INDIVÍDUOS E ESSÊNCIAS

June 5, 2017 | Autor: Luisa Coutosoares | Categoria: Aristotle, Essentialism, Individual Differences
Share Embed


Descrição do Produto



1



. Cfr. início Livro Z; estamos por agora a empregar indistintamente os usuais termos latinos de essência, substância, correspondentes às expressões gregas aristotélicas e ousia; mais adiante trataremos do problema das expressões aristotélicas e seu verdadeiro significado.
. Russell, B. - My Philosophical Development, London-New York, 1959, p. 160.
. Cfr. ibidem, p. 161.
. Ibidem, p. 161.
. Cfr. ibidem, p. 160.
. Cfr. Metafísica, , 17, 1022a7-9: Aristóteles indica precisamente o significado de limite e, entre outros, indica a realidade, ou a essência de cada singular, argumentando deste modo peculiar: (a essência é o limite), "porque este é o limite do nosso conhecimento da coisa, e se é um limite do conhecimento, é também um limite da coisa".
. Cfr. Metafísica, , 17, 1022a13-14.
. Cfr, por ex. Z, 4, 1029b15-30.
. Wiggins emprega este termo, embora, como vimos já, a ideia de algo que persiste, para lá de toda a forma, mudança, etc. acompanha a noção vazia de identidade numérica: o que persiste, em última análise parece ser uma matéria entendida como resistência ao movimento e às formas.
. Cfr. Sellars, W. - "Substance and Form in Aristotle", The Journal of Philosophy, 54 (1957) p. 690, n. 5: o autor chama a atenção para esta distinção manifesta já num texto dos Tópicos, 102b20: " 'Essence' is here the translation of and has the sense of the 'what it is' or 'identity' of something. To give someting's is to identify it as, say, 'a man' or 'an animal' or, and this is the crux of the matter, 'a white (quale)' or 'a color (quale)'. In 102a32 Aristotle writes, "We should treat predicates in the category of essence all such things as it would be appropriate to mention in reply to the question 'What is the object before you?' " Notice that the distinction between the first class of predicates and the remaining nine which is drawn in this passage is not that between substance and the various sorts of thing that can be said of substances, but rather between the identity, the of an item of whatever category in the more familiar sense, and the sort of things that can be said of it".
. Sobre o sentido de no livro Z, entre a numerosa bibliografia, defendem nomeadamente o sentido de forma do individual, por exemplo, Albritton, R. - "Forms of particular substances in Aristotle's Metaphysics", Frede, M. e Patzig, G. - Aristoteles/ 'Metaphysik Z'. Text, Übersetzung und Kommentar, München, Beck, 1988.
. O termo grego foi vulgarmente traduzido pelo latino substantia, com os inconvenientes bem conhecidos, sobretudo o de vincular o seu significado sobretudo ao de substrato, que não é senão um dos sentidos que Aristóteles afirma poder atribuirselhe, embora incorrectamente. é derivado do particípio presente do verbo e significa portanto o que é; tratase do primeiro sentido do termo ser, exprimindo originariamente o quê de uma coisa, a sua própria individualidade ; e este quê, tradução possível de significa a (Cfr. Z, 1, 1028a10-15). Literalmente, Aristóteles apresenta a como um sentido privilegiado, primeiro do termo mais genérico e vago (neutro do particípio presente do verbo .
. - é a expressão de Aristóteles que deu origem a essentia; nalguns casos é traduzida por quidditas. Têm sido propostas variadas traduções literais sempre um tanto estranhas: "the what-it-was-to-be", "le ce que c'était que d'être", o que é (era) para cada coisa ser".
. Cfr. Irwin, T. - Aristotle's First Principles, Oxford, Clarendon Press, 1988, cap. 10.
. Cfr. Aubenque, P. - Le Problème de l'être chez Aristote, p. 463: "C'est donc comme question que doit être pensé le Pensé comme question, il doit l'être dans le prolongement de la question fondamentale et évidemment plus primitive: Une fois admis qu'il s'agit de deux questions, qui sont pourtant voisines et dont la seconde paraît au premier abord un redoublement de la première, le problème est de savoir pourquoi Aristote ne s'est pas contenté de celleci (...) Le socratique ou platonicien n'épuise pas la richesse de déterminations du c'est-à-dire de l'être individuel et concret".
Mas esta riqueza de infinitas determinações é de imediato considerada como riqueza de "acidentes", que ultrapassa as possibilidades do discurso. Aubenque passa à exploração da aporia da "ciência do acidente", como se o nos remetesse inexoravelmente para o acidental e escapasse sempre a qualquer tipo de conhecimento por apreensão, ou evidência...
. Cfr. Berti, E. - Contradizione e dialettica negli Antichi e nei moderni, Palermo, Liepos, 1987, pp. 106-111.
. Metafísica, , 17, 1022a4-5.
. Cfr. Walker, R. - Kant (cap. II, "Transcendental Arguments" pp. 14-27), London, Routledge & Kegan Paul, 1978: todo este capítulo sobre os argumentos transcendentais em Kant mostra com muito interesse a estratégia argumentativa de Kant na Crítica.
. Cfr. ob. cit., p. 15.
. Cfr. ob. cit., p. 23.
. Cfr. ob. cit., p. 23; Ak. II, 82.
. Cfr. , 4, 1006a5-10.
. Cfr. Metafísica, , 17, 1022a9-10.
. Cfr. , 4, 1006b5-10.
. Como referimos já, não se trata de opor o PNC ao princípio de identidade do singular consigo mesmo.
. Parece-me que não se trata aqui apenas de uma questão de realismo/ idealismo, mas da própria viabilidade de uma estruturação, de uma reconstrução do nosso discurso lógico.
. Cfr. , 17, 1022a7-10: "Limite é também a substância formal de cada coisa e a sua essência, porque é o limite do conhecimento, e, como limite do conhecimento, é também limite da coisa". Há, portanto identidade do limite da coisa e o limite do conhecimento que dela temos.
. Sobre interpretação e possíveis traduções da expressão aristotélica tem havido uma vasta bibliografia sobre esta fórmula: o primeiro artigo é o de Trendelenburg, F. - "Das , etc., und das bei Aristoteles. Ein Beitrag zur aristotelischen Begriffsbestimmung und zur griechischen Syntax", Rheinisches Museum, II (1828) pp. 457-483; Tugendhat, E. - TI KATA TIN Eine Untersuchung zu Struktur und Ursprung aristotelischer Grundbegriffe, Freibourg/München, 1958. Bassenge, F. - "Das etc. etc. und das bei Aristoteles", (retomando o título de Trendelenburg), Philologus, 1960, Band 104, pp. 14-47 e 201-222; Buchanan, E. - Aristotle's Theory of Being, Cambridge, Massachussets, 1962 (pp. 30-39). Owens, J. - The Doctrine of Being in the Aristotelian Metaphysics, Toronto, 1963 (2nd ed.).
. Cfr. Buchanan, E. - ob. cit., p. 30 e nota 2; Cfr. Aubenque, P. - ob. cit., p. 464: Trendelenburg considera que o imperfeito significa a "anterioridade causal da forma em relação à matéria"; Tugendhat conclui que o designa o que a coisa era antes de lhe terem sido acrescentados os predicados acidentais, o que a coisa é por si, na sua autosuficiência essencial. Aubenque (ob. cit., p. 467-68), invocando dois textos anteriores a Aristóteles, de Antístenes, pensa que o imperfeito significa a anterioridade do ser em relação à linguagem sobre ele. Não falamos nunca do que está já aí e do qual nada sabemos a não ser que está aí. O tempo próprio da linguagem é o imperfeito. Este desfazamento da linguagem em relação ao ser do qual fala tornase particularmente manifesto quando se trata de definir uma coisa exprimindo a sua essência: em termos abstractos, não há atribuição essencial - no caso do homem - a não ser no imperfeito, referindose portanto a algo que é o que é, precisamente porque já não é.
. Cfr. Buchanan, E. - ob. cit., p. 31.
. Cfr. ibidem, p. 32, n. 6: cita como exemplo as seguintes passagens Metafísica, Z, 6, 1071b3; De Anima, II, 7, 419a9-10.
. Cfr. ob. cit., p. 35.
. Cfr. Buchanan, E. - ob. cit., p. 36, n. 17: cita Arpe, que, seguindo E. Kapp, sugere que representa uma tentativa de encontrar uma inequívoca fórmula para a pergunta por uma definição, uma vez que a pergunta é demasiado ampla, permitindo o nome ou o género, ou até alguma descrição particular.
. Cfr. Bassenge, F. - art. cit., p. 209: "Daß unsere Formel das objektive Korrelat der Definition oder - noch genauer - des Definierenden bezeichnet, ist außer Streit. Aristoteles bringt dies am schärfsten wohl in 1022a9 zum Ausdruck, wo das des Einzelnen als eine Art Grenze bestimmt wird, und zwar als Grenze der Kenntnis wie der Sache selbst. Das ist die 'Grenze' der Sache selbst, die in der Definition, in der 'Abgrenzung' erkannt wird".
. Cfr. também Liske, M.-T. - Aristoteles und der aristotelische Essentialismus, Freibourg, München, K. Alber, 1985, p. 261: "... zwar fragt es nicht danach, was ein bestimmtes Seiendes ist, wie etwa "Was is der Mensch?", sondern danach, was ein bestimmtes Sein ist, wie z.B. "Was ist das (wesentliche) Sein für den Menschen?" (...) Die einfache Frage, was eine Sache sei, ist noch nicht eindeutig; man kann diese Was-ist-Frage, (...) durch einen schlichten Sortalbegriff beantwortet sehen. Erst die Frage, was das wesentliche Sein für eine Sache ist, verlangt eindeutig die Definition als Antwort".
. Cfr. Weidemann, H. - " und ", Hermes, 110 (1982) p. 177: o autor considera por isso mesmo errónea a tradução de por "Wesenwas", assim como a tradução de por "um qualquer singular", que omite a importância de O que Aristóteles entende por um pensa Weidemann é a expressão geral que designa aquilo que cai sob a categoria de , isto é algo que responde satisfatoriamente à questão "o que é?": "Ein ist somit ein Das-und-das, d. h. ein als das, war er ist, angesprochener Gegenstand". Por isso "homem pálido" não é um , pois não responde à pergunta "o que é?", mas sim a "como é?" (wie beschaffenes?), cuja resposta será ein so und so beschaffener. Pela argumentação de Aristóteles, Weidemann conclui que só se dá um para um , isto é, não um qualquer singular, mas um singular primeiro, básico (Cfr. p. 178).
. Arpe, cit. por Buchanan, E. - ob. cit., p. 36, nota 19: "Aber Aristoteles spricht nicht vage von 'dem' (welchem?!) Sein des Menschen, sondern nur ganz bestimmt von dem Menschensein des Menschen".
. Cfr. Buchanan, E. - ob. cit., p. 39.
. Cfr. Bassenge, F. - art. cit., p. 19: "Die Frage nach einem nackten ist bei Aristoteles nirgends zu finden und käme jedenfalls in unserem Zusammenhang, in dem es um Definitionen geht, überhaupt nicht in Betracht. Wohl aber findet sich gerade dort, wo ein in Rede steht, häufig die Frage nach dem zu einem "Einzelnen" gehörigen Sein".
. Sobre a discussão das várias interpretações do imperfeito, Cfr. Bassenge, F. - art. cit., pp. 25-47.
. Cfr. Liske, M.-T. - ob. cit., p. 261; cfr. Anscombe, E. e Geach, P. - Three Philosophers, p. 11: "The question 'What is...?' is a particularly natural form of enquiry where we have substantives - including verbal nouns: 'what is dreaming?', 'What is a coefficient of expansion?', 'What is the alphabet?'. The kind of answer that is being asked for by questions of this form is very various. In the first place it varies according to the subject matter".
. Metafisica, Z, 6, 1031a17-20.
. A este propósito conviria recordar aqui a teoria referencial de Frege que não distingue mas identifica sob a mesma categoria semântica os nomes próprios, constituídos por um só signo, e as expressões compostas, desde que refiram um só objecto. Para Frege "Aristóteles", ou "o discípulo de Platão" apresentam o mesmo valor ou a mesma força referencial, ambos designam o indivíduo Aristóteles. De acordo com o pensamento deste último, haveria que distinguir entre a força referencial do nome próprio que identifica, selecciona, um objecto, e a expressão composta que não o significa propriamente (não está em vez de...), mas diz algo sobre...
. Metafísica, Z, 6, 1031b19-23.
. Cfr. Buchanan, E. - ob. cit., p. 45.
. Cfr. Anscombe, E. - Three Philosophers, p. 43: "He explicitly links the discussion of his form of the principle of contradiction with his account of substance: people who deny the principle of contradiction have to deny substance: that is, they have to deny that there is any such thing as "what it is to be man" or "what it is to be an animal". For these prases give us what it is to be a given individual: if both what is expressed by them and by their negations could be found in an individual, what it is to be that individual would not be expressed by them. Thus, I should interpret the argument, Aristotle's principle of contradiction holds at any rate for predicates such that being the same X is being the same individual, and people who deny the principle have to deny that there is any such thing, and maintain that every predicate attaches accidentally".
. Cfr. Metafísica, Z, 6,1032a1-5.
. Cfr. Anscombe, E. - Three Philosophers, p. 43.
. Anscombe compara, assinalando as divergências, este requisito de indivíduos como referentes directos dos nomes, com a necessidade de objectos no Tractatus de Wittgenstein: cfr. Three Philosophers, p. 45: "There is thus a comparison and a contrast with Wittgenstein of the Tractatus. For Wittgenstein also thought that there had to be what the objects named in propositions are, but that this could not be expressed by any proposition; propositions, he says, can only express how things are, not what they are. And he uses the word 'substance' of his objects: they 'form the substance of the world'; the requirement that names of them should be possible is the requirement of definiteness of sense, without which there would not be that understanding of the sense of propositions which enables us to draw conclusions from them. Wittgenstein's substance differs from Aristotle's in being simple, permanent, inexpressible - and chimerical. But if there were a proposition saying what an object (or substance) was, then it is clear that it would be of a different character from any propositions stating what (...) holds of a given substance".
O requisito aristotélico da substância, traduzse também na nítida distinção entre dizer como as coisas são, e dizer o que são. Os nomes, ou as expressões que pretendem dizer o que uma coisa é, referem a substância individual. As substâncias de Aristóteles, no entanto, ao contrário dos objectos de Wittgenstein são complexas, engendráveis e corruptíveis, exprimíveis e não quiméricas.
. Cfr. Z, 17, 1041a5-10.
. Et. Nic., 1097b22-24.
. Cfr. Z, 17, 1041a8-10.
INDIVÍDUOS E ESSÊNCIAS

Pode falar-se de essências de indivíduos? O que é um indivíduo? Uma coisa individual? Mas o que determina ou define que seja individual? A sua localização espácio-temporal? O facto de ocupar um só lugar que nenhum outro pode ocupar simultaneamente? Nenhum destes critérios é suficiente para caracterizar definitivamente o indivíduo. E muito menos, portanto para dizer algo sobre a sua essência: o que o distingue absolutamente de qualquer outro? Não pode haver portanto dois indivíduos idênticos, essencialmente idênticos, o que equivale a dizer, com Leibniz, que cada indivíduo é uma essência completa, única, totalmente distinta de qualquer outro.
Nesta primeira parte, examinaremos o problema no pensamento aristotélico, nas suas dimensões lógica, e ontológica, que será revisitado e reformulado por vários autores na analítica contemporânea. Deixaremos para uma segunda parte a exposição de algumas das teses avançadas e discutidas na analítica contemprânea.







RETORNO AO ESSENCIALISMO

O essencialismo tem sido uma das questões do pensamento aristotélico e tradicional mais revisitada pela filosofia contemporânea de orientação analítica. Este retorno a uma série de problemas e discussões já enterrados pela filosofia moderna na sua revisão da bagagem e dos intrumentos conceptuais utilizados pela filosofia clássica, confirma, a diversos níveis, que noções como as de indivíduo, identidade, substância, essência..., se por vezes parecem superadas, ou contornadas por esquemas de pensamento alternativos, acabam por ressurgir, como velhas e pesadas, mas fortes e irrecusáveis condições do próprio pensamento.
Este retorno, facilmente detectável nalgumas das problemáticas características da lógica filosófica, da filosofia analítica da linguagem deste século, é apenas um retorno tímido, um apontar tangencialmente para o problema, sem no entanto chegar nunca a abordálo directamente: assim, na conhecida polémica dos filósofos da linguagem e lógicos, entre descritivismo e teorias referencialistas, o termo essência não ocorre nunca, mas é o problema da essência do indivíduo que está subentendido e sempre implícito em todas as discussões referentes às descrições definidas de Russell e aos nomes próprios, nas diversas concepções e teorias da referência. No fundo, a partir da semântica de Frege, assente no binómio sentido/referência, que por sua vez conduz às categorias do exprimir, descrever/referir, nomear, o problema da essência do indivíduo paira como uma espécie de sombra negra em todas as teorias da referência: é possível designar, referir os objectos de um modo directo, sem ser via conceito, sem enveredar pelo sentido expresso através de alguma descrição, ou o objecto de referência é sempre algum ponto imaginário, foco regulador, mas inesgotável pela infinidade de expressões que o possam referir. Quando Frege, no seu célebre ensaio SuB, nega peremptoriamente a possibilidade de adquirirmos um conhecimento total da referência - "Isto, porém, nunca conseguiremos" - não estará afinal a responder negativamente também à possibilidade de conhecer a essência? Conhecer a essência, é, para Aristóteles ter a capacidade de responder sem ambiguidades à pergunta "o que é isto?"; a essência (neste caso a substância no sentido de essência), designa, refere o o quê, ou a individualidade ( de uma coisa. Afirmar a dizibilidade da essência de um ser singular é, em registo semântico, defender a categoria do nome próprio e a sua força referencial directa, sem o contorno da descrição. No entanto, como sabemos, a teoria referencial dos nomes próprios em Frege é um tanto ambígua e não permite uma clara e total garantia da sua capacidade referencial para identificar inequivocamente um objecto, um indivíduo determinado. A noção de objecto em Frege permanece sempre como algo de carácter nouménico, para além das descrições fenoménicas expressas nas múltiplas formas de o designar. Daí a crítica de Kripke à semântica descritivista de Frege, que assimila à de Russell. E a teoria dos nomes próprios proposta por Kripke - designadores rígidos que referem o mesmo indivíduo em qualquer mundo possível - aponta nitidamente para um pressuposto de carácter essencialista, se bem que este nunca seja explicitamente tematizado por Kripke.
A lógica e a semântica de Russell têm também, como pano de fundo o problema da "essência do indivíduo": o que perturba Russell, o que constitui problema na tradução simbólica da linguagem, não são os predicados, os universais, mas sim as substâncias individuais. A categoria de "predicado substancial", ou substantivo, é considerada imprópria para quem, como Russell, defende que
"tudo o que existe é composto de conceitos necessariamente ligados uns com os outros de modos específicos, e do mesmo modo, com o conceito de existência".
Os indivíduos não são senão "feixes de qualidades" (bundles of qualities). A descrição algo pitoresca da substância revela bem a herança que Russell recebera do empirismo e da sua estranha concepção de substância: Russell afirma que esta é algo de semelhante a
"um gancho invisível no qual se dependuram as propriedades tal como presuntos nas traves de uma casa de campo".
Pretender designar esse "gancho invisível" equivale a atribuir ao nome próprio uma misteriosa função semântica de representar e traduzir em qualquer circunstância esse conjunto de propriedades, identificandoos pelo "invisível gancho" do qual pendem. Para Russell, como é bem sabido, a referência em directo através de um nome próprio só pode resultar quando ocorre numa situação de conhecimento e observação directa (acquaintance). O próprio artigo definido (the), denota uma espécie de objecto bastante peculiar, que o lógico só esperaria encontrar no universo platónico.
Nas teorias descritivistas, como a de Russell, e, até certo ponto a de Frege, à pergunta pela essência individual, pelo objecto, pela substância, não se pode dar uma resposta única e inequívoca; não é possível traduzir esse algo misterioso que "sustenta", ou que se mostra através de vários modos, que revela uma infinidade de propriedades e de relações, através de um nome único, que identifique esse "algo" no mundo dos existentes. A categoria do nome próprio é banida da linguagem formal e substituída por sinais de predicados sob o domínio de quantificadores, que, traduzindo descrições desse objecto o vão contornando, desvelando, mas nunca chegarão a uma radical identificação.
Como alternativas às teorias " descritivistas", têm sido propostas várias teorias da referência que defendem e justificam a possibilidade de uma referência directa aos objectos, aos indivíduos, garantindo assim uma "ancoragem" da linguagem no mundo. Referimos a teoria dos nomes próprios de Kripke, cuja formulação indica um certo "compromisso essencialista" - um indivíduo, designado por um nome próprio, é o mesmo indivíduo em todos os mundos possíveis, quer dizer, apesar de todas as variações imaginárias, se esse indivíduo existe, a nossa imaginação de possíveis tem um limite, e esse limite é constituído precisamente por aquilo que, na terminologia de Aristóteles, é o quê de cada singular, "a realidade ou essência de cada coisa". Retirar este limite, que neste caso tem o sentido de um começo, de um princípio, significa negar um limite, um começo do conhecimento. É importante reter esta ideia fundamental que Aristóteles aponta nesta breve passagem da Metafísica: a assimilação da realidade ou essência de cada coisa com o limite ( ), por ser justamente o limite do conhecimento. A este mesmo argumento, como veremos, recorrerá Aristóteles como prova da identidade de cada singular com a sua própria essência, no livro Z: a prova consiste em que nós conhecemos de facto o que são as coisas, e esse conhecimento, saber o que é seristo, é precisamente o conhecimento da essência.
De um modo semelhante, embora em registo, terminologia e horizonte completamente diferentes, as teorias referenciais que defendem a categoria semântica e lógica do nome próprio, de um signo com capacidade designativa directa, pressupõem este "começo" ou limite da linguagem. Dispensar este limite incorreria na problematização do próprio sentido de toda a linguagem, tal como em Wittgenstein a exigência (transcendental) dos objectos simples é requerida como condição de sentido de qualquer proposição da linguagem. O nome próprio como designador rígido designa o mesmo indivíduo em todos os mundos possíveis, em todas as situações contrafácticas, em todas as variações imaginárias, porque só a partir desse limite se pode começar a imaginar ou a construir possibilia.
A distinção entre teorias descritivas e referenciais, está, aliás, emblematicamente antecipada em Aristóteles nas inúmeras ocorrências em que se descrevem dois modos diferentes de predicar: , e , correspondendo ao primeiro o acto de referir, designar, e o segundo ao descrever, dizer algo sobre...
Um outro feixe de questões - além deste binómio da lógica e semântica dos nomes próprios versus descrições definidas -, que desemboca invariavelmente no problema da essência, é o das teorias da identidade, individuação: neste caso, como vimos na primeira parte deste trabalho, se abordarmos a questão da identidade pela via da estrutura e formas da predicação, o percurso da investigação conduznos também inequivocamente para o problema da identidade essencial, ou da identidade de cada singular consigo mesmo, com o seu ser-este-singular-concreto. Por outras palavras, a estrutura da predicação está suspensa da possibilidade de haver uma resposta privilegiadamente correcta à pergunta o que é este ser singular? No caso afirmativo, é possível identificar um singular, é possível discernir o mesmo do outro, e os predicados atribuíveis a um indivíduo não têm um estatuto único, igualitário, mas podem ser estruturados segundo certos graus, níveis de identidade com o próprio indivíduo. A identidade não se poderá reduzir a uma relação de mera sinonímia, de coreferencialidade de vários termos, pois entre esses termos há uma distinção radical entre a categoria gramatical e lógica de sujeito e predicado, de nome e predicado, e entre os predicados há uma hierarquia de adequação com o respectivo sujeito que excede a simples relação lógica de pertença ou de inclusão.
Qualquer investigação sobre a noção de identidade, ser o mesmo que..., induz à questão, também originária sobre o que é ser um indivíduo, uma substância, algo que persiste (continuant). É difícil discernir, entre estas duas questões, qual a originária: Wiggins, na sua obra Sameness and Substance, afirma no prólogo, que uma teoria da individuação deve necessariamente envolver, em primeiro lugar, uma elucidação do conceito primitivo de identidade ou mesmidade; em segundo lugar, alguma explicação sobre o que é ser uma substância que persiste para além da mudança; mas tanto a noção de identidade, como a de indivíduo (continuant) são noções originárias tão firmemente entrosadas que se torna difícil discriminar: ambas têm um efeito especular remetendose uma para a outra. O que identifica algo não pode ser senão o que o faz ser esse algo determinado, singularizado: por isso à pergunta pela identidade de um ser individual deve corresponder um termo que o designe cabalmente, que lhe dê o nome.
Frege na análise do conceito aproximouse consideravelmente da questão da substância como essência: para Frege, o conceito cavalo é o que é ser cavalo. Este tipo de conceitos (que correspondem aos sortal concepts de Locke, cujo termo é frequentemente empregue pelos analíticos) traduz, exprime o-que-é-ser-x (sendo x um indivíduo determinado). Mas a radical distinção e separação entre conceito e objecto parece induzir Frege a negar a identidade de cada objecto com a sua própria essência, ou com o-que-é-ser-esse-objecto.
Precisamente por serem noções primitivas, originárias, Wiggins no início da sua investigação toma a precaução de notar que não se propõe apresentar uma definição ou uma demonstração do conceito de substância, como tantos outros filósofos tentaram, no encalço de ilusórias pistas deixadas por Aristóteles no livro Z da Metafísica; e, dada a ineficácia e o fracasso da tentativa de definir ou demonstrar o conceito de substância, a solução é geralmente a do abandono desta noção desconhecida e misteriosa que escapa mesmo à percepção sensível, mantendose para lá, ou subjacente a toda e qualquer fenomenização.
Enfim, um terceiro grupo de problemas tem fomentado discussões e promovido uma vasta bibliografia em torno do que se tem designado por "essencialismo aristotélico": tratase das várias propostas de sistemas de lógica modal quantificada, sua possibilidade, implicações, pressupostos. Nestas questões, Quine assume o papel do adversário da lógica modal quantificada por pressupor o "essencialismo aristotélico", que lhe parece ser indefensável. A argumentação de Quine contra a lógica modal quantificada por implicar o essencialismo, encontra os seus opositores nas várias alternativas à quantificação dentro de contextos modais que, ao justificarem esta última possibilidade, parecem constituirse em teorias que pressupõem um certo "grau de essencialismo".
Em qualquer destes três grande grupos de questões levantadas pela filosofia analítica da linguagem ou pela lógica, o tema da essência é sempre abordado apenas tangencialmente: nunca se pergunta o que é a essência, mas apenas se procura saber se há alguma razão para admitir tal noção, ou se se deve pôr totalmente de parte. Nas disputas entre descritivistas e referencialistas, o problema da essência surge envolvido na questão semântica da possibilidade de referir em directo, na distinção nítida entre as duas categorias semânticas do nomear/referir, e descrever/exprimir, emblematicamente representadas na célebre distinção fregeana entre referência e sentido. No fundo, tratase de saber se não podemos referirnos a um indivíduo sem ser pela via das suas propriedades e atributos, ou se haverá a possibilidade de o atingir em si mesmo, despido de todos os seus predicados. Subjacente às questões linguísticas e semânticas está a enigmática noção de substrato, do indivíduo sem qualidades (dos bare particulars).
No segundo grupo de problemas, relativos à identidade, individuação, a questão surge camuflada no problema ou pseudoproblema da transidentificação de um indivíduo através dos mundos possíveis. Se não houver limite na construção dos possibilia, a apreensão do que é seresteindivíduo, que deve ser imediata, encontrase sempre adiada, postergada para além da infinidade de possíveis: um indivíduo não será senão um fio invisível em volta de um feixe infinito de essências.
E, finalmente, as questões em torno da lógica modal associam indiscriminadamente as noções de essencial e necessário, traduzindo a pergunta o que é ser x, por qual a propriedade que x não pode deixar de ter para ser x? Como veremos este desvio da pergunta pela essência conduz a uma versão de "essencialismo" que dista bastante da problemática central da Metafísica de Aristóteles.
Torna-se necessário, por tudo isto, começar por situar de novo o sentido da essência do singular, destrinçandoo de todos estes problemas aderentes que de algum modo o eludem e desviam. O termo "essência" é, evidentemente, equívoco porque conota toda uma problemática que não se pretende aqui abordar: nomeadamente, a questão do âmbito ou alcance da "essência", que umas vezes assume o estatuto da forma do singular, outras vezes o do universal, o do género. A questão em que nos centramos é a da "essência" como possível resposta à pergunta traduzindo o o-que-é, a expressão da "identidade" de algo em concreto. Interessanos sobretudo a continuidade entre a pergunta pelo ser de cada singular e a resposta, deixando, no entanto de lado o exame do conteúdo desta resposta: apresentar o de algo em concreto significa identificálo como "um homem", "um animal", etc., ou como "branco", "sábio", etc? Este é o problema crucial da decisão sobre a identificação da "essência" com um predicado genérico, específico, acidental, ou com uma série infinita de predicados do indivíduo, que tem monopolizado a atenção quando se aborda a questão da "essência". Embora Aristóteles trate quase sempre em simultâneo dos dois horizontes do problema, é possível distinguilos e separálos estrategicamente. Latente na distinção entre um primeiro tipo de predicados ditos essenciais, e um outro de acidentais, está um critério aparentemente trivial, mas que no fundo será o mais decisivo: Aristóteles afirma que os primeiros predicados, na categoria da essência ( ), serão aqueles com os quais se poderia responder adequadamente à pergunta "o que é este objecto presente?". Aqui não se invoca a distinção entre substância (a primeira das categorias) e as várias coisas que se podem dizer da substância, (as outras nove categorias), mas sim entre a identidade, o de um item de qualquer categoria, e outras coisas que se possam dizer dela, ou seja a distinção entre designar, dar o nome que identifica, e descrever, predicar, dizer algo sobre. Defender esta distinção significa, em última análise, justificar, legitimar a pergunta emblemática de toda a metafísica, que não é apenas uma pergunta pelo ser em geral - - mas a especificação ou a determinação desta pergunta ao ser próprio deste singular, ou ao ser no seu sentido primeiro e originário.
Ao enquadrar a questão do "essencialismo" neste horizonte, para melhor detectar o seu carácter transcendental no contexto do pensamento metafísico, ficarão por tratar os outros problemas respeitantes à "essência" do singular, nomeadamente a do sentido realmente aristotélico da "forma" do singular. Poderíamos dizer que nos interessa, estrategicamente manternos no carácter interrogativo das expressões e e garantir a legitimidade da pergunta através da viabilidade de uma identificação possível do singular.






A PERGUNTA CENTRAL DA METAFÍSICA

O itinerário da investigação nos primeiros capítulos do livro Z, situa de entrada a questão sobre o ser no mesmo plano que a da substância ( ): tendo já anteriormente (, 7) afirmado e explanado a variedade de sentidos do ser, Aristóteles vai agora dar início à exploração do sentido primeiro de ser, isto é . A pergunta central - o que é a substância? - significa portanto o que é o ser em sentido originário. A pergunta é ambígua, pois tanto pode versar sobre a denotação ou referência de ou seja, sobre as coisas que autenticamente, originariamente são, o que é por direito próprio, o que é em sentido primeiro; como pode versar sobre o significado, sobre o que significa para cada coisa que é, ser. Ao começar a enumeração dos diferentes empregos do termo Aristóteles parece, efectivamente, ocuparse da sua denotação; em primeiro lugar, examina as diferentes opiniões sobre a substância, como é seu costume habitual, ao abordar qualquer problema; substância aplicase, em primeiro lugar, usualmente aos corpos (tanto de animais como de plantas, como de corpos naturais: fogo, água, terra, e todas as partes das quais estes são compostos); outros crêem que substâncias, verdadeiramente só as Formas, ou os objectos matemáticos (Z, 2). Depois desta rápida enumeração, Aristóteles passa a considerar sobretudo os quatro sentidos do termo substância: essência ( ), o universal ( ), o género e o substrato ( Começando por examinar este último, as consequências de o considerar como o autêntico sentido do termo, levam a concluir que seria a matéria a substância, o que é impossível: faltamlhe duas condições necessárias à substância, a separabilidade e individualidade. É natural que ao analisar os diversos sentidos da substância, Aristóteles tenha retomado o critério das Categorias, o do sujeito último da predicação do qual tudo se predica, mas que, ele mesmo, não se predica de nenhum outro. Mas, transferido para a Metafísica, este sentido não é satisfatório, pelo menos como critério único e exclusivo. É da consideração deste sentido exclusivo da substância que provém a noção estranha de substância como substrato, ou sujeito do qual se retiram todas as propriedades, atributos e afecções, permanecendo aí, como uma misteriosa e obscura incógnita; e daqui partem as discussões inúteis sobre o indivíduo sem propriedades, os bare particulars, etc. Excluída esta primeira via, a substância consistirá, portanto, em alguma combinação de matéria e forma, ou simplesmente na forma (Z, 3), tendo sempre em conta, que algumas das coisas sensíveis são substâncias. Se bem que não explícito por Aristóteles, a passagem do cap. 3 para o 4, deve pressupor o seguinte passo na argumentação aristotélica: uma vez que algumas das coisas sensíveis - não todas - são substâncias, será necessário averiguar qual o critério para decidir se uma coisa sensível, material é ou não substância. E esse critério será o da essência ( ): a essência de cada coisa é o que a coisa é dita ser per se ( ), ou o que cada coisa é por si mesma. O critério da essência, do que é dito ser per se, revela, desde o início do livro Z, uma componente linguística, ou semântica: o que é, o primeiro sentido da substância é um objecto de referência, algo que se pode nomear; de tal modo que se poderiam conjugar o critério da essência, do que é dito de um singular por si, com o critério do nome - enquanto categoria semântica distinta da de predicado. O exemplo que Aristóteles dá - "seres tu não é ser músico" (1029b14-15) - confirma os dois critérios: o teu nome não é certamente "músico", que constitui uma qualidade, portanto uma descrição do indivíduo; o nome designao por si, e situao categorialmente em relação a outros indivíduos. No entanto o problema é difícil: como distinguir sempre entre um nome, o nome de um singular concreto, de um quê, e uma mera descrição, ou expressão que indirectamente se refira a esse singular? Ao longo de todo o cap. 4 e 5, Aristóteles tenta dar exemplos de expressões ou modos de designar compostos que não podem ser candidatos a substâncias propriamente ditas: "homem branco", "superfície branca", não são substâncias porque não constituem respostas exactas, ou pelo menos inequívocas à pergunta "o que é?", que pretende um nome, um sinal exclusivo do singular, que o designe por si mesmo, como sujeito definido de outros atributos como "branco", etc.
A estratégia de Aristóteles não é muito clara: no fim do cap. 3, parece ter abandonado o critério do sujeito, por conduzir à identificação da substância com matéria, e no entanto, não o abandona definitivamente, pois aqui surge de novo a forma, uma forma, alguma forma como sujeito de outras formas; no final do cap. 4, Aristóteles parece sugerir que a essência só pode pertencer a algo cuja definição possa darse sem equívocos: ora só uma substância pode ter definição, pode ter nome, não uma coisa que é dita de outra. O que possui a essência, é a coisa primeira, que persiste, isto é um sujeito básico: e assim a busca dos primeiros candidatos às essências, reconduznos de novo para os sujeitos básicos. Agora, o próximo movimento de Aristóteles será mostrar que as essências podem ser singulares, ou que os singulares que são sujeitos básicos, sujeitos primeiros, são idênticos com as respectivas essências. Este é o problema do cap. 6: "Cada coisa parece não ser senão a sua própria substância, e a essência dizse que é a substância de cada coisa" (1031a17-18).
Em breve retrospectiva, os passos da argumentação aristotélica têm sido: no capítulo 1, conecta substância com o singular, o isto ( ); e, depois de uma breve revisão das opiniões correntes sobre a substância, duas condições mais ajudam a determinarla: a inseparabilidade e a individualidade, rejeitanto a sua possível identificação com a matéria, ou algum fundo informe; a substância está mais do lado da forma, mas não é qualquer forma, nem qualquer composto material que satisfaz as condições de substância: só uma forma, ou um composto de matéria-forma, que possa ser sujeito de essência. Portanto, substância é o sujeito particular, que satisfaz simultaneamente o critério do sujeito e o da essência. No capítulo 6, Aristóteles tem que explicar como é que um ser singular pode ser idêntico à sua essência.
A questão é fulcral e decisiva para o sentido de toda a empresa metafísica: a sua investigação começara pela busca do significado, dos vários sentidos de ser e na elucidação destes vários sentidos vaise concentrando, adentrando para este ser, para um quê determinado, para a substância: como um núcleo no qual se fundem a razão da sua própria inteligibilidade com a razão do seu próprio ser, a noção de substância deve poder compreender singularidade (ser um este determinado) e cognoscibilidade, isto é, como todo o indivíduo, deve encerrarse na sua determinabilidade acabada, e ao mesmo tempo dar-se no horizonte perceptivo e inteligível, apresentarse, revelando o-que-é. A pergunta mais geral sobre o ser ), que pede uma resposta genérica, uma definição que situe o singular no género não satisfaz Aristóteles, que a prolonga na pergunta mais fundamental, que vai ao íntimo de cada ser - - a pergunta pelo ser deste singular em si mesmo considerado. O individual deve, assim responder pelo seu ser próprio, revelar a sua própria inteligibilidade.
Apresentar a substância como um núcleo ontológico no qual se fundem a razão do seu próprio ser, com a da sua inteligibilidade, é optar claramente, não só pela primazia do singular no campo existencial, mas também pelo carácter originário do conhecimento do singular. Se na substancia - sujeito básico - não radicasse a razão da sua própria inteligibilidade, então o singular estaria fora do campo noético, seria objecto como algo que resiste, que se opõe a pensamento, a logos; a argumentação aristotélica, no entanto, procura exactamente mostrar o tipo de inteligibilidade que requer o individual. A substância exibe o seu próprio ser, é ele mesmo, é o que é, revela o limite último da inteligibilidade como o mais íntimo de cada ser, algo que apenas se pode mostrar como limite. Em Z, 6, Aristóteles pretende mostrar o limite dentro de cada ser individual, de cada ser inteligível, possível objecto de referência, designável por si; em , 4, num discurso e argumentação que se podem considerar complementares do primeiro, ao mostrar a irrevocabilidade do princípio da não contradição (PNC) Aristóteles aponta o limite, mostrando que negar o limite - o da identidade de cada singular com a sua própria essência - significa demitirse de pensar. É importante, no entanto, salientar o significado destes dois princípios na metafísica aristotélica: nem o PNC tem as consequências do princípio da identidade do ser de Parménides, que é a afimação da impossibilidade do não ser, da negação, nem a tese da identidade de cada ser singular com a sua essência, se deve assimilar com a formulação tradicional do chamado "princípio da identidade" - "cada ente é idêntico a si mesmo", "A=A". Estas enunciações pertencem à filosofia moderna ("quidquid est, est" é de Kant, "A=A" de Hegel). As proposições assim expressas referemse a uma relação absolutamente necessária de cada ser singular consigo mesmo. Está mais perto da univocidade parmenídea do que da multivocidade aristotélica e, por isso mesmo, será retomado pela escolástica escotista e a sua teoria da univocidade do ser, e mais tarde pela filosofia racionalista moderna que deduzirá do princípio da identidade todos os juízos analíticos, ou verdades de razão.
O PNC em Aristóteles assume o estatuto de mera condição mínima de possibilidade do discurso e sua significação: condição de possibilidade da significação é a determinabilidade de cada ente na sua própria identidade e diferença, coordenadas indispensáveis para a sua localização ontológica. Mas a determinabilidade é condição necessária apenas da coerência do discurso, não da sua verdade, não garante que o discurso diga como as coisas são, mas apenas como podem ser. Neste sentido, poderíamos dizer que se trata, com efeito, de um princípio formal, mas de alcance ontológico, não meramente lógico. Não se trata de uma condição autoimposta pelo pensamento, de uma regra limite versando sobre as convenções segundo as quais falamos dos objectos, mas de uma condição formal procedente da própria realidade que é formalmente diferenciada, condição que se patenteia através da própria estrutura do pensamento lógico e sua significação.
Nos dois casos, para defender o PNC em , 4, e para defender a identidade de cada ser individual com a sua própria essência, em Z, 6, a estratégia de Aristóteles é semelhante: tratase de mostrar ao adversário que, negando o PNC, ou negando a identidade da substância, ele está a minar pela base a sua própria posição. O estilo do discurso assume nitidamente o tom de uma argumentação transcendental: Aristóteles toca de dois modos diferentes, a partir de duas posições, no mesmo limite - "a última (e mais íntima) parte de cada coisa" - para além do qual é impossível continuar discutindo, raciocinando, discursando. Tocar o limite exige abandonar o "limite", mostrandoo como ponto primeiro. Por isso o único argumento adequado é precisamente o transcendental.









ARGUMENTOS TRANSCENDENTAIS EM ARISTÓTELES

O argumento transcendental constitui uma estratégia de persuasão especialmente adequada como réplica a dúvidas cépticas: a estratégia consiste em levar o adversário a autodestruir a sua própria dúvida, no caso de negar o que queremos propor. Se o céptico põe em dúvida uma determinada asserção p, e se se prova, através de um argumento de tipo transcendental, que essa verdade constitui um requisito para a possibilidade de qualquer raciocínio inteligível, então o opositor colocase no seguinte dilema: ou a sua dúvida é infundada, e p é portanto verdadeira, ou então, negada esta asserção fundamental, nenhum pensamento, incluindo a própria dúvida, poderá formularse de um modo inteligível. Neste caso, as dúvidas do céptico são infundadas, não só porque constituem dúvidas logicamente irresolúveis, mas também porque implicam a rejeição de todo o esquema conceptual que lhes poderia dar sentido.
É evidente que o argumento será tanto mais persuasivo quanto mais genérica e vasta for a verdade p que se pretende provar: no caso de se tratar de uma asserção específica e determinada, darseá ao céptico a oportunidade de escapar ao dilema, negando apenas a validade dessa tese sem minar a própria inteligibilidade radical do seu próprio duvidar.
Kant, por exemplo parte das condições de possibilidade do conhecimento ou da experiência: o adversário das asserções que pretende provar arriscase a negar a própria possibilidade da experiência e do conhecimento em geral. Ao apresentar, na Estética Transcendental, o que chama a exposição transcendental dos conceitos de espaço e tempo, Kant pressupõe que todos concordam em que possuímos de facto um conhecimento sintético a priori do espaço e do tempo, e a partir desta base conclui que o espaço e tempo são intuições a priori; para a dedução transcendental das categorias, o ponto de partida, ou a pressuposição que minaria a própria inteligibilidade das teses do adversário, é a possibilidade da experiência sensível. A estratégia consiste em que, oporse ao que Kant pretende provar transcendentalmente, põe em causa, no primeiro caso, o conhecimento sintético a priori do espaço e do tempo, no segundo, a própria possibilidade da experiência.
Esta mesma estratégia de argumentação transcendental é detectável em Aristóteles, em primeiro lugar, no livro para provar o PNC:
O que é posto em causa no caso de se negar o PNC (tese p, a demonstrar), é a própria possibilidade de significar algo, de dizer algo com sentido. O adversário que negar p (o PNC), remetese de imediato a uma total incapacidade de discurso inteligível, e a sua própria dúvida em relação a p, é destituída de qualquer sentido ou inteligibilidade. Logo, basta que o adversário diga algo com sentido, mesmo em defesa da sua dúvida impossível, para exibir a tese p, que pretende rejeitar.
Há, no entanto, como é óbvio, uma diferença fundamental entre a argumentação de Aristóteles no livro e os referidos argumentos transcendentais de Kant na Crítica: nesta, o problema consistia em justificar o conhecimento sintético a priori e Kant não viu nenhuma necessidade de justificar do mesmo modo o nosso conhecimento das verdades analíticas, que nada nos dizem sobre o mundo, mas apenas clarificam a nossa estrutura conceptual; enquanto a argumentação aristotélica visa mostrar a inviabilidade de negar o PNC, ou seja, o princípio básico de toda a estrutura lógica. No entanto, como observa Walker, também Kant, num escrito muito anterior à Critica, A única prova possível da Existência de Deus (1763), apresenta, se bem que muito rapidamente, uma espécie de argumento transcendental em defesa deste mesmo princípio lógico: não podemos prescindir do princípio da contradição, fundamento último de tudo o que é pensável, simplesmente porque ao destruílo, ao negálo, não nos restaria nada que pudesse ser pensado.
Não se trata, evidentemente de uma verdadeira demonstração do princípio, mas, de um tipo de prova por refutação, apresentandoo como condição necessária até para a sua própria refutação.
Estratégia semelhante à aristotélica: aqueles que exigem uma prova, mesmo deste princípio, revelam evidentemente não saber que nem tudo se pode provar, porque se assim fosse o processo da prova iria até ao infinito. No entanto, no caso deste princípio é possível uma demonstração por refutação: basta que o adversário afirme ou negue alguma coisa (o próprio PNC), para exibir a necessidade do princípio.
A responsabilidade da prova recai assim no adversário: se nada disser, se recusar qualquer argumentação, é posto fora de combate; se exprimir alguma asserção com sentido, tentando destruir qualquer raciocínio, está realmente a exibir aquilo que quer rejeitar.
Um argumento deste tipo não é senão um movimento deítico, mostrando um limite: no sentido mesmo em que Aristóteles define limite como "a realidade ou essência de cada coisa"; limite do nosso conhecimento porque é também limite da coisa singular. O limite, o ponto de partida que Aristóteles mostra com o argumento transcendental, no livro é um horizonte do mais vasto, genérico, inespecificado que se pode conceber, é a própria pensabilidade traduzida na dizibilidade, a possibilidade de significar, de referirse a algo: se as palavras não tiverem um significado não têm significado nenhum, pois é impossível pensar em algo, se não pensamos numa coisa determinada. Aristóteles exprime a necessidade de um limite, no sentido de um começo do pensar.
Em Z, 6, o limite para que se aponta é precisamente o da "realidade ou essência de cada coisa singular", ou um "começo" para a resposta à pergunta "o que é seristo?"; a legitimidade da pergunta requer que haja uma resposta possível, um começo de resposta inequívoca; não que se exprima a absoluta identidade de cada singular, que não se dá, mas que esteja disponível algum incipiente modo de responder. Defender que cada singular se identifica com a sua própria essência, neste sentido, não é mais do que mostrar o seu limite, apontar o seu começo; significa considerar que, embora cada singular esteja realmente aberto a uma infinidade de predicações, de descrições, de sentidos possíveis, há um começo de todo esse movimento predicativo e significativo, e a prova de que se dá esse começo, está no conhecimento imediato, directo que qualquer pessoa vulgarmente tem do que são os singulares. Nem sempre este conhecimento de qualquer ser concreto individual nos é dado de um modo certo, e haverá mesmo muitos casos de impossibilidade cognitiva de identificar ou reconhecer ou definir um determinado ser singular; neste caso simplesmente não sabemos o que éseristo, o conhecimento originário, directo, imediato não se dá; este tipo de conhecimento dáse ou não se dá. Mas negar em absoluto um certo conhecimento de todo e qualquer singular significaria anular o começo de qualquer conhecimento do que são as coisas, anular o limite. Quem sustentar semelhante tese ficará então reduzido ao silêncio, pois qualquer nome, qualquer asserção indica já um certo começo e, portanto, a tese anulase a si mesma na sua própria defesa.
Parece-me ser este o sentido da argumentação transcendental de Aristóteles, tanto na prova por redução ao absurdo, do PNC, no livro , como na justificação da identidade de cada singular com a sua essência (com o seu ser) em Z, 6: no primeiro caso, negar o PNC equivale a anular um limite, um começo do discurso lógico e linguístico; no segundo caso, negar que em cada singular se dê identidade entre esse singular como sujeito e o ser determinado do qual ele é sujeito, significa inviabilizar qualquer protoconhecimento, qualquer forma de conhecimento originário.
As argumentações são estruturalmente semelhantes porque em ambos casos se assinala, se mostra um limite: no caso do PNC, mostrase a condição mínima da possibilidade do discurso e sua significação; no caso da identidade do singular com a sua essência, que, como referimos, não se pode assimilar à enunciação de um princípio de absoluta identidade, tratase de garantir um princípio de referência, ou de relação directa entre pensamento, discurso e realidade. Afirmar que cada indivíduo é idêntico à sua essência tem o sentido de defender a sua determinabilidade, sem conotações com a necessidade. Tratase de garantir que cada indivíduo singular, sujeito básico, cada substância é uma essência, não que tem uma essência. O teste que Aristóteles propõe para confirmar se certos compostos (homem pálido, por exemplo) constituem ou designam um ser singular, é precisamente o de saber se é ou tem uma(s) essência(s).
Desta argumentação pode-se derivar o que passou à tradição filosófica com a designação de "essencialismo aristotélico", com fortes conotações com as noções de atributos necessários ou contingentes, gerando intermináveis discussões em torno das modalidades e sua aplicabilidade aos indivíduos? No texto aristotélico, lido e analisado à luz de um significado literal das expressões que deram origem às noções de essência e de substância, não há nenhuma referência à noção de necessidade; de facto, em toda a filosofia de Aristóteles o indivíduo, o singular, constitui por excelência o locus da contingência: basta pensar que cada singular poderia perfeitamente não ser, não existir. O tipo de necessidade é do género do que se poderia exprimir dizendo, "se é este singular determinado, então é este singular determinado"; aqui "determinado", não no sentido de necessário, mas de contornado, definido, como um limite. A defesa do PNC e da identidade de cada singular com o seu ser, tem em Aristóteles simplesmente essa função de mostrar, de demarcar os limites do real e do pensar.

SIGNIFICADO E SINTAXE DE

A expressão grega frequentemente usada por Aristóteles sobretudo no livro Z, transformada pelas traduções latinas em essentia, tem sido objecto de comentários e estudos gramaticais e linguísticos no intuito de apreender melhor o seu significado no contexto da Metafísica. Embora não esteja dentro do âmbito deste trabalho examinar exaustivamente todos esses estudos e comentários de inegável interesse para a compreensão das noções fulcrais do pensamento aristotélico, é útil sintetizar os problemas principais que a expressão apresenta e as interpretações que têm sido propostas.
A primeira questão diz respeito ao emprego do imperfeito nesta expressão. As interpretações deste imperfeito apontam principalmente para duas direcções: algumas atribuemlhe um significado metafísico, indicando a atemporalidade da essência, e a sua prioridade lógica e temporal em relação ao ser concreto, ou a sua persistência, em relação à caducidade dos respectivos acidentes; outras consideramno simplesmente um caso do chamado "imperfeito filosófico", que se refere a algo já mencionado ou explicado.
A primeira interpretação parece basearse mais numa leitura platonizante dos textos aristotélicos, do que numa análise estritamente filológica. O chamado "imperfeito filosófico", como referência a algo já definido, já mencionado, ou já bem conhecido, ocorre com frequência tanto em Platão como em Aristóteles. As várias sugestões para a correcta interpretação deste imperfeito pouco alteram o significado estritamente filosófico da expressão, de modo que não se justifica prolongar o exame gramatical desta forma verbal.
De maior relevância é a questão que diz respeito à construção da frase como um todo. Pode entenderse a expressão de dois modos gramaticalmente diferentes: como uma pergunta que determina ou especifica mais a questão , ou como uma forma substantivada de com um dativo intercalado; no primeiro caso, o pronome será o habitual pronome interrogativo de qualquer pergunta directa: "o que é...?"; no caso de optar pela interpretação da expressão como uma forma substantivada do verbo ser, cabe perguntar a que determinação se refere o pronome (que). Segundo Buchanan, os casos em que é nitidamente interrogativo, como por exemplo (1029b28) devem ser explicados de modo completamente diferente ao de entre outras razões, pela ocorrência do artigo definido antes do verbo (como por exemplo 1052b3). Se for considerado um pronome interrogativo, de qualquer modo, a pergunta não é simplesmente "o que é ser homem?", mas uma pergunta pela definição: "o que é para homem serhomem?" Bassenge, no seu extenso e meticuloso estudo filológico sobre a expressão grega, conclui que a sua leitura como uma forma substantivada do infinitivo parece mais satisfatória do que a interpretação como uma pergunta iniciada pelo pronome interrogativo pois aquela cobre mais adequadamente as outras expressões semelhantes com o verbo e dativos, tal como . Em suma, a respeito da forma interrogativa, a ser adoptada por conformarse nalguns casos com o contexto do texto grego, tratase sem dúvida de uma pergunta pelo "ser determinado, definido, pelos limites desse singular concreto". Não se pode traduzir vagamente por um "o que é? ...", pergunta vaga e ambígua que pode receber inúmeras respostas mais ou menos correctas. Uma descrição qualitativa, uma indicação sobre o material de que é feito, um nome, etc., podem ser apresentados como possíveis respostas. Mas o sentido da expressão em causa diz respeito ao ser peculiar deste singular concreto e exige uma resposta inequívoca, primeira, originária.
Qual é essa resposta? A pergunta referese ao ser próprio de cada singular. Na tradução, geralmente acolhida de Tugendhat, a expressão exprime "das jeweils zugehörige Sein", isto é um ser que pode ser dito desse singular "como tal" ( ) e que se pode exprimir numa definição do seu conceito: a definição, como logos próprio da essência, constituirá uma resposta adequada e satisfatória à pergunta "o que é?".
Resta ainda a questão da leitura do dativo em como um dativo possessivo ou predicativo (deixando de parte construções com dois dativos, como por ex., em Partibus Animalium, B, 3, 649b22, na qual um dativo pode ser possessivo, o outro predicativo - oque-é-para-isto-ser-sangue). Buchanan aponta vários argumentos a favor do dativo como possessivo ou de interesse. Em primeiro lugar, o predicado de um infinitivo ocorre geralmente no acusativo, a menos que se trate de um objecto expresso no dativo, ao qual o predicado é referido. Arpe, por exemplo admite esta hipótese e considera o dativo possessivo, embora se negue a admitir o verbo de um modo absoluto. Quando o dativo é um pronome, como acontece frequentemente, todos estão de acordo em tomálo como possessivo - "o que é o ser para cada coisa, ou de cada coisa" (Bassenge traduz " 'Das - war was es? - Sein' oder 'das jeweils zugehörige Sein' "). Há expressões em que é empregue para exprimir o ser ou essência, o que poderia levar a considerar o verbo de um modo absoluto como por exemplo em ("para um homem ser", ou "o ser de um homem"). Portanto, se o dativo for tomado como possessivo, será considerado de modo absoluto, isto é sem um predicado, ou determinação e a expressão pode significar "o que o ser (de algo) era", ou "o que é (era) para algo ser". Este uso absoluto de ser, que alguns traduzem vagamente por existir, não se adequa muito com o contexto do pensamento aristotélico, como vimos já anteriormente. Buchanan admite esta hipótese, traduzindo "o que é (era) para algo ser", por "modo de existência". Sendo assim, conclui, a definição de uma substância descreveria o seu modo de existência, o que a distinguiria de outras proposições sobre o mesmo ser com predicados derivados de outras categorias; estes descrevêloiam como sendo isto ou aquilo, deste ou daquele modo, apresentando esta ou aquela qualidade, enquanto a primeira perguntaria radicalmente pelo seu "modo de existir". A favor desta leitura, tomando ser de um modo absoluto, Buchanan aponta os casos de expressões como "o ser de um homem", ou "o que é para um homem ser", que parecem designar a essência; mas explicita que as frases em que apresenta um predicado dativo, devem ser entendidas de um modo consonante em relação àquelas ocorrências em que não tem nenhum predicado. Neste sentido, propõe que nas expressões como ("ser homem"), o dativo seja interpretado, não como um predicado em conexão com um sujeito pelo verbo copulativo "ser", mas como interno, por assim dizer, ao verbo, isto é como uma especificação ou determinação do ser. Pareceme que esta sugestão de Buchanan vem precisamente atenuar a interpretação de um ser em sentido absoluto, que de facto não se coaduna com a metafísica aristotélica, apresentandoo com estes predicados ou determinações internas. Mas a conclusão regressa de novo à leitura de um sentido de ser como existência, de um modo absoluto. O "ser qua ser", pensa Buchanan, pode traduzirse por "o existente qua existente", e a questão central da Metafísica, seria uma discussão sobre o que significa ser ou existir. Esta discussão está ausente na interpretação da Metafísica em termos de substância e essência, parecendo que Aristóteles nada tem a dizer sobre a existência, mas só sobre o que existe. No entanto, pensa Buchanan, se for interpretado segundo a sua proposta, como "o que era para ser" de uma coisa, ou o seu modo de existência, então Aristóteles reintroduz a existência ou "o ser" em sentido lato, no seu sistema.
Mas este ser "em sentido lato", a que Buchanan se refere como existência, perde essa condição do ser em Aristóteles, que é a de "ser é ser algo determinado". Como observa Bassenge no seu estudo, em Aristóteles não se dá a pergunta por um "mero ser", um ser totalmente "desapropriado" (nackten ), mas, pelo contrário, a expressão ocorre sempre como uma pergunta pelo ser que "pertence a algum singular".
Em suma, a investigação gramatical e filológica, da qual apresentámos apenas um breve esboço, remetendo para a valiosa bibliografia sobre a questão, contribui sobretudo para esclarecer os seguintes aspectos, fundamentais para a apreensão do sentido da expressão:
Em primeiro lugar, o emprego do imperfeito, não justifica pelo ponto de vista filológico, a leitura desta forma verbal como uma indicação da temporalidade, duração do singular, ou da prioridade originária da forma, antes da sua concretização material, ou da sua préexistência em relação à própria matéria, num horizonte platonizante, que precisamente nos livros centrais da Metafísica, Aristóteles ultrapassa nitidamente. Toda a argumentação nestes livros centrais se concentra em torno da ideia da unidade do singular com a sua própria forma, essência, ou o seu próprio ser.
Em segundo lugar, a construção global da expressão indica uma forma interrogativa ( é inequivocamente um pronome interrogativo), mas tratase de uma pergunta bem especificada e determinada: não pergunta simplesmente o que é um singular qualquer ("o que é homem?"), pergunta que pode ter múltiplas respostas mais ou menos satisfatórias, mas pergunta "o-que-é-(para um homem)-ser?", ou "o-que-é-ser-(propriamente)-para-um-homem?" O que se visa com a pergunta é uma resposta inequívoca, a definição, ou um modo privilegiado de identificar o singular pelo qual se pergunta. O progresso da investigação de Aristóteles está, pois, bem patente neste movimento centrípeto, do ser enquanto ser para o ser mesmo daquilo que privilegiadamente é, o singular.
A pergunta pelo ser , no entanto, não encontra senão uma resposta aparente no pois esta expressão reduplica a pergunta. À questão respondese à questão , a resposta é , que designa, mas em tom interrogativo. Como se o ser por si mesmo, o ser próprio de cada indivíduo pudesse apenas ser referido através de uma interrogação, mas não encerrado numa resposta.


A ARGUMENTAÇÃO EM Z, 6

Os primeiros capítulos deste livro central da Metafísica vãose concentrando progressivamente em torno da problemática nuclear sobre o ser: partindo, no cap. I, da concepção dada como assente, de que o singular, a substância como singular é o mesmo que essência, no cap. 3, defende que a forma, e não a matéria, é o candidato mais plausível para satisfazer o critério da essência e mostra como afinal coincide, de certo modo, com o critério do sujeito. No cap. 4, preparase a tese sobre a substância e a essência, para no cap. 6 defender que os sujeitos básicos, ou primeiros têm que ser idênticos com as suas essências. A questão é fundamental para a investigação sobre a substância, pois, observa Aristóteles,
"uma coisa singular não é senão a sua substância ( ), e a essência é designada a substância da coisa".
De novo o contraste entre estes seres singulares primeiros, básicos, dos quais se diz originariamente que são, e tudo o que sobre estes se diz, é apresentado em consonância com a distinção entre as categorias semânticas do referir, nomear algo e do dizer algo sobre..., o descrever, que é o caso da predicação acidental: "homem pálido", "homem culto". Estas expressões não nomeiam, não referem sujeitos básicos, primeiros, mas exprimem uma certa combinação de essências, que não são o referente de termos simples; neste caso, portanto, é evidente que não se dá identidade entre a essência dessas combinações acidentais, com o próprio sujeito originário. Mas em expressões per se, deve haver necessariamente identidade entre a coisa singular e a sua essência. A primeira série de considerações em defesa desta identidade, apresenta um tom nitidamente antiplatónico, invocando a aporética situação metafísica e gnoseológica de separar as essências das respectivas ideias - a essência de animal, separada da Ideia de Animal, a essência de bem, separada da Ideia de Bem, etc.. Se houvesse esta separação, não haveria conhecimento das Ideias, pois ter conhecimento de algo é precisamente conhecer a sua essência. As Ideias seriam deste modo remetidas para um mundo separado das essências, inacessíveis ao conhecimento. Mas onde o argumento ganha mais força, é na aplicação desta mesma ideia - de que conhecer algo é conhecer a essência desse algo - ao caso das coisas individuais. Argumenta Aristóteles:
"Que cada coisa individual é uma e a mesma que a sua essência, e não apenas acidentalmente, é evidente, não só pelas considerações anteriores, mas também porque conhecer o individual é conhecer a sua essência".
O argumento é potente, pois a sua rejeição significa negar pura e simplesmente o conhecimento de qualquer coisa singular: conhecer o singular é saber o-que-é esse singular, é conhecer a essência, ou o ser próprio desse singular. Os nomes com que designamos propriamente os indivíduos referemse ao seu ser, no sentido de , de essência. O termo "homem", por exemplo, designa o homem individual de quem se predica, mas dando a conhecer qual o tipo de Ser é propriamente um homem, diz que este indivíduo é, existe como um ser humano. Se nada coincidisse com o seu próprio ser (essência), se nada fosse o seu ser, mas cada coisa fosse por participação de algo fora de si mesma, então nada seria inteligível. A necessidade de fazer coincidir o critério de essência com o critério de sujeito constitui uma necessidade transcendental para a possibilidade da forma mais genuína, mais originária de conhecimento: um protoconhecimento, por contacto, directo, imediato, expresso através dos termos simples ou nomes próprios, signos através dos quais a linguagem lança âncora no mundo real.
Ao longo da Metafísica, Aristóteles recorrerá com certa frequência a esta fundamentação transcendental do conhecimento e do discurso: em defesa da essência e da substância, há uma passagem em , 4, (1007a17 - 1007b20), integrada na defesa do PNC que apresenta a mesma estrutura transcendental. Neste caso, tratase de mostrar que rejeitar as noções de substância e essência, significa afirmar que todas as coisas são acidentes, e não há nada como "ser essencialmente homem"; e como consequência, nada se pode designar, referir por si mesmo, em directo, mas todo o discurso pertencerá à categoria do , em terminologia aristotélica, descritivista, poderíamos dizer, em terminologia da analítica contemporânea. Este discurso acidental, tangencial, irá até ao infinito, pois não haverá nada de primeiro, originário sobre o que versam as descrições. A rejeição desta categoria de primeiro, de algo que é visado pelo discurso, envolve a negação do PNC: se todo o discurso é um discurso sobre e não há possibilidade de dizer o-que-é-ser-isto sobre o qual se fala, o PNC deixa de ter qualquer âmbito de aplicação, pois ele vale exactamente para proposições e predicados que dizem o-que-é-ser-isto; no falar sobre cabem todas as afirmações e respectivas negações, uma vez que não se pode dar nunca o caso de coincidirem num mesmo indivíduo, ou sujeito, visto que estes não são nunca atingidos pela linguagem.
Reduzir todo o discurso a esta dimensão descritivista, parece, no entanto ser infirmado pela própria prática discursiva: "seres tu" não é de facto o mesmo que "seres culto, pálido, etc.". O primeiro termo "seres tu", não exprime certamente nenhuma propriedade, atributo peculiar, necessário, essencial, mas do ponto de vista da significação, não há dúvida que, como diria Austin tem um valor "performativo" diferente, na medida em que consegue realmente identificar, seleccionar um só e único indivíduo.
"O absurdo (de separar uma coisa da sua essência) tornase patente quando alguém dá um nome a cada essência; porque então haverá outra essência para lá da original, por exemplo, a essência de "cavalo" teria uma outra essência. No entanto, porque não se identificarão as coisas com a sua essência, se a essência é substância? Na verdade, não só a coisa e a sua essência são uma só, mas também a sua definição (logos)".
Como se torna patente, pela argumentação reiterada de Aristóteles, a identidade de cada indivíduo com a sua essência, melhor com o seu próprio ser, não só não compromete de modo algum com a admissão de "essências" para lá dos indivíduos, como revela ser uma apologia do singular, ou se preferirmos, da "essência individual". De facto "essência", tal como se tem entendido na filosofia postaristotélica, não é uma noção nada aristotélica, e não há realmente lugar para ela na sua metafísica, embora tenha sido desenvolvida no aristotelismo posterior. O facto de Aristóteles defender que há um tipo de predicados (X) dos seres individuais que os identificam de uma forma privilegiada, de tal modo que dizer que algo é o mesmo X, significa que é o mesmo indivíduo, não o compromete a admitir "essências" diferentes e separadas desses mesmos indivíduos. Negar a identidade de cada singular com a essência, significa simplesmente negar que cada indivíduo seja algo: não se nega simplesmente que cada indivíduo se possa identificar com o "universal" sob o qual é pensado, mas sim que o individual seja ele próprio esse "ser x" que o define.
A força persuasiva do argumento aristotélico a favor da identidade do individual com o seu próprio ser, assenta, por um lado no carácter de certo modo transcendental, como condição de possibilidade de todo o conhecimento, e por outro lado, no papel que esta identidade do indivíduo desempenha em toda a estrutura predicativa. Como vimos, ao tratar da predicação em Aristóteles, a possibilidade de predicar radica, em última análise numa apreensão imediata em que sujeito coincide, identifica-se com predicado: esta apreensão é justamente a do ser próprio de cada singular, da sua identidade como este-indivíduo-determinado. A apreensão do ser próprio deste indivíduo exprimese pela atribuição do nome que melhor, mais adequadamente responde à pergunta "o que é serx?".
A lógica da predicação, assente sobre o modelo de sujeito/predicado, oferece uma expressão insuficiente desta protoforma de predicar que é a apreensão do que é o ser do singular, ou seja da apreensão da sua essência. Ao traduzila por um predicado - ainda que um predicado substancial - a teoria da predicação sugere uma separação, uma nãoidentificação entre "essência" e o respectivo sujeito; o modelo tradicional da predicação introduz na apreensão da identidade do ser individual a diferença expressa através da fissura aberta na proposição pela heterogeneidade entre a categoria do sujeito e a do predicado. Com esta diferença perdese o sentido da identidade do próprio indivíduo, que não deve ser compreendido como sujeito-indeterminado-receptivo ao qual advêm umas determinações, acidentes, mas como sujeito activo, autor das próprias acções que o constituem. A lógica da predicação deveria ser corrigida, ou pelo menos complementada por uma lógica da acção.
A argumentação de Aristóteles não compromete, portanto a uma separação de "essências", ou predicados essenciais, do próprio indivíduo singular; apresenta apenas, como condição de possibilidade de todo o conhecimento e do discurso, que haja, no horizonte ontológico, seres que protagonizem realmente o seu próprio ser, e portanto manifestem, mostrem inequivocamente oquesão: estes seres são os que podem desempenhar, no esquema predicativo o papel de sujeitos básicos, originários, últimos, e garantir a possibilidade de outras formas de predicação.
Esta exigência transcendental do conhecimento e do discurso, referese, no entanto, apenas à necessidade de admitir estes seres primeiros, básicos, mas pouco ou nada nos diz sobre o que estes são. Depois de defender a identidade originária da substância individual com a sua própria "essência", Aristóteles embarca, nos capítulos seguintes do livro Z, numa espécie de "filosofia negativa" da substância, afastando e rejeitando falsos candidatos a , para, no último capítulo propor um novo ponto de partida, recomeçar de novo a investigação sobre o que é a substância.. Acontece, de certo modo, no final deste livro algo de semelhante ao final da discussão sobre a felicidade na Ética a Nicómaco:
"Certamente, dizer que a felicidade é o melhor bem é algo no qual estamos de acordo, mas sentimos ainda a falta de uma afirmação mais clara sobre o que é".
O novo ponto de partida que Aristóteles propõe pode ser o resultado final do exame do que a substância não é:
"A substância é um princípio e uma causa: este deve ser o nosso ponto de partida".
Ponto de partida que constitui a inflexão para a compreensão da substância sob a perspectiva do seu carácter dinâmico, ultrapassando as limitações dos modelos da lógica da predicação que sugerem uma reificação das essências, traduzidas por predicados, e um falso isolamento da substância individual, traduzida pelo sujeito.





Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.