massificação e industrialização do século XIX dera vazão a novas modalidades de poder, inassimiláveis ao modelo jurídico, que abafavam o desenvolvimento do eu e boicotavam a conquista da liberdade. Como forma de resistência a esse poder, Mill advogará o cumprimento desviante do costume, estilo de vida crítico definido em oposição à obediência cega, no qual homens e mulheres mantêm uma relação ativa com os  preceitos  de  sua  sociedade  e  “criam  o  seu  eu  [fashion themselves]”  (MILL,  1859,  p. 26). Esse aspecto estético da construção do eu milliano, sugeriremos, o aproxima do dandismo. O objetivo do cumprimento desviante do costume é o de fomentar a oposição entre indivíduo e sociedade, essencial tanto para o florescimento individual quanto para o desenvolvimento político-social. A oposição entre indivíduos e sociedade promove o aperfeiçoamento das instituições político-jurídicas, pois o exame crítico individual é fundamental para denunciar as impropriedades destas. Ademais, de acordo com Representative Government, a oposição entre indivíduos e sociedade é indispensável para a política porque impede a degenerescência do corpo político. O argumento final do texto buscará afirmar que a oposição entre indivíduo e sociedade configura um fulcro ontológico fundamental no pensamento político de J. S. Mill. Sem esta oposição, não há indivíduo, tampouco sociedade. Palavras-chave: John Stuart Mill; indivíduo; sociedade.

O objetivo, no que segue, é explorar as noções de poder, indivíduo e sociedade no pensamento político de J. S. Mill.2 Para tanto, recorreremos mormente a duas obras do autor: On Liberty e Considerations on Representative Government, publicadas em 1

Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná. Contato eletrônico: [email protected] 2 Tal qual Mill, empregarei   os   termos   “indivíduo”   [individual],   “individualidade”   [individuality]   e   “eu”   [self] indiscriminadamente.

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1859 e 1861, respectivamente. Como o próprio título sugere, o propósito da obra é formular uma teoria capaz de salvaguardar práticas de liberdade para os indivíduos na modernidade. O tom textual é, pois, engajado desde o princípio, e nisto mesmo reside seu primeiro deslocamento com relação à tradição moderna do pensamento político sobre a liberdade. “O  tema  deste  ensaio  não  é  a  assim  chamada  liberdade  do  arbítrio,  [...] mas sim a liberdade  civil,  ou  social”  (MILL, 1859, p. 23). É significativo que, já na primeira linha, o autor se sinta como que na obrigação de alertar sobre o que seu texto não é. A discussão da liberdade que o leitor encontrará em On Liberty passa ao largo da querela do livre-arbítrio. Qual a razão do distanciamento? Popular na Inglaterra do século XIX, o debate metafísico sobre o livre-arbítrio é aqui rechaçado por conta de sua esterilidade.3 Do ponto de vista político, a análise minuciosa da relação do arbítrio humano com a temporalidade, a causalidade e o divino é inócua. Talvez seja possível que semelhantes indagações, por vezes, comportem alguma relevância política. No entanto, no mais das vezes, o risco dessas discussões alienarem o filósofo – e aquele que o estuda – da política é alto. Mill procura secularizar o tema da liberdade, resgatando-o do aéreo e fincando-o nas entranhas do mundo quotidiano. Primeira observação. Outro deslocamento que On Liberty opera em relação à tradição diz respeito à sua concepção de poder. Logo no segundo período do texto, o autor declara que seu objetivo maior é analisar os mecanismos pelos quais “o poder [...] é exercido, pela sociedade, sobre o indivíduo. Raramente se formula esta questão, [...] que não tardará a ser reconhecida como a questão vital do futuro”  (MILL, 1859, p. 23). Segundo o autor, “esta questão [sc. a do poder] se apresenta sob novas condições e requer uma abordagem diferente” (idem). Ao observar a sociedade vitoriana de seu tempo, Mill notara a emergência de um novo tipo de poder opressor, que denomina, no quinto parágrafo de On Liberty, de “norma  social”  [social mandate] (MILL, 1859, p. 26). Traduzo mandate por  “norma”  e   não   por   “mandato”,   sua   tradução   usual,   porque   no   vernáculo   este   termo   evoca   uma   acepção jurídica, e não é disso que se trata aqui. Supor uma acepção jurídica a este novo mecanismo de poder implicaria perder de vista sua especificidade.

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Para a crítica completa do autor a este debate, vide A System of Logic (1843), livro VI.

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De acordo com Mill, o poder opressivo da norma social não é assimilável ao esquema Soberano-Lei da teoria política clássica. Para o autor, norma social e lei não são a mesma coisa. Na prática, há leis que não estorvam a liberdade dos indivíduos, que dificilmente se adotam ou que com o tempo caem em desuso, assim como há normas sociais para as quais inexistem leis correspondentes. Para que uma lei se concretize, muitas vezes é necessário toda uma maquinaria jurídico-estatal de fiscalização. Em contrapartida, diversas normas que governam as relações entre os indivíduos não são da ordem do Direito. Acaso seriam normas espontâneas, com as quais o Estado não precisaria se ocupar porque se regulariam automaticamente? De modo algum. Mill quer mostrar que o domínio jurídico-estatal é apenas um dos canais de transmissão do poder. Um número significativo de normas sociais dispensa a ordem jurídica porque já é objeto de regulação e fiscalização no ambiente familiar e no âmbito social. O poder exercido pela norma social não se dá, em suma, pelo Direito. Não obstante, sua força opressiva é tão forte quanto a das penalidades respaldadas pela lei, senão ainda maior. A norma social, diz Mill, cria uma  “tirania  social   mais  formidável   que muitos tipos de opressão política, pois, embora usualmente não se ampare em sanções penais extremas, concede menos meios de escape e penetra muito mais profundamente   nas   minúcias   da   vida,   escravizando   a   própria   alma”   (MILL, 1859, p. 26). A repressão da norma social se dá não apenas externamente, no âmbito das relações sociais, como também internamente, dentro do eu. A norma social impõe a normalização dos indivíduos. A primeira questão que as pessoas se colocam, ao sentirem vontade de engajar em alguma prática, diz respeito à normalidade de seus desejos:

[N]o que concerne apenas o seu eu, o indivíduo [...] não se pergunta: o que prefiro? Ou, o que seria adequado ao meu caráter e disposição? Ou, o que propiciaria ao meu eu a melhor e mais nobre prática, que o expandiria e o desenvolveria? Ele se pergunta: o que convém a minha posição? O que é normalmente feito pelas pessoas que se encontram nas minhas circunstâncias? (MILL, 1859, p. 77).

O poder opressor da norma social se entranha no âmago do indivíduo e passa a administra-lo de dentro, tornando-se critério norteador de sua conduta. Não se trata, 3

nesse sentido, de um poder unicamente repressor. O poder da norma social é também produtor: ele  produz  comportamentos  padronizados,  “autômatos  na  forma  de  humanos”   (MILL, 1859, p. 75). Em todo caso, permanece repressor no que tange à individualidade. A tirania social posta em curso na Inglaterra vitoriana formava um solo inóspito para o desenvolvimento individual e ameaçava substituir uma sociedade de indivíduos por uma sociedade de autômatos. Precisamos proteger o indivíduo contra a sociedade tirânica e homogeneizadora – eis o grande alerta de Mill. Sem dúvida alguma, esta oposição é reiterada inúmeras vezes ao longo de On Liberty.  Entretanto,  é  mister  ressaltar  que  o  autor  define  a  sociedade  como  “coleção  [...]   de  indivíduos”  (MILL, 1859, p. 42). A oposição entre indivíduo e sociedade é reflexo de uma tensão ontológica primacial. A coincidência total entre indivíduo e sociedade implica a aniquilação de ambos. O conflito entre indivíduos e sociedade, veremos alhures, é fundamental para a manutenção e desenvolvimento da sociedade, do indivíduo e da instituição política. Para esclarecer o ponto, vejamos o modo como Mill pensa a resistência. Como o indivíduo pode resistir à sociedade homogeneizadora? Segundo o autor, a resistência é possível   com   “o   cumprimento desviante do costume”   (MILL, 1859, p. 75). Mill o descreve negativamente como oposto à obediência cega, relação passiva em que homens e mulheres não desenvolvem o seu eu. Nesse caso, a rigor, o sujeito não se afirma como indivíduo porque não resguarda em sua pessoa oposição ao meio social. Sua relação com o costume não é livre porque, voluntária ou inconscientemente, ele se reprime para forçar   sua   vida   a   entrar   “dentro   de   um   dos   moldes   pré-formados pela sociedade, de modo a poupar os seus membros do trabalho de formar seu próprio   caráter”   (MILL, 1859, p. 80). O cumprimento desviante do costume perfaz um estilo de vida crítico, que conduz à liberdade. Para Mill, a liberdade se confunde com o desenvolvimento da individualidade, que reclama oposição ao meio social. Longe de ser ruim para a sociedade,

semelhante

oposição

é

salutar

porque

possibilita

a

reforma

e

aperfeiçoamento das instituições sociais. O exame crítico da norma social e do costume é o único meio de averiguar a propriedade de ambos. A resistência em aderir mecanicamente à sociedade é a força-motriz do desenvolvimento político-social. Na filosofia milliana, o indivíduo opera como instância legitimadora da sociedade, da 4

política e do Direito. O desenvolvimento individual é o que justifica a legitimidade de um regime político, e a crítica individual da lei é uma dos meios mais eficazes para o aperfeiçoamento do ordenamento jurídico (cf. MILL, 1861, cap II e MILL, 1863, cap V, §6). Para melhor ilustrar o cumprimento desviante do costume, gostaria de realizar um breve excurso sobre o dandismo, movimento estético cujas origens remontam à Inglaterra do tempo de Mill. Não é forçoso ver no dândi uma figura muito próxima ao ideal da individualidade milliana. De maneira análoga a On Liberty, o dandismo nasceu em resposta à massificação observada nas sociedades burguesas do século XIX. Para justificar a comparação, recorro, naturalmente, ao mais célebre manifesto do dandismo, publicado apenas quatro anos após On Liberty. De acordo com a descrição de Baudelaire,  o  dândi  seria  um  adepto  da  antiga  prática  do  “culto  de  si  mesmo”, sem ser, portanto, destruidor da sociedade (BAUDELAIRE, 1863, p. 48). Longe de ser átomo isolado,  o  dândi  é  um  indivíduo  antenado  com  a  sociedade,  “que  compreende  o  mundo  e   as razões [...]   dos   seus   costumes”   (BAUDELAIRE,   1863,   p. 15). Ele não prega o extermínio radical da sociedade, tampouco se desenvolve às expensas de outrem. O dândi respeita a sociedade, ao mesmo tempo em que a ela se opõe. Trata-se, porém, de um   respeito   desviante,   marcado   pela   “necessidade   ardente   de   alcançar   uma   originalidade dentro dos limites exteriores   das   conveniências”   (BAUDELAIRE, 1863, p. 48). O dândi é aquele sujeito que, mediante o cumprimento desviante do costume, se empenha em fazer da sua vida uma autêntica obra de arte. “Dentre as obras do homem, que é correto à vida humana dedicar-se em aperfeiçoar e embelezar, a primeira em importância é, certamente, o próprio homem" (MILL, 1859, p. 75). A estetização da existência é peça-chave da doutrina da liberdade esboçada em On Liberty. Tal qual o dândi, o indivíduo milliano também carrega em si o desejo   ardente   de   transformar   sua   vida   em   obra   de   arte.   “Não   é   forçando   à   conformidade tudo o que há de individual no seu eu, mas sim por meio de seu cultivo e estímulo, dentro dos limites impostos pelos direitos e interesses de outrem, que os seres humanos  se  tornam  um  objeto  de  contemplação  nobre  e  belo”  (MILL,  1859,  p.  79).   Qual o caráter político da liberdade milliana? Em que sentido o desenvolvimento crítico da individualidade pode ser considerado politicamente relevante? A resposta, segundo Mill, seria a de que o desenvolvimento crítico da individualidade é 5

imprescindível à política porque, primeiro, garante o aperfeiçoamento das instituições político-sociais e das leis; o exame individual da norma social e da lei escancaria as falhas das instituições estabelecidas e possibilitaria, por conseguinte, o aprimoramento de ambas. Em segundo lugar, o caráter político do desenvolvimento da individualidade se deve ao fato de que o cumprimento desviante do costume garante a manutenção da diversidade de estilos de vida e a existência de perspectivas plurais, ambas essenciais para a política. Por   que   a   “família   europeia”   seria,   na   visão   de   Mill,   politicamente   muito mais dinâmica que a China (MILL, 1859, p. 87)?4 Porque, responde o autor,

[na Europa] Indivíduos, classes e nações foram e são extremamente distintos uns dos outros: eles percorreram uma grande variedade de caminhos, cada um conduzindo a algo valioso. Embora, em cada etapa, aqueles que viajavam em caminhos diferentes fossem intolerantes entre si e reputassem como algo excelente se se forçasse todos os demais a seguir a sua [própria] estrada, as tentativas de sabotar o desenvolvimento de outrem raras vezes obteve sucesso permanente; cada uma resistiu ao tempo, e recebeu o bem que as outras tinham a oferecer (MILL, 1859, p. 88).

A oposição incessante entre indivíduos, sociedades e nações é o que explicaria o desenvolvimento político da Europa. A divergência foi positiva e não negativa porque nenhum membro  da  “família  europeia”  foi  forte  o  suficiente para se impor e acabar com a oposição de uma vez por todas. A convivência forçada foi, no balanço final, produtiva porque obrigou os europeus a firmarem sucessivos acordos e a interagirem entre si. Algo semelhante, segundo o autor, teria ocorrido na Grécia e Roma antigas (MILL, 1859, p. 23). O   “antagonismo   de   influências   [...]   é   a   única   segurança   efetiva   para   a   continuidade   do   progresso”   (MILL, 1861, p. 235). A oposição entre indivíduos e sociedade é, em resumo, constitutiva do progresso político. Uma comunidade sem oposição é uma depravação política. A fortiori, a ausência de oposição assinala justamente o extermínio da sociedade política – seria, na visão do autor, o caso da 4

Os reproches dirigidos à China são constantes em On Liberty. Elogiada por sua diversidade social, a Europa é definida em contraposição à China, povo considerado “sem  história”, porque sem oposição entre indivíduos e sociedade (MILL, 1859, p. 86). Para uma crítica pertinente à visão depreciativa dos povos orientais, apanágio do século XIX que maculou o pensamento milliano, e uma análise de seu conluio com o colonialismo europeu, vide SCHULTZ (2007).

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China, cuja homogeneidade teria ido ao ponto de exterminar a individualidade e acabar com a política (MILL, 1859, p. 87). Para Mill, o corpo político deve saber aproveitar a oposição entre indivíduos e sociedade, sem jamais exterminá-la:

Esta consideração é de importância na composição de qualquer corpo político: pessoas de ambos os tipos [sc. conservadores e progressistas, velhos e jovens – enfim, grupos sociais antagônicos] devem ser incluídas, de sorte que as tendências de cada um sejam equilibradas, à medida que forem excessivas, mediante a devida proporção do outro [grupo antagônico] (MILL, 1861, p. 225).

Mill elaborará um plano de representatividade política para as minorias, justificando que os indivíduos que se opõem à sociedade devem participar do corpo político (MILL, 1861, p. 303). A existência de minorias que oferecem resistência à maioria da sociedade impede a corrupção da política:

Um dos maiores perigos, [...] para todas as formas de governo, reside nos interesses sinistros dos detentores do poder: é o perigo da legislação de classe, do governo que visa [...] o benefício imediato da classe dominante, em detrimento do todo [...] O desejável seria que nenhuma, ou nenhuma combinação de classes propensa a se agrupar, conseguisse exercer uma influência preponderante no governo (MILL, 1861, pp. 299-300).

Ao barrar a prevalência irrestrita dos interesses privados de um grupo particular sobre os demais, as minorias evitam a degenerescência do corpo político. Elas impossibilitam que uma classe se apodere de todos os postos do governo e faça com que toda a política não seja senão orientada para a satisfação de seus desejos privados. A fricção entre diferentes indivíduos e a sociedade é indispensável à política. Indivíduos críticos, que se recusam a conformar-se tout court às leis e normas da sociedade, são necessários  à  vida  política  porque  “não  apenas  descobrem  novas  verdades,  e  denunciam   as verdades que não mais valem, como também ensejam novas práticas, fornecendo o exemplo  para  uma  conduta  mais  esclarecida”  (MILL,  1859,  p.  80).  

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A oposição entre indivíduo e sociedade configura, enfim, um fulcro ontológico primacial no pensamento político milliano. Sem ela, não há indivíduo, tampouco sociedade. A sociedade, define Mill, é uma coleção de indivíduos. Portanto, uma comunidade sem oposição é destituída de vida social, pois a ausência de oposição é sintoma, justamente, da ausência de indivíduos. O atrito entre indivíduo e sociedade é o melhor remédio contra a decadência política e o mais potente estímulo para a vitalidade social (MILL, 1859, p. 79). O desenvolvimento individual e político-social comungam de um fundamento em comum. Apesar de afirmar que as instituições político-sociais têm um aspecto formativo para a individualidade – elas desenvolvem as diferentes capacidades humanas, permitem o intercâmbio social e multiplicam a diversidade de opiniões (MILL, 1861, pp. 208-10) –, Mill jamais postula o indivíduo como um produto passivo da sociedade. Atingido certo patamar de desenvolvimento, o indivíduo passa a desfrutar de poder próprio, o que o habilita a reivindicar, rivalizar, inclusive reestruturar o Direito e as instituições político-sociais. Na medida em que incita certas condutas, as instituições político-sociais exercem um poder produtivo, que promove, põe à frente, convoca – “call forth” é a expressão que Mill utiliza inúmeras vezes – um determinado tipo de sujeito. Entretanto, o sujeito não deve permanecer sempre em submissão. De acordo com Mill, para que o indivíduo consiga fornecer sustentação ontológica à sociedade que o desenvolveu, é preciso que ele vire um foco de resistência ao poder social coercitivo. A existência da sociedade se define como amálgama diversificado de indivíduos, e é em oposição à sociedade, por sua vez, que os indivíduos afirmam sua existência. Entre indivíduo e sociedade há, pois, promiscuidade, uma mútua dependência ontológica. Este texto procurou elucidar as noções de indivíduo, poder e sociedade no pensamento  político  de  J.  S.  Mill.  De  início,  reconstruímos  brevemente  a  “Introdução”   de On Liberty, onde observamos um duplo deslocamento que a obra opera com relação à tradição do pensamento político moderno. Em primeiro lugar, On Liberty faz questão de afastar a liberdade das querelas metafísicas, afirmando a urgência de atentarmos para o que o autor designa de liberdade social, isto é, a liberdade que se dá no âmbito das relações sociais entre homens e mulheres. O segundo deslocamento do autor refere-se à sua concepção de poder. Segundo Mill, a conjectura do século XIX – a industrialização, a proliferação dos meios de comunicação, o letramento das massas, o nascimento da 8

opinião pública, a padronização do gosto e dos estilos de vida (MILL, 1859, pp. 88-9) – ensejara novas modalidades de poder, que funcionavam não pelo Direito, mas pela normalização, e que se exerciam em níveis e formas que extravasavam o Estado e seus aparelhos. Incrustando-se no cerne da alma, tais mecanismos de poder levariam o indivíduo a sabotar o livre desenvolvimento de suas potencialidades e o tornaria um autômato na forma humana, um sujeito completamente passivo, incapaz de se opor à sociedade. Feito isto, apresentamos a defesa do cumprimento desviante do costume, realizada no terceiro capítulo de On Liberty, como forma de resistência ao poder tirânico da sociedade homogeneizadora. Tal cumprimento, sugerimos, é incorporado pela figura do dândi, que mediante o respeito desviante das normas sociais, empenha-se em transfigurar sua vida em obra de arte – exatamente como o indivíduo milliano, que almeja cultivar o seu eu de modo a fazê-lo florescer em todo seu esplendor. O dândi é aquele que, negando conformar-se à sociedade, a ela se associa. A oposição que o dândi e a individualidade milliana representam é imanente à própria sociedade. Argumentamos que o jogo de cintura crítico levado a cabo pelo indivíduo milliano é politicamente relevante porque, ao examinar as instituições político-sociais, a oposição que ele afronta à sociedade ocasiona seu progressivo aperfeiçoamento. Ademais, a oposição entre indivíduos e sociedade é arma eficaz no combate à corrupção política, pois inviabiliza a usurpação do corpo político por apenas um grupo particular. A união da sociedade emerge sobre um fundo de heterogeneidade e antagonismo que configura seu pressuposto, sem o qual a política, o indivíduo e a sociedade cessam de existir. O pluralismo e o antagonismo das influências sociais é condição para o desenvolvimento da sociedade e do indivíduo, e governo nenhum deve combate-lo. Ao contrário, a política deve fundamentar-se na oposição e constituir seu corpo político de modo a aproveitar as rixas entre os indivíduos. A oposição entre indivíduo e sociedade é um dos pontos nefrálgicos da filosofia de J. S. Mill, e configura um fulcro ontológico primacial em seu pensamento político. Sem esta oposição, não há indivíduo, tampouco sociedade.

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Referências. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade (1863). Org. de C. Teixeira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. MILL, John Stuart. A System of Logic (1843). Chicago: Open Court, 1988. _____.  “Considerations  on  Representative  Government”  (1861).  In:  _____.  On Liberty and other essays. Col. “Oxford  World’s  Classics”.  Oxford:  Oxford  University  Press,   2008. _____.  “On  Liberty”  (1859).  In:  GRAY,  J.;;  SMITH,  G.  J. S. Mill On Liberty in focus. Londres: Routledge, 2002. _____. Sobre a Liberdade. Lisboa: Edições 70, 2006. _____.  “Utilitarianism” (1863). In: _____. On Liberty and other essays.  Col.  “Oxford   World’s  Classics”.  Oxford:  Oxford  University  Press,  2008. _____. Utilitarismo. Porto: Porto, 2005. SCHULTZ, Bart. “Mill  and  Sidgwick,  Imperialism  and  Racism”. Utilitas, vol. 19, no. 1. Londres: Cambridge, 2007.

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