Indústria Cultural, Culturas Híbridas e Televisão Pública no Brasil

July 16, 2017 | Autor: Juliano Carvalho | Categoria: Cultural Studies, Comunicação, Políticas Públicas, Industrias Culturales, TV Pública
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01. Indústria Cultural, Culturas Híbridas e Televisão Pública no Brasil1 Vivianne Lindsay Cardoso 2 Juliano Maurício de Carvalho3

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Trabalho  apresentado  no  GT  –  Jornalismo  do    XI  Congresso  Lusocom,  realizado  de  4  a  6  de  agosto  de  2011.  

Bacharel   em   Comunicação   Social   -­‐   Jornalismo   (Puc-­‐Campinas),   Especialista   em   Docência   no   Ensino   Superior   (Unifeob),   mestranda   em   Comunicação   pela   Unesp   na   linha   de   pesquisa  –   Gestão   e  Política  da  Informação  e  da  Comunicação  Midiática.    Bolsista  Fapesp.  Membro  do  Grupo  de  Pesquisa  Lecotec  (Laboratório  de  Estudos  em  Comunicação,  Tecnologia  e  Educação  Cidadã)  da   Universidade  Estadual  Paulista  "Júlio  de  Mesquita  Filho"  (FAAC/Unesp).  e-­‐mail:  [email protected]  

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Coordenador   do   Programa   de   Pós-­‐Graduação   em   Televisão   Digital:   Informação   e   Conhecimento   (mestrado   profissional)   [licenciado],   docente   do   Programa   de   Pós-­‐Graduação   em   Comunicação  Midiática  (mestrado  acadêmico)  e  do  Curso  de  Jornalismo,  líder  do  Lecotec  (Laboratório  de  Estudos  em  Comunicação,  Tecnologia  e  Educação  Cidadã)  da  Universidade  Estadual   Paulista  "Júlio  de  Mesquita  Filho"  (FAAC/Unesp).  e-­‐mail:  [email protected]  

   

 

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Resumo A partir do conceito de indústria cultural, desenvolvido por Adorno e Horkheimer, e o conceito de culturas híbridas, apresentado por Canclini, este trabalho faz uma reflexão sobre a expansão e participação ativa da população no processo de idealização e execução da televisão pública no Brasil, utilizando, desta forma, o principal veículo de comunicação de massa para promover a hibridação da cultura popular com a cultura de massa em um processo democrático e imbricado. Palavras-chave: Comunicação. indústria cultural. Cultura. TV pública. Políticas públicas.

 

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1. Introdução Desde o seu surgimento, em meados da década de 1940, o conceito de indústria cultural tem sido amplamente difundido, contextualizando e caracterizando perfis de sistemas capitalistas que envolvem a cultura, a arte e a comunicação, criticando posturas sociais, mercadológicas e políticas adotadas, onde o objetivo é o consumo incessante para obter o lucro destinado a uma minoria hegemônica. Para refletir sobra a importância de se pensar em alternativas à comunicação televisiva fortemente influenciada pela indústria cultural, a partir do conceito de Adorno e Horkheimer, a proposta é utilizar o conceito de culturas híbridas, desenvolvido por Canclini em um contexto alternativo ao da massificação. Desde seu surgimento, a televisão pública brasileira pouco teve espaço como veículo de comunicação cultural, educativo, informativo e com representatividade junto a sociedade. Em 18 de setembro de 1950, Assis Chateaubriand - empresário e dono de diversos rádios e jornais conhecidos como Diários Associados inaugura em São Paulo a primeira televisão brasileira, a extinta TV Tupi. (LIMA, 2008). Influenciado pelo governo do presidente da república Getúlio Vargas, o modelo de televisão brasileiro seguiu os padrões do rádio. Utilizada como forma de legitimação política e, principalmente interesses comerciais, a televisão pouco prestigiou os interesses educativos e culturais que tinham discreta representatividade junto à sua programação. Desde seu surgimento até hoje, as dificuldades das televisões públicas nacionais se mantém quanto a sua identidade, missão, obrigatoriedade, gestão, recursos humanos e financeiros, financiamento e apoio. Desde 1967, a legislação que a norteia recebeu precária atenção. Foi com a chegada da tecnologia digital no Brasil, regulamentada no Decreto nº 5.820, de 29 de junho de 2006, que a televisão pública começou a ganhar novas esperanças de renovação e a criação de uma regulação efetiva. Profissionais, pesquisadores e sociedade civil interessada lutam pela garantia de estabilidade financeira e autonomia ideológica plena para a  

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televisão pública. O que se busca é, fundamentalmente, a garantia uma programação de alta qualidade em conteúdo, produção e uma transmissão mais diversificada e inovadora, fugindo dos padrões adotados pelas televisões comerciais nacionais. Em um cenário desafiador, surge a possibilidade para que a sociedade caracterizada como dominada ou subalterna, tenha a chance de agir ativamente, para intervir e produzir o conteúdo a ser assistido, levando a culturas das ruas ditas populares para este meio massivo de comunicação. Em uma perspectiva analisada a partir dos conceitos da indústria cultural de Adorno e Horkheimer (2002) a proposta pode parecer um tanto quanto utópica. No entanto, ao analisar a perspectiva das culturas híbridas de Canclini (2003), tal iniciativa seria apenas uma transição para a televisão da hibridação que já vem acontecendo em diversas manifestações culturais na sociedade pós-moderna intercambiadas e entrelaçadas. A cultura popular faz parte da indústria cultural, assim como a indústria cultural integra a cultura popular em um imbricamento interdependente, como será apresentado ao longo deste artigo, criando o que denomina como cultura urbana. O que se propõe é que esta hibridação se faça presente efetivamente na televisão pública.

2. Indústria Cultural e Culturas Híbridas Ao refletir sobre a realidade vigente do século XX, a partir da década de 1940, o musicólogo e filósofoTheodor Wiesengrund-Adorno (1903-1969), em parceria com outros pesquisadores contemporâneos, como o filósofo Max Horkheimer (1895-1973), percebeu que a realidade econômica vivida estava modificando e influenciando a própria cultura, onde o homem perdia, a cada dia mais, sua autonomia. O comércio se fortaleceu com a revolução industrial européia, consolidando definitivamente o capitalismo, apoiado por novas descobertas científicas e avanços tecnológicos que intensificaram o domínio da razão  

 

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técnica e dos interesses econômicos, deixando de lado valores humanos, permitindo a padronização pela produção em larga escala. A sociedade passou a ser gerida pela lei do mercado, em uma corrida ininterrupta pelo ter, intensificando o individualismo, elemento que dá vida à indústria cultural. Neste contexto, tudo se torna negócio, explorando bens, inclusive, considerados culturais, onde o homem passa a ser mero instrumento para o trabalho e para o consumo, um objeto manipulado e massificado sob uma ideologia dominante, não tendo o trabalho sequer de pensar, apenas o de escolher, em um estado de obscurecimento da percepção, valores e ideologias, propiciando apenas necessidades de consumo padronizadas. Previu-se algo para cada um a fim de que ninguém possa escapar. Cada setor da produção é uniformizado e todos são em relação aos outros. A civilização contemporânea confere a tudo um ar de semelhança. A indústria cultural fornece por toda a parte bens padronizados para satisfazer às numerosas demandas, identificadas como distinções às quais os padrões da produção devem responder. Por intermédio de um modo industrial de produção, obtém-se uma cultura de massa feita de uma série de objetos que trazem de maneira bem manifestada a marca da indústria cultural: serialização-padronização-divisão do trabalho”. (MATTELART; MATTELART, 1999). O conceito de indústria cultural foi criado em meados da década de 1940, por Adorno e Horkenheimer, difundido pela primeira vez em 1947, na obra Dialética do Iluminismo, com o objetivo de analisar a “produção industrial dos bens culturais como movimento global de produção da cultura como mercadoria” (MATTELART; MATTELART, 1999). O conceito surge de estudos realizados a partir da sociologia funcionalista que considera os meios de comunicação como mecanismos de ajuste e, especificamente, escolas de pensamento crítico que se interroga sobre “as consequências do desenvolvimento de novos meios de produção e transformação cultural, recusando-se a tomar como evidente a idéia de que, dessas inovações  

 

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técnicas, a democracia sai necessariamente fortalecida”. Neste cenário, “os meios de comunicação tornam-se suspeitos de violência simbólica, e são encarados como meios de poder e dominação.” (MATTELART; MATTELART, 1999). “O terreno em que a técnica adquire seu poder sobre a sociedade é o terreno dos que dominam economicamente.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1969 em MATTELART; MATTELART, 1999). O antropólogo argentino Néstor Garcia Canclini, ao focar seus estudos nas questões da pósmodernidade envolvendo as áreas da cultura, comunicação e sociologia - especialmente na América Latina – não é contrário ao conceito de indústria cultural, mas avalia a cultura na pós-modernidade em uma perspectiva alternativa, complementar e híbrida. Ao longo de sua trajetória com pesquisados, propõe que a cultura é formada com a participação ativa e mútua das diversas classes sociais, envolvendo dominantes e dominados. No processo de construção da cultura de uma sociedade, não apenas os poderes dominantes determinam suas características, mas sim todas as classes sociais, inclusive e, especialmente, a considerada popular ou subalterna de modo convergente, conflitante e/ou complementar, ultrapassando fronteiras, raças, línguas e credos, ou seja, criando uma fusão e sobreposição de valores e crenças, desenvolvendo uma cultura própria. Em sua obra ‘Culturas Híbridas, Poderes Oblíquos – Estratégias para entrar e sair da modernidade’, lançada em 1989, discute a importância de uma reorganização cultural do poder, considerando uma concepção de relações sociopolíticas não mais vertical e bipolar, mas sim descentralizada e multidirecionada, utilizando o conceito de hibridação para designar um conjunto de processos e intercâmbios e mesclas culturais. Para Canclini (2003), não há muito sentido estudar culturas populares e os conceitos convencionais de oposição entre subalterno e hegemônico, tradicional e moderno, pois existem manifestações que não se encaixam nem no conceito de culto, muito menos do de popular, sendo o que chama de “cruzamentos entre suas margens”. E propõe avançar a análise da hibridação cultural, rompendo o rótulo de culto ou popular, usando a “fórmula cultura urbana para tratar de conter as forças dispersas da modernidade”. (CANCLINI,  

 

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2003). Para explicar a hibridação propõe três processos que considera fundamentais: a quebra e a mescla das coleções organizadas pelos sistemas culturais, a desterritorialização dos processos simbólicos e a expansão dos gêneros impuros. Influenciada pela expansão urbana, tecnologias, mudanças na produção e circulação simbólica, a hibridação surge em uma sociedade contemporânea predominada pela urbanização, no qual se “entrelaça com a serialização e o anonimato na produção, com reestruturações da comunicação imaterial (dos meios massivos à telemática) que modificam os veículos entre o privado e o público” (CANCLINI, 2003).

3. A relação da Televisão Pública com a Indústria Cultural e as Culturas Híbridas A televisão mais do que informar, entreter e educar é um meio de comunicação criado também com finalidades de valorização à cultura. Mais do que valorizar, Canclini (2003) a considera capaz de influenciar e mudar a cultura onde se esteja inserida, integrando ou dissolvendo valores, dependendo apenas dos usos que lhes atribuem diversos agentes, “é possível afirmar que o rádio e a televisão, ao relacionar patrimônios históricos, étnicos e regionais diversos, e difundilos maciçamente, coordena as múltiplas temporalidades de espectadores diferentes.” (CANCLINI, 2003). A televisão, quando pensada inserida nos contextos sociais, deve ser entendida em duas perspectivas: com finalidades comerciais e com finalidades sociais, as chamadas televisões públicas. O que se propõe aqui é pensar em culturas híbridas integrando cenários comumente caracterizados como pertencentes à indústria cultural, nas culturas populares nacionais criando uma representação da cultura urbana na televisão por meio da televisão pública. Quando pensada na perspectiva nacional, a televisão brasileira possui o domínio expressivo e hegemônico da televisão comercial, enquanto a televisão pública caminha, desde o seu surgimento, para  

 

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alcançar uma regulação própria que a defina. Entre os veículos de comunicação existentes, tão fortemente influenciados e dominados pela indústria cultural, o mais abrangente em todo território nacional, latino americano e até mesmo mundial é a televisão. Sem dúvida, a televisão comercial é o poder hegemônico da comunicação de massa no País. Moraes (2008) apresenta que na América Latina as quatro maiores empresas de comunicação são: Globo do Brasil, Televisa do México, Cisneros da Venezuela e Clarín da Argentina. Nas áreas de mídia e entretenimento retêm 60% do faturamento total dos mercados de audiência. Brasil, México e Argentina reúnem mais da metade dos jornais e das emissoras de rádio e televisão e 75% das salas de cinema da região. Os Estados Unidos ficaram com 55% das rendas mundiais geradas por bens culturais e comunicacionais, a União Européia com 25%, o Japão e Ásia com 15% e a América Latina com apenas 5%. Neste contexto, 85% das importações audiovisuais para a América Latina provêm dos Estados Unidos. “Se duas dezenas de corporações respondem por dois terços das informações e dos entretenimentos mundiais, evidentemente a descentralização se inscreve mais na órbita das exigências mercadológicas do que propriamente nas diferenças qualitativas de conteúdos.” (MORAES, 2008). Tal realidade faz com que um processo de produção e de reprodução mecânica, idealizada e gerida por um pequeno grupo hegemônico de comunicação garanta a continuidade do que propõe a indústria cultural. “Pois só o triunfo universal do ritmo de produção e de reprodução mecânica garante que nada mude, que nada surja que não possa ser enquadrado. Acréscimos ao inventário cultural experimentado são perigosos e arriscados.” (ADORNO e HORKHEIMER, 2002). ...suas inovações típicas consistem sempre e tão só em melhorar os processos de reprodução de massa, não é de fato extrínseco ao sistema. Em virtude do interesse de inumeráveis consumidores, tudo é levado para a técnica, e não para os conteúdos rigidamente repetidos, intimamente esvaziados e já meio abandonados. (ADORNO; HORKHEIMER, 2002)  

 

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Para Moraes (2008), as sociedades passam a ser guiadas pela astúcia do marketing e dos planejamentos estratégicos – ambos possuídos pela fixação de manter o capital em rotação e rentabilizá-lo ao máximo. “A exacerbação consumista interfere na cotidianidade e nas relações humanas, formando marcas distintivas entre pessoas e grupos, na mesma proporção em que conclama ao individualismo e à apatia” (MORAES, 2008). Neste cenário de ampla aceitação, abarca a hegemonia de duas dezenas de corporações que respondem por dois terços das informações e dos entretenimentos mundiais, o que “evidentemente a descentralização se inscreve mais na órbita das experiências mercadológicas do que propriamente nas diferenças qualitativas de conteúdo” (MORAES, 2008), o que resulta em uma comunicação movida pela audiência, pela força da indústria cultural. Já em meados da década de 1940, quando Adorno e Horkheimer pensaram sobre a televisão ainda em processo de consolidação, perceberam seu imenso potencial com veículo de comunicação. A televisão tende a uma síntese do rádio e do cinema, retardada enquanto os interesses ainda não tenham conseguido um acordo satisfatório, mas cujas possibilidades ilimitadas prometem intensificar a tal ponto o empobrecimento dos materiais estatísticos que a identidade apenas ligeiramente mascarada de todos os produtos da indústria cultural já amanhã poderá triunfar abertamente. (ADORNO e HORKHEIMER, 2002) A televisão adota e utiliza com plena naturalidade, facilidade e liberdade por produtores e reprodutores, uma linguagem característica da indústria cultural, no qual o novo é ligado a velhos estigmas da relação com a imagem e a vida cotidiana determinada pelos padrões determinados. “Tudo que surge é submetido um estigma tão profundo que, por fim, nada aparece que já não traga antecipadamente as marcas do jargão sabido, e, à primeira vista, não se demonstre aprovado e reconhecido. ...O sempre igual ainda regula a  

 

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relação com o passado” (ADORNO e HORKHEIMER, 2002)e o mais crítico, abarca a insatisfação como rotina aceita e referenciada. A cultura industrializada dá algo mais. Ela ensina e infunde a condição em que a vida desumana pode ser tolerada. O indivíduo deve utilizar o seu desgosto geral como impulso para abandonar-se ao poder coletivo do qual está cansado. As situações cronicamente desesperadas que afligem o espectador na vida cotidiana, tornam-se não se sabe como, na reprodução, a garantia de que pode continuar a viver. ...A sociedade é uma sociedade de desesperados... (ADORNO e HORKHEIMER, 2002) O fato de televisão brasileira chegar a quase todos os lares em todo o território nacional, para Fadul (1993), torna-se impossível compreender a sociedade brasileira sem compreender este veículo, pois “buscar compreender a cultura e a educação brasileira, sem passar pela indústria cultural a qual a televisão está inserida, é cometer um grande equívoco.”. Fadul (1993) argumenta que não se pode esquecer que todas as informações contemporâneas são mediatizadas pelos meios massivos e pela indústria cultural e, por isso, é preciso entender os desafios que os meios de comunicação têm representado, inclusive a televisão pela força social que possui. Só através da compreensão da indústria cultural que pode se propor uma nova política educacional, cultural e comunicacional, capaz de fornecer subsídios para, inclusive, alterar a própria indústria cultural. Com a chegada da tecnologia digital e a popularização da internet tornando seu usuário agente ativo e produtor no processo de comunicação, o espectador passa a buscar uma televisão interativa, onde seu papel deixa de ser passivo e dominado por um sistema e uma grande de programação que atenda aos interesses mercadológicos voltados para a audiência ‘a qualquer preço’, seguindo os princípios arraigados da indústria  

 

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cultural existentes na televisão comercial nacional. Nesta nova perspectiva, o espectador busca mais do que escolher entre um programa A ou B, um personagem que permanecerá ou sairá de um reality show, ele quer intervir efetivamente e até mesmo produzir uma programação diferenciada, que atenda aos seus interesses, que ‘fale sua língua’ e que divulgue a cultura local ao qual esteja inserido com suas particularidades e peculiaridades, compartilhando, inclusive, o que produz com outras culturas regionais em um processo contínuo de fluxo de informação autônoma, independente e livre das amarras padronizadas de um sistema que atenda aos interesses comerciais de uma minoria. De modo consciente e inovador, que o permita assistir, intervir, produzir e compartilhar conteúdo. O processo de hibridação social deve se fazer presente, inclusive, nas relações sociais que envolvem a produção da comunicação de massa, compartilhando e disseminando a cultura urbana. Ao contrário do que é amplamente discutido e difundido, a televisão não precisa ser, necessariamente, um instrumento de massificação e manipulação da indústria cultural, que provoque a degradação da educação, da cultura e da sociedade. A televisão pública, neste caso, pode ser um contraponto desta perspectiva, tornando-se, exatamente pela força da televisão no Brasil, um instrumento de democratização alternativo à televisão comercial não de modo competitivo, mas alternativo, oferecendo uma proposta de programação e conteúdo que prestigie a cultura, a educação, a informação e o lazer, inclusive regionalizados. É preciso haver uma hibridação da cultura televisiva com a efetiva participação popular, gerando conteúdo e propondo inovações. Para compreender as relações interculturais e a efetiva potencialidade política dos setores populares, é preciso achar um caminho intermediário: entre o discurso etnocêntrico elitista, que desqualifica a produção subalterna, e a atração populista diante das riquezas da cultura popular,  

 

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que deixa de lado aquilo que, nos gostos e consumos populares, há de escassez e resignação. (CANCLINI, 2005) A televisão no País passa por um processo de reestruturação tecnológica, transitando do sistema analógico para o digital, que abre possibilidades reais para uma nova perspectiva de atuação, viabilizando um novo segmento de conteúdo e programação gratuito, aberto e alternativo ao sistema adotado pelas televisões comerciais por meio da regulamentação e apoio às televisões públicas em todo território nacional. Desde sua criação envolvendo as questões legais e de regulação, a implantação tem sido marcada pela constante preocupação com a questão da cultura, educação, acessibilidade e desenvolvimento social, iniciada a partir da instituição do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) pelo decreto nº 4.901, de 26 de novembro de 2003. Barbosa e Castro (2008) propõem que o papel da televisão pública neste novo cenário pode se tornar a grande alavanca para a que a sociedade atinja objetivos relevantes em uma sociedade democrática como o cumprimento da regra constitucional, por meio da socialização dos bens culturais, democratização da informação, difusão do conhecimento e cidadania. Oportunidades que poderão surgir no mercado audiovisual pelas novas maneiras de acesso à informação, à cultura e ao entretenimento; além do atendimento à qualidade das relações sociais na medida em que rediscute a noção de espaço público, assim como a visibilidade das relações público-privadas, de seu agendamento, troca simbólica e modificação do eixo de poder resultante; diversidade de idéias, os espaços de relacionamento, as possibilidades de estabelecerem novos pactos sociais através da inclusão de novos atores e a conseqüente divisão do poder sobre a informação, abrindo as fronteiras existentes para uma representação da sociedade que a cultura possa intercambiar. O Relatório do Grupo de Trabalho ‘Migração Digital’ do I Forum Nacional de TVs Públicas, realizado em 2006, destaca que cabe a “televisão pública contribui para integrar a maioria da população aos benefícios  

 

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da tecnologia, bem como eliminar diferenças de acesso à capacidade de produção de conteúdos”. Mas, para isso, as regulações determinadas pelas políticas públicas são fatores determinantes no processo de desenvolvimento da televisão pública e sua devida utilização junto à sociedade como alternativa ao sistema até então hegemônico. Em relação às políticas públicas voltadas à comunicação social, enfim, há uma resistência dos empresários de comunicação e do governo quanto à sua implantação, pois estes segmentos vêem nas emissoras públicas e comunitárias uma concorrência pelas receitas de publicidade e um espaço para a formação de um pensamento político independente. (LINS, 2002) A possibilidade de uma expansão e participação social por meio da televisão pública, como aqui proposto, tonar-se um rompimento de fronteiras que, não necessariamente, está disponibilizado para ser concretizado, pois cria um novo vínculo entre cultura, poder e sociedade, viabilizando um poderoso instrumento de mediação, ‘de vias diagonais’, de um modelo alternativo aos poderes oblíquos para os grupos subalternos, como define Canclini (2003). Não há dúvidas de que a televisão brasileira é um instrumento híbrido gerador de uma cultura híbrida. A população tem nela o instrumento de acesso sim à cultura nacional e centenas de milhares de espectadores apreciam diariamente sua programação. A ‘via diagonal’ tratada não visa deixar de apreciar o que está consolidado neste veículo de comunicação, mas que seja viabilizado, com apoio do Estado e ampla participação social, o acesso efetivo para que: o que esteja sendo vivenciado cultural e socialmente nas ruas de todo território nacional, inclusive as culturas urbanas e tradições regionalizadas e segmentadas, estejam amplamente representadas no principal veículo de comunicação do País. Mais do que isso, deve estar acessíveis a linguagem popular e ser produzida por quem a assiste, como instrumento de tomada de consciência de poderes oblíquos presentes na sociedade e na própria cultura  

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urbana. Por isso a importância da participação efetivamente popular na televisão pública caracterizando e concretizando tal hibridação entre o público e o privado, o hegemônico e o subalterno, em diferentes canais, mas no mesmo meio de comunicação.

4. Considerações Finais O grande desafio para tal concretização está na compreensão da população, acostumada com a dominação da indústria cultura, de que é seu direito e seu território transitar, intervir e gerir um veículo de comunicação público, como a televisão pública. O meio de comunicação público deve deixar de ser um território político, para se tornar de poder social e, para isso, o Estado deve intervir com uma regulação efetiva, atendendo e respeitando as práticas culturais que devem ser mais do que ações e sim atuações, como caracteriza Canclini (2003). A televisão comercial acaba se tornando um instrumento para acentuar a assimetria e a desigualdade em relações sociais. “Aparentemente os grupos concentradores de poder são os que subordinam a arte e a cultura ao mercado, os que disciplinam o trabalho e a vida cotidiana” (CANCLINI, 2003) e as relações sociopolíticas descentralizadas e multidirecionadas, em alguns processos contemporâneos, encontram resistência por parte de representações maniqueístas e conspirativas, como é o caso da expansão e participação efetiva da população na produção e gestão da televisão pública. Pensar em brechas e alternativas para novos modelos de comunicação aos consolidados pela indústria cultural demanda duas ações fundamentais: disposição da população e, fundamentalmente, do Estado que tem o papel e a capacidade de regulamentar uma legislação que viabilize e garanta ao cidadão espaços de manifestação popular, mesmo em um contexto ‘mergulhado’ nos preceitos da indústria cultural. É notório que para os poderes hegemônicos da  

 

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indústria cultural tal alternativa será uma força de conflito aos seus interesse, mas cabe exatamente ao Estado o papel de criar o equilíbrio entre ambos. Para Canclini (2005 em MORAES, 2008), ao serem definidas novas políticas de comunicação, os governos progressistas da América Latina precisam estar cientes de que marcos regulatórios das concessões de rádio e televisão “são tão indispensáveis quanto a inclusão dos sistemas de comunicação e das indústrias culturais nos eixos estratégicos de desenvolvimento e na agenda dos acordos de integração regional” (CANCLINI, 2005 em MORAES, 2008). Para ele, tal atitude “significa dotar os países de mecanismos institucionais e soluções técnicas que respondam às necessidades nacionais e regionais, opondo-se à comercialização lucrativa das diferenças subordinadas aos gestos internacionais massivos” (CANCLINI, 2005 em MORAES, 2008). Mosco (2006) propõe um interessante conceito de desregulamentação: um modo de recapitalizar a mídia eletrônica, não eliminando o papel do Estado, mas reorganizando-o para melhor representar o capital e seus interesses. Nesta perspectiva, com a chegada da tecnologia digital e a utilização da televisão pública como instrumento de acesso a cultura, educação, informação e lazer, cria-se uma brecha de rompimento a padronização da indústria cultural não como um opositor, mas como elemento alternativo - que conviva em harmonia de modo planejado e sustentável - ao processo de comunicação midiático, contribuindo para o enriquecimento da cultura híbrida da pós-modernidade. Para Valente (2008) ao mesmo tempo em que cumprem uma função especializada do Estado e asseguram a coesão social e a legitimação do sistema (propaganda), são também agentes em concorrência na indústria cultural. “Aí se estabelece uma contradição, uma vez que, por ser um aparelho de Estado, o Aparelho Midiático Público (AMP) não deveria se colocar nesta condição de competição em relação aos outros agentes nesta esfera. Esta contradição será resolvida na formatação do ‘modelo de financiamento’” (VALENTE, 2008), que, para Valente (2008), determina os limites do acesso aos recursos disputados pelos diversos competidores na indústria cultural.

 

 

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É preciso haver a superação da dicotomia educação, consciência social, cultura e informação crítica versus indústria cultural. O que se faz necessário é o processo consciente de inserção e garantia de alternativas ao sistema no qual esteja inserido participando, mas também intervindo nele, em um processo mútuo e sem fronteiras. É claro que a indústria cultural permanecerá e nem se espera o contrário. As novelas brasileiras, os filmes e seriados americanos, os programas de auditório populares, as canecas de porcelana à venda carregando imagens de obras de arte, tudo faz parte do que se define como indústria cultural que é, em muitos momentos, muito bem recebida pela sociedade em um processo contínuo de hibridação cultural. O que precisa haver é a opção, a liberdade de viabilizar canais abertos com tal finalidade, ou seja, gratuitos e alternativos com objetivo social e não apenas comercial. Para isso, a televisão pública deve agir com capacidade plena de seus potenciais tecnológicos e ideológicos, a sociedade deve ser participativa e o Estado deve garantir tais direitos, pois, assim como o cidadão tem o direito de colecionar e descolecionar, criar sua própria biblioteca, seu arquivo pessoal de imagens e sons, intervir em um monumento centenário, entrar, sair, modificar e expandir fronteiras territoriais, culturais, ideológicas e partidárias criando uma cultura híbrida tão característica da pós-modernidade, deve ter o direito de intervir, agir e atuar diretamente no veículo de comunicação mais massificado e popular de um país. Por meio das novas tecnologias comunicacionais, ou nem tão novas assim, mas pouco aproveitadas, como é o caso da própria televisão pública, a manifestação popular construída de forma híbrida, torna-se um importante instrumento democrático de conscientização do coletivo e da consolidação de uma cultura popular participativa, garantindo a consolidação de uma cultura urbana. É necessário para tal cultura que exista um espaço de comunicação de massa com grande alcance e garantido pelo Estado, não indo contra, mas interagindo, ultrapassando fronteiras, hibridizando a própria televisão, transformando-a um instrumento não apenas da indústria cultural, mas também, e essencialmente, em um instrumento social de grande alcance.  

 

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Referências I Fórum Nacional de Tv´s Públicas: Relatórios dos grupos temáticos de trabalho – Brasília: Ministério da Cultura, 2007. 116 p. (Caderno de debates.) ADORNO, Theodoro W.. HORKHEIMER, Max. A Indústria Cultural – O Iluminismo como Mistificação de Massa em Teorias da Cultura de Massa. Org. Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Editora Saga S.A., 2002. (p. 157-202). BARBOSA, A. F. e CASTRO, C. Nova Televisão pública Convergente: interatividade, multiprogramação e compartilhamento. Revista de Economía Política de lãs Tecnologias de la Información y Comunicación, vol. X n. 3, São Paulo. – Dic, 2008. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05/10/1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em 13/06/2010. _________Decreto n. 4.901, de 28.11.2003. Institui o Sistema Brasileiro de Televisão Digital SBTVD, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4901.html. Acesso em 13/06/2010. _________Decreto n. 5.820, de 29.06.2006. Dispõe sobre a implantação do SBTVD-T, estabelece diretrizes para a transição do sistema de transição digital do serviço de radiodifusão de sons e imagens e do serviço de retransmissão de televisão e dá outras providências. Disponível em: http://www.mc.gov.br/index.php/content/view/30843.html. Acesso em 13/06/2010. CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas – Estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. Ed. São Paulo: EDUSP, 2003. __________ Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005.  

 

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