Inevitavelmente cinema: educação, política e mafuá.

May 26, 2017 | Autor: Cezar Migliorin | Categoria: Education, Educação, Direitos Humanos, Cinema and Education, Cinema E Educação
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INEVITAVELMENTE CINEMA

Coordenação editorial Sergio Cohn Assistência editorial Barbara Ribeiro Imagem da Capa “Mafuá” colagem de Cezar Migliorin sobre fotograma de En rachâchant de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet Projeto gráfico Sergio Cohn e Tiago Gonçalves Revisão Barbara Ribeiro, Cristina Parga e Juliana Travassos Equipe Azougue Barbara Ribeiro, Juliana Travassos, Rafaela dos Santos, Tiago Gonçalves e Welington Portella

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M576i

Migliorin, Cezar, 1969-



Inevitavelmente cinema : educação, política e mafuá / Cezar Migliorin. -



1. ed. - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2015.

224 p. : il. ; 21 cm.



Inclui bibliografia

ISBN 978-85-7920-193-6 1. Cinema na educação. 2. Arte na educação. 3. Direitos humanos. I. Título. 15-26701 CDD: 371.33 CDU: 37.091.39 22/09/2015 25/09/2015

[ 2015 ] Beco do Azougue Editorial Ltda. Rua Visconde de Pirajá, 82 subsolo 115 CEP 22461-000 - Rio de Janeiro - RJ Tel/Fax 55_21_2259-7712

facebook.com/azougue.editorial www.azougue.com.br azougue - mais que uma editora, um pacto com a cultura

azougue editorial 2015

cezar migliorin

INEVITAVELMENTE CINEMA

educação, política e mafuá

SUMÁRIO PRÓLOGO

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ABERTURAS

13

POLÍTICA

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IMAGINAR

75

NA ESCOLA

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PEDAGOGIA DO MAFUÁ

179

BIBLIOGRAFIA

203

INVENTAR COM A DIFERENÇA

209

AGRADECIMENTOS

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ANEXOS

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PRÓLOGO

Entre 2013 e 2015, preparamos e começamos a execução de um projeto que trabalha com cinema e direitos humanos em 234 escolas em todos os estados do país. Este livro é sobre esse trabalho. Entretanto, mais do que a apresentação de um projeto, tratase de pensar politicamente o cinema e a educação, o encontro entre eles e o que um tem a dizer sobre o outro. Com o cinema e a educação estamos no mundo; nesse sentido, esse é um livro de aberturas e relações entre a arte, a teoria, a cultura, a política, a infância e a juventude. O livro é organizado em cinco partes. Primeiramente narro o pré-projeto no capítulo “Aberturas”. O trabalho com cinema em escolas do Rio de Janeiro e o início de uma elaboração teórica que nos levaria a construir o Inventar com a diferença com as características que ele veio a ter. “Política” é o segundo capítulo. Eminentemente teórico, este trecho discute a forma como nos aproximamos dos direitos humanos, privilegiando uma inseparável conexão entre estética e política. Trago ali debates sobre as relações do cinema com a política, além de, com a ajuda da filosofia e das teorias da imagem, apresentar questões relativas aos processos subjetivos. “Imaginar” é o terceiro capítulo, ali o cinema e a escola começam a conversar. Por vezes, de forma fragmentada, diversas considerações sobre um e outro aparecem nas provocações que o cinema faz para a escola e vice-versa. Nesse momento começamos a desenhar uma metodologia de trabalho com a noção de dispositivo. No capítulo quatro, “Na escola”, apresento diversas narrativas e reflexões sobre

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o trabalho em execução, sucessos e fracassos. Já em “Pedagogia do mafuá”, voltamos a uma dimensão mais teórica, recolocando questões para o cinema e para a educação a partir do trabalho na escola. Este capítulo, de alguma maneira, concentra noções trabalhadas no capítulo “Política”, como: molecularidade, experiência, emancipação e igualdade, sem, entretanto, voltar a elas. Trata-se de mais uma abertura de um novo círculo teórico do que propriamente uma conclusão. Há ali a tentativa de esboçar uma pedagogia em que a dimensão teórica e a experiência nas escolas estejam refletidas. Nesse sentido, imagino ser um capítulo mais frágil e impreciso. Ali experimento a noção de mafuá como uma pedagogia entre a arte, o conhecimento e os processos subjetivos. Nas cinco partes que compõem este livro há uma forte variação nos ritmos de leitura propostos. As partes um, três e quatro são velozes. O leitor passará por elas sentindo um caminho sendo rapidamente percorrido. A parte dois é lenta. Há ali um outro convite à atenção. Na parte cinco há uma entrega desses ritmos ao leitor. É ele que determinará o ritmo possível e o que lhe interessa ali. Há ainda uma outra camada presente em todo o livro. São citados muitos filmes em que crianças e jovens são os protagonistas. Estes filmes constituem, por assim dizer, uma pedagogia do cinema. Um cinema que, mais do que representar a infância, pensou com ela as formas do conhecimento se fazer, os modos do mundo cuidar ou não das crianças, as formas de luto, as maneiras de as crianças inventarem e alterarem a comunidade em que vivem e as profanações infantis que com frequência desnaturalizam objetos, consumos, ordens, poderes e hierarquias. Mais do que se organizar cronologicamente, o livro é organizado por um adensamento de encontros. Se no início a primeira pessoa e as narrativas mais pessoais predominam, no capítulo quatro, por vezes, a palavra é entregue aos companheiros com quem passamos a construir o trabalho nas escolas. Essa oscilação do eu ao nós, que a princípio me parecia estranha, se tornou ab-



prólogo

solutamente necessária. Sem abandonar seu caráter processual, importa dizer que este livro foi escrito durante uma pesquisa de pós-doutorado na Inglaterra1; por isso são frequentes os exemplos do sistema inglês, onde pude conhecer muitas escolas, projetos e políticas públicas. Neste trabalho, narro um projeto de pequenas dimensões, mas que permitiu a mais de 3 mil alunos uma experiência com a comunidade, com o território, com a diferença e com a imagem; um projeto que talvez pouco colabore na difícil tarefa de fazer com que a escola seja mais democrática no país, mas que, ao pensar nossa prática, nos permitiu colocar questões para o cinema, para a política e para a educação. Metodologicamente, fazemos como Joseph Jacotot, o educador francês do século XIX. Partiremos da igualdade das inteligências, da igualdade das possibilidades criativas e políticas de todo jovem e de toda criança; se no final das contas estivermos errados, não há problema. Se nossas apostas e trabalhos forem importante na vida desses jovens e suas comunidades, estaremos contentes e manteremos a opção teórica como uma utopia necessária. A noção de comunidade será frequente e gostaria que ela fosse pensada como uma exterioridade ao indivíduo, não só o vizinho ou o que está próximo, mas as vidas – humanas e não-humanas –, as ordens sociais e simbólicas que formam o nosso mundo e na qual o indivíduo está inserido – transformando-a e sendo transformado. Acompanhando ainda a leitura que César Guimarães faz do filósofo francês Jean-Luc Nancy, para quem “o termo ‘comunidade’ deve ser usado com grande precaução,” diz ele, “evitando-se inteiramente as conotações que ele carrega, como as de interioridade, exclusividade e identidade. Ele (Nancy) prefere falar em um ‘ser/ estar em comum’ ou ‘ser/estar com’, no qual este ‘com’ (o avec, em francês ou o mit, em alemão) abre-se a ‘vários reinos’ (humano, animal, vegetal, mineral), divididos em singularidades (grupos, or1 Com o fundamental apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da Universidade Federal Fluminense (UFF). 

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dens, meios, indivíduos, histórias)” (GUIMARÃES: 2015, p. 4). Ou seja, tal noção se refere a um estar junto entre humanos e não-humanos sem que as diferenças e distâncias entre seres precisem encontrar identidades e homogeneidades nos modos de ser. Nosso método com o cinema é simples: assista um plano com o estudante, produza um encontro, faça uma imagem, tenha certeza de que ele conhece bem o que fez – nos detalhes do que vê e nas conexões com o que não está na imagem –, torça para que ele deseje compartilhar o que viu e inventou. Assim teremos feito nosso papel de criar e descobrir o mundo com o cinema. O livro traz pelo menos duas relações claras entre o cinema e a educação. Uma primeira que percorre os caminhos do projeto Inventar com a diferença2, e uma segunda, menos evidente, que pensa a escola a partir do cinema. Sim, trata-se de uma aposta ousada. O cinema na escola é bastante aceitável quando ele chega na forma de exibição de filmes e debates em torno de conteúdos presentes nos filmes, mas e se levarmos a sério a possibilidade do cinema pensar o mundo e consequentemente a escola? Que implicações e invenções nos trazem essa ousadia? Fundamentalmente, o cinema se apresenta como uma experiência com o mundo, com o outro, com o conhecimento, através de imagens e narrativas. Receber um conteúdo com o cinema é inseparável de uma experimentação pessoal e coletiva desse conteúdo. Não por outro motivo, sempre foi fundamental para nós que a produção de imagens e sons estivesse na escola, e não somente a exibição de filmes. Com a produção de imagens, o aprendizado passava necessariamente por uma relação criativa e crítica por parte dos alunos. Entender a rua, o bairro, o vizinho e a cidade com o cinema é entrar em uma relação com o outro e, simultaneamente, em uma atividade crítica e criativa – do plano, do quadro, da luz, do ritmo. Em outras palavras, aproximar os estudantes do que o mundo tem a nos dar e, simultaneamente, permitir que eles criem e inventem com esse mundo. Se as imagens hoje fazem com frequência o papel contrário, limitando nossas ex2 Ver resumo do projeto em anexo. 

prólogo

periências – do turismo à publicidade – a aposta no cinema não deixa de ser um embate pela possibilidade de uma experiência, pela possibilidade da presença dos estudantes na relação com o que eles vêm e sentem. Não seriam esses os papéis de toda educação e de toda produção de conhecimento? Nossas apostas e desejos em relação à escola e ao cinema são acompanhadas de um cuidado bastante pragmático: a escola existe e é com o que existe que pensaremos. Não temos projetos acabados para nenhuma revolução na educação ou na relação das artes com o aprendizado, mas não nos abstemos em imaginar um mundo onde a educação seja parte de tudo – e não de um espaço reservado para ela – e que a escola seja essencialmente democrática, aproximadamente como definiria Jacques Rancière: espaço onde qualquer um, vindo de qualquer lugar, possa fazer a diferença no mundo em que vive. Corro o risco nesse livro de torná-lo excessivamente masculino, defendo uma posição, uma tese, um processo, mas, gostaria desde já de me desculpar pelas formulações contra alguns inimigos. Não porque esses inimigos não existam, pelo contrário, na escola eles mostram a cara com enorme desfaçatez, mas porque o belicismo que eventualmente estará presente no livro, com defesas e ataques, não é dos lugares mais agradáveis. O ataque, a tese, a defesa, pressupõem que o livro tem alguma força e que quanto mais força tiver melhor. Felizmente, por vezes o tom será outro, menos bélico e mais desconfiado da acumulação de forças e retóricas. Este livro é ainda atravessado por noções que ao longo da leitura, devem ganhar clareza: diferença, igualdade, experiência, subjetividade, emancipação e comunidade. Essas noções não são trabalhadas com um esforço de definição, mas como ferramentas necessárias para pensarmos o que estamos fazendo e o que está acontecendo com os jovens com quem trabalhamos. De alguma maneira, foram elas também que nos permitiram construir uma forma singular de relação entre o cinema e os direitos humanos, pensado aqui mais pelo seu viés estético-político do que políti-

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co-temático. Como ficará claro, o cinema nos interessou pouco como discurso, mensagem ou por levar à escola as boas discussões sobre os direitos humanos, mas, nem por isso, queríamos perder a política. Talvez a mais importante parte desse livro esteja na experiência que tivemos nas escolas, no quarto capítulo, como se ali as pesquisas teóricas e os trabalhos de produção fizessem todo sentido. Nosso desafio foi marcado por uma máxima: todo estudante é capaz de fazer cinema. Ou seja, é capaz de atuar criativa e criticamente com a câmera; é capaz de receber e de inventar um mundo. Para muitos professores, quando dissemos isso, estávamos dizendo o óbvio, mas era necessário ir para a prática para vermos isso acontecendo. De um modo geral, o que mais vimos foi a efetivação dessa aposta e, quando ela não se efetivava, normalmente era por conta da nossa própria dificuldade em autorizar e ajudar a criação dos estudantes; nesses casos, vínhamos com fórmulas e modelos que deveriam ser reproduzidos pelos jovens, jogando fora suas efetivas participações inventivas. Esse livro apresenta o percurso desse trabalho em que a prática não esteve separada da produção teórica, habitada por amigos de escrita, imagens, instituições, filmes e do cotidiano da escola.

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ABERTURAS

Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é preciso a prática para atravessar o muro. Gilles Deleuze3

Entre o final de 2007 e o início de 2008, dispensei muitas vezes a carona que me levaria do centro do Rio de Janeiro ao centro de Nova Iguaçu, onde trabalhávamos na Secretaria de Cultura da cidade. O tempo dispendido no metrô até a Pavuna e depois no ônibus até Nova Iguaçu eram fundamentais para que eu pudesse fechar as intermináveis revisões em minha tese de doutorado sobre documentário e biopolítica, com ênfase em dispositivos de criação. Entramos, entre outras coisas, para fortalecer a Secretaria de Cultura em um dos principais projetos da prefeitura, o “Bairro Escola”. Em pouco tempo estávamos trabalhando com dezenas de jovens universitários que ficavam responsáveis por oficinas de arte no contraturno escolar. A experiência cheia de méritos era, entretanto, feita com duras precariedades, sobretudo na formação e na remuneração desses jovens. Nosso trabalho foi tentar criar encontros com artistas e desenvolver ideias que pudessem ser levadas para as escolas, além de acompanhar o trabalho desses jovens e mobilizar as escolas para que a entrada do “Bairro Escola” fosse bem-recebida. A cada semana passávamos uma tarde com um grupo que começou com cerca de 50 jovens, e menos de um ano depois, chegava a 200.

3 In Foucault, 1979.

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Esses jovens universitários, em certo sentido, eram professores, mas, sobretudo, alunos desejosos em entender formas possíveis de estar na escola. A carreira docente, com a estabilidade no emprego, era vista naquela região com bons olhos por muitos dos universitários com quem trabalhávamos e que estudavam em licenciaturas. Esse trabalho nas escolas foi recebido pelo nosso grupo que chegava em Nova Iguaçu com um susto. Tudo tinha que ser feito com velocidade: o recrutamento, a formação e o acompanhamento. Para saber o que acontecia nas escolas, não havia outra solução: era preciso ir até elas, frequentemente distantes umas das outras. Nesses caminhos fiz minha única inimizade nesse ano em que fiquei em Nova Iguaçu: com a motorista da prefeitura. Ela nos levava até as escolas mais longínquas, às vezes, em área rural. Como nos perdíamos sempre nesse mundo pré-GPS, sugeri que ela conseguisse um mapa na prefeitura. Aquilo foi um insulto. Por vezes simplesmente não chegávamos no nosso destino. Descobri que a menor inimizade em um projeto público pode ser um entrave perturbador. Nas mais de 70 escolas que visitei em Nova Iguaçu, encontrei diretores engajados, professores atentos, mas também uma precariedade estrutural de todos os níveis, o que definitivamente não era exclusividade daquele município. O que me surpreendia sempre era o interesse que tantos professores tinham pelos projetos de arte e cultura quando eles chegavam à escola. Era como se professores de matemática ou história pudessem se engajar em algo que os interessava, mas que dentro do currículo estava reservado apenas aos professores de artes. Ao mesmo tempo, viam nas artes a possibilidade de interagir com outras informações, formas e saberes, abrindo suas disciplinas. Foram muitas as experiências com esse grupo em Nova Iguaçu , mas quatro ficaram como aprendizados para a continuação 4

dos trabalhos que faríamos em seguida:

4 A coordenação do “Bairro Escola” era de Maria Antonia Goulart. Prefeito Lindberg Farias. Secretário de cultura: Marcus Faustini. Acompanharam a entrada de Faustini na secretaria: Julio Ludemir, Écio Sales e Raul Fernando. 

aberturas

1) Precisamos sistematizar o que fazemos. Em Nova Iguaçu criamos oficinas, inventamos projetos para as escolas, incorporamos ideias dos jovens que trabalhavam conosco, mas nada foi para uma publicação de maneira organizada e sistemática. Em suma, não acumulamos um conhecimento compartilhável sobre o que fazíamos. Essa ideia virou uma obsessão para mim: é preciso sistematizar, organizar e tornar acessível nossos acertos e erros. Obviamente não se trata de roteirizar o trabalho dos professores, mas acumular conhecimento e disponibilizar o que criamos e aprendemos. 2) Entendi que a licenciatura é um caminho desejado por muitos jovens. Se lutamos por escolas melhores, o investimento em licenciaturas nas universidades de ponta, com os melhores professores, é fundamental. Essas pessoas e engajamentos serão decisivos em uma transformação efetiva da educação. 3) Encontramos em Nova Iguaçu um desejo por condições de trabalho e experiências que está nos professores e gestores de escolas. Precisamos criar formas para que esse desejo de transformação, do espírito de liderança e da vontade de ensinar e formar pessoas não sejam destruídos pelas precariedades ou pelos limites que o Estado dá para a atuação desses profissionais. 4) Finalmente, aprendi que não se deve brigar com alguém que o leva para visitar uma escola. Eu sou aquele que está de saída Eu sou aquele que está de saída é o estranho título da minha tese finalizada nas proximidades da Pavuna, a estação de metrô mais distante do centro do Rio de Janeiro. Na época da defesa, um de meus orientadores, o professor Philippe Dubois, me dizia: “isso na França não quer dizer nada”. Além de argumentar que havia uma continuação do título que deixava as coisas mais claras: “dispositivo, experiência e biopolítica no documentário contemporâneo”,

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expliquei para ele que em português também era estranho o que foi aceito com generosidade e desconfiança. Minha outra orientadora, a professora Ivana Bentes, abertíssima aos estranhamentos que podem cruzar o mundo acadêmico, aceitou sem pestanejar. Quando escolhi esse título, tentava resumir formas de criação presentes no cinema, na fotografia e nas artes visuais que ganharam grande ênfase na segunda metade do século XX e que não paravam de gerar novas estratégias de criação e dispositivos. O Eu, no caso, era o próprio criador, artista, ou qualquer um que defina o que uma obra é, até mesmo o espectador. Esse eu é um inventor de formas de se ausentar, de estar presente, mas sempre de saída, quase do lado de fora da obra, permitindo que o acaso, o espectador, o real atravessasse a obra. Essas opções, por um lado, partiam de uma forte confiança do artista em suas possibilidades de criar pequenas perturbações no estado das coisas, mas também de uma grande confiança no fato de que a realidade está sempre se reorganizando de maneira a incorporar diferenças e novos modos de vida. Em resumo, quando “estou de saída”, criar não é organizar o mundo à feição do criador, mas criar aberturas para que o mundo entre com suas forças e formas, surpreendendo o próprio artista. A abertura para o descontrole que, por exemplo, o cinema direto, o cinema verdade ou uma boa parte do cinema novo trouxe não é uma ausência de um indivíduo que enuncia, mas o deslocamento deste indivíduo para fora do centro. Deslocado e sem o privilégio da centralidade, trata-se de entrar em relação com o outro, com tudo que pode surgir de indeterminado neste deslocamento, com o que pode ser criado nos encontros. Fundamentalmente, me perguntava o que significa continuar criando arte e falando sobre o mundo sem esse lugar privilegiado, sem centralidade, sem clareza dos fins e sem palavras de ordem. Voltarei a algumas das questões que me mobilizavam na tese e que tiveram desdobramentos no trabalho que faríamos adiante com o cinema na escola. Mas ali em Nova Iguaçu, no nosso trabalho com as oficinas de arte, já com o audiovisual presente, apostá-

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vamos que nossa entrada na escola era para “estarmos de saída”, não porque abandonaríamos a escola, pelo contrário, mas porque entendíamos que nossa presença tinha uma forte dimensão estética: nos colocávamos como artistas e, por isso, de saída; nos autorizando participar daquelas comunidades, mas sem desejar centralidade. A arte, os jogos e dispositivos que levávamos para as escolas apareciam mais como microperturbadores de algumas ordens – o espaço de trabalho, as hierarquias entre os bons e maus alunos, a cultura letrada e o lugar do professor – do que, propriamente como um conteúdo artístico. Estar de saída significava se abster de chegar na educação com um roteiro pronto. Na forte crítica que Jean Louis Comolli faz dos roteiros que organizam o espetáculo, paroxismo do capitalismo, ele escreve: “Hoje em dia os roteiros não se contentam mais em organizar o cinema de ficção, os filmes de televisão, os jogos de vídeo, as agências matrimoniais, os simuladores de voo. A ambição deles ultrapassa o domínio das produções do imaginário, para colocar em sua responsabilidade as linhas de ordem que enquadram aquilo que se deve nomear precisamente ‘nossas’ realidades...”(COMOLLI: 2001, p. 100). E, no mesmo belo artigo, “Sob o risco do real”, ele completa: “Filmar os homens reais no mundo real representa estar tomado pela desordem dos modos de vida, pelo indizível das vicissitudes do mundo, aquilo que do real se obstina a enganar as previsões. Impossibilidade do roteiro. Necessidade do documentário” (2001, p. 106). No nosso caso não se tratava de documentários, mas de uma crença de que o cinema e a arte, sob o risco do real permeado pelos desejos e experiências daqueles que estão na educação, permitem que, também na escola, os roteiros não tivessem uma vida tranquila. Estávamos sempre de saída, acreditando que a realidade se reorganizaria alterada, incorporando os alunos menos integrados aos sistemas de valores que predominam na escola e as diferenças presentes no território, na comunidade, assim como novas possibilidades com a liberdade da arte. No limite, perturbando com nossas parcas armas o roteiro que está dado para uma criança pobre da periferia do Rio de Janeiro quando chega à escola pública.

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A licenciatura em cinema Minha saída de Nova Iguaçu foi precipitada por um concurso público para o Departamento de Cinema da UFF, dois meses depois da defesa da tese, em 2008. Minha primeira missão me foi passada pela então chefe de departamento, Aida Marques, e pelo professor João Luiz Leocadio em uma reunião em que os experientes professores entregavam uma tarefa aos novatos, Fernando Morais e eu. Como parte do Reuni (Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), o Departamento de Cinema se comprometeu com a universidade a abrir um novo curso: uma licenciatura em cinema, a primeira do Brasil. Essa não era uma ideia nova; no III Congresso Brasileiro de Cinema, em 2000 em Porto Alegre, a proposta de uma licenciatura já havia sido levada pelo então professor da UFF, José Marinho. Criar um novo curso em uma universidade pública requer um grande esforço por parte dos professores responsáveis, o que era facilitado pelo projeto expansionista da UFF. Entre 2006 e 2014, a universidade aumentou em 220% o número de vagas oferecidas na graduação, em um total de 14.028 nesse último ano5. No nosso caso, a licenciatura em cinema envolvia outros departamentos, o de educação, certamente, o de antropologia e de filosofia. Todos esses colegas precisavam se engajar no projeto, uma vez que ministrariam aulas para os licenciandos de cinema. A pergunta mais frequente era óbvia e pertinente: por que uma licenciatura de cinema? O cinema não é obrigatório nas escolas – felizmente –, logo não se constitui em um campo de trabalho para os futuros graduados. João Luiz Leocadio, que conheci quando fora professor substituto na UFF em 2005, encabeçava o projeto da licenciatura. Sua força de trabalho e engajamento com a universidade sempre me

5 Fonte: Relatório de gestão 2006/2014, disponível em: . Acesso em: 03 de março de 2015. 

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mobilizaram. Ainda em 2008 nos reunimos com o Departamento de Educação que seria responsável por muitas horas do nosso curso. Certamente não eram todos que adoravam a ideia de mais uma licenciatura, o que significava mais horas de aula para alguns professores. Leocadio me explicava que eles já teriam recebido professores pelo Reuni para esse projeto, então não podiam negar. Na teoria, tudo certo, mas quando me vi em uma sala com mais de 100 professores explicando que nosso curso precisava ser iniciado, não apenas por conta do nosso compromisso com o Reuni, mas porque acreditávamos que havia uma necessidade de uma formação especializada para as pessoas que ministravam oficinas de cinema em escolas livres, que se ocupavam com projetos pedagógicos em museus, centros culturais e cinematecas e, sobretudo, na formação de professores que possam atuar nas artes. Tínhamos ainda uma institucionalidade importantíssima apoiando nossa licenciatura: os “Parâmetros Curriculares Nacionais”6 incluem o cinema como uma das formas artísticas que podem ser ensinada nas aulas de artes, estas sim obrigatórias. Fora essas evidências, acompanhávamos de perto diversos projetos de cinema em escolas em todo o Brasil. A Rede Kino, formalizada em 20097, apontava para projetos já bastante consolidados na área – Cinead, Kinoforum, Cineduc, Imagens em Movimento, entre outros; igualmente, conhecíamos bem a tese de Moira Toledo, defendida em 2010, mas que, antes disso, vinha apresentando em congressos científicos alguns números e experiências do cinema na educação em todo o Brasil, sobretudo aquelas realizadas depois dos anos 1990, facilitadas pelos meios digitais. Se tantos trabalhos já eram feitos na área, sabíamos também que a existência de uma licenciatura, com o peso da UFF, fomentaria ainda mais uma atenção às possibilidades político-pedagógicas do cinema na escola. Mas nossa crença não se resumiria a 6 Disponível em: . 7 Uma iniciativa das professoras Adriana Fresquet, Rosália Duarte, Milene Gusmão, Inês Teixeira e outras professoras universitárias que há muito vinham trabalhando com cinema na educação. 

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uma institucionalidade, não se tratava de formar pessoas que pudessem atuar e defender um campo de trabalho dentro da escola; de alguma maneira, nunca tivemos tanto interesse em formar professores de cinema que dentro da escola ensinassem o cinema para o resto de suas vidas; a aposta tinha outros dois sentidos fundamentais. 1) A escola afeta o cinema de maneira intensa; interrogar o mundo a partir da escola é fundamental para uma sociedade democrática, certamente voltarei a essa questão. 2) Olhar a escola a partir dos problemas cinematográficos, dos modos de filmar e pensar o real que o cinema traz, nos permite uma entrada especialmente rica na escola, estética e politicamente falando. O encontro com o Departamento de Educação não foi dos mais tranquilos; ouvimos manifestações enfáticas sobre o crescimento da universidade sem que as estruturas para tal fossem oferecidas, o que é especialmente verdade nos campi do interior, onde o número de alunos cresceu enormemente, mas as instalações e o pessoal não acompanharam o crescimento. Entretanto, há algo curioso na universidade brasileira que eu resumiria assim: quando há professores engajados com um projeto, ele acontece. Por vezes os entraves burocráticos ou econômicos parecem excessivos ou, com razão, os professores resistem a assumir mais responsabilidades, como era o caso dos colegas da educação, mas é como se houvesse um movimento que não pode ser estancado quando ele é encabeçado por pessoas que explicitamente desejam o crescimento e a popularização da universidade. Saímos da reunião com os colegas da educação com o compromisso de que podíamos tocar nossa licenciatura e, mais que isso, deixamos o Bloco D do campus do Gragoatá, em Niterói, com a certeza de que em um semestre estaríamos recebendo alunos para um novo curso focado na relação do cinema com a educação. Tínhamos uma papelada pela frente, mas como dizia o Leocadio: “não tenho medo de burocracia!”. No semestre seguinte começamos a licenciatura.

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Kumã Em meu primeiro ano de UFF fizemos uma parceria com a Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu, coordenada por Marcus Faustini. Essa parceria teve o apoio fundamental da então chefe do Departamento de Cinema, a professora Elianne Ivo. Com a parceria, partíamos de condições mínimas para o trabalho, o que nem sempre é evidente na universidade: tínhamos espaço, ar-condicionado, computador, uma câmera e um projetor; começamos assim o Laboratório Kumã de Experimentação e Pesquisa em Imagem e Som. Escolher um nome para um laboratório ou para um projeto é tarefa das mais estranhas. Inevitavelmente se tem a impressão de que precisamos dizer muito, explicar, soar bem. Queríamos que o Kumã fosse nosso espaço de estudo, de leitura, de produção de imagens, de gerenciamento de projetos, de risadas e que ele estivesse sempre cheio de alunos, o que garantia uma importante imprevisibilidade no cotidiano. Na impossibilidade de fazer a boa escolha de um nome que integrasse tudo que queríamos, escolhemos Kumã; um nome que ninguém sabia o que queria dizer e que podia integrar tudo. O nome surge de um artigo do Eduardo Viveiros de Castro, “Esboço de cosmologia Yawalapíti” (2002). O antropólogo descreve que para os Yawalapiti, índios do Alto Xingu, a língua é repleta de “modificadores”, que estabelecem uma distância “metonímica ou uma diferença metafórica entre protótipo ideal e fenômeno atual” (VIVEIROS: 2002, p. 28). A ideia do modificar em si já é belíssima. As palavras não dão conta da realidade, então é preciso inventar algo que as modifique, ou seja, não é necessário encontrar uma outra palavra, mas aceitar que o mundo esperneia, como diz Comolli, e que ele não se deixa capturar na língua. Kumã é um desses modificadores dos Yawalapiti. Nas palavras de Viveiros: “Quando eu perguntava simplesmente a alguém o que significava o termo animal-kuma a resposta mais comum era: “bicho bravo, valente, grande, que ninguém vê” (VIVEIROS: 2002, p. 31). Esse modificador articula, assim, vários atributos: ferocidade, tamanho,

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invisibilidade, monstruosidade, alteridade, espiritualidade, distância. Tínhamos assim um espaço de trabalho na universidade e um modificador para fazer com que ele fosse sempre excessivo à realidade ou ao que achávamos que ele seria. Nos dois primeiros anos de parceria com a Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu (ELC) fizemos diversos e diferentes trabalhos, mas não estava claro qual seria nosso papel ainda. Nossa primeira ação foi a formação de universitários – da UFF e de Nova Iguaçu – para que estes trabalhassem com crianças no contraturno, mais ou menos como fizemos quando estávamos na prefeitura de Nova Iguaçu, só que agora com o apoio da universidade, com mais tempo de trabalho e tendo o cinema como foco. No primeiro ano, trabalhamos com quatro encontros semanais entre os universitários e uma turma de alunos de idades variadas que vinham da escola vizinha à ELC, no bairro de Miguel Couto, em Nova Iguaçu. Dois problemas fundamentais se colocavam: o primeiro era nossa dificuldade de formar jovens universitários que fossem trabalhar com crianças em um projeto de extensão. Nosso interesse pelo cinema e suas possibilidades estéticas e políticas ficava em segundo plano, diante de tantos desafios pedagógicos e de sociabilidade entre os universitários e as crianças. Tal problema era adensado pelo o que entendíamos como nosso segundo problema: a distância que os professores da escola tinham com o projeto. Ou seja, nosso trabalho com o cinema estava apartado do cotidiano da escola, uma vez que não dependia dos professores para acontecer, e, ao mesmo tempo, exigia dos universitários um saber e uma competência que é própria ao professor. Esse primeiro ano foi pleno de experiências fortes que certamente marcaram os jovens da UFF que trabalhavam com as crianças em Nova Iguaçu, mas aprendíamos que o professor não poderia estar distante do que pretendíamos fazer na escola e, mais do que isso, ele deveria ser o protagonista, tendo nosso conhecimento e expertise em cinema e audiovisual como um suporte e parceria para que ele – professor – pudesse estar com o cinema na escola.

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O protagonismo aqui se refere, antes de tudo, à possibilidade do mundo do professor ser parte fundamental do que se faz na escola e das conexões que o cinema teria com os estudantes. Sem o professor, nosso trabalho com o cinema perdia a escola e não deixava nenhuma marca na instituição, correndo o risco de se tornar mais uma das inócuas e breves oficinas que entram e saem da escola sem serem afetadas por elas e sem deixarem nada que a escola possa incorporar. Alain Bergala Em 2007, entre os bancos da Bibliotheque Nationale de France (BNF), onde escrevi grande parte da minha tese, e os bancos do metrô para a Pavuna, descobri o livro do crítico e cineasta Alain Bergala, A hipótese cinema, naquele momento ainda não traduzido para o português, o que viria a ser feito depois pela editora Booklink, por inciativa de Adriana Fresquet. Em 2000, Bergala foi chamado pelo ministro da Educação da França, na época Jack Lang, para introduzir o cinema na escola elementar. Dessa experiência aparece o livro que se tornou uma referência para a área: L’hypothèse Cinéma (BERGALA: 2006). No livro, Bergala traça dois caminhos principais para sua reflexão, um institucional e outro pedagógico. Os desejos, projetos e iniciativas não estão separados da prática, das dificuldades burocráticas, da política dos ministérios. A aproximação dessas duas esferas, inseparáveis quando estamos no campo da educação, faz do livro um manual para que o cinema vá para a escola. De diversas maneiras, fomos influenciados por ele, entretanto, transformando-o constantemente na relação com nossa realidade e experiências com o cinema. Naquele país, para o bem e para o mal, escola é um ambiente onde o estado tem total autoridade e é pouco permeado pelas práticas da rua, pelo menos idealmente. Na França, por exemplo, foi possível a interdição um tanto agressiva do véu muçulmano nas escolas, como se naquele espaço a igualdade não pudesse passar por traços religiosos ou cul-

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turais. Essa é uma das tantas diferenças em relação à nossa escola, em que todos estão constantemente demandando mais participação dos pais e mais relação com a comunidade. Modificações na educação não acontecem sem uma forte resistência; a experiência de Bergala não foi diferente. Diante da resistência e das dificuldades, Bergala dizia algo que guardei com temor: “é preciso colocar a carroça na frente dos bois”. Na universidade, na relação com patrocinadores, com estudantes e colegas, nunca estamos preparados para as tarefas que nos são confiadas. Fazer algo é aprender a fazer. Em cada ação na gestão pública, sobretudo na educação, que movimenta sempre uma enorme quantidade de pessoas, muitas vezes já assoberbadas de trabalhos, a inércia pode ser um grande limitador. Em cada um desses projetos que desenvolvíamos, quando éramos questionados sobre as dificuldades burocráticas, sobre nossas capacidades de gestão ou mesmo sobre nossa competência em lidar com a educação, uma vez que “não éramos da educação, mas do cinema”, tentei dar as melhores respostas possíveis, mas nem sempre elas foram suficientes. Nesses momentos, Bergala atacava: “é preciso colocar a carroça na frente dos bois”: fazer o que sabemos fazer, arriscar onde for necessário e resolver os problemas caso eles apareçam – e aparecem. Mas na universidade e na educação – e talvez em qualquer lugar – a ação que movimenta pessoas e engaja o desejo de alunos tem sempre um efeito simbólico fortíssimo. Um efeito ao qual podemos nos remeter sempre. A calma, o tom delicado e o sotaque do sul da França de Alain Bergala contrastam com o homem que iria colocar a carroça na frente dos bois e levar o cinema de uma maneira bastante consequente para as escolas francesas. Foi com essa tranquilidade que ele esteve no Brasil em 2011 para um projeto em que Adriana Fresquet nos convidou para fazer uma consultoria e que depois viria a ser uma referência para o Inventar com a diferença. No primeiro encontro que tive com Alain Bergala, eu estava com uma passagem marcada para o Cairo e ele, como bom cineasta, me descreveu pelo

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menos três planos fixos retirados das ruas do Cairo. Suas palavras partiam de uma câmera fixa colocada em algum lugar, durante o tempo suficiente para que o cotidiano se tornasse estranho e nada natural. Bergala descreveu o ritmo das pessoas andando pelas ruas do Cairo entre os carros, o balançar colorido dos vestidos das mulheres e a poeira vinda do deserto; era como se os dispositivos que ele usava para falar de cinema na escola fossem mais do que exercícios, mas uma forma de pensar e olhar para as coisas. Uma forma atenta, disponível e aberta aos imprevistos e diferenças. Nesse trabalho com Bergala e Adriana, discutimos intensamente os Planos comentados que ele havia produzido e dirigido para que professores na França pudessem falar de cinema partindo das opções de criação envolvidas na execução de um plano. Em seu projeto, Bergala reuniu planos de filmes diversos como Pele de asno (1970), de Jacques Demy, Attelage d’un camion (1896), dos Irmãos Lumière, Moonflet – O tesouro do Barba Ruiva (1955), de Fritz Lang e O viajante (1974), de Abbas Kiarostami. Em cada uma das análises dos planos, Bergala trazia um casal que simulava estar em uma ilha de edição vendo o plano em velocidades variadas – no sentido do filme ou de trás para frente – e, ao mesmo tempo, comentavam o que viam: as opções de câmera, de arte, de ritmo de movimentação dos atores, de luz ou mesmo discussões éticas sobre o cinema, como é o caso do plano do filme de Abbas Kiarostami. Em O viajante, um adulto bate na mão de uma criança que se põe a chorar. É justo fazer no cinema o que não queremos que exista na realidade? Uma questão extremamente relevante no cinema, sobretudo, em uma cinematografia como a brasileira que lida intensamente com não atores em filmes de ficção ou com atores amadores que cedem às telas seus modos de vida, seus gestos e expressões em prol de uma maior verossimilhança. No projeto de Bergala, cada plano de 15, 30 ou 50 segundos se transformava em minutos. Na tela víamos apenas o plano em velocidades variadas enquanto escutávamos a voz de importantes atores do cinema francês, como Michel Picolli, Fany Ardant e Catherine Deneuve. O resultado é belíssimo; mais que um material

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didático, o plano comentado transborda um prazer pelo cinema e uma beleza poética que o transforma em uma peça autônoma. Dessas conversas saíram uma das primeiras propostas de produção de material didático que faríamos no Kumã, em que copiávamos – mesmo – a ideia de Bergala do Plano comentado, mas com filmes brasileiros recentes e atores também brasileiros8. No final de 2012, conseguimos então uma pequena verba da Faperj para fazermos dez planos comentados. Com um Plano Comentado, imaginamos que qualquer professor, de qualquer disciplina, poderia fazer um encontro de 50 minutos com os alunos. Decidimos fazer o projeto, sobretudo a escrita dos roteiros e a edição dos planos, com professores da rede pública. Em janeiro, em plenas férias, fizemos uma chamada online para o curso em nossas redes, incluindo Facebook e Twitter. No dia seguinte tínhamos 70 professores inscritos, bem mais do que os 30 que conseguíamos acolher. Quando, por algum motivo, é preciso selecionar quem poderá participar de uma atividade educativa, lembro que no curso de cinema da UFF, mais de 10 pessoas ficam de fora para cada aluno que entra. Me pergunto como essas centenas de alunos aceitam isso e não invadem a universidade pública. Escolhemos filmes que na sua totalidade pudessem dialogar com vários públicos e que tivessem planos que trouxessem alguma complexidade, tanto de longa-metragem de ficção, como Sudoeste (2012), de Eduardo Nunes, A máquina (2005) de João Falcão e O palhaço (2011), de Selton Mello, quanto documentários, como Corumbiara (2009), de Vincent Careli e Peixe pequeno (2010), de Vincent Careli e Altair Paixão. Um plano pode, por exemplo, privilegiar jogos relacionados à ótica enquanto outro pode concentrar-se em uma “gramática” cinematográfica em que se explicita o movimento de câmera, a gestualidade dos atores, a composição de cores, a montagem, o ritmo, aproximando professores e alunos do processo de escolhas e seleções feitas para se fazer uma imagem. Ou 8 Simone Spoladore, Othon Bastos, Lívia Guerra, Michel Melamed, Bianca Byington e Chico Diaz. 

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seja, havia ali um princípio organizador do lugar que nos interessava na relação com o cinema: o lugar em que o professor, nós e os estudantes, como espectadores ou realizadores, experimentamos a radicalidade do gesto criador. Nas palavras de Jean-Louis Comolli, “filmar é dar ao que é filmado uma certa forma de existência, uma certa intensidade de ser: no mais estrito senso, realizar o gesto criador” (COMOLLI: 2012, p. 560). À diferença de outras experiência do gênero, nossa concentração não era em ensinar uma gramática cinematográfica, mas pensar as escolhas de criação acompanhadas por discussões estéticas e éticas. No projeto coordenado por Adriana Fresquet, Bergala e eu ajudávamos com referências cinematográficas, ideias e na criação de um espaço de diálogo em torno de um curso de cinema que a UFRJ estava organizando para professores da rede pública. A ideia principal era oferecer uma formação para dois professores por escola, de quinze escolas diferentes. A formação aconteceria em janeiro e depois quinzenalmente aos sábados. Os professores ministrariam oficinas com seus alunos, levando à prática o ideal de que as escolas públicas teriam “escolas de cinema” em seu interior. Acompanhei de perto o processo e participei de um encontro com os professores; alguns pontos ali me deixavam especialmente empolgado com o que estava sendo feito. Primeiramente, o curso encontrava um desejo explícito que estava pelas escolas; o cinema deveria estar mais próximo à educação, sobretudo, levado por pessoas atentas às suas dimensões estéticas e narrativas e não como exemplo, para isso ou aquilo, nem para formar futuros cineastas. Novamente, a procura por parte dos professores foi grande, bem maior do que o curso preparado no Departamento de Educação da UFRJ era capaz de atender. Com aulas aos sábados e frequentes aumentos de carga horária sem remuneração específica para tal, a entrega dos professores era intensa. Esses dois casos deixavam claro que podíamos imaginar e inventar projetos ousados pois teríamos professores engajados do nosso lado, as salas cheias e colegas exigentes com nosso trabalho.

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Com Alain Bergala, compartilhávamos muitas das ideias que estavam no livro e que desdobrávamos com nossas experiências. Pelo menos quatro pontos inspirados em seus escritos e em nossas conversas podem ficar aqui marcados, mesmo que alguns deles venham a ser desenvolvidos e transformados no decorrer desse livro. 1 – O cinema vai para a escola não como texto ou como tema, mas como ato e criação. Não se trata de colocar o cinema na sala de aula porque ele pode dizer melhor o que já sabemos, mas porque ele tem uma forma sensível singular. Para isso podemos começar pela materialidade da imagem. O que vemos, as cores, os cortes, o corpo, o olhar, o gesto. Assim, é função do professor fomentar uma leitura criativa, não somente analítica e crítica. Explicar e dominar um filme é nos proteger da alteridade, o que faz com que tendamos a ler o novo a partir do velho e fazer do cinema texto, história, tema, ilustração. Manter o filme como algo estranho é um desafio. Nesse sentido, seria pueril pensar que o cinema oferece instrumentos contra lixos audiovisuais por dois motivos: 1) o que as crianças têm prazer em ver não se transformará com uma análise que desmonte um determinado programa que elas acompanham na TV ou na Internet. 2) As poucas horas em que a escola pode analisar um determinado programa são ínfimas diante daquelas que se passa diariamente na frente da TV ou do computador, guiadas pela lógica do mercado. Crianças podem digerir tudo, o melhor e o pior, e faremos mais lhes apresentando um plano de Kiarostami do que em duas horas desconstruindo uma emissão de TV, insiste Bergala. Em Nova Iguaçu, por exemplo, ministramos uma oficina de cinema para adultos que acontecia três vezes por semana, com eventuais gravações aos sábados9. Nessas oficinas gratuitas, manter a assiduidade da turma não é tarefa das mais fáceis. Por vezes, faz calor demais, o transporte não funciona, o filho precisa ir ao médico ou simplesmente falta dinheiro para o trem. Neste curso recebemos um pastor evangélico que afirmou estar participando 9 Estas oficinas foram coordenadas por um dos idealizadores do Inventar com a diferença, Isaac Pipano. 

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para aprender a produzir os seus próprios filmes, uma vez que já havia exibido todos os filmes evangélicos que dispunha em seu cineclube. Havia nele um interesse pelo cinema e uma visão de mercado – ele havia descoberto um “nicho” a ser explorado. Nos tocava o fato de no cineclube da igreja apenas filmes evangélicos serem permitidos, ou seja: enquanto acreditávamos que o cinema é uma forma privilegiada de acesso à uma multiplicidade de ponto de vista e enfoques de mundo, na igreja do pastor apenas um ponto de vista era bem-vindo10. Na conversa com alunos de graduação que nos ajudavam nas oficinas, alguns deles propunham um embate imediato com as posições mais conservadoras do pastor. Conversamos bastante e acabamos optando por não partir para o embate. Decidimos que tínhamos uma tarefa e uma aposta pela frente. A tarefa era conseguir manter o interesse do pastor pelo curso sem, obviamente, pactuar com suas posições éticas, frequentemente preconceituosas contra homossexuais, por exemplo. A aposta era de que havia uma pedagogia intrínseca ao cinema, algo a ser compartilhado, que também passava por uma ética e que estava na técnica, nos roteiros e nos gestos mais simples do fazer cinematográfico. Ou seja, por um lado não podíamos perder nosso aluno, por outro precisávamos acreditar na dimensão política da criação no cinema. Entrar nos desafios do fazer e da criação cinematográfica já trazia em si uma eloquência que nos retirava a necessidade de partir da discursividade, do embate de ideias. O pastor fez o curso até o fim. Se os encontros tiveram algum efeito na sua relação com a diferença e com a comunidade, não sabemos, essas variáveis nos escapam. Assim como Bergala, ainda acreditamos que um gesto do Othon Bastos, um corte do Vertov ou uma sequência do Tarantino pode ser um divisor de águas. 10 “No Rio de janeiro nos anos 1960 e 1970 muitos cineclubes foram formados ou funcionavam em paróquias da Arquidiocese. Glauber Rocha, por exemplo, funcionava na Igreja de São Francisco Xavier na Tijuca. O pároco era o Dom Waldir Calheiros que depois se tornou bispo de Volta Redonda e foi uma das vozes mais ativas contra a ditadura.” Miguel Serpa Pereira, em troca de e-mails dez. de 2014.

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2 – A arte é anti-institucional. É com este paradoxo que temos que ter a coragem de colocá-la na sala de aula. Os bons filmes são raramente corretos, política ou ideologicamente; se desejamos o cinema na educação, é com esse risco que teremos que lidar. 3 – O professor que leva o cinema para sala de aula deve estar comprometido com os filmes que escolhe. Isso exclui qualquer paternalismo. O filme deve ser bom para o professor antes mesmo de ser bom para as crianças e jovens. O gosto pessoal dos professores está em jogo. É parte do que será levado à sala, por isso, toda institucionalização de um currículo de cinema pode ser mais perniciosa para a educação do que libertador para os alunos e professores. O cinema institucionalizado pode ser apenas mais uma força repressiva e organizadora de hierarquias na escola, eu completaria. 4 – O cinema na sala de aula não pode ter pressa. A sala de aula deve se diferenciar do consumismo fílmico – cada semana dois filmes diferentes. Um filme trabalha na surdina, lentamente. Inventar com a diferença, primeiros contatos Nossos trabalhos em Nova Iguaçu, com a licenciatura e outros projetos de extensão, eram marcados pelo desejo de colocar a universidade mais fortemente presente na comunidade e nas necessidades da cidade e do país. Pode parecer uma certa pretensão dar à universidade esse papel, mas trata-se de um privilegiado lugar dentro de um mundo onde tudo parece submetido aos interesses do mercado ou às lógicas eleitorais. A estabilidade da universidade, com tantas pessoas bem-formadas – ou pelo menos com muitas horas de biblioteca – e alunos desejosos de criação e engajamentos, pode ser uma mistura potente. Logo que entrei na UFF, ficava impressionado com a quantidade de possibilidades de trabalho e engajamentos em cada porta aberta. No final de 2012, quando a licenciatura estava ainda engatinhando, recebemos um convite para um encontro com uma

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representante da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Uma semana depois estávamos sentados no Kumã: Patrícia Barcelos, secretária executiva da Secretaria, Isaac Pipano, professor substituto de fotografia e que, naquele ano, havia defendido uma dissertação de mestrado sobre o cineasta chinês Jia-Zhange, sob minha orientação e Luiz Garcia, doutorando em primeiro ano, com tese sobre cinema experimental e problemas ligados à materialidade dos filmes. A questão que Patrícia trazia era das mais empolgantes. A Secretaria já fazia a Mostra Cinema e Direitos Humanos da América do Sul, em parceria com a Cinemateca Brasileira, com sessões em todas as capitais do país11. A ideia agora era pensar uma segunda ação com o cinema, ligado à educação, que pudesse atuar nas escolas e que fosse também um projeto nacional. Essa reunião aconteceu no final de novembro e, como em qualquer primeira reunião em que se pensa em desenvolver algo junto, o que estava em jogo é menos o que faríamos do que se teríamos vontade de fazer algo juntos. Nesse sentido, a reunião foi um sucesso. Contamos a trajetória do departamento, da licenciatura, do Kumã e de nossa experiência em Nova Iguaçu, Patrícia nos falou da Secretaria, da Mostra de Cinema e da vontade de pensar uma atuação com cinema e direitos humanos na ponta, indo direto às escolas; um desejo que coincidia com nos11 Em 2013, enquanto preparávamos o primeiro ano do Inventar com a diferença, um problema burocrático na Cinemateca Brasileira a impediu de receber recursos dos patrocinadores da Mostra de Cinema e Direitos Humanos na América do Sul. Em ritmo de urgência, fomos convidados pela Secretaria de Direitos Humanos para fazer a Mostra. Em poucos meses, montamos uma equipe com profissionais e alunos e realizamos a mostra nas 27 capitais. Além da tradicional mostra competitiva, tivemos sessões dedicadas ao cinema indígena e uma mostra paralela em homenagem ao cineasta Vladimir Carvalho. Nesse ano ainda, começamos o projeto Democratizando, ligado à Mostra, com a distribuição de cinco filmes brasileiros em DVD para cerca de mil pontos entre escolas, cineclubes, sindicatos e universidades. Em 2014 realizamos a Mostra pela segunda vez, desta vez com a coordenação do professor Rafael de Luna e, mais uma vez, com a coordenação de produção de Alexandre Guerreiro. Em 2014, ampliamos o espectro e passamos a receber filmes de todo o Hemisfério Sul. Mais informações estão disponíveis em: . 

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sos esforços em ampliar nossas atividades nas escolas de ensino fundamental e básico. Antes de engajar outros professores, como viria a acontecer mais tarde, assumimos para nós essa responsabilidade. Vinte dias depois da reunião enviamos para a Brasília um projeto em que as bases do que seria o Inventar com a diferença estavam colocadas.

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Antes de desdobrar o que viria a ser o Inventar com a diferença, precisamos aprofundar algumas noções que serão essenciais para que possamos construir a relação do cinema com a educação e os direitos humanos. Nesse sentido, esse capítulo será majoritariamente teórico e nosso esforço será na construção de um universo estético-político que evidencie as bases do que construímos em nossas metodologias e práticas. Para isso, uma reflexão sobre arte, política e processos subjetivos se torna inevitável. Imagem e invenção Precisamos levar em consideração que o cinema já faz parte da educação. Talvez fosse mais exato se disséssemos que filmes fazem parte da escola. Nas aulas de história, geografia, língua portuguesa, sociologia e tantas outras, muitos são os filmes trabalhados. Antes da UFF e de Nova Iguaçu, montei filmes que tiveram uma vida intensa nas salas de aula. Carlota Joaquina, princesa do Brazil (1994), de Carla Camurati e Doces poderes (1997), de Lucia Murat, por exemplo. Ambos foram, e talvez ainda sejam, amplamente usados para se discutir história, narrativa, política, corrupção e, eventualmente, quando os alunos têm muita sorte, os diretores são chamados na escola para conversas sobre suas visões, escolhas e pesquisas. O cinema está na escola também de formas bem menos interessantes, mas eventualmente necessárias: ocupando o lugar do professor que faltou, acolhendo as crianças em uma sala fechada em dia de chuva ou na sala com ar-condicionado em dias de extremo calor.

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Se o cinema faz parte da escola, o que nos mobilizava? Qual seria a abordagem de base que nos engajava no esforço de enfatizar o cinema na escola? Em outras palavras, o que tem o cinema a ver com educação e criação, além do conteúdo que ele pode levar, com frequente competência, servindo como um disparador de debates e reflexões? Antes de apontar para algumas respostas, vale uma ressalva. Se fazemos aqui um esforço para pensarmos o cinema na educação e na relação com os direitos humanos, não se trata de defender uma diferença de natureza em relação às outras artes ou em relação a outros meios de expressão. Mais de um século de cinema nos dá a certeza de sua impureza. Os filmes estão sempre misturados a diversas outras formas de expressão e de diálogo com os espectadores. Da publicidade ao Youtube, da TV ao elevador, somos exploradores de naturezas eletrônicas, coloridas, ruidosas. Não existe cinema fora desse universo, ele está absolutamente imbricado ao audiovisual. Entretanto, o dispositivo da sala escura, onde se assiste a um filme coletivamente, configura a experiência singular para o espectador, e é esse dispositivo que idealmente deveríamos ter em todas as escolas.12 Tal promiscuidade de imagens, em meio a tantas demandas de espectadores, não significa dizer, simplesmente, que o cinema se confunde com todas essas imagens ou com todas as outras artes. Tentando então começar a responder a pergunta do porquê do esforço em ter o cinema na escola, poderíamos dizer que estamos mais interessados na intensidade do cinema do que nas diferenças de natureza em relação às outras artes. Essa intensidade passa necessariamente por uma qualificação do que é a imagem cinematográfica e do que significa fazer uma imagem. De maneira direta e influenciado pelo nosso trabalho com as artes e o documentário, 12 A Lei 13006/14, recentemente aprovada e que obriga a duas horas de projeção de filmes brasileiros no ensino básico, não prevê qualquer forma de exibição. Em nossa utopia, se cada escola pudesse levar a sério a lei e reservasse uma sala com condições ideias de som, imagem, conforto e temperatura para as projeções, uma revolução se faria na escola. 

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podemos dizer: o cinema é trabalho no real, suas imagens são em si alguma coisa, elas agem no real, mas elas não se bastam. Assim, as imagens no cinema se formam a partir de duas presenças inseparáveis. Por um lado a imagem é intrinsecamente ligada ao mundo, ela sofre o mundo, é afetada pelo real. No cinema, o que vemos, no documentário ou não ficção, existe. Mesmo em casos extremos, em filmes feitos com imagens de síntese, a voz de um ator está ali em um espaço e um tempo reconhecível. Assim, a primeira característica de uma imagem cinematográfica é que ela “sofre” o mundo, é afetada por ele. Há aí uma dimensão documental fortíssima que nos mobiliza na fotografia e no cinema. As imagens são fruto de um encontro entre uma máquina, um sujeito – ou vários – e algo que está no mundo. Mas toda imagem é dupla. Isso significa que toda imagem possui uma dupla inserção no real. No mesmo gesto, na mesma imagem que sofre o real, há uma construção do mesmo real, feita por aquele que opera a câmera, que decide o quadro, que escolhe o movimento, que compõe uma mise-en-scène e, mais do que isso, por todos os atores não-humanos que também fabricam a imagem – a câmera Sony, a lente Zeiss, o corretor de cor da Apple, o microfone comprado em um camelô do Rio de Janeiro. Toda imagem, portanto, é o mundo afetando-a e, a um só tempo, uma certa opção de mundo que envolve atores humanos e não-humanos. Essa definição nos lança no campo necessariamente político e estético da experiência do cinema, uma vez que a imagem é o mundo e uma opção de mundo, simultaneamente. O cinema é transformação contínua do que há. Pelo menos nos bons filmes, o mundo não está separado de um desejo de mundo. Parafraseando Pasolini, podemos dizer que o cinema é uma realidade que opera na realidade13. Quando o francês Louis Daguerre, em 1838, fotografa uma rua de Paris utilizando sua técnica de impressão sobre cobre com uma película de prata, apenas uma pessoa aparece na foto. Dada a baixa 13 “O cinema é uma linguagem que exprime a realidade pela realidade” (PASOLINI: 1976). 

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sensibilidade da chapa de impressão, uma longa exposição era necessária. A pessoa que aparece é a única que ficou parada, tempo suficiente, na mesma posição, para ser captada pela imagem. As outras, em movimento, desapareceram. Desde essa, que é uma das primeiras fotos da história, o realismo da imagem traz uma importante distância em relação ao que o olho nu pode ver. O homem é real, a rua é real, mas a imagem é construção.

É também uma técnica realista, que se distancia das possibilidades do olho, que coloca o inglês Eadweard Muybridge como um personagem central na história das imagens em movimento. Como diz o catálogo produzido para a exposição dedicada a ele em 2010, na Tate Gallery: “o homem que provou que um cavalo pode voar”14. Interessado no movimento de humanos e animais, Muybridge trabalha com o efeito oposto de Daguerre. Com uma abertura rápida do diafragma, suas imagens foram capazes de captar o movimento congelado no ar, o instante em que um cavalo tira 14 Disponível em: . 

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as quatro patas no chão. Uma imagem que trazia a realidade e a invenção de Muybridge em um mesmo quadro.

Nessa mistura entre o que há e o que se transforma existe ainda a presença do espectador que não está diante da imagem para receber o mundo sem mediação, nem, tampouco, para receber a mediação – apenas um autor – sem mundo. Não parece ser por outro motivo que Bergala nos assinala que o cinema é questão de criação, não de transmissão de um saber audiovisual ou artístico. A arte não se ensina, experimenta-se. Experimentar nos interstícios entre o mundo que existe e a liberdade de criarmos outros. Experimentar no lugar de interpretar, como tanto insistiu Gilles Deleuze. Podemos então dizer que o cinema é uma experiência na transformação da realidade, em que o que está dado para se ensinar com o cinema é um não-sei-o-quê de possibilidades. É nesse sentido que a dimensão estética do cinema instaura uma descontinuidade entre obra e fruição. Seu poder reside justamente em um buraco, em uma fenda entre os filmes e seus efeitos. Não há passagem ideal entre o que um filme quer dizer e a experiência que se faz com esse filme. Tal descontinuidade é própria a um certo regime de imagens que o filósofo francês Jacques Rancière chamou de regime estético das artes (RANCIÈRE: 2003, 2005 e 2011).Este regime insere o espectador em um processo em que a fruição passa por uma recepção de signos heterogêneos, elementos

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que se negam, somam, dialogam, mas que não organizam o mundo a partir de um conhecimento que antecede a própria aparição das imagens. Uma tensão entre signos que esvazia a própria centralidade do autor como aquele que domina os sentidos e efeitos da obra. Ou seja, a experiência que podemos ter com o cinema é da descoberta do mundo e da invenção deste, uma vez que o cinema nunca é o mundo e nunca deixa de sê-lo. Não é por outro motivo que Jean Louis Comolli insiste tanto na ideia de que o lugar do espectador está entre a crença e a descrença. No cinema estamos sempre nos perguntando: “onde acaba o teatro e começa a vida?” (COMOLLI: 2012, p. 146) Acreditar sem deixar de duvidar, duvidar sem deixar de acreditar; no silêncio e no escuro, o lugar do espectador no cinema certamente tem enormemente a nos ensinar. Desenhávamos assim algo fundamental sobre o cinema que poderíamos ter na relação com a educação: a imagem como representação e criação do mundo, em um mesmo gesto. Uma imagem que demanda a presença de quem vê, um espectador que existe e sobre quem não dominamos os efeitos. Como sempre, o cinema não chegaria na escola sem risco. Risco de entregarmos às crianças a criação de mundos desejados e possíveis, risco de não dominarmos os efeitos das imagens que elas receberão e farão. Criança e estética As crianças do cinema feito depois da Segunda Grande Guerra não estavam presentes apenas como personagens vistos pelos adultos. Foi a maneira de as crianças verem e estarem no mundo que ensejou novas formas de percepção para todos. Podemos acompanhar uma dimensão política do cinema com personagens infantis de cineastas como Roberto Rosselini, Vitorio De Sica, Abbas Kiarostami, François Truffaut, Robert Bresson, Nelson Pereira dos Santos, Marguerite Duras, Ingmar Bergman, Maurice Pialat, Ken Loach, Satyajit Ray, Andrey Tarkovsky ou Yasugiro Ozu. Com eles, aprendemos que as crianças estão no limite da estabilidade, que

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habitam o estranhamento, que se constroem como sujeitos interrogando e estranhando o que está dado. Nos filmes, com frequência, a criança age sem intencionalidade em seus movimentos corporais ou suas ocupações do espaço; são desobrigadas de contar uma história ou fazer caminhos objetivos pautados por desafios e enfrentamentos aristotélicos. Mergulhada em uma dimensão lúdica, a criança está mais perto do louco ou do marginal, por não pactuar a mesma sensibilidade da comunidade. O corpo infantil nesse cinema é um exemplo, ele é o corpo desviante, o corpo que ganha autonomia em relação aos poderes – da escola, dos adultos, da lei ou do belo – enfatizando a liberdade de um mundo próprio e perspectivando a normalidade. A criança é frequentemente o outro que inventa um mundo para si, mas que não pede nada ao adulto, não lhe dá lições ou explicações sobre as coisas. É o caso de Mouchette (1967), de Bresson, em que, diante da doença e da eventual morte da mãe, a menina passa a impor outras formas de relação e sensibilidade com a comunidade, inventando um mundo para si, que não deixa de afetar o todo. Em Couro de gato (1962), de Joaquim Pedro de Andrade, é o ponto de vista e a circulação errante, violenta e afetiva dos meninos que traz uma suspensão dos modos de ser da comunidade. Em Rio 40 graus (1955), de Nelson Pereira, a pobreza das crianças, antes de os engajar em um discurso social, nos apresenta a forma inventiva como redesenham a cidade e se multiplicam em maneiras de ser no meio urbano. Jean Pierre Leaud, em Os incompreendidos (1959), de François Truffaut, nos faz compartilhar o silêncio da criança que em sua mudez nos apresenta um mundo à parte, uma sensibilidade em desacordo com o universo de pais e escolas. Em Doméstica (2013), documentário recente de Gabriel Mascaro, são os jovens que circulando de maneira desierarquizada entre patrões e empregadas, ou, no limite, criando novas hierarquias, perturbam a sensibilidade corrente entre quem tem o poder e quem deve se submeter a ele. Em O corredor, filme iraniano de Amir Naderi, de 1985, Amiro, um garoto de aproximadamente 11 anos passa o tempo entre pequenos trabalhos, como recolher

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garrafas15, vender copos de água e engraxar sapato16. No meio desse cotidiano duro, Amiro corre até o mar e acena para navios que passam ou, subitamente, vê um homem sem uma perna. Nos dois casos, o filme nos traz um ponto de vista da criança em que há uma desnaturalização do entorno. A violência do cotidiano e a liberdade que navios e aviões trazem para o menino, são possíveis pelo olhar de Amiro. Sua forma de estar naquele lugar é simultaneamente pragmática – nos trabalhos e na disputa por pequenas quantias de dinheiro – e encantada, sonhadora – no estranhamento do seu lugar e nos constantes desejos de outro mundo. Para ver o Irã daquele momento, em um dos primeiros filmes do Irã pós-revolucionário a circular pelo mundo, o diretor não faz uso de nenhuma retórica ou discurso, mas apenas do olhar e dos gestos de Amiro, um olhar duro e doce de quem vê além do que uma certa ordem do mundo lhe impõe. A criança, assim como os bons filmes, está no limite de fazer desse mundo um outro mundo. Aprendemos que elas veem demais, ouvem demais e que suas reações não estão dadas no que elas veem, mas vão aparecer em outra Era, em outra espécie, já inventado outros mundos. Como escreveu Deleuze sobre o papel da criança no neorrealismo italiano: “a criança é afetada por uma impotência motora, mas que aumenta a aptidão para ver e ouvir” (DELEUZE: 1985, p. 12). Essa mesma impotência que intensifica percepções e afetos, pode ser vista ainda em filmes como Zes, (1969), de Ken Loach e L’Enfance Nue (1968), de Maurice Pialat, ou apreciadas em Eu nasci, mas... (1933), de Ozu. Em A infância de Ivan (1962), de Tarkovsky, descobrimos uma criança que não para de transitar entre o mundo adulto e o mundo infantil. Como se fosse o lugar mesmo da criança na guerra, um não-lugar. Lugar de quem viu demais, de quem chegou próximo do insuportável. Na infância de Ivan não há espaço para a inge-

15 Assim como em O pequeno fugitivo (1952), de Ray Asley, Morris Engel, Ruth Orkin. 16 Como em Vítimas da tormenta (1946), de Victorio De Sica. 

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nuidade, para a fragilidade, mas ao mesmo tempo ela está lá. No corpo, nas relações de afeto, nos sonhos e medos. Quando tentam lhe dar ordens, Ivan diz: “Eu sou o meu próprio chefe”. “Você é um problema”, retruca o comandante militar. Ser o próprio chefe e ser um problema são coisas que se misturam. Não há distinção entre as duas coisas. A forma como Ivan impõe esse “problema” é fazendo variar a sua forma de ser – entre a criança e o adulto – escapando dos lugares ao qual é colocado. A guerra leva Ivan a esse lugar em que a cada momento não sabemos o que esperar dele. Em uma sequência emblemática, depois de intenso bombardeios alemães, Ivan está em um refúgio quando um soldado russo entra e lhe diz: “Não tenha medo, em breve isso acaba”. Ivan permanece imóvel olhando para o oficial. Um travelling avança e filma o silêncio do menino. Durante esse movimento de câmera não temos ideia do que sairá de sua boca ou qual será sua reação. É o silêncio da criança e a possibilidade de ir em múltiplas direções que desmonta a máquina adulta da guerra. O movimento de câmera é em direção ao mistério que encarna esse menino entre a infância e a tragédia. – Eu não tenho medo de nada, diz Ivan no final do travelling. A beleza do filme de Tarkovsky está nessa suspensão do que pode ser esperado de uma criança quando há o encontro do terror da guerra com a infância (ou de qualquer violência e injustiça). As crianças nesses filmes metaforizam o próprio cinema, aparecendo nas descontinuidades entre intenção e efeito, entre ação do filme e reação do espectador, exatamente onde repousa a virtualidade do cinema. Como sabemos, toda virtualidade é um risco, posto que o que se atualiza, o que aparece, é incomensurável, excessivo, não domesticado. A criança, ao construir um mundo para si no cinema, coloca em risco todas as divisões de poderes e regras, desnaturaliza um mundo frequentemente absurdo dos adultos. O olhar da criança é essencialmente ameaçador e profanatório; não espanta que tantos poderes tenham se ocupado de organizá-las, na casa, na escola, na publicidade, na prisão, no estado. O destino do cinema frequentemente não é diferente.

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No clássico de René Clément, Jogos proibidos (1952), a pequena Paulette, de não mais que cinco anos, é separada dos pais mortos na guerra. Ela encontra Michel, um garoto um pouco mais velho. Juntos eles desenvolvem uma brincadeira que os possibilita lidar com as mortes que os cercam – a dos pais e do cachorro de Paulete, a do irmão de Michel e as da própria guerra, que acontece nos arredores da casa do menino. As crianças criam seu próprio cemitério em que há espaço para cachorros, peixes, ratos, escargots e qualquer coisa que um dia esteve viva. Todos são tratados com o mais devido respeito. Para garantir que cada animal terá uma cruz, as crianças as fabricam ou as roubam do cemitério local, causado uma grande crise na comunidade. A brincadeira infantil recoloca os mortos como parte de um cotidiano com o qual as crianças precisam lidar, mas para isso eles precisam profanar símbolos cristãos. Até uma cruz de um altar o menino tenta roubar. Lidar com a morte e profanar o mundo adulto é uma temática recorrente em filmes em que as crianças são os personagens centrais. É o caso de Cria Cuervos (1975), de Carlos Saura, em que Ana, depois de perder os pais, brinca de matar e ressuscitar as irmãs ou de Ensina-me a viver (1971) de Hal Ashby, em que Harold não cessa de encenar e performar a própria morte. Nestes filmes, mas em especial no filme de Clément, o gesto de profanação é exemplar da forma como Agamben (2007) voltou à noção. Profanar é um gesto essencialmente político em que certos objetos, símbolos e dispositivos de poder são recolocados em uso comum, produzindo novos usos e conexões na comunidade. André Brasil, em sua tese de doutorado, escreve “profanar tem o sentido de um jogo: primeiro, nos apropriamos dos objetos, restituímos sua dimensão mundana, não especialista e não abstrata. Este objeto é inserido em uma situação, com suas regras e contingências. Depois, ele será reutilizado, re-significado, desrespeitado, a partir de uma série de deslocamentos.” (BRASIL: 2008, p. 177) Adriana Fresquet, citando Walter Benjamin, na mesma linha nos lembra que “Profanar diz respeito ao próprio brincar, para

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Benjamin (BENJAMIN: 2005 p. 25), “Brincar significa sempre libertação. Rodeadas por um mundo de gigantes, as crianças criam para si, brincando, o pequeno mundo próprio” (FRESQUET: 2013, p. 101). A profanação das crianças de Jogos proibidos parece fazer exatamente esse caminho. Lidam com a morte através de um jogo e para isso enfrentam o poder dos adultos. No filme, o mundo adulto é tolo e pequeno, enquanto a profanação das crianças é profundamente inventiva e necessária, lhes permitindo lidar com o absurdo das mortes e da violência. Em Jogos proibidos, enquanto a guerra destrói e mata, os adultos estão ocupados com suas pequenas diferenças entre vizinhos. Mencionamos anteriormente o que Jacques Rancière chamou de regime estético das artes. Essa noção demarca com clareza uma compreensão que temos do cinema e, consequentemente, do seu papel na escola. De um modo geral, o regime estético é como esse personagem infantil amalgamado entre os vários filmes que descrevi acima: criador de um mundo autônomo que não para de afetar o mundo conhecido. Precisamos ir um pouco mais longe nessa noção de Rancière; para isso, podemos começar entendendo a que Rancière está opondo o regime estético. À diferença de dois outros regimes que organizam o mundo das imagens para Rancière – regime ético e regime representativo – no regime estético as imagens não serão julgadas – por nós espectadores e criadores – por princípios e elementos formais que antecedem as próprias imagens. Por exemplo, quando os radicais islâmicos destroem imagens religiosas na Síria ou quando um filme de ficção é proibido no Brasil por trazer imagens que atentam contra os princípios morais do país17, nos dois casos as imagens são julgadas dentro de um regime ético. Isto é, elas não podem fazer parte da comunidade porque não compartilham um ethos, uma forma de ser da comunidade, por isso devem ser banidas. 17 Ver “Arte, democracia e censura: a Serbian film” em O Globo – 30 de ulho de 2011. Disponível em: . Acesso em: 4 de março de 2015. 

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Já no regime representativo, trata-se, segundo Rancière, menos de uma cópia que a imagem faz da realidade do que a inserção de uma narrativa na imagem. Dentro desse regime é possível dizer se as representações são boas ou não. Julgamos as imagens, antes de tudo, pela fidelidade como narram as coisas, as histórias, o mundo. As imagens estão, assim, subjugadas às regras de verossimilhança e aos encadeamentos narrativos. É também nesse regime que é possível eleger os bons temas da arte e aqueles baixos, que não são dignos de serem representados. No regime representativo, trata-se de garantir a adequação entre imagem e princípios de abordagem da realidade. Se a arte, no regime estético, não precisa atender à religião ou ao rei – se distanciando do regime ético – nem a um princípio de boa representação, verossimilhança ou modelos narrativos – se distanciando do regime representativo – ela ganha uma autonomia em que são os objetos da arte que irão inventar o mundo em que eles são possíveis. Os objetos de arte não aparecem em continuidade com a comunidade para operar uma manutenção de campo sensível, mas como produtores de deslocamentos da própria sensibilidade da comunidade. A arte é a criança que vê e é vista com uma liberdade não funcional que desestabiliza roteiros e ideais de presente e futuro. O perturbador lugar das crianças que trouxemos nos filmes acima é marcado por uma presença em que elas se autorizam a ver, dizer e viver em uma comunidade – família, cidade, país – suspendendo uma normatividade e agindo, igualitariamente, como sujeitos que participam daquela comunidade. Não é outro o choque da família que recebe Paulette em Jogos proibidos, dos militares diante de Ivan, ou da comunidade com Billy e sua relação com um pássaro em Kes, de Loach. Para Rancière, o regime estético é inseparável da política, uma vez que nele as imagens aparecem em descontinuidade em relação o que a comunidade é. Entretanto, sem demandar nada específico do espectador. Não há mundo pronto ao qual a arte deve nos levar no regime estético. Curiosa marca da arte política que Rancière nos

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traz. A operação da arte nesse regime, por um lado terá fronteiras pouco claras entre o que é arte e o que é vida. Por outro, essa operação será atravessada por um silêncio, por uma mudez, uma vez que está descolada de uma intencionalidade direta e de um futuro reconhecível: Duchamp como um paradigma. Ou, a criança no cinema que entre o brincar e o estranhar no mundo, age sem cálculos ou fins, em continuidade e diferença com o mundo adulto, trazendo uma nova camada de sensibilidade: novas formas de ver, escutar e ser afetada por tudo que é. Como uma forma sensível separada de uma estado de coisas – do ethos e dos modelos de representação – a presença das obras no regime estético, apesar de não demandar nada de seus espectadores, insiste como presença que pode perturbar as formas sensíveis de uma comunidade. Lembremos ainda da violência dos poderes que não entendem o desejo de Giuseppe e Pasquale, em Vítimas da Tormenta (1946), de Victorio De Sica, de simplesmente ter uma cavalo, nem o respeito que as crianças de Jogos proibidos (1952) têm pelos seus mortos. Assim, a noção estética aqui não está ligada ao gosto ou ao prazer, mas, propriamente, ao modo de ser dos objetos, aos modos sensíveis dos objetos e subjetividades existirem e eventualmente perturbarem a ordem do que é possível, ver, dizer e sentir. Voltando à Rancière, podemos dizer que a política na arte acontece não porque um sujeito fala isso ou aquilo, ou porque há uma situação de conflito, mas porque há uma instabilidade sensível na comunidade. Mas, por que essa definição de política nos interessa? Por um motivo simples. O cinema, como objeto do mundo e como parte desse regime de imagens, não pode pedir nada aos seus espectadores – assim como as crianças no cinema do pósguerra – não pode esperar respostas como se fosse um operador direto no real, algo fundamental quando entramos em uma escola com um projeto que conecta o cinema e os direitos humanos com a educação. Entretanto, o cinema pode ser uma presença em que as formas de ver e sentir encontram limites que demandam novos ordenamentos, novas presenças e pensamentos. Em resumo, na

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escola, o cinema se insere como potência de invenção, experiência intensificada de fruição estético/política em que a percepção da possibilidade de invenção de mundos é o fim em si. O filmes estão aí para nos mostrar isso. Escritura e ética Uma questão estético-política que se coloca quando pensamos o cinema na educação está na relação entre forma e política, entre o gesto cinematográfico e a criação do mundo representado. No século XX, o debate sobre a possibilidade de representação e sua dimensão política foi marcado pela reflexão em torno das imagens do holocausto. Liberados há mais de 65 anos, as imagens dos campos de concentração e de extermínio mantidos pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial continuam a provocar discussões e a nos instigar sobre o cinema como uma questão política. Em 1961, Gillo Pontecorvo lança Kapò, filme que se passa em um campo de concentração e Jacques Rivette abre o debate com um célebre texto publicado no mesmo ano: Da abjeção. Nesse texto, Rivette se concentra em um travelling que aproxima e reenquadra um suicídio da personagem principal se jogando contra uma grade eletrificada. Eis o plano abjeto, nas palavras de Rivette: “em Kapò, o plano em que Riva se suicida, se jogando sobre o arame farpado eletrificado; o homem que decide, nesse momento, fazer um travelling para a frente para reenquadrar o cadáver em contre-plongée, tomando cuidado para inscrever exatamente a mão levantada num ângulo do enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo desprezo” (RIVETTE: 1961 p. 54). O artigo de Rivette mais tarde é retomado pelo crítico Serge Daney em um ensaio em primeira pessoa – O travelling de Kapò. No artigo, Daney enfatiza a relação entre moral e mise-en-scène que ele descobrira ainda jovem com o texto de Rivette. Daney escreve “O travelling de Kapò, foi meu dogma de carteirinha, o axioma que não se discutia, o ponto limite de todo debate” (DANEY: 1992). No travelling, a morte de Riva era estetizada

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e reenquadrada em contre-plongée, sem “o temor e o tremor” que deve existir quando se filma a morte. Não se filma qualquer coisa de qualquer maneira e o ato de filmar, com todas as suas decisões está sempre atravessado por uma ética. Essas decisões de criação encontram lugar no espaço que existe entre o evento e a imagem. Nesse espaço/tempo entre o evento e sua representação, está o cinema e a fotografia. Ou, como escreveu Comolli, “Há uma diferença entre aquilo que o cineasta ou o operador de câmera vê e aquilo que é filmado. Essa diferença tem nome: cinema” (COMOLLI: 2008, p. 232233). A imagem existe justamente porque não podemos ter o fato. As representações dos campos – em imagens e testemunhos – com toda sua dificuldade e distância do horror, nos faz concordar com Agamben e George Didi-Huberman que, de diferentes formas, nos disseram que ver é superior a não ver. Quando vemos algo do evento; parcialmente, com furos e falhas – naquilo que constitui uma imagem ou um testemunho – somos convidados à imaginação, somos convidados a traçar continuidades e relações. Como propõe Didi-Huberman em relação às imagens do Holocausto: “Nós devemos tentar imaginar o que foi o inferno de Auschwitz no verão de 1944. Não evoquemos o inimaginável. Não nos protejamos dizendo que imaginá-lo, da maneira que for – posto que é verdade – nós não podemos, nós não poderemos totalmente. Mas nós devemos, esse difícil imaginável” (DIDI-HUBERMAN: 2003, p. 11). Agamben, como parte de sua retórica, é mais enfático, ao defender a necessidade de dizer e o desastre político no argumento de que alguns eventos são indizíveis ou irrepresentáveis: “os que em reivindicam atualmente a indizibilidade de Auschwitz deveriam ser mais cautelosos nas suas afirmações. Se quiserem dizer que Auschwitz foi um acontecimento único, frente ao qual a testemunha deve, de algum modo, submeter toda sua palavra à prova de uma impossibilidade de dizer, então eles têm razão. Se, porém, conjugando unicidade e indizibilidade, fizerem de Auschwitz uma realidade absolutamente separada da linguagem, se cancelarem, no muçulmano, a relação entre impossibilidade e possibilidade de

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dizer, que constitui o testemunho, então eles estarão repetindo inconscientemente o gesto dos nazistas, e se mostrarão secretamente solidários com o arcanum imperii18” (AGAMBEN: 1999, p. 157). Ver e ouvir é parte do que faz do evento algo do nosso mundo e por isso, necessariamente pensável. A imagem não diz ou mostra tudo, mas é com ela que construímos o fato, que implicamos nossa sensibilidade. É com ela que compartilhamos um centro de atenção. Mas trata-se de um ver lacunar e em montagem; por vezes excessivo – posto que o evento está presente e ao espectador lhe é dado mais sons e mais imagens que ele é capaz de gerir ou organizar em uma narrativa; ou rarefeito, – às vezes “é preciso fazer buracos, introduzir vazios e espaços em branco, rarefazer a imagem, suprimir dela muitas coisas que foram acrescentadas para nos fazer crer que víamos tudo” (DELEUZE: 2005, p. 32). A imagem é sempre mais que o evento, ou menos. Se, por acaso, ela se confunde com o evento é porque a imagem é dispensável, descartável. Nesse caso, ou o mundo se tornou pura espetacularização ou a imagem apenas atende às demandas de ordens narrativas e representacionais que as antecede. A ética da imagem é então dependente de uma relação estética entre sujeitos que produzem a imagem e o evento. Uma relação plena de escolhas entre faltas e excessos. Se esses fragmentos da história do século XX nos acompanham, é, sobretudo, para nos darem a certeza de que quando pensamos na relação do cinema e das imagens com o mundo, essa relação é inalienável de uma dimensão ética e política, tanto na importância da imagem em representar e imaginar o mundo, sem se confundir com ele, quanto dos problemas éticos colocados nas opções estéticas que configuram a dupla dimensão da imagem que colocávamos acima: 1) como o que é afetado pelo mundo e o re presenta sem se confundir com o evento 2) pela forma como uma imagem é também uma opção, uma construção de mundo. Pensando o papel do cinema, em 1977, o crítico, professor e ativista Paulo Emílio Salles Gomes responde qual é a função do cinema: 18 Do latim: segredos do poder. 

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Como cinema mesmo. Ensinar, não. Como não se pode ensinar nada, ler escrever, mas sim a de criar condições para as pessoas aprenderem. Não acredito na transmissão de conhecimentos, que se transforma em um ritual, sem funcionalidade ou realidade. Os alunos não ficam sabendo o que eu sei. Tenta-se fazer renascer para eles os mecanismos pelos quais eu aprendi alguma coisa. Fundamentalmente é criar uma atmosfera e um estímulo que fazem os estudantes descobrirem e inventarem (SALES GOMES: 1977, p. 193).

Paulo Emílio associa o seu lugar de professor ao esforço de criar possibilidades para que os estudantes se apropriem e produzam conhecimento, com o próprio cinema. Mais do que apresentar esse ou aquele mundo, o cinema constitui-se como uma experiência em si de invenção; eis uma dimensão ético-política que acreditamos indissociável do fazer cinematográfico e que deveríamos enfatizar no Inventar com a diferença. Decidir o lugar da câmera, escolher o que estará no quadro e o que estará fora, fazer o foco distinguindo o que está nítido daquilo que se embaça, movimentar a câmera e mudar o ponto de vista, aproximar dois planos com a montagem, negociar uma fala ou uma entrevista, acrescentar um som a uma imagem, escolher o ritmo da atenção demandada ao espectador, trabalhar a escuta, fazer ou não um travelling que reenquadra uma personagem, compartilhar uma imagem. Perguntas simples nos permitiam com o cinema extrapolar seus limites para pensar o lugar de quem vê e fala sobre o mundo. O que fazemos com o poder que temos de ver, filmar e falar sobre o outro? É a pergunta que de alguma forma une Rivette, Daney, Didi-Huberman e Paulo Emílio. Que lugar tem o outro quando decidimos que ele será objeto de nossas imagens e de nosso olhar? Que espaço tem o mundo quando o organizamos em uma imagem ou em uma narrativa? Questões indissociáveis de uma política das imagens. Em seu curso sobre cinema, em 1984, Deleuze enfatiza ainda o caráter pedagógico do cinema que, antes de ensinar algo específico, ensina a ver – um ver que transcende as habilidades do olho e engaja

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um processo subjetivo: “Nós vemos algo e esse algo, que seja o belo demais, ou o injusto demais, o injusto demais que é a pobre menina grávida que não sabe o que fazer19 – o belo demais da erupção vulcânica20 [...] eu aprendo a ver algo, sentir que o cinema será uma pedagogia da imagem como jamais houve” (DELEUZE: 1984)21. Uma vez que nos colocamos de acordo com essas características da imagem, o caminho em direção aos direitos humanos torna-se imediato. A metodologia que preparávamos para estar na educação teria como base exercícios, práticas e propostas a professores e estudantes que os engajariam em processos reflexivos, poéticos e estéticos em constante demanda de tomada de posição sobre o modo de inventar e construir o território, a comunidade, as relações; pensando no cinema como um modo de ver e construir o que vivemos, uma construção que pode nos trazer uma nova experiência com o real. Não se tratava assim de um programa a ser cumprido, – pois com frequência trata-se de desprogramar certas ordens e estabilidades, como fazem as crianças – mas de propostas que cada professor poderia tomar para si. Ao mesmo tempo, podíamos apostar em um efeito de montagem: o Inventar com a diferença é um projeto de cinema “e” direitos humanos. Assim, todas as imagens e sons produzidos, são tomadas por essa relação. Nas escolas e oficinas, a cada plano que um estudante produz, há uma pergunta sobre os direitos humanos que pode acompanhar suas decisões. Como se toda imagem trouxesse uma interrogação política. As imagens não estavam assim separadas de questões sobre os Direitos Humanos (direitos esses frequentemente inseparáveis dos direitos não humanos). Experiência A arte não se ensina, experimenta-se, dizíamos. Mas o que significa isso se estamos pensando a educação? Não é a educação o lu19 Deleuze se refere ao filme Umberto D. (1952), de Victorio de Sica. 20 Deleuze se refere ao filme Stromboli (1950), de Roberto Rossellini. 21 Disponível em: . 

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gar em que se ensina? Sim, mas, é também o lugar em que certos objetos do mundo são compartilhados. Espaço em que modos de ver e pensar adentram um mundo que pertence à professores, alunos, famílias e comunidades. Cada uma dessas formas pode ser recebida pelos estudantes como algo que se encaixa em um universo já dado e constituído, e que atua por acumulação. Nesse sentido, a educação pode ser fechada àquilo que a comunidade já é, reproduzindo seus valores, estéticas e formas de ser. Se quiséssemos seguir nos termos de Rancière, a educação pode ser fechada em uma regime ético em que os processos subjetivos estão engajados na medida em que eles podem ser modulados pelas formas que a escola reproduz. Grande parte dos métodos centrados no acúmulo de conteúdos e crentes na disciplina se encaixariam nessa definição. Uma experiência, entretanto, não é algo que está contido no objeto a ser apreendido pelo estudante, nem funciona por acúmulo, mas por deslocamento do conhecido, por desvios nos processos de compreensão de si e da comunidade. Nesse sentido, a educação é necessariamente desarmônica em relação à comunidade, dissensual em relação ao mundo que a organiza. Como diz Paulo Freire, “Saber ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção, ou sua construção” (FREIRE: 1996, p. 21). No caso do cinema na escola, é pela experiência que o professor pode sair do lugar daquele que ensina para experimentar com os alunos – um deslocamento que se faz essencial para uma dinâmica mais horizontal da produção de conhecimento. Até mesmo o gesto de ver um filme, com todos – professores e alunos – virados para o mesmo lado, já traduz a horizontalidade da experiência do cinema. Experimentar, nesse caso, é se deixar afetar e produzir com o que ainda não conhecemos e que porta o risco de trazer microdesestabilizações naquilo que entendemos como “nosso mundo.” A experiência, nesse sentido, não pressupõe indivíduos prontos ou sujeitos estáveis antes dela própria, tornando-se, a experiência, o meio e o fim; entregando a autoridade ao processo. Em outras palavras, não se trata de uma experiência a se adquirir com a imagem para se che-

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gar a um lugar pré-fixado, mas de uma experiência com a imagem mesmo. Tal definição talvez se distancie da experiência de Freire, uma vez que a emancipação intelectual, no seu caso, agiria imediatamente na revelação das formas de opressão. Nos parece, entretanto, que se pensamos o cinema na escola como uma possibilidade de experiência, não se trata de entregar ao aluno algo que ele não possui e que sabemos qual será o efeito da experiência sobre ele, mas permitir que a arte circule entre estudantes e professores na expectativa de que encontros formais, estéticos e discursivos possam funcionar como aberturas para que os sujeitos se engajem em mundos desconhecidos, recolocando em marcha processos subjetivos; que formas diversas de estar no mundo impliquem em possibilidades de invenção do eu e da comunidade – uma invenção com a diferença. Nossa primeira abordagem com o cinema na escola – talvez ainda marcada pela representação – aparecia como uma forma de conhecer e construir o mundo com o cinema que passava por experiências de si e da comunidade. Nos perguntávamos então, a cada filme que levamos para a escola, a cada plano que compartilhamos com os alunos, sobre os processos criativos ali engajados. Que mundo esse filme desejou? Que formas de vida e comunidade? Que maneira de organizar o tempo e o espaço? Que forma de demandar o espectador? Mas, no limite, não perguntávamos nada, apenas acreditávamos em uma relação silenciosa que pode se fazer entre os filmes e os espectadores. Perguntas simples e silêncios reveladores que podem nos jogar no lugar do criador, do cineasta, e que nos aproximam das decisões que ali estão feitas – decisões estéticas, narrativas, de linguagem mas, antes, de escolhas de mundo. Experimentar a criação do outro é experimentar o mundo se inventando, eis uma radicalidade da arte. Mas sigamos com o que estamos entendendo por uma experiência? Uma parte da resposta está com três filósofos franceses do século XX, Gilbert Simondon, Félix Guattari e Gilles Deleuze. É com eles que me permito adensar a noção de experiência, que acredito importante para entender as apostas do cinema na escola, uma vez

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que o conhecimento não é apenas adquirido, mas produzido com os estudantes. Falar em experiência implica não apenas falar em algo que um sujeito pode ter, mas uma forma de entender o que é um indivíduo mesmo. Sigamos com calma. Simondon terá grande influência no trabalho de Deleuze e, para ele, a experiência está no centro de sua concepção do indivíduo. Um sujeito não existe separado de uma experiência de individuação ou de um tornar-se indivíduo. Simondon não nos permite confundir o indivíduo com o ser, através de uma bela fórmula: “o indivíduo é uma fase do ser” ou “uma realidade relativa” (SIMONDON: 1989). Na mesma linha, Guattari escreve: “Ao invés de sujeito, talvez fosse melhor falar em componentes de subjetivação trabalhando, cada um, mais ou menos por conta própria. Isso conduziria necessariamente a reexaminar a relação entre o indivíduo e a subjetividade e, antes de mais nada, a separar nitidamente esses conceitos” (GUATTARI: 1990, p. 17). Essas formulações são simples e explicitam a ideia de indivíduo que se produz. Paulo Freire insistiu de diversas maneiras que “onde há vida há inacabamento” (FREIRE: 1996, p. 22), mas esse inacabamento é, de alguma forma, a impossibilidade de fecharmos o ser humano em uma unidade, em algo com limites rígidos e identificáveis. Simondon, ao pensar o indivíduo como uma fase do ser, abre imensas portas para o que resta da individuação, para o processo em que o indivíduo está metido – os componentes da subjetivação. Ou seja, se o que forma o indivíduo é um processo com histórias, DNAs, contextos, experiências etc., há uma grande quantidade de “coisas” – componentes de subjetivação – que estão ai e que não formam indivíduos. Partes não individuadas do inacabamamento, poderíamos dizer. Ora, brilhante esse Simondon! O mundo é um não-sei-o-quê de indivíduos possíveis, uma virtualidade. Um mafuá, se quisermos antecipar o capítulo cinco. Pode parecer complicado, mas não é; Simondon está partindo de algo extremamente antigo: o indivíduo muda. Mas o que é interessante é que, para entender esse indivíduo que muda, Simondon faz uma crítica a duas maneiras de perceber o indivíduo: a subs-

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tancialista e a hylemórfica. A primeira considera que o indivíduo se funda nele mesmo, a partir de elementos primeiros, uma substância, e que essa substância é resistente ao que não é ele mesmo. Parte daí, por exemplo, a crítica que Deleuze e Guattari farão à psicanálise. Para os filósofos, a psicanálise abandona a maquinação, a pluralidade de forças heterogêneas e produtivas que constituem o indivíduo, a horizontalidade das forças que tencionam a transformação do ser, para se concentrar em substâncias fundantes e de base, e na falta. Em outras palavras, na visão substancialista, criticada por Simondon, o sujeito não se explica pelo que funciona no presente, mas por algo que está lá no fundo do sujeito e do tempo. A segunda crítica diz que na concepção hylemórfica há uma separação entre a forma (morphos) e a matéria (hyle), e o indivíduo é pensado a partir de um tornar-se em direção à uma forma que pré-existe. O indivíduo é o encontro da matéria com uma forma que não lhe pertence, mas à qual ele se adapta. Na concepção hylemórfica, o indivíduo muda sempre, mas passando de uma forma preexistente a ele a outra, na indissociabilidade aristotélica entre forma e matéria. Para Simondon, essas concepções do indivíduo, as duas, trabalham uma compreensão dos sujeitos em que, uma vez o indivíduo constituído, opera-se um retorno que possibilita ver as linhas e experiências que permitiram tal constituição. Neste gesto, o indivíduo está sempre separado da experiência que o faz aparecer e tudo que encontraremos são explicações para o que existe, entretanto, se fizermos o caminho contrário, é na experiência que nos instalamos. Vejamos então como fica a fórmula que Simondon nos inspira. Um ser é uma transformação com constantes atualizações – o indivíduo está sempre aí, pronto para responder ao mundo, pronto para enfrentá-lo ou simplesmente aceitá-lo, mas a experiência que todo indivíduo vive é repleta de restos, sobras e excessos que não se atualizam, que não passam a fazer parte do ser. Se o indivíduo é pensado como fruto de uma lógica de causa e efeito, isso implica em eliminar o excesso do próprio ser e tudo que não faz passagem da experiência ao indivíduo. Se nos deslo-

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camos do individuado para a individuação, o que não foi incorporado na constituição do indivíduo passa a existir, passa a ser parte do que guarda a virtualidade de outras individuações possíveis. Assumir o excesso, a sobra, invoca um desacordo de base entre forma e matéria, entre molde e objeto. O excesso e o desacordo é o que dá à forma individuada – o indivíduo – a linha que a torna metaestável, pronta a se desubjetivar, pronta a se defasar, inserindo o indivíduo no devir, na transformação. “A individuação, diz Simondon, não é o resultado do devir nem alguma coisa que se produz no devir, mas o devir ele próprio enquanto o devir é devir do ser.” (SIMONDON:1989, p. 228). Chegamos assim a algo fundamental, fruto do não isolamento entre o indivíduo e o processo de individuação – necessariamente transindividual. O indivíduo, entendido como uma atualização do ser, aponta, simultaneamente, para dois polos; 1) a relação entre indivíduo e o meio de onde ele aparece e 2) para toda diferença que resta entre o indivíduo como realidade individuada e ele mesmo – a virtualidade na individuação. Esta dupla conexão coloca o indivíduo entre o singular e o comum, inseparável destas duas esferas, sendo o indivíduo um dos aspectos possíveis da individuação. De alguma maneira, podemos dizer que um sujeito pode existir porque ele diverge dele mesmo, ou seja, enquanto uma relação de causa e efeito colocaria o indivíduo como uma consequência do contexto ou como fruto da história, é no momento em que o indivíduo, sem negar essa dimensão ética e histórica, resiste a ela que ele existe plenamente, como sujeito. Um “eu” é assim obviamente fruto de uma relação, de uma maquinação coletiva, mas sua atualização, seu modo de ser um “eu”, não está dada nos elementos que formam a maquinação. Em resumo, para que um indivíduo apareça, múltiplos componentes de subjetivação entraram em ação, mas a existência desse indivíduo não estava dada nos componentes, logo as experiências que forjam um indivíduo são também perturbações nos componentes que forjarão outros indivíduos, por isso cada individuação é excessiva ao eu, simultaneamente pessoal e coletiva.

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Alguns filmes inventaram maneiras especialmente belas de refletir e transformar essa noção de individuação de Simondon. Em O silêncio (1998), de Mohsen Mahkmalbaf, quando Khorshid, o garoto, se perde no mercado, a menina que o acompanha precisa mimetizar a sua cegueira e andar de olhos fechados, buscando as sensações do garoto, as sonoridades que o levam também a fazer certos caminhos e a escolher certos lugares de descanso. Khorshid não é apenas diferente, mas sua diferença lhe permite experiências que são constantemente compartilhadas com as outras crianças. Ele anda entre a dispersão, porque ouve demais, e a extrema atenção, porque não vê. Com isso consegue memorizar um poema rapidamente, sem a dispersão do olhar, mas é capaz de perder o ponto do ônibus porque está envolvido demais com uma bela voz. No ônibus em que memoriza o poema, depois de ouvir duas meninas o decorando, ele explica o seu processo de memorização e as duas são levadas a fechar os olhos, simulando uma cegueira. A forma de reconhecimento e organização do mundo de Khorshid – em sua singularidade – vai alterando as formas de vida e as experiências das pessoas do entorno, até que a sensibilidade auditiva de Khorshid, depois de ser compartilhada com duas meninas no ônibus e com a menina que o leva até o seu trabalho com o afinador de instrumentos, passa a ser parte do próprio filme, pertencente ao universo construído por Mahkmalbaf. Não ouvimos mais o que um outro personagem ouve, mas é o próprio mundo que se põe a ouvir como Khorshid. Em A malvada (1950), de Joseph L. Mankiewicz, entramos na memória de um personagem que nos leva para um flashback – até aí estamos nos aprofundando no indivíduo, por mais que essa memória seja parte de seu processo de subjetivação. Entretanto, enquanto estamos na memória desse indivíduo, ele sai de cena e continuamos em sua memória sem ele, sendo levados para outro flashback por um outro personagem. Nesse momento, a memória deixa de ser algo que pertence a um indivíduo para ser uma massa coletiva em que processos de individuação entram e saem, perfazendo uma dimensão individual e coletiva de um mesmo processo de construção

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do eu, permitindo que outros “eus” habitem simultaneamente essa massa coletiva e individual. Como colocava Deleuze em A imagemtempo, “A memória não está em nós, somos nós que nos movemos em uma memória-ser, numa memória mundo” (DELEUZE: 2005, p. 122). Já em Je t’aime, je t’aime (1968), de Alain Resnais, uma máquina do tempo coloca o personagem em uma gagueira de memórias que não necessariamente lhe pertencem. Ao usar a máquina para voltar no tempo, a máquina parece falhar ao não encontrar uma memória estável e organizada a partir de um indivíduo, mas, novamente, uma massa entre o individual e o coletivo. O que pode ser visto como um defeito do mundo é a própria maquinação da individuação operando sem fim ou coerência. Nas palavras de Guattari, O sujeito consciente de si mesmo, mestre de si como do universo, não deveria mais ser considerado como um mero caso particular – o de uma espécie de loucura normal. A ilusão consiste em crer que existe um sujeito, um sujeito único e autônomo correspondendo a um indivíduo, quando o que está em jogo é sempre uma multidão de modos de subjetivação e de semiotização (GUATTARI: 1984, p. 105/117).

O que é a experiência então? Simples: a experiência é todo processo em que o indivíduo acessa elementos, mundos e partes de si que produzem micro e macrodesvios em seu processo de individuação sem deixar intacto o que não é ele mesmo. A experiência é individual e coletiva. Ou seja, ao mesmo tempo que uma experiência desvia, afeta e altera um processo de individuação, ela é produtora de uma massa amorfa, virtual, se quisermos, ainda não individuada, disponível a novas experiências que venham a se atualizar: um sonho de outro que pode ser habitado. O que a experiência atualiza em um indivíduo e o que ela forma como massa ainda não atualizada – virtual – é parte de uma produção de mundo que transborda esse ou aquele indivíduo. O excesso da experiência é sempre coletivo, transindividual. Diríamos assim, em resumo: a experiência de

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um indivíduo, com o cinema, com a arte, com o outro, constitui o indivíduo mas é também maior que ele, afeta um estado de coisas que constitui o mundo e as novas possibilidades de o indivíduo ser afetado também. Se não trouxermos essa relação entre a estética e a experiência para a constituição dos processos subjetivos na educação, ficaremos esperando que o cinema chegue com discursos edificantes e palavras de ordem; nesse caso, perdemos o cinema. Molecularidades O encontro com a Secretaria de Direitos Humanos nos abria amplas possibilidades de atuação com o que já acreditávamos saber fazer e, ao mesmo tempo, nos trazia desafios de produção, de logística, de financiamento, de pessoal, de produção de conteúdo. Mas, antes de tudo, precisávamos entender o que significava fazer uma interseção entre o cinema e os direitos humanos. Em nossas pesquisas sobre o modo dessas relações acontecerem, rapidamente nos deparamos com um vídeo produzido pelo Canal Futura contra a homofobia. Nesse vídeo de cinco minutos, feito com puppets, vemos dois personagens em um escritório: uma funcionária e um servente. Um terceiro personagem caracterizado como homossexual atravessa a sala. Depois que ele passa, o servente comenta com a mulher: “Você sabia que ele joga no outro time?”, imitando o colega de escritório. A mulher fica indignada com o preconceito do homem e faz um longo discurso contra a homofobia. Esse vídeo simples se tornou um paradigma do que não queríamos fazer na relação que iniciávamos com as escolas. Ganhava clareza para nós que 1) Para falar contra a homofobia ou contra qualquer situação de desrespeito aos direitos humanos, não iríamos criar o homofóbico ou qualquer situação em que houvesse um desrespeito. 2) Não faríamos discursos, não nos tornaríamos donos da verdade.

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Um outro exemplo que se aproxima do vídeo do Canal Futura e que cruzou nosso caminho foi o filme Ma vie en Rose (1997), de Alain Berliner. O filme constrói um personagem bastante sedutor e interessante. O menino Ludovic tem sete anos e vive intensamente o universo feminino. Veste-se de menina, fabula com o universo das bonecas e, em sua ingenuidade, diz abertamente querer casar com o filho do vizinho. Ludovic acredita ser uma menina. É com essa ingenuidade que Ludovic se contrapõe ao universo machista em que se encontra. Entretanto, para que se universo ganhe uma plena identificação com o espectador, todos que o cercam precisam ser caracterizados como personagens insensíveis, incompetentes e no limite da estupidez. É o caso do diretor do colégio, da psicanalista, dos vizinhos e de todos os pais da escola de Ludovic. Os próprios pais da criança não escapam à formatação reducionista para que o personagem homossexual de Ludovic possa se impor. Quando a família é obrigada a se mudar e é acolhida em um novo bairro, mais pobre, em Clermont Ferrand, o filme acaba. Ludovic e sua família não conseguem nenhuma mudança na comunidade em que viviam e não conhecemos a nova comunidade em que a criança é acolhida, mas mesmo assim temos um happy ending.22 Ou seja, novamente, para representar e acolher o menino que traz características bastante dissonantes às práticas da comunidade, o filme precisa inventar uma exército imutável de preconceituosos. Desde o início, desenhávamos das mais importantes posturas que nos nortearia: não hierarquizaríamos nossas falas em relação ao outro, não construiríamos um mundo indesejado para defender um mundo mais justo em que a diferença faça parte e altere os destinos da comunidade. Obviamente não desejávamos a homofobia, mas, para isso, precisávamos inventar um método em que o tema chegasse para as escolas se isso fosse uma necessidade da escola, sem que ele fosse imposto por nós. A pior forma do cinema se conectar 22 Uma longa e elogiosa análise do filme pode ser vista no livro Illuminating Childhood, de Ellen Handler Spitz, 2011. 

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à educação é estando associado às palavras de ordem. Ou, como diz Jean-Luc Godard: “Para fazer cinema basta filmar os homens livres”23. Só assim poderíamos nos distanciar da utilização da noção de “direitos humanos” como uma retórica que serve também para desastres humanitários. Como sabemos, o século XX foi fértil em produzir tragédias em nome dos homens, algo que se reproduz hoje quando o moralismo, em nome dos direitos humanos, suporta pautas conservadoras no Brasil e no mundo e legisla contra o aborto e contra a adoção de crianças por casais do mesmo sexo, por exemplo. Foi nesse sentido que percebemos rapidamente que precisávamos nos distanciar de uma tradição temática de relação dos direitos humanos com as artes. Mais do que isso, nos distanciávamos, pelo menos como ponto de partida, de uma dimensão representativa onde estimularíamos crianças e jovens a reproduzir o discurso correto sobre os direitos humanos, como se as crianças fossem massas amorfas, prontas a serem moldadas. Antes de representar, era preciso experimentar o cinema e a diferença. Antes de pautarmos as imagens pelos sentidos e pelos temas, desejávamos pensar na forma da imagem ser um conector com mundos e alteridades. Desta maneira, a dimensão política do cinema estava separada da necessidade de estabelecer focos de contradição e oposição, nos levando à possibilidade de uma política da imanência, em que a criação é o fim em si. Não estamos dentro de uma operação que trabalha por oposição, algo que talvez faça sentido para pensar os embates macropolíticos, quando as revoltas contra o Estado ou grandes corporações se fazem necessárias, mas não as tensões micropolíticas, intrinsicamente ligadas aos processos subjetivos. Como explicitam Guattari e Deleuze: “Diz-se erroneamente (sobretudo no marxismo) que uma sociedade se define por suas contradições. Mas, isso só é verdade em grande escala. Do ponto de vista da micropolítica, uma sociedade se define por suas linhas de fuga, que são moleculares” (DELEUZE; GUATTARI: 1980, p. 263). Entretanto, como aponta o próprio 23 Citado por Le Désordre Exposé (2012), de Olivier Bohler e Céline Gailleurd. 

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Guattari, negando qualquer leitura rasteira que elimine problemas de classe, ele diz: A luta de classes não passa simplesmente por um front delimitado entre proletários e burgueses, facilmente detectável nas cidades e nos vilarejos; ela está igualmente inscrita através de numerosos estigmas na pele e na vida dos explorados, pelas marcas de autoridade, posição, de nível; é preciso decifrá-la a partir do vocabulário de uns e outros, seu jeito de falar, marcas de seus carros, a moda de suas roupas etc. Não tem fim! A luta de classe contaminou, como um vírus, a atitude do professor com seus alunos, a dos pais com suas crianças, a do médico com seus doentes; ela ganhou o interior de cada um de nós com seu eu, como o ideal de status que acreditamos ter de adotar para nós (GUATTARI: 1985, p. 15).

No tenso Ninguém pode saber (2004) de Hirokaru Koreda, as dificuldades de moradia, a falta do direito à cidade, tão presentes nos filmes do neorrealismo ou no cinema novo, ganham novas feições, desta vez em um país rico do capitalismo central. Ao mudar-se para um novo apartamento, a mãe precisa esconder os filhos pequenos para não ser expulsa do lugar; para isso leva as crianças dentro de malas para o interior da casa. No disciplinado universo japonês, o filme vai construindo no detalhe as formas que as crianças vão inventado para burlar as regras. Em uma sequência a filha vai até a varando, lugar proibido pela mãe, para poder lavar roupa. Durante longos segundos seu olhar se fixa na máquina de lavar, enquanto ouvimos o seu som. O mais banal dos gestos ganha grande destaque diante das rígidas fronteiras colocadas pela situação da família. Em outra cena, o menino mais novo deixa cair um pedaço de massinha na varanda e, sem tirar o corpo do interior do apartamento, inventa formas de recuperar o brinquedo; em outra sequência, vemos em detalhe a ponta dos dedos da criança na janela, como se ela tocasse a fronteira do mundo que pode habitar. Mas é sobretudo com o

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tempo morto no interior do apartamento que a tensão cresce. Um tempo que vai aos poucos alterando as formas dos corpos e os gestos das crianças. Gestos que não cessam de se apresentarem como uma ameaça à convivência com os vizinhos que não sabem da existência das crianças no apartamento. A delicadeza do filme está justamente na forma como ele dedica uma atenção a esses gestos banais, vistos e executados pelas crianças, como que na construção de um cotidiano que tenta resistir ao desaparecimento da mãe, à ausência do pai e às proibições dos vizinhos. Koreda retoma a tradição dos pillow shots do cinema de Ozu, planos de paisagens e composições urbanas que, despregados da narrativa, aparecem entre o olhar de alguém, no caso das crianças, e uma contemplação coletiva. Esses planos, quase-narrativos, quase-subjetivos, desmontam a ordem de causas e efeitos entre os gestos da mãe, a prisão imposta pela comunidade e o futuro das crianças. Mais do que uma denúncia, o filme de Koreda opera nos modos de sentir do espectador em relação à tragédia e desordens da comunidade distópica em que as crianças se encontram. Ninguém pode saber que as crianças estão naquele apartamento, e, apesar de as crianças começarem a encontrar outros adultos, tentar conexões e se exporem com evidentes pedidos de ajuda que trazem nas roupas rasgadas e na falta de comida e água, raros são os sinais de cuidado da comunidade. Por um lado, o filme nos mostra a inventividade e a força das crianças em seus microgestos, por outro, elas enfrentam a tragédia na impossibilidade de fazer comunidade no centro de uma sociedade em que as lutas de classe aparecem na ordem imposta: ninguém pode saber – que estamos sozinhos, que somos pobres, que não temos água. Nas resistências e tragédias do filme de Koreda, molecularidades e opressão de classe se encontram imbricadas. Voltando assim a Guattari, que coloca: “A introdução de uma energia suscetível de modificar as relações de força não cai do céu, ela não nasce espontaneamente do programa justo, ou da pura cientificidade da teoria. Ela é determinada pela transformação de uma energia biológica – a libido – em objetivos de luta social.

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(GUATTARI: 1985, p. 15). A ação política ganha assim dimensões a-lógicas, não-causais, indeterminadas, não-orgânicas e experimentais, uma vez que passa pela abertura de mundos possíveis e múltiplos. A política – com o cinema, com a educação – se torna uma máquina de complexificação dos lugares em um sistema não estável. Como estamos trabalhando com crianças e adolescentes, antes de apresentar-lhes um mundo de contradições, precisamos criar mecanismos para que não sejamos mais uma vez capturados por poderosas máquinas semióticas que controlam expressões e mobilizações estéticas em seus mínimos detalhes, como na vizinhança, nos pais, lojas e ruas do filme de Koreda. Tínhamos assim uma entrada no debate dos direitos humanos e que poderia ser entendida como uma aposta na abertura e liberação dos processos subjetivos. Os inimigos apareceriam em graus diversos em diferentes lugares. Por vezes o moralismo religioso que atravessa muitas escolas, os excessos de hierarquia e disciplina em outras, o desinteresse de alguns professores e diretores, ou a homogeneidade e opressão do consumo ou, como é mais frequente, a pobreza mesmo. Novamente, nos perguntávamos: como contaminar adultos, escolas e processos subjetivos com a criação e força dos processos inventivos infantis, como temos visto em tantos filmes? Como fazer para que naquela comunidade urbana do filme de Koreda as crianças existam e não sejam eliminadas – literalmente – pelas regras e desatenções de uma sociedade centrada no indivíduo? O direito humano estaria ainda ligado às possibilidade de uso do tempo e das potências sensíveis e inventivas – fundamentais para a complexificação de processos subjetivos –, dimensões mínimas para uma vida plena na democracia e aspectos que são os primeiros furtados aos pobres. Uma captura do tempo frequentemente tematizada no cinema e nos personagens infantis – na prisão dos meninos de Vítimas da tormenta, no confinamento das crianças de Ninguém pode saber ou no sequestro do mundo infantil em A infância de Ivan ou em Pixote (1981), de Hector Babenco. Os modos

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do cinema atuar no sensível, sem um fim predeterminado, como colocávamos anteriormente, encontra eco na atenção às transformações moleculares de que fala Guattari. O cinema, antes de ser discursivo, é um perturbador de ordens estéticas e, consequentemente, um operador político, uma vez que toda ação dos poderes contemporâneos opera intensamente no esquadrinhamento e modulação do sensível: da vigilância generalizada aos padrões de beleza e consumo. Emancipação Sei que os obstáculos não se eternizam. Paulo Freire A instrução é como a liberdade, ela não se entrega, ela se toma. Joseph Jacotot

Confiamos ao cinema duas possibilidades de experiência, com a própria criação e com a diferença – experiências que andam juntas. Entendemos que estas experiências estão diretamente ligadas às transformações subjetivas de professores e estudantes, transformações essas que afetam a comunidade como um todo. Mas nada disso terá sentido se a todo momento a escola for uma máquina hierarquizadora que não cessa de ensinar ao aluno que ele é incapaz. Vejamos como Rancière pode nos ajudar com uma noção que lhe é cara: emancipação. Viver a emancipação é algo simples. Trata-se de ser capaz, em uma determina situação, de conhecer, agir e usufruir dos sentidos humanos e das potências da comunidade. Ser capaz de agir e fazer diferença na comunidade, mas também de ser afetado sensivelmente pelo o que a comunidade inventa – a arte, por exemplo. No clássico Pather Panchali – A canção da estrada (1955) do cineasta indiano Satyajit Ray, por exemplo, enquan-

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to os adultos discutem como impor uma educação à Durga, uma menina de oito anos, ela perambula pelo bosque entre animais, frutas e pessoas idosas; como que escrevendo um mundo para si, distante dos discursos e das ordens dos mais velhos. Uma ação que por vezes é feita com o silêncio ou com uma forma singular de ver e ouvir. É a forma de Durga resistir ao mundo adulto que acaba mobilizando sua tia, uma senhora de idade avançada, que possui o corpo bastante arqueado, a deixar o vilarejo. Durga tenta impedi-la, mas ela vai embora. Na sequência seguinte vemos Durga varrendo o quintal, com o corpo arqueado, marcando uma continuidade e uma diferença em relação ao mundo em que vive. Mais tarde, é a própria Durga que traz a senhora de volta. Na sala de aula não é diferente. Como ter o estudante como alguém que faça a diferença no lugar onde aprende? Quando há a clara distinção entre o mestre e o ignorante, o lugar do mestre é fundamentado em uma distância entre aquele que sabe e aquele que não sabe. Nesse sentido, o lugar do mestre deve ser constantemente recriado, garantindo a desigualdade. A crítica de Rancière recai sobre a constante criação de um estudante em que o professor não cessa de criar “a própria incapacidade do aluno” (RANCIÈRE: 2008, p. 15). “A razão começa ali onde cessam os discursos ordenados pelo objetivo de ter razão, e onde se reconhece a igualdade: não uma igualdade decretada por lei ou pela força, nem uma igualdade recebida passivamente, mas uma igualdade em ato, verificada a cada passo por esses caminhantes.” (RANCIÈRE: 2005b, p. 106). Nesse sentido, Rancière poderá concluir que a emancipação intelectual é a verificação da igualdade das inteligências. Essa formulação radical nos interessa pela forma como ela, antes de dizer que existem sujeitos iguais, nos diz que existem sujeitos em uma relação. Sujeitos que escapam e inventam com o mundo em que vivem. Que aprendem se diferenciando. Rancière completa: “O animal humano aprende todas as coisas como começou por aprender a língua materna, como aprendeu a aventurar-se na floresta das coisas e dos signos que o

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rodeiam, para assim tomar lugar entre os humanos: observando e comparando uma coisa com outra, um signo com um fato, um signo com um outro signo” (RANCIÈRE: 2008, p. 16). Essa passagem, fundada no aprendizado da língua materna, a mais básica e complexa de nossas capacidades, aponta para toda a potência e inteligência presente em um sujeito qualquer. Antes da escola, os sujeitos navegam em signos, sentidos e afetos com alto grau de complexidade. E é essa capacidade emancipatória – pertencente aos sujeitos – que, ao aprender a língua, ele já manifesta sua vontade e modos de ser no mundo. Se não partimos da igualdade das inteligências, corremos o risco de abstrair a possibilidade de um qualquer, com o grupo, com a comunidade, habitar o conhecimento. Entretanto, essa igualdade não está dada e é efetivada em uma experiência que redistribui os lugares de fala, o direito de ver e ser visto em uma determinada configuração. A experiência da emancipação, talvez marcando uma certa distância com Freire, não é um efeito que se restringe ao indivíduo, mas uma reconfiguração do sensível – das possibilidades de ver, sentir, escutar e dizer – que afetam a comunidade. Um belo filme de 1953, O pequeno fugitivo, de Ray Asley, Morris Engel, Ruth Orkin, apresentam Joey, garoto de cinco anos que foge de casa depois de acreditar que matou o irmão. Sua jornada é de encontros, aprendizados e liberdade em um mundo distante dos olhares adultos. Joey vai para a praia, passa por um parque de diversões e, depois do medo inicial, expresso em uma montagem rápida com planos em contre-plongée de adultos, palhaços e vendedores do parque, o menino consegue um ticket para o carrossel, se diverte no brinquedo, encontra um fotógrafo que o fotografa como se fosse um cowboy. No estúdio Joey brinca com a câmera e com as pinturas que encarnam outros personagens que ele poderia ser. Nesta bela sequência, o menino vê a imagem de cabeça para baixo na máquina fotográfica e, para poder ver a imagem corretamente, coloca a pintura de cabeça para baixo. Em um gesto simples, o garoto descobre o mecanismo da fotografia, ao

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mesmo tempo em que, para ver “certo”, precisa colocar as coisas de ponta-cabeça, em uma metáfora de sua própria fuga. Joey joga baseball, come melancia, treina para derrubar uma pirâmide de latas em um jogo do parque, anda de barquinho, montanha russa e joga boliche, até seu dinheiro acabar. Com o tempo o menino vai incorporando os gestos do fotógrafo, dos jogadores de baseball, do mundo que vai conhecendo. Sozinho na praia – Coney Island – ele aprende a ganhar dinheiro trocando cascos de vidro, pelo depósito de cinco centavos. Com o dinheiro anda a cavalo várias vezes, até efetivamente aprender a cavalgar. Sempre mantendo o ponto de vista da criança, como escreveu Bazin em um texto de 1954, depois do filme receber o Leão de Prata em Veneza: o filme “evita conservar indiretamente na criança a autoridade ou o ponto de vista do adulto” (BAZIN: 1954, p. 49). A concentração do filme é assim no mundo que Joey vai inventado e experimentando com liberdade, levando os próprios adultos ao mundo dele, infantil, mas pleno de possibilidades e descobertas. A delicadeza do filme está em se concentrar em um dia de aventuras da criança sob seu ponto de vista, tentando estar na experiência da criança através das múltiplas conexões que Joey vai fazendo. Observando e agindo sozinho, mas também criando microcomunidades, com pessoas, jogos e animais, Joey passa por um profundo processo de aprendizado quando se distancia da mãe e dos mais velhos. Sua experiência não é forjada por nenhum laço entre dois sujeitos – o mestre e o aprendiz –, mas por uma curiosidade acentrada em que a emancipação se dá na interação com o mundo. Se o iletrado conhece apenas uma oração de cor, pode comparar esse saber com o que ainda ignora: as palavras dessa oração escritas num papel. Pode aprender, signo após signo, a relação daquilo que ignora com o que sabe. Pode fazê-lo, se, a cada passo, ele observar o que tem à sua frente, disser o que viu e verificar o que disse. Deste ignorante que soletra os signos até ao cientista que constrói hipóteses é sempre a

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mesma inteligência que se encontra em ação, uma inteligência que traduz signos por outros signos e que procede por comparações e figuras para comunicar suas aventuras intelectuais e compreender aquilo que uma outra inteligência deseja lhe comunicar (RANCIÈRE: 2008, p. 16).

Essa bela passagem que conecta a criança e o cientista em uma mesma inteligencia emancipada, talvez demande ainda uma sutil explicitação na leitura que fazemos. A emancipação não demanda dois sujeitos, o emancipado e o a emancipar. Sem essa divisão, a criação no ambiente educacional demanda do mestre e das propostas colocadas em prática um gesto de abertura ao que pertence aos alunos e à multiplicidade de mundos trazidos por eles. Antes de um lugar de hierarquia entre aquele que sabe e o que não sabe, a emancipação demanda um estado de criação e montagem entre os diversos atores envolvidos em uma produção criativo-pedagógica. Ou seja, em uma relação aluno/ professor, a emancipação é uma cena a se constituir no presente da educação. Ainda no filme iraniano, O corredor, quando Amiro vai para escola por conta própria e começa tardiamente a aprender a ler e a escrever, o que ele faz é levar as novas letras e sons para os lugares em que estava acostumado a viver e sonhar seu mundo. Aos gritos memoriza o alfabeto persa à beira do mar e na estrada de ferro. Com uma montagem de aproximações e sobreposições, Naderi associa o conhecimento formal que a criança está adquirindo com o auxílio do professor, na escola, com uma experiência orgânica com a natureza. A beleza da construção do conhecimento do menino se dá justamente porque não há uma separação entre a ordem escolar e a violência das ondas, o barulho do trem e a pista do aeroporto, que fizeram parte das experiências seminais de Amiro. A partir do momento que o garoto escolhe ir para escola, ela poderia ter se tornado a chave de sua emancipação, mas a escola não age sozinha, nem é o professor que o emancipa, mas, sobretudo, a forma como a própria crian-

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ça faz os seus novos conhecimentos entrarem em relação com outras experiências e saberes. A montagem do filme de Naderi não coloca eventos paralelamente, mas em sobreposição. Relação sensorial e saber organizado efetuando uma só construção de conhecimento no presente da experiência.

Uma das marcas da reflexão de Rancière sobre a educação é sua ênfase no fato de que a emancipação não está no futuro, mas na cena presente; é menos um projeto que uma prática. A igualdade não é algo que se alcançará no fim de um processo, nem está submetida a um projeto e a relações de causa e efeito. A cena igualitária de Amiro, por exemplo, está justamente na forma como o professor e os elementos não-humanos da experiência do menino podem habitar a mesma construção do conhecimento e o mesmo processo subjetivo. Entre o professor e a força do mar o cineasta encontra uma linha de igualdade. Nas palavras de Rancière “A igualdade jamais vem após, como resultado a ser atingido. Ela deve ser colocada antes” (RANCIÈRE: 2005b, p. 11). Poucas vezes na história do cinema a relação da escola e da experiência foi tão belamente construída como em O corredor. Na cena que deve ser imediatamente igualitária, o tempo cronológico não pode ser utilizado como uma forma de interdição: “Hoje eu grito com você, hoje eu te dou ordens, mas lá na frente será sua vez. Hoje você é colocado em uma escola-fábrica, mas amanhã você será livre”. Ou, ainda: “agora não é possível a igualdade, mas no futuro...”. Em 2014, o projeto municipal de construção de novas escolas no Rio de janeiro, por exemplo, levava o nome de

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“Escolas do amanhã”, escolha reveladora da forma como o Estado adia a cena democrática, fazendo o tempo funcionar como um organizador da desigualdade24. Em outras palavras, estamos conscientes da desigualdade, mas a igualdade é uma perspectiva – ou deixada por conta do progresso – ou, no caso dos fundamentalistas, perdida com o progresso. Uma pedagogia tomada pela emancipação pressupõe então uma cena em que alunos e professores, não apenas possuem formas de circular entre os signos e saberes que já possuem, como são capazes de agir, traduzir e associar seus conhecimentos a novas poéticas e novos signos. Trazemos a noção de emancipação por entendermos que a possibilidade de criação na educação e, consequentemente, de uma aproximação sensível com a diferença, passa por uma perturbação das separações que fazem do estudante um sujeito sem mundo ou desejo e um receptor de um universo que se repete em seu intelecto e corpo. Para que essa repetição se efetive é preciso criar o estudante como o ignorante do grupo. A emancipação, ao contrário, é essencial para que qualquer ação que tenha o direito do outro como algo central se estabeleça. No caso da escola, a cena igualitária está aberta à presença do que estudantes podem trazer de seus mundos, aos gostos dos professores e urgências da comunidade. Entretanto, é na cena igualitária que aparecem as

24 Nada pode ser mais explícito do que a publicidade que a prefeitura do Rio de Janeiro publicou em dezembro de 2014 para anunciar a construção de escolas no projeto, Escolas do Amanhã.

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desarmonias, as diferenças entre as formas de ver, dizer e sentir que estavam dadas em uma unidade. A igualdade é a possibilidade do desequilíbrio e do desajuste da comunidade. Processo dialetizante em que a mobilidade da comunidade é necessária para que a presença de qualquer sujeito faça a diferença no que é a comunidade. A igualdade não se confunde assim com uma homogeneidade entre diferentes, mas com deslocamentos sensíveis entre diferentes afetando o espaço comum e as formas de ser e sentir de cada um. A influência de Foucault é evidente nos escritos de Rancière. Há ali uma atenção ao espaço que possibilita algumas práticas em detrimento de outras, certas possibilidades sensíveis em detrimento de outras e formas de poder que se organizam por relações de visibilidade. A escola poderá então ser parte da emancipação dos estudantes, poderíamos dizer, se ela não se tornar uma gestora das desigualdades, mas se ela for efetivamente política, capaz de forjar cenas de igualdade, cenas em que aquele que não atua nas ações da comunidade passe a atuar. Eis a possibilidade de emancipação, a possibilidade de qualquer um fazer parte da cena democrática. Tal princípio emancipador que estamos acompanhando é perturbador para aqueles que se organizam em um sistema com hierarquias, notas e a frequente demanda de alunos que, como todos nós, podem também demandar a opressão. Melissa Benn, no livro School wars: The battle for Britain’s education (2011), lembra a demanda que frequentemente vem dos pais para que as escolas façam muitos testes, emitam muitas notas, pois assim os pais podem acompanhar com precisão os filhos, sem nenhuma necessidade de passar por critérios subjetivos ou uma atenção mais acurada ao desenvolvimento da criança de uma maneira mais ampla. Nesses casos, as notas efetivam 100% do que há para ser analisado na formação de uma criança. Se o cinema na escola pode ser atravessado pelo desejo que rompe uma causalidade e uma linha reta do mestre ao estudante, esse princípio de igualdade demandaria o desaparecimento do mestre? A descentralização total? O fim da distância entre aluno e professor? Entendemos que não. A emancipação do estudante

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não é uma igualdade de posição entre sujeitos, mas uma igualdade produtiva, fruto da produção do coletivo que não existe sem o trabalho e a igualdade de inteligências – a possibilidade de um sujeito qualquer fazer parte e diferença na criação25. O lugar do estudante não é assim de reproduzir o que o mestre sabe, mas transitar nas formas que com o mestre, com a escola e com tudo que ele possui, lhe possibilita construir novos conhecimentos. Paulo Freire, em uma conversa com Ira Shor, coloca algo próximo nos seguintes termos: Não posso ser espontaneísta! Isto é, não posso deixar os estudantes entregues a si mesmos, por estar tentando ser um educador libertador. Laissez-faire! Não posso cair no laissezfaire. Por um lado, não ser autoritário [...] tenho que ser radicalmente democrático, responsável e diretivo. Não diretivo dos estudantes, mas diretivo do processo no qual os estudantes estão comigo. Enquanto dirigente do processo, o professor libertador não está fazendo alguma coisa aos estudantes, mas com os estudantes (FREIRE: 1986 p. 34).

De outra maneira, o músico e professor canadense Murray Shafer, em seus cadernos para o ensino de música na escola diz: “Não há mais professores. Apenas uma comunidade de aprendizes” (SHAFER: 1975, p. 2). Para nós, um princípio de igualdade não é dizer da indiferença entre professores e estudantes, entre adultos e crianças, mas partir das possibilidades inventivas do grupo que depende de um princípio de igualdade de inteligências que se atualiza nas práticas, se materializa nos filmes, e não por princípios exteriores a essas. Partir da igualdade é ver as distâncias entre uns e outros ganharem vetores que podem subitamente se inverter. Quando essa perspectiva é deixada de lado, a 25 Pierre Clastres em A sociedade contra o estado (2012) nos fornece diversos exemplos em que há a necessidade de um líder justamente para impedir que o Estado e a hierarquia se efetive. O líder passa a ter um papel esquizo e desestruturante: falar sem ninguém ouvir, por exemplo. 

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educação passa a ser ordenada por princípios externos à própria comunidade formada por professores e alunos, externos à uma educação abrangente em que a emancipação seja um fato; mas dominada por uma linguagem e perspectivas empresariais, na maioria dos casos – por educações bancárias, diria Paulo Freire26. Para falarmos de direitos humanos, partíamos assim de uma problematização das relações que se efetivam na escola. Antes de pensarmos em homofobia, discriminação, bullying, preconceitos, nos perguntamos sobre as condições de uma criação coletiva que a escola permite ou não. Um princípio de emancipação que coloca o estudante como parte responsável pelo conhecimento que ele recebe e produz, um processo que se efetiva em experiências que atravessam professores e estudantes e que, eventualmente, reconfiguram as formas de ver e viver a comunidade. Em resumo, um princípio da emancipação está ligado a uma ruptura da dicotomia emancipador/emancipado em que a igualdade se efetiva na invenção e no conhecimento e não entre sujeitos isolados. Essa ruptura forja uma igualdade de inteligências e um desmonte da igualdade como um telos, como uma promessa de um em relação ao outro sobre uma igualdade futura. É no presente que pode aparecer a cena igualitária, tensa e criativa, uma invenção com a diferença.

26 É Melissa Benn ainda nos dá o exemplo de uma escola em Manchester na Inglaterra, patrocinada por um aeroporto, em que o currículo dos alunos é voltado para as necessidades do aeroporto da cidade. No Brasil, escolas como a Guilherme Dumont Villares, de São Paulo, ministram aulas de empreendedorismo para crianças com o apoio do Sebrae, resultados que podem ser vistos na Feira do Pequeno Empreendedor. Disponível em: . 

IMAGINAR

Desenho do projeto Das partes mais divertidas de um projeto como o que estávamos elaborando foi nos depararmos com a necessidade de nos organizarmos para dimensões que não estávamos habituados e para a qual não tínhamos prática alguma. Tudo parecia um certo delírio. Nós e nossos colegas próximos atuavam em seis, oito ou no máximo dez escolas. Tínhamos feito uma formação com 40 professores, mas sem ir diretamente à escola. Quando começamos a desenhar o projeto, passamos rapidamente a números que para a escala de projetos ligados à universidade eram enormes e com valores distantes do que estávamos acostumados. Nosso foco permanecia inalterado, trabalharíamos com o professor, dando apoio técnico e pedagógico para que eles pudessem trabalhar com o cinema e direitos humanos com seus alunos. Esses professores, vindos das mais diversas disciplinas, poderiam fazer oficinas no contraturno ou as incorporando em suas aulas, no turno, o que acabou sendo bastante comum no caso dos professores da educação fundamental. Antes de chegarmos no professor, precisávamos ter pessoas em todos os estados. Estas pessoas, que chamamos de mediador, organizariam uma formação inicial de 20 horas com os professores envolvidos com o projeto e seriam também responsáveis por, quinzenalmente, ajuda-los nas escolas durante as oficinas e por controlarem um kit básico de equipamento: câmera, tripé e microfone. Cada mediador atenderia dez escolas, perfazendo aproxima-

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damente 10 horas de trabalho em escolas por semana. Nossa estrutura contava ainda com cinco coordenadores regionais e espaços parceiros em cada município. Os coordenadores seriam o primeiro contato dos mediadores com o projeto: pessoas com capacidade de gerenciar pessoal, engajados com a educação e militância nos direitos humanos, além de algum conhecimento audiovisual. Cada coordenador seria então responsável por mediar questões de produção e pedagógicas entre os mediadores e o projeto. Construíamos assim a equipe diretamente ligada ao Inventar: uma equipe de base com coordenações de produção, pedagógica, técnica e de comunicação, cinco coordenares regionais e 27 mediadores. Com essa estrutura, nos preparávamos para trabalhar com o número ideal de 270 escolas, 540 professores e aproximadamente 5.000 mil alunos. No início de fevereiro, cheguei em Brasília, em um aeroporto apertadíssimo e com tempo para conhecer o Santuário Dom Bosco, um dos poucos prédios da cidade desenhado pelo urbanista Lúcio Costa. A igreja não é especialmente bonita do lado de fora, ela tem a forma de um grande cubo com estruturas que formam portais de 16 metros de altura, como o Itamarati, e vitrais abstratos entre as colunas, nas quatro paredes. Um dos detalhes mais interessantes de sua arquitetura é que os vitrais formam um degradê do branco ao preto passando por diversos tons de azul. Só que, ao contrário do que poderíamos esperar em uma igreja, quanto mais alto, mais escuro o vitral fica, o que faz que a luz da igreja entre, sobretudo, pelo chão, pela terra. Só um comunista para ter tido tal ideia. Cheguei em minha primeira reunião em Brasília com o projeto debaixo do braço e os pés iluminados pelo Lucio Costa. A secretária executiva Patrícia Barcelos fez questão de ter uma sala cheia, com muitas pessoas da Secretaria com quem trabalharíamos mais tarde. Apresentei ao grupo o projeto que Patrícia já conhecia bem; destacamos a metodologia, nosso processo de acompanhamento, nossa estrutura de produção, nossa pedagogia e nossa abordagem

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dos direitos humanos – o que era sempre difícil, uma vez que não partíamos da ideia de roteiros edificantes nem de recortes temáticos. Essa opção nem sempre é simples de entender para pessoas que lidam no cotidiano com situações de explícita violência e preconceito contra grupos específicos, como mulheres, homossexuais e moradores de rua, mas para nós era uma dimensão complementar e essencial do trabalho com direitos humanos. Na construção de projetos como esse, em que se lida com parceiros fortes e que confiam no trabalho, há um prazer em poder ir elaborando o projeto no decorrer das reuniões, conversas e encontros, e foi isso que aconteceu naquele momento. Pela primeira vez abríamos o projeto para pessoas que não conhecíamos, para militantes longamente engajados com os direitos humanos e, apesar das surpresas sobre nossa abordagem, o que estávamos propondo foi bem-recebido. Nessa reunião, uma das pessoas que trabalhava na Secretaria fez um comentário de toda pertinência sobre o método e que depois ouviríamos de outras pessoas. Ela contou que iniciativas ligadas aos direitos humanos estavam tendo dificuldades de entrar em lugares de maioria evangélica quando chegavam dizendo que queriam discutir direitos LGBT, por exemplo, o que acabava afastando esse e outros debates. Como não chegávamos com o recorte temático, talvez esse assunto pudesse aparecer sem ser rechaçado de antemão. Não só essa observação se efetivou, como passamos a usar como argumento para nossa metodologia a vantagem de não excluirmos pessoas que não querem falar sobre esse ou aquele assunto especificamente. No final do dia estava de volta ao aeroporto ligando para os parceiros: “Projeto aprovado, orçamento também”. Deixei a reunião perguntando com todas as letras para a Patrícia Barcelos: Podemos então trabalhar, mobilizar pessoas, fazer chamada para mediadores, escolas, professores? Teremos a verba necessária? – Sim!, garantiu a secretária executiva. Se até então o projeto era conhecido por dez pessoas no máximo, e apenas quatro tinham trabalhado nele até ali, nas próximas

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semanas engajaríamos algumas centenas de pessoas e contrataríamos algumas dezenas. Não tinha volta! Deveríamos continuar paralelamente nossas investigações pedagógicas e a organização das condições necessárias para executarmos o Inventar. Dispositivo No projeto que desenhamos inicialmente, o cinema, com as características que lhe são próprias, tinha papel fundamental. Em certo sentido, mais do que apresentar filmes ou técnicas e linguagens, o cinema era proposto como uma metodologia que estava diretamente ligada à noção de dispositivos. Todos os exercícios que proporíamos aos professores e mediadores seriam organizados como dispositivos 27. Tal noção nos daria a possibilidade de trazer para os exercícios os desafios de igualdade no lugar ocupado entre os estudantes e professores, o desafio da não hierarquização dos discursos e imagens e a necessária abertura para o território, para a comunidade e para a diferença, sem sermos pautados por discursos ou temas, e tendo o cinema como a questão central. De alguma maneira esses exercícios precisavam entrar na educação possibilitando as experiências e os movimentos subjetivos que narramos acima. Sem uma pauta ou uma agenda, reforçávamos com eles nossa crença em um cinema político na escola. Como comentei na primeira parte deste livro, essa noção de dispositivo me acompanhava desde o doutorado. Diria que o mais importante da noção era a ideia da criação de regras que colocavam uma certa situação em crise e demandavam gestos de criação. Um dispositivo era assim normalmente feito com poucas e objetivas regras que gerariam um grande descontrole, uma abertura para o acaso. Em outras palavras, o dispositivo é a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido. Ele pressupõe duas linhas complementares: uma de extremo controle, regras, limites, recortes; 27 Ver em anexos 

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e outra de absoluta abertura, dependente da ação dos atores e de suas interconexões. Imaginamos o dispositivo como uma forma de entrada na experiência com a imagem sem que a narrativa e o texto estivessem no centro, nem as hierarquias fossem antecipadas, justamente porque o dispositivo é experiência não roteirizável e amplamente aberta ao acaso e às formações do presente. Há no dispositivo uma dimensão lúdica que no trabalho na escola é bem-vinda; há uma tarefa a cumprir, um desafio a realizar. O dispositivo instaura uma crise desejada por quem dele participa. Uma crise nas formas de ver e perceber: antes de soluções há uma suspensão das soluções conhecidas. Na crise as decisões não estão prontas, as respostas demandam invenção, uma vez que a repetição da mesma resposta é o aprofundamento da crise. Nossos dispositivos precisavam então lidar com pequenas regras formais de ocupação do espaço e do tempo em que os estudantes, se desejassem, precisariam intervir, resolver questões, produzir encontros, solucionar problemas lógicos, de sociabilidade e estéticos, sem, entretanto, termos que antecipar questões a serem debatidas e desenvolvidas28, nem termos que pautar as ações por maneiras certas ou erradas de executá-las. As questões relativas à representação estariam presentes nos trabalhos e nas propostas do projeto, uma vez que tudo que seria filmado e montado deveria sempre voltar à sala de aula para ser visto e discutido com os estudantes, mas as representações não seriam antecipadas pelos dispositivos, o que era também fundamental para deslocar a figura do professor e do projeto como organizadores verticais das formas de percepção da comunidade e do território. Ou seja, não é porque uma comunidade é majoritariamente negra que iríamos tratar de preconceito racial; o tema teria que surgir pelos dispositivos e escolhas de alunos e professores. Apostávamos que os dispositivos traziam uma abertura que justamente permitiria uma enorme variação de acordo com os interesses locais, capacidades e possibilidades de cada grupo. O disposi28 O material de apoio do Inventar com a diferença, como todos os dispositivos utilizados, estão disponíveis em: . 

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tivo, de certa maneira, engaja todos os atores do processo em uma horizontalidade lúdica de possibilidades, permitindo que qualquer escola, de qualquer lugar, “brinque” da mesma brincadeira, com efeitos e resultados singulares, pautados pelos interesses e características da comunidade. Não há narrativa ou resposta correta a ser dada pelos jovens a partir dos exercícios propostos. O dispositivo, de alguma maneira, nos permitia estar presente, acionar disponibilidades sensíveis e intelectuais dos estudantes para a diferença, ao mesmo tempo em que “deixa as crianças em paz”. Quando o cinema chega na escola como palavra de ordem, o que ele faz é se distanciar da experiência do outro e se impor como discurso verídico. No nosso caso, desejávamos o contrário com o dispositivo, por isso a necessidade de deixar as crianças em paz, não exigir nada. Há nesse gesto um verdadeiro silêncio, uma espera, uma falta de intenções que mimetizam o cinema político pautado pela possibilidade de estar à altura da experiência do outro sem que o espectador seja uma “vítima” das imagens. Por vezes, no ensino tradicional, o estudante não faz mais do que encontrar estratégias para ser deixado em paz: decora uma fórmula, agrada o professor, copia do colega etc. Dessa maneira o estudante resolve o “problema” que lhe foi apresentado, não produz nenhum conhecimento, mas é deixado em paz, pelo menos até a próxima cobrança. E se o estudante não tivesse que inventar nenhum subterfúgio para ser deixado em paz? Nesse sentido, chamamos os dispositivos de forma a mobilizar uma cena sem que os estudantes sejam organizados por um telos que lhes é exterior ou prescrito. O dispositivo é ainda atravessado por princípio de igualdade. Como narramos com Rancière, podemos em primeiro lugar partir da democracia, não como algo a ser atingido, mas como uma prática imediatamente igualitária. Paulo Freire, em sua Pedagogia do oprimido, escreve que para que se efetive o dialogismo necessário para a participação de todos, inclusive do oprimido, na construção do saber, a realidade precisa ser percebida como processo, em

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constante devir; o diálogo de Freire com uma pedagogia do processo, como a de Whitehead ou mesmo de Fourier, é evidente. O diálogo é o que coloca múltiplos sujeitos em condição de participar do que muda; a realidade. Seu princípio de igualdade lhe permite escrever: “[...] dizer a palavra não é privilégio de alguns homens. Precisamente ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais” (FREIRE: 1987, p. 78). De maneira sintética, Freire explicita, e nos permite desdobrar, princípios de igualdade que nos mobilizam. Primeiramente, a palavra, o discurso, mas também a dimensão estética do falar, do representar, do agir na realidade, não é privilégio de uns e não de outros. E, com precisão, Freire nos lembra: na formulação e na transformação da realidade o sujeito não está sozinho. Toda transformação, poderíamos dizer, é parte de uma máquina que se coloca em movimento, que coloca atores em contato, que instaura uma cena onde acontecimentos podem se dar. Nossas propostas de exercícios partiam assim de dispositivos em que múltiplos atores se colocariam juntos, experimentando a criação sem palavras de ordem, desfazendo hierarquias, tensionando o real e, na melhor das hipóteses, permitindo que os jovens percebessem e inventassem um mundo – com seus conflitos e possibilidades – com o cinema. Combinações frescas e montagem No final dos anos 1920, o filósofo inglês Anthony North Whitehead discute de maneira aberta algumas questões sobre educação. Em seu ensaio The aims of education, Whitehead explicita uma noção de educação que parece bastante adequada à sua época: “Educar é fazer com que as ideias sejam utilizáveis ou entrem em ‘combinações frescas’”. Essas primeiras décadas do século XX são marcadas por uma forte presença da montagem na estética e na forma de produção de conhecimento com artistas como Kasimir Malevich, Raoul

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Hausmann, Max Ernst, René Magritte e, obviamente, os cineastas, Sergei Eisenstein, Dziga Vertov, Alberto Cavalcanti e tantos outros. Whitehead parece trazer para a educação a montagem. Porém não se trata de qualquer montagem, mas uma montagem de combinações novas e frescas, ou seja, que colocam o aprendizado em uma dimensão processual, como se educar nunca tivesse um fim em si, mas no que pode ser conectado, na abertura que é feita para que as ideias possam se conectar com outras coisas. Estamos próximos do personagem iletrado de Rancière que com um poema é capaz de navegar entre signos e associações complexas. Nos parece que essas conexões podem atuar em dois sentidos. Um primeiro que nos remete a Paulo Freire e que está ligado a uma dimensão estrutural da realidade: quando falamos dos dispositivos móveis em sala de aula – celulares, pads e pods –, por exemplo, podemos devolver a nós e aos alunos perguntas que colocam os celulares em uma rede que constitui as condições de possibilidade para que aquele celular esteja ali: de onde vem o chip? Quem fabrica? Como chega a energia? Quem ganha dinheiro? Quanto ganha o trabalhador que fabrica o celular, qual é a energia usada para que o celular chegue até o shopping mais próximo, quem administra as redes de comunicação? Trata-se de uma conexão que forma contexto. John Dewey, em um artigo sobre o lugar da educação na sociedade, de 1899, narra uma visita à escola em que crianças descobriam linhas e tecidos e em que uma delas, ao passar meia hora vivendo a dificuldade de debulhar semestes de algodão, entendeu por que em décadas passadas, pré-industrialização, a lã era mais utilizada. O contexto e a história aparecem associados a uma ação direta da criança com a planta do algodão, o que lhe permite uma conexão em que o conhecimento se materializa. Nessa montagem, a partir de um objeto, tracejamos as múltiplas operações políticas, econômicas, energéticas, ambientais etc., para que aquele objeto exista ali. A beleza dessa infinita rede de conexões pode nos devolver à Jacotot que, pensando a educação 100 anos antes de Whitehead, diria: “tudo

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está no tudo”, uma de suas máximas dignificantes da lógica das combinações. Assim como Jacotot, Whitehead se concentra em uma educação em que poucas ideias e mínimos objetos podem abrir para máximas combinações. Uma segunda forma de atuação dessas conexões de Whitehead, talvez aquela que teria interessado Deleuze mais de perto, é mais esquizoide, não forma contexto, mas entra em montagem para criar o que não existe. O conhecimento, através de combinações frescas, entra em um processo ativo, que se transforma constantemente em uma sequência de acontecimentos. Nas palavras de Steven Shapiro, que estudou a relação entre Deleuze e Whitehead: “Acontecimentos em vez de coisas, verbos em vez de substantivos, processos em vez de substância” (SHAVIRO: 2012). Se continuarmos com nosso exemplo, celulares passam a fazer arte, conectar manifestantes, estabelecer relações pessoais randômicas e não roteirizadas, operar na transformação das indústrias da música e do audiovisual. Vale destacarmos que essas duas dimensões da experiência combinatória, uma que está mais ligada ao contexto e outra à potência, não são excludentes, nem podem ser definidas pelas dimensões coletivas em um caso e individuais em outro, por mais que no primeiro caso a ideia de que as singularidades desejantes, os gestos individuais, tenham papel determinante seja difícil de tracejar. Da mesma forma, as combinações frescas que tendem à potência não se efetivam no campo individual, mas na entrada em criação quando as combinações e conexões ganham um caráter coletivo não mapeável. Poderíamos dizer então que já nesse texto de 1932 Whitehead aponta para essas duas dimensões das combinações. Um conhecimento por montagem que produz contexto e potência e, para que isso se efetive, sua proposta não deixa de ser curiosa; poucas ideias, muitas combinações. Em uma linha não muito distante, em 1938, Virginia Woolf, é perguntada como fazer para termos uma educação que não levasse à guerra: “o objetivo de uma nova escola não deve segregar ou especializar, mas

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combinar. [...] Descobrir que novas combinações fazem novas totalidades felizes” (WOOLF apud ALLEN: 2011, p. 32). O princípio da montagem é fortemente democrático. Enquanto o que Whitehead chama de ideia é algo que se passa à criança e ao estudante, a combinação é a ação da criança, é o momento em que ela efetiva o conhecimento, uma efetivação que é inseparável de uma produção, de uma criação do próprio estudante, como vimos no processo de aprendizado de Amiro, em O corredor. Tal princípio em que a criança é criadora do conhecimento está longe de uma funcionalidade para o conhecimento, uma vez que pertence ao estudante os modos de mobilizar desejos, esperanças e sentimentos nas combinações que ele executa. Ao mesmo tempo, coloca grande aposta e responsabilidade no estudante, uma vez que ele se torna também responsável pelo seu processo de aprendizado. O problema da educação é manter o conhecimento vivo e uma das formas para isso é o não isolamento dos saberes e a intensa atividade associativa. O conhecimento é necessariamente uma dispersão. Montagem e produção de combinações frescas eram ideias que nos mobilizavam, como se em cada lugar que o cinema encontrasse com a escola ele ajudasse alunos e professores a entrarem um uma produção de conhecimento que seria tanto mais potente quanto mais ela chamasse para perto de si o que não lhe pertencia, o que estava do lado de fora da escola, o que fosse passível de ser misturado com o que a escola já conhecia. Um dos dispositivos que trabalhamos em nosso material de apoio (MIGLIORIN ET AL.: 2014) aos professores nos foi proposto pelo cineasta Claudio Pazienza quando esteve no Rio de Janeiro. Trata-se de um filme-haikai. Um haikai é uma forma de poesia japonesa desenvolvida no século XVII, formada por três versos e com grande ênfase na montagem entre as imagens e ações, como nesse poema de Matsuo Bashô (1644-1694)29:

29 Curiosamente Murray Schefer propõe em uma de suas aulas que os haikais sejam usados para improvisações em músicas e corais, permitindo que os estudantes experimentem ações de texturas e contornos. 

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casca oca a cigarra cantou-se toda

Neste dispositivo filme-haikai30 orientamos os trabalhos da seguinte maneira: “O professor/mediador apresenta uma série de haikais para os estudantes ou pede que cada estudante pesquise a forma haikai em casa e traga alguns poemas para a escola. Escolhido o poema, em grupo ou individualmente, os estudantes fazem três planos: cada um associado a um verso/linha do haikai. Os planos devem ser feitos sem som – de preferência fixos – e montados em ordem. Antes da filmagem, os planos devem ser discutidos por toda a turma. Na montagem os três planos são montados um após o outro e depois do terceiro plano o haikai aparece escrito na tela”. Como se pode ver, nesse dispositivo que engajava a montagem, as regras estavam dadas, mas a abertura era enorme. No início do século, Eisenstein se apropriou da montagem dos haikai para refletir sobre a concisão e a possibilidade do cinema exprimir conceitos e ideias através de uma alta “qualidade emocional”. “São os leitores que tornam a imperfeição do haikai uma perfeição artística” (YONE NOGUCHI: 1992 p. 79). Depois do encontro com Pazienza, incorporamos os filmes-haikai ao material que estávamos preparando. Esse dispositivo sintetiza nossas propostas com a montagem e a associação de ideias, com a vantagem desta proposta ter grande simplicidade de meios – bastando, por exemplo, uma montagem feita na própria câmera. Os filmes-haikai nos permitiam entrar na montagem não como uma técnica a produzir transparência nas narrativas cinematográficas, mas como um problema mais amplo, ligado ao modo mesmo de conhecermos e produzirmos conhecimento com a montagem. De alguma maneira os filmes-haikai metaforizavam a própria forma do conhecimento se fazer. Se em vários exercícios propomos aos estudantes uma experiência de um conhecimento mediado por opções estéticas; 30 Ver em anexo p. 218 

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definindo o quadro, o ritmo e os movimentos, acrescentávamos uma camada fundamental com essa proposta; a ideia de que o conhecimento sobre um evento, sobre um território ou pessoa, não é restrito a uma imagem, mas pode incorporar a imaginação e a poesia que são demandas na aproximação entre imagens. Como escreveu Didi-Huberman, montar é “colocar o múltiplo em movimento, nada isolar, fazer surgir os hiatos e as analogias, as indeterminações e as sobredeterminações da obra (DIDI-HUBERMAN: 2003, p. 151). A aposta de Didi-Huberman é que a montagem não opera por síntese, não opera por relação de continuidade, de ação, dialética ou de oposição, mas por uma operação em que se estabelece um duplo movimento de abertura para algo não apreendido, ainda não atualizado na imagem mas, ao mesmo tempo, para um conhecimento, sobre o fato, que se atualiza na montagem. Ou seja, é como se cada vez que montássemos dois planos, duas cenas ou dois objetos sobre a mesa, estivéssemos produzindo uma síntese e uma fragmentação. Por um lado, dois ou três planos tendem a aumentar nosso conhecimento sobre um evento, sobre uma pessoa ou objeto, ao mesmo tempo dois planos pedem mais planos, mais imagens, como se uma abertura que complexificasse o objeto não parasse de se produzir. Como escreveu Godard: “Não há imagem, só há imagens. Há uma certa forma de montagem das imagens: quando há duas, há três. Este é o fundamento da aritmética, é o fundamento do cinema” (GODARD: 1998, p. 430). Essas duas que fazem três não produzem uma síntese ou uma fusão, mas um adensamento e uma explosão do sentido, simultaneamente. Na escola, mas não só, trata-se de um grande trabalho para retirarmos a imagem da ditadura da informação, e os trabalhos com montagem fazem bem esse papel. Enquanto a informação trabalha apenas para si mesma, a memória e a criação permitem a dimensão excessiva de qualquer objeto ou evento. Montar para tentar não opera por “limpeza do real”, como escreveu Jean-Claude Bernardet (2003) sobre o documentário sociológico, ou por homogeneização dos processos significantes, sejam eles da ficção ou do documen-

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tário. Nesses sentidos, a montagem tem não somente a possibilidade de narrar e produzir sentido, mas de deixar buracos e excessos onde o sentido não está completamente organizado. No caso dos filmes-haikais, elementos retirados do cotidiano, como imagens documentais, são sobrepostas, montadas e imediatamente poetizadas. Como diz Rancière sobre uma obra de ficção, trata-se de: uma operação artística que constitui um sistema de ações representadas, formas de junção/montagem/assemblage, de signos que se respondem. Um documentário não é o contrário de um filme de ficção, porque ele nos mostra imagens tomadas na realidade cotidiana ou documentos de arquivos sobre eventos atestados no lugar de utilizar atores para interpretar uma história inventada. Ele não opõe o princípio do real à invenção ficcional. Simplesmente, para ele o real não é um efeito a produzir, mas um dado a compreender (RANCIÈRE: 2001, p. 203).

E, como sabemos, para compreender é preciso montar. No caso dos dispositivos com montagem, o poético e o documental aparecem com frequência imbricados, sendo difícil dizer onde um começa e outro acaba. Com a montagem, explicita-se que o visível e o audível não devem ser reduzidos ao dizível, sobretudo quando somos atravessados por um sistema midiático que tenta organizar os grandes dizíveis do país. Nesse sistema, tudo que não entra na máquina interpretativa – que já está pronta antes de qualquer imagem – é descartável, sem sentido, incompreensível, inócuo. Nessa demanda por uma hipertrofia informacional, como se toda imagem fosse uma mensagem ou um discurso, apenas o espectador receptor é possível. Se informação fosse suficiente, bastava avisar estudantes sobre a perversidade dos preconceitos, bullyings e racismos e informar sobre a necessidade de uma ampla formação humanística e científica. Estava resolvido. Felizmente os processos intelectuais e subjetivos são bem mais complexos.

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De certa maneira, pensávamos os filme-haikai como uma entrada na montagem do cinema e sua potência significante e não como um algo a ser decodificado pelo mestre. Destruir um haikai é simples, basta explicar o que ele quer dizer, da mesma forma a leitura de uma imagem em sala de aula é o próprio ato criador, tornando explícito que a imagem é sempre mais e menos do que podemos dizer sobre ela. Transformar a imagem unicamente em texto, achando que deciframos suas mensagens e suas “reais intenções” é um ato no limite do iconoclasmo em que perdemos o essencial da relação, ou seja, a experiência e o efeito que pode ter a arte sobre nós. Eis um papel altamente desafiador para os professores: não ser o que explica o que é a imagem ou que papel ela deve ter para o aluno, mas criar a cena para que ela possa ser pensada, sentida, interrogada, montada. Por vezes, falar sobre uma imagem é trazer novas imagens que permitam combinações frescas. Quando há duas, há três, por isso, o efeito e o resultado de uma imagem em sala de aula nunca é conhecido de antemão. A combinação não roteirizada é parte do processo de conhecimento. A experiência dos estudantes com o cinema se faz na própria ação de observar, discutir, montar e produzir imagens e não porque aquelas imagens serão lidas de uma maneira particular ou porque levarão os estudantes para outro lugar. Produção Logo depois da reunião de Brasília nos vimos diante de um gigantesco desafio: colocar de pé, pela UFF, uma produção nacional, em todos os estados, com mais de uma dezena de estagiários e pelo menos 40 pessoas contratadas. Subitamente, é como se nos propuséssemos a montar uma produtora de médio porte dentro da universidade, como parte necessária para um projeto de extensão e pesquisa. Tudo isso com as amarras do serviço público e com uma burocracia que parte da mais constrangedora desconfiança sobre todos. Por uma feliz coincidência, Alexandre Guerreiro, ex-aluno

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da UFF e mestre também pela mesma instituição, ocupava uma vaga de professor substituto em roteiro no Departamento de Cinema. Alexandre vinha de largas experiências em curadorias e produções de mostras, além de ter ministrado muitas oficinas de cinema e educação pelo Cineduc. As características do Inventar eram singulares, mas, para nossa sorte, ele juntou-se ao grupo, tornando-se produtor do Inventar e personagem central de todo o projeto. Saímos da reunião de Brasília com a enorme tarefa de produzir o material pedagógico que iria para escolas e com o qual professores e mediadores trabalhariam. Um material que fosse repleto de dispositivos, referências e propostas que pudessem auxiliar todo e qualquer professor que tivesse interesse em trabalhar com o cinema na escola. Além do material, tratava-se de desenvolvermos um projeto pedagógico que incluía a formação de mediadores e professores. Convidamos então a Clarissa Nanchery, que havia terminado um mestrado na área pela USP e que tinha uma boa experiência em oficinas de cinema. Clarissa teve ainda um papel central no curso que o grupo da UFRJ, coordenado pela Adriana Fresquet, ofereceu a professores da rede pública para que esses pudessem fazer escolas de cinema dentro de suas escolas. Desde a primeira hora trabalhamos também com o cineasta e montador Fred Benevides, que havia sido meu orientando no mestrado da UFF. Entre outras coisas, Fred foi responsável por orientar os alunos da UFF na produção de vinhetas, material para o site do projeto e na produção do filme Pelas janelas (2014), um belo documentário sobre o Inventar realizado pelos então alunos de graduação: Carol Perdigão, Guilherme Farkas, Sofia Maldonado e Will Domingos. O grupo ia assim se completando com um produtor, uma coordenadora pedagógica e um coordenador técnico. Esse grupo se somo àquele que havia inicialmente formulado o projeto: Issac Pipano, Luiz Garcia e eu mesmo. Nesses anos como professor de cinema, sempre me impressionou a facilidade como a função do produtor é vista como algo pouco criativo e burocrático, fazendo com que muitos dos melho-

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res alunos se distanciem da função. Porém, em um filme ou em projeto como o Inventar, a função do produtor é central não apenas para que o projeto aconteça, ela é central para as feições do projeto, para a forma como as pessoas se engajarão no trabalho e para a forma como cada um terá o seu tempo ocupado. Em outras palavras, a produção inventa um mundo em que as pessoas irão se engajar ou não, a produção inventa a forma como as ideias irão circular, as ordens e desordens necessárias para a criação coletiva e para a organização de tantas pessoas, em tantos lugares, trabalhando juntas. A produção é um inventor de ambientes, modulador de humores e esforços, disparador de forças de trabalho físicas e intelectuais, mobilizador de redes humanas e não-humanas. Se essa definição pode parecer um pouco abstrata, poderíamos dizer de outra forma: se a produção não permitir uma certa circulação do desejo no trabalho, um projeto como esse não acontece. No caso do Inventar, muitas vezes tivemos que levar a sério nossos princípios e colocar a carroça na frente dos bois, de outra forma seria difícil manter o ritmo e a intensidade do pequeno mundo que íamos inventando. É certo que esses comentários não bastam para desfazer a noção tão limitadora do que é produzir, mas com o tempo vivenciamos o imenso papel inventivo que tem a produção quando estamos em uma atividade de construção coletiva, atuando em todos os estados, permitindo muita autonomia a cada pessoa e, ao mesmo tempo, sendo responsáveis pelo trabalho que estava em curso. Na universidade isso é ainda mais intenso; se não houver desejo entre o trabalho braçal e risos, o projeto desmorona. Aos poucos o laboratório Kumã ia se transformando em uma animada concentração de trabalho e desejo – coisas que não deveriam estar separadas. Educação para o futuro No desenvolvimento de nossa metodologia, encontrávamos a possibilidade de colocar na mesa de trabalho muito do que conhe-

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cíamos e do que estávamos aprendendo para construir o Inventar. Nos perguntávamos, entre outras coisas, o que os alunos têm que aprender efetivamente com o projeto. Talvez nada, era a resposta radical, mas antes disso, com os dispositivos queríamos pensar em exercícios que nos livrassem da abstração pedagógica que pode ser resumida com essa frase: “É importante aprender isso porque lá na frente...”. Quantas vezes nos deparamos com professores, livros ou nós mesmos repetindo essa formulação para convencer filhos e alunos a aprender uma reação química, uma problema de álgebra ou o objeto indireto? Whitehead nos ajudava novamente. Preocupado em pensar um ritmo para o aprendizado que não fosse pautado por um simples esquadrinhamento do tempo, como se o aprendizado estivesse associado à idade ou à passagem normatizada de séries, Whitehead (1967) define três estágios para o aprendizado; romance, precisão e generalização. 1) Romance: momento do entusiasmo, das descobertas randômicas e conexões pouco precisas. 2) Precisão: a extensão das relações são subordinadas à precisão das formulações. É o momento da gramática – da língua, da ciência – mas não é possível um momento de precisão sem o romance. Se a precisão antecede a conexão, o aprendizado vira um acúmulo artificial e inútil, diz Whitehead. Não há objeto direto sem o entusiasmo pelo lugar onde ele pode nos levar. 3) Generalização: hegelianamente, o terceiro estágio de Whitehead tem um caráter sintético. Retorna-se ao romance com técnica, gramáticas e ideias organizadas e classificadas. A educação, para se manter viva, diz Whitehead, não pode interromper esse círculo: romance, precisão, generalização. Esse ritmo, pautado por uma certa dialética entre ordem e desordem, não pode ser ordenado fora do processo do conhecimento. No artigo The Rhythm of Education, Whitehead coloca que não é verdade que as matérias mais fáceis devem anteceder as mais difíceis. Algumas mais difíceis devem vir antes porque elas são essenciais para a vida, claro. O inglês tem uma escrita divertida e nessa palestra ele dá como exemplo o aprendizado infantil

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que precisa, na primeira infância, associar sentidos com sons, para aprender a falar. Uma operação altamente complexa. Logo depois, para aprender a escrever, trata-se de associar sons com formas. O que é a dificuldade de um texto de Guimarães Rosa perto disso?, poderíamos perguntar. Ordenar a educação do mais fácil ao mais difícil, como um princípio, faz sentido se ela é artificialmente separada dos dois elementos centrais para Whitehead: a aplicabilidade e a lógica das combinações frescas. Uma criança é capaz de falar por conta da aplicabilidade evidente que seu esforço e conhecimento recebe, por outro lado, uma tarefa muito mais simples, uma equação de álgebra ou a conjugação de um verbo pode parecer uma tarefa absurdamente complexa se isolada de outros processos de aprendizado do estudante. Na etapa do romance, abre-se uma disponibilidade para tarefas complexas, como aprender a falar, por exemplo. Essa parece ser uma das grandes dificuldades para os professores. Nossos alunos nunca estão no mesmo ritmo e os três estágios fazem parte de uma mesma turma, quiçá de uma mesma pessoa. A metodologia que estávamos a construir se apresentava inicialmente como grande estímulo ao romance com a diferença, através de todas as descobertas que os dispositivos podiam proporcionar para professores e alunos, ao mesmo tempo em que se propunha a fazer uma passagem para momentos de precisão, em que os alunos trabalhariam com formulações mais complexas, roteiros para um filme-carta, noções de montagem e mesmo de terminologias mais técnicas, presentes nos planos comentados e nos glossários que dispúnhamos para os professores. Mediadores Com uma equipe de base formada, iniciamos talvez a mais decisiva das tarefas que a coordenação do Inventar poderia ter. Precisávamos escolher 27 mediadores, um em cada estado do país. Sabíamos que esses mediadores teriam um papel decisivo.

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O trabalho deles demandava uma ampla gama de capacidades. Primeiramente eles teriam que divulgar e mobilizar as escolas a participarem do projeto. Nos casos onde não houve engajamento das secretarias de educação, isso significava ir de escola em escola, encontrar a direção, deixar o material de divulgação e explicar o projeto muitas vezes. A participação da UFF e de uma Secretaria da Presidência da República dava uma forte credibilidade ao projeto, o que não tirava a necessidade de longas caminhadas por parte dos mediadores. Depois de selecionadas as escolas, eles coordenariam uma oficina de 20 horas para os professores que aderiram ao projeto, no total de vinte, dez professores por escola. Finalizada essa etapa, começava o trabalho na escola. Cada mediador iria quinzenalmente a cada uma das dez escolas, ajudando os professores e, em diversos casos, sendo eles mesmo os oficineiros/professores. Se o mediador fosse ágil, engajado, hábil na relação com as crianças e professores e compartilhasse conosco um certo universo ético-estético, o projeto estava ganho. Se isso não acontecesse, teríamos mais trabalho e, no limite, fracassaríamos em alguns lugares. Nos organizamos primeiramente mobilizando nossas próprias redes, buscando pessoas em todos os estados, pedindo dicas para os conhecidos do universo do cinema. Foi interessante perceber como mais uma vez tínhamos uma prova evidente de que em todo lugar se faz cinema. Rapidamente tínhamos muitos nomes na mão e, ao percebermos que não seria tão difícil assim montarmos uma equipe forte, decidimos que em vez de chamarmos e conversarmos com as pessoas que nos iam sendo indicadas, faríamos uma chamada pública, em todo o país, para podermos ampliar as possibilidades e também para podermos levar o projeto para fora das capitais. A escolha dos mediadores se tornava então ainda mais decisiva, uma vez que não escolheríamos os municípios a priori, mas partíamos da escolha do mediador. Foi isso que nos possibilitou, por exemplo, estar em municípios como Delmiro Gouvêa em Alagoas e Bagé, no Rio Grande do Sul, municípios aos quais jamais chegaríamos se não tivéssemos feito a chamada pública.

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O que esperávamos do mediador? Esperávamos uma pessoa com noção de cinema e audiovisual, com conhecimentos básicos de montagem e fotografia. Esperávamos alguém que de alguma maneira compartilhasse conosco alguns princípios éticos e preocupações com os direitos humanos e com a diferença. Idealmente, esperávamos também pessoas que tivessem alguma vivência em ambientes educacionais, que tivessem dado aula ou ministrado oficinas. Nossos parâmetros para a escolha dos mediadores eram frequentemente confrontados com situações que não prevíamos. Em Delmiro Gouvêa, por exemplo, o professor universitário Marcos Sobral, se inscreveu no projeto como orientador de cinco outras pessoas que, estas sim, fariam o cotidiano nas escolas. Uma situação inusitada que nos demandou uma forte presença da coordenadora da região, Mariana Porto e da coordenação pedagógica na formação de todos, mas que permitiu uma maior capilaridade para o projeto e uma intensa formação para as jovens universitárias de Delmiro Gouvêa. Em Porto Velho, por exemplo, tivemos que subitamente mudar o primeiro mediador escolhido e passamos a trabalhar com Christyann Ritse, um rapaz bastante jovem, sem experiência com educação, mas absolutamente engajado com o projeto e com experiência com audiovisual. De alguma maneira, cada município, cada mediador trazia um universo particular que ia sendo incorporado ao projeto. Na Bahia, optamos por uma pessoa já conhecida, Gláucia Soares – ex-aluna da UFF, que, morando em Rio de Contas, se propunha a ir a outros municípios da região, uma vez que em Rio de Contas não haveria dez escolas para compor o projeto. No estado do Rio de Janeiro optamos por um aluno da graduação, Eduardo Brandão, que já havia trabalhado conosco em Nova Iguaçu, o que nos permitiu acompanhar de perto o trabalho de um mediador e, ao mesmo tempo, pensar as passagens que podíamos fazer entre essa prática e as aulas que ministrávamos na licenciatura de cinema. Se os mediadores já tinham tanto do que esperávamos deles – o cinema, o engajamento, a educação – o que seria a for-

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mação que estávamos imaginando em Niterói? Menos que uma formação, foi uma semana de compartilhamento. Desejávamos conhecer pessoalmente aqueles que até ali conhecíamos apenas por e-mail e Skype, desejávamos apresentar o lugar onde trabalhávamos: o IACS e o Kumã falavam muito da nossa forma de trabalhar, sempre com alunos, em uma atmosfera leve e com frequentes cervejas no final do dia. Desejávamos também compartilhar o universo de onde vínhamos, um pouco do que tínhamos lido para chegar a construir o Inventar e de nossas apostas na relação entre cinema e direitos humanos. De alguma maneira, era o momento de compartilharmos nossas apostas na igualdade, experiência e emancipação. Precisávamos ainda apresentar nossa metodologia, nossos sistemas de acompanhamento dos trabalhos e os equipamentos que os mediadores usariam nas escolas. Finalmente, precisávamos compartilhar questões mais ligadas à organização de pessoal, como pagamentos, prazos etc. Além disso, tivemos a participação nesses dias de formação em Niterói de pessoas que nos ajudavam na pedagogia e na elaboração do projeto. Patrícia Barcelos fez uma palestra sobre direitos humanos, dando um amplo quadro da atuação e militância na área. Uma fala que nos dava a dimensão da questão com a qual estávamos nos envolvendo. Adriana Fresquet falou de sua larga experiência com professores e alunos e mostrou trabalhos em vídeo feitos por crianças de escolas do Rio, mobilizando os mediadores para as capacidades das crianças, com resultados que explicitavam o engajamento de alunos e professores com o cinema e com o que filmavam. Eliany Salvatierra, professora da UFF, ministrou uma oficina que ajudava os mediadores a organizarem seus roteiros de aula e a mobilizar as turmas com exercícios de concentração, aquecimento e integração de grupo. João Luiz Leocadio narrou um pouco da relação do Departamento de Cinema com a educação, uma fala importante que contextualizava o que fazíamos ali. E o professor João Luiz Vieira ministrou uma palestra apresentando minúcias da análise fílmica trabalhando uma sequência de

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Rastros de ódio (1956), de John Ford. Uma palestra que conectava todos ali com o melhor dos elementos essenciais do nosso trabalho com o cinema. Esses dias de formação foram ainda fundamentais por dois motivos. Pudemos experimentar com os mediadores alguns dos dispositivos que estávamos elaborando. A partir de intensas conversas sobre os dispositivos e da realização de alguns deles, pudemos chegar, depois deste encontro em Niterói, ao formato final do material de apoio que disponibilizamos para os professores com 26 propostas de exercícios, incluindo a proposta de elaboração de um filme-carta31. Essa etapa nos pareceu fundamental. Para a formação, não tínhamos ainda o material que os mediadores levariam para as escolas pronto e, apesar de ser um material bastante versátil em que cada professor ou mediador pudesse usar como bem quisesse, foi com os mediadores que pudemos fazer os últimos ajustes; sentir a necessidade de maiores explicações em alguns dos dispositivos e a edição de redundâncias em outros etc. Este processo, tanto da discussão dos dispositivos quanto da realização de alguns deles explicitava a autonomia que os mediadores teriam em seus trabalhos e a confiança que se colocava como ponto de partida para o projeto que ali iniciávamos juntos. Disciplina A geração dos professores que hoje está nas escolas foi formada com uma forte crítica à disciplina. Disciplina aqui entendida em seu sentido amplo, como uma forma de controle de corpos e mentes através de diversas técnicas de visibilidade, de testes e punições constantes e mínimas. Os corpos poderiam ser modelados por essas técnicas tornando-se capazes de atender às necessidades do estado, da economia ou, na contemporaneidade, do sucesso pessoal. “O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar a tudo ver permanentemente” (FOUCAULT: 2003, 31 Ver anexo. 

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p. 146). Esta eficiência disciplinar, Foucault encontra no Panóptico de Jeremy Bentham, longamente analisado e tratado como paradigma da disciplina em Vigiar e punir. Um Panóptico funciona produzindo indivíduos a partir do modo que inventa uma visibilidade; aparelho disciplinar exaustivo, sem fora ou vazio. Como sabemos, os princípios do Panóptico serão distribuídos nas mais diversas instituições disciplinares; exército, hospitais, fábricas, escolas etc. Se estivéssemos no século XVI, em uma sala de aula, nos contou certa vez Foucault, não estaríamos sentados em frente a um mestre, mas em pé em torno dele. O professor fazia atendimentos individuais enquanto os outros alunos esperavam juntos, provocando movimentos nada disciplinados. Assim, as instituições disciplinares guardarão esta função de organização dos corpos em torno de um objetivo que lhes é exterior, uma atenção voltada ao corpo “que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam” (FOUCAULT: 2003, p. 117). Sem fora e sem lacuna, o poder se centra no “corpo como máquina”; modelando-o e adestrando-o, incrementando as possibilidades dos corpos, ampliando sua utilidade e, ao mesmo tempo, sua docilidade. As instituições disciplinares tratam de exercer um papel delimitador dos gestos possíveis em um determinado sistema, são operadoras de inclusão e exclusão, normalidade e anormalidade e, tendo a vigilância como operador pedagógico, não separam a função do homem-corpo de sua função econômica. Hoje, a sobreposição das técnicas disciplinares por técnicas de controle é evidente, mas, das fábricas chinesas aos frigoríficos brasileiros, passando pelas escolas inglesas, a necessidade da disciplina permanece inalterada. O exemplo de certas escolas da Inglaterra é flagrante: há algum tempo elas estão concentradas nos resultados obtidos pelos alunos em avaliações nacionais feitas entre 14 e 16 anos, os GCSEs. Saber se uma escola é “boa” ou não é bem fácil: 1) qual a percentagem de alunos que consegue cinco notas entre A e C,

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incluindo inglês e matemática. 2) qual a percentagem de alunos que consegue cinco notas A, incluindo inglês e matemática. Tudo se resume a isso. As notas que os alunos obtêm são fundamentais para que eles possam cursar os próximos dois anos em escolas de alto nível, o que garantirá a entrada em universidades de primeira linha. A partir dos 12 anos, os alunos já estão nessa narrativa que os levará à universidade. Essa concentração tem produzido escolas que trazem uma enorme crença na disciplina e na especialização dos alunos. Para as escolas essa crença é simples: os alunos estudam e não discutem. Não tem bagunça nem uniforme fora do lugar. As tradicionais técnicas disciplinares são colocadas em prática para produzir a necessária docilidade dos jovens. Mas o argumento que organiza a disciplina atual se associa ao neoliberalismo que os governos trabalhistas e conservadores pós-Thatcher não abandonaram. O argumento é simples: a disciplina é necessária para que cada um possa desenvolver ao máximo as suas potencialidades e conquistar um lugar nesse mundo competitivo. Velhas técnicas, agora a serviço de uma produção subjetiva ligada ao capitalismo contemporâneo. No Brasil, a discussão sobre disciplina nas escolas parece ser pautada por uma dicotomia em que a disciplina se opõe a arbitrariedades, bagunças, desrespeitos etc. Seria necessário pensar o papel do professor e da escola para problematizarmos essa falsa dicotomia. No início do século XX, bem antes de Foucault, John Dewey escreve diversos artigos em que é bastante crítico à disciplina, com especial atenção ao espaço escolar. Ele chama atenção para como a organização militar das salas de aula é uma forma de restrição da liberdade intelectual e também para como a disciplina produz uma uniformidade artificial excluindo desejos, pensamentos e imaginações; elementos absolutamente mobilizadores para o conhecimento. Como escreveu Adorno, “o valor de um pensamento é medido pela distância de sua continuidade com o que é familiar” (ADORNO: 2001, p. 72). Entretanto, não há produção de

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conhecimento sem reconstrução, sem reordenamento desses mesmos impulsos primeiros. Lembremos das três etapas colocadas por Whitehead, leitor de Dewey, para falar do aprendizado – Romance, precisão, generalização. Trata-se de passagens constantes entre ordem e caos, entre espontaneidade, dispersão e foco. Ou, como preferiria Félix Guattari, “A ordem habita a desordem, a desordem habita a ordem, e é apenas dessa dupla imanência que pode nascer a verdadeira criação” (GUATTARI: 1992, p. 5). Até aí já temos um gigantesco desafio para os professores. Claro, seria bem mais fácil se a dispersão e a liberdade de movimentos não fizesse parte da escola. Se todos entrassem enfileirados na hora certa, se não olhassem para o lado e se não ficassem a elocubrar soluções que não são as que estão nos livros. O professor poderia se imaginar participando de uma linha reta de transmissão entre o seu saber e o que o aluno deve aprender. Mas essa geração pós-68 sabe que não é assim que o conhecimento se produz, sobretudo com a facilidade de acesso à informação que hoje faz parte do cotidiano da maioria dos jovens. Dewey, em um outro artigo de 1899, falava que com a industrialização ocorria uma mudança forte nas famílias e comunidades. Em uma casa do século anterior havia sempre muito a fazer: cortar a lenha, fazer o fogo, cuidar dos animais, e que agora – final do XIX – bastaria apertar o interruptor para ter energia elétrica. O que precisa ser feito, para a casa e para a comunidade? Naquela época estava claro. E hoje? Quando olhamos para o mundo e para a nossa comunidade, o que está por fazer, onde é necessário colocarmos a nossa força de trabalho, nossa capacidade intelectual? Qual o real motivo do nosso esforço? Voltando às escolas inglesas, pautadas pela concorrência entre alunos e escolas e focados nas cinco notas. A disciplina que essas escolas inventam corre o risco de perder toda a conexão com essas perguntas feitas por Dewey, para se limitar aos sucessos individuais e da própria escola. Por princípio, a disciplina torna a comunidade irrelevante, uma vez que aquilo que constitui o ba-

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ckground dos alunos deve ser deixado de lado para que todos sigam as mesmas regras da escola, em total autonomia em relação ao local e às individualidades. É também curioso que as escolas públicas mais disciplinadoras, no caso da Inglaterra, estejam justamente em áreas com grande quantidade de estrangeiros. Como as escolas estão em regiões com alunos que tradicionalmente têm problemas disciplinares, para resolvê-los, optam por excluir a comunidade, operando uma verdadeira desqualificação da comunidade no processo educativo. A disciplina parte da ausência de porosidade entre a escola e a comunidade. Quando menos você trouxer de casa, melhor. Para isso, os dias são longos e as tarefas para casa intensas, mesmo nos finais de semana e nas férias. A disciplina parte assim de um princípio igualitário: todos são iguais e terão as mesmas oportunidades, mas absolutamente inigualitário, uma vez que o “bom” e o “certo” são conhecidos pela escola e nenhuma porosidade em relação ao mundo das crianças deve fazer parte do mundo escolar32. Para finalizar – e fazer do trabalho do professor algo ainda mais complexo –, parece que a pergunta que precisamos exercitar quando nos colocamos críticos à disciplina é: se o aluno não está sob a égide da ordenação total imposta pelas regras disciplinares que pedem que a individualidade e a comunidade desapareçam, quais são as forças atuando sobre ele? Ser crítico à disciplina parece demandar um mapeamento constante, por professores e pelos próprios alunos, das conexões, dispersões e focos que atuam na construção ou na estagnação do conhecimento, um conhecimento que, acreditamos, se produz em um intrincado universo em que os processos são simultaneamente individuais e coletivos. Se quisermos voltar à questão dos direitos humanos, poderíamos dizer que o risco da disciplina e da centralidade discursiva verticalmente organizada é acreditar que a transformação de 32 Em um texto de 1980, o sociólogo Stuart Hall aponta para a Inglaterra como uma sociedade que não para de reforçar os dispositivos disciplinares após os anos 1960.

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um indivíduo isolado da comunidade constitui uma mudança do todo. No momento que criticamos, como tantos na modernidade, a universalidade epistemológica à qual os indivíduos deveriam se submeter entrando em processos educacionais que os levassem à compreensão racional e objetiva da existência da diferença, não estamos, entretanto, negando a existência nem da transformação do todo, nem de uma verdade que se imponha em relação aos direitos humanos. Pelo contrário, estamos dizendo da necessidade de uma construção comum, processual e horizontal. Os direitos humanos não passam exclusivamente por opções individuais – não se trata de um problema privado –, mas por uma verdade que se constrói no comum, na experiência e nos processos subjetivos em que a diferença participa dos processos. Funcionalidade da escola e captura pós-disciplinar Organizar a vida das crianças é a chave que move os esforços disciplinares e as formas mais contemporâneas de controle do tempo e da atenção. Poucos espaços hoje vivem tão intensamente como a escola a tensão entre a submissão utilitária dos corpos – que os torna produtivos para fins pré-estabelecidos – e a modulação hiperconectiva de corpos livres – e sempre disponíveis ao trânsito e à conexão em redes – que não cessam de refazer as experiência do tempo, do ritmo e do pertencimento a um certo espaço e comunidade. Como colocou Paula Sibilia: “em vez da prisão – com suas grades, seus cadeados, suas normas estritas e punições severas –, teríamos como modelo universal, cada vez mais, uma rede eletrônica aberta e sem fios, à qual cada um se conecta por livre e espontânea vontade: apenas onde, quando e se quiser. Por isso, ali onde operavam as normas ríspidas do confinamento para educar os cidadãos oitocentistas com a força do sangue, do suor e da palavra, agora se estendem as tramas atraentes da conexão, que opera de outro modo e com objetivos diferentes: enfeitiçando os consumidores contemporâneos com

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suas incontáveis delícias transmidiáticas” (SIBÍLIA: 2008, p. 175). Essas delícias, “estímulos contínuos para o novo” (CRARY: 2014, p. 40), indissociáveis da lógica de circulação e obsolescência do capitalismo, não chegam sem serem problematizadas na escola. Entre pais, professores e alunos, todos se perguntam o que podem essas redes que tornam os muros da escola tão porosos. Alguns exemplos vão desde a proibição de celulares em escolas, como aconteceu no Distrito Federal em 2008, inclusive para professores, à tentativa de incorporar esses dispositivos em práticas pedagógicas. Convivem assim, no mesmo mundo, a modulação milimétrica do controle imbricado ao entretenimento, como em dispositivos de grande demanda da atenção, como o Snapchat – em que as trocas de imagens são feitas apenas com fotos tiradas no momento de serem enviadas e com tempo restrito de visualização, no máximo 10 segundos – e constantes demandas disciplinares. Os mesmos pais que não largam o celular nas refeições aceitam que o celular seja proibido na escola; os mesmos adultos que não desejam horas fixas de trabalho, aceitam o confinamento cada vez maior de seus filhos “para que eles saiam do computador” ou “para não ficarem à toa”, os mesmos trabalhadores que questionam as hierarquias demandam autoridade dos professores, os mesmos pais que sentem na pele as avaliações continuadas em escritórios, empresas ou fast-foods, pedem que seus filhos sejam avaliados o tempo todo na escola; “só assim podemos ajudá-los”. Sem estar isolada dessas tensões, é na escola que a sobreposição de formas de poder disciplinares e de controle aparece de maneira intensa. É esse espaço de caos inventivo, não organizado, sem futuro predefinido que parece ter perdido o sentido em uma escola cada vez mais pautada pela funcionalidade que coloca o futuro econômico dos indivíduos em primeiro lugar. A naturalidade com que no país as escolas privadas se tornaram o padrão do que podemos esperar de uma boa escola, transformou a educação em um investimento que as famílias fazem em seus filhos para que no

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futuro eles possam dar o esperado retorno. A educação se tornou uma mercadoria de altíssimo valor com compradores frequentemente dispostos a utilizar a maior parte de seus ganhos para comprar o futuro de um filho na universidade, um salário adequado na vida adulta. “Nós compramos educação para melhor nos vender”, escreveu Christian Laval (LAVAL: 2012 p. 146). Essa organização centrada no sucesso individual, no “capital humano” (GARY BECKER: 2009) e na empregabilidade, coloca a educação a serviço do emprego, do mundo já constituído do trabalho. Não é por outro motivo que nas últimas décadas se criaram escolas bilíngues para brasileiros33 e aulas de empreendedorismo para as crianças. Como explica o consultor do Sebrae São Paulo: “Claro que você não vai pegar um aluno de sete anos que nem sabe matemática direito e ensiná-lo a fazer fluxo de caixa, mas desde cedo é possível, e não só possível, desejável, que esse aluno comece a desenvolver as habilidades empreendedoras”, afirmou Bruno Caetano34. Preparar jovens e crianças para o futuro virou sinônimo de preparar para o trabalho, como expressa com todas as letras a matéria do Universia, site especializado em educação: “Muitos professores [...] esquecem-se da função básica da escola que é preparar os alunos para o futuro. Pensando nisso, é importante preparar os alunos para o mercado de trabalho35”. Novamente, o nome que a prefeitura do Rio de Janeiro dá ao seu projeto de expansão escolar é bastante apropriado, Escolas do Amanhã. A escola se organiza assim como um investimento que no futuro dará o retorno, mas, como o investimento é individual, não é para o vizinho ou para a comunidade que o retorno deverá se fazer, mas para o próprio indivíduo. O futuro, não mais da sociedade ou do planeta, é mensurável pelos ganhos futuros permitidos pelo investimento. A escola se tornou um problema privado em que os pais discutem sem constrangimento seus pequenos casos

33 Centro Educacional Miraflores, no Rio de Janeiro, por exemplo. 34 Disponível em: . 35 Disponível em: . 

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particulares, os sucessos e fracassos dos filhos, sempre movidos pelos seus direitos de consumidores, em infindáveis reuniões escolares. A hiperfuncionalidade da escola desloca para o mundo do trabalho e do capital a organização do presente da educação. Tal deslocamento é parte de um círculo vicioso em que a falta de investimentos adequados em educação pode levar o futuro adulto a ter um emprego com baixos salários e sem dinheiro para pagar a escola dos filhos, o que é o retrato do fracasso em um mundo neoliberal. A desigualdade da escola e a privatização funcionalista são partes fundamentais da opressão que se exerce no mundo do trabalho sobre os adultos. Para garantir a manutenção da ordem em curso, o risco do desemprego precisa começar bem antes de as crianças entrarem no mercado de trabalho. O desemprego para quem ainda não precisa de um emprego é um importante opressor subjetivo na escola hoje. Como coloca Maurízio Lazzarato: “Se o trabalho acabou por se tornar a matriz das sociedades disciplinares por ocasião de seu declínio (fordismo), o emprego constituiu uma das principais formas de regulação das sociedades de controle” (LAZZARATO: 2004, p. 93). Se a perda do emprego não submeter o sujeito ao poder, as energias que se liberarão dos indivíduos tenderão a perturbar as estruturas do capitalismo que dependem da submissão micropolítica. Desde cedo está claro para a criança que o mundo do trabalho não perdoa, que ele deve ser atendido e que devemos nos curvar a ele, sob o risco do desastre pessoal: não educar os filhos nas melhores escolas. Se a escola pública de baixa qualidade serve mal à população, ela funciona bem como um poderoso modulador de processos subjetivos. Perto de cada casa há sempre uma escola precária e barulhenta nos avisando que é para lá que nossos filhos irão caso fracassemos no mundo do trabalho. O fracasso da escola pública é feliz em garantir a pressão da concorrência entre indivíduos forjando um excelente laboratório para o mundo empresarial. O foco no empreendedorismo individual desejado

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por alguns não precisa de aulas específicas, mas de uma constante manutenção do medo. O desemprego e o fracasso é ensinado desde cedo na maior parte das escolas do mundo. Desde cedo a vida de um estudante é pautada pela dívida, uma vez que ele está sempre aquém do que deve fazer e estudar para atender ao sistema que o ameaça constantemente com o pior dos mundos. Não é outra lógica que propõe que para melhorar a escola pública deveríamos adotar práticas liberais, que elas sejam administradas como empresas, com a forte modulação dos salários dos professores, concorrência entre eles, precarização dos contratos, redução de autonomia de ensino, avaliações centradas no sucesso dos alunos no mundo do trabalho e até mesmo captação de recursos por professores e administradores escolares. Nesta lógica, as iniciativas mais igualitárias no mundo neoliberal entendem que, no lugar da universalização da educação não competitiva, é preciso estimular a competição para que mesmo os mais pobres possam competir. A centralidade do sucesso individual em detrimento de um mundo comum é decisiva. Mais do que reunir forças como, de alguma maneira, era a pauta das sociedades disciplinares, o cotidiano das escolas e empresas exige modular os modos de vida liberando a inventividade para que cada um resolva individualmente a dívida que possui em relação ao terror do desemprego e da exclusão. “Invertendo a definição de Marx, poderíamos dizer: o capitalismo não é um modo de produção, mas uma produção de mundo. O capitalismo é uma afetação” (LAZZARATO: 2004, p. 93). O escritor e filósofo francês, André Gorz, não distante, coloca: “Tornando-se a base para a produção de valor fundada na inovação, na comunicação e na improvisação contínuas, o trabalho imaterial tende finalmente a se confundir com um trabalho de produção de si” (GORZ: 2003, p. 20). Ou seja, entre as fronteiras entre o que é inventar-se a si e fomentar o capitalismo se tornam absolutamente tênues. Questão fundamental quando tal lógica neoliberal modula a escola. Na escola, perfaz-se assim o ideal neoliberal, não mais tendo o estado como um mediador das con-

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corrências, mas como um operador central de seu estímulo. Em 2014, por exemplo, o relatório de gestão da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro apresentou seu trabalho para a “melhoria do aprendizado do aluno”. Esse trabalho foi pautado, segundo o documento oficial, nos seguintes valores: “meritocracia, gestão, modernização, eficiência, qualidade e transparência.” Os valores da Secretaria são autoexplicativos. A meritocracia, por exemplo, não é um método de trabalho, mas um valor em si. Para melhorar o trabalho dos professores a proposta é clara: bonificação. Em resumo, a necessária radical atenção que a escola precisa, se deve à forma como hoje ela é: 1) parte de um sistema de exclusão 2) moduladora de processos subjetivos afeitos ao liberalismo excludente. Se os pobres são radicalmente punidos, impossibilitados de ter a escola como promotora de ascensão social, os mais ricos funcionalizam a educação em função do trabalho, excluindo as possibilidades inventivas, criativas e críticas em relação ao mundo que desejamos. Alguns se salvam, mas o mundo... Na verdade, mais do que uma reforma radical da escola, o que está em jogo é uma disputa de mundos. Nesse sentido, talvez fosse importante levarmos a sério o repetido desengajamento dos jovens com a escola e as frequentes manifestações de estudantes que estouram em tantos lugares do mundo ano após ano. A escola não é apenas formadora dos indivíduos que estão com ela diretamente implicados, mas parte de um processo bem mais amplo, que toca ricos e pobres e que participa das modulações dos nossos processos subjetivos, do que desejamos, da forma como investimos nossas energias e engajamos nossas forças. Sem essa abertura, a escola se mantém como uma questão privada, em que cada um tenta resolver o seu problema e com isso aceitamos a opressão que obriga crianças, jovens e adultos a cederem sempre aos poderes em curso: o capital, o Estado, o medo da dívida ou do desemprego.

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Saída pela arte As questões colocadas acima, em relação às ordens disciplinares e aos sistemas de modulação no capitalismo contemporâneo, fazem parte do dia a dia de quem está em contato com as escolas e dos problemas que atravessam decisões cotidianas. Como costumávamos dizer: não se entra em contato com a educação impunemente. Em nosso projeto, estávamos engajados com a presença do cinema nas escolas; entretanto, uma questão importante se colocava quando discutíamos nosso papel. Não queríamos cair na armadilha da “inclusão pela cultura”, como se para o pobre a saída fosse se destacar com o que é “tão seu”, a cultura da favela, o som da periferia, a espontaneidade do corpo: um roteiro para o pobre que parte da separação dos mundos – os ricos cuidam das questões do país e da cidade – e os pobres garantem a diversidade do entretenimento. Não somente essa divisão elimina os pobres como sujeitos atuantes na comunidade, como coloca a arte no lugar do espetáculo consensual. A diferença que nos mobiliza não é uma cena a ser contemplada, mas uma força e uma forma de vida que atravessa o que temos como nosso, o que é comum. Ser tocado pela forma como a escola é responsável pela manutenção dessa estrutura implica em uma constante desnaturalização dos destinos que ela impõe aos pobres, bem como uma presença da arte que é mais uma perturbadora da lógica do espetáculo do que uma saída, apenas, para jovens sem futuro na educação superior e formal. Conviver com essa indignação em relação à forma como a escola é parte de um sistema de manutenção de uma violência de classe foi algo que experimentamos em nosso cotidiano durante o Inventar com a diferença. Nossa experiência com o cinema na escola, entretanto, nunca deixou de lado sua dimensão política, experimentada na micropolítica dos modos de vida e das formas de conexão dos estudantes com o território e com a diferença. Vol-

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taremos a isso, mas, desde já, precisamos deixar claro que seria tolo não trazer em paralelo a essa dimensão micropolítica a constante violência que ataca os pobres e que tem a escola como uma arma que é parte de ordens de classe e macropolíticas que afetam o país como um todo. É nesse sentido que reforçamos que a relação da arte com a educação não pode ser centrada no conteúdo apenas, o que poderia facilmente reforçar relações de classe e suas divisões perniciosas como: cultura de elite e cultura das periferias, arte do centro e baixa cultura etc. Sair desse caminho verticalizado e da ideia de que a saída para a pobreza é a inserção do pobre nas ditas “indústrias criativas” deveria estar em nosso objetivo. O foco na arte como uma saída para a pobreza não é uma saída, mas uma negação da arte e uma reafirmação da pobreza. Prêmios e punições No clássico As origens e o ideal da escola moderna, do espanhol Francisco Ferrer (1908/2013), muitas das marcas do que seria a educação atravessada por princípios anarquistas aparecem. Como aponta Judith Suissa em seu livro, Anarchism and Education, A philosophical perspective, (SUISSA: 2010) não faz muito sentido falar em um método anarquista para a educação, o que implicaria em uma estabilidade para a escola, o que seria um contrassenso para o próprio anarquismo. Entretanto, nas tantas experiências que atravessaram o século XX36, a ausência de prêmios e punições, estrelinhas no caderno, castigos, bonificações ou notas, está presente em todas elas, pelo menos como uma questão central e problemática em todos as práticas. No início do século XX, Ferrer, influenciado e produzindo um pensamento anarquista, desnaturaliza a escola como espaço 36 Podemos citar: Escola Moderna, Barcelona, 1904-1907, The ferrer School NY – 1911 – 1953, The walden center and school – Berkeley – 1956, Celestin Freinet, (anos 1920), Orfanato Cempuis, Paul Robin, A Colmeia, Sebastián Faure, Francesc Ferrera y Guardia (Barcelona), Paidea, Escola Livre (Espanha), Summerhill, de Neill (Inglaterra). 

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de transmissão de conteúdo para um fim. Em 1908, um ano antes de ser morto pelo governo espanhol durante a semana de repressão aos anarquistas e socialistas, conhecida como Semana Trágica, Ferrer escreve: “Uma vez que não estamos educando para uma finalidade específica, não podemos determinar a capacidade ou incapacidade da criança”. Uma impossibilidade da escola que, ao mesmo tempo, entrega ao aluno uma grande autonomia para seu destino fora da escola. “Cada aluno, completa Ferrer, sairá dela para a vida social com a capacidade de ser seu próprio mestre e guiar sua própria vida em todas as coisas” (FERRER: 1908/2013, p. 56). O mundo imaginado por Ferrer certamente não se tornou hegemônico no século XX; pelo contrário, o século foi de intensificação nas modulações dos modos de premiar e punir. Por todo lado, na escola, na parede do fast-food, nas empresas, nas milhas dos cartões de crédito ou nos jogos televisivos, as premiações e as punições ganham requintes complexos e são atreladas ao espetáculo. Como apontava Deleuze nos anos 1990: Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema de prêmios, mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação para cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios, concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os jogos de televisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa. A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do “salário por mérito” tenta a própria educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente ten-

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de a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa (DELEUZE: 1992, p. 221).

Modular ao extremo, os sistemas de premiação e resposta que o empregador, a família, os amigos e a escola dão, a cada sujeito, é parte de processos de produção subjetiva que hoje chamamos de 24/7 (vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana). É preciso estar conectado, ligado e respondendo o tempo todo para atender a demandas incessantes, do patrão aos likes do Facebook, levando ao paroxismo um tornar-se empresa que não é apenas da escola, mas dos sujeitos mesmo. A cultura do capitalismo contemporâneo, hábil em estimular a participação através de palavras de ordem como: comente, opine e participe, mais do que instaurar o reinado do consumidor – esse que substitui o cidadão – instaura a autoridade da premiação molecular – nos mínimos detalhes. Não se premia mais o trabalhador que rendeu bem no ano, mas no dia, não se dá notas no final do semestre, mas se faz avaliações continuadas. “Opine e compartilharemos suas opiniões, comente e receberás likes, participe e ganharás pontos”. Para se referir ao século XXI, em 1990 o CEO da Google, Eric Schmidt, falou em “economia da atenção”, uma economia que eles ajudavam a inventar e que é inseparável de uma economia da premiação molecular37. Certa vez, em uma escola federal em que estávamos trabalhando com cinema, fui à reunião de pais e mestres, o que é sempre uma experiência fascinante, sobretudo se você não tem um filho em questão naquela reunião. Nesse encontro a diretora reservara uma parte do tempo para explicar aos pais que seus filhos de sete anos começariam a receber notas: – Não é nada muito importante, ninguém vai ser reprovado; 37 No livro Máquina de ver, modos de ser, Fernanda Bruno estabece uma detalhada relação entre as formas de vigilância recentes e os modos de mobilização da atenção, em uma relação direta entre vigilância e os processos subjetivos contemporâneos (BRUNO: 2013). 

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ela disse sentindo no rosto dos pais a expressão: “nossa, meu filho cresceu!”. – É só para eles irem se acostumando. E também porque o sistema exige que a gente dê nota. As crianças teriam a vida toda pela frente para “irem se acostumando”, mas, como eu estava ali apenas observando, mantive-me calado. Poderia, claro, ter lembrado à diretora que na Finlândia, que possui um dos sistemas educacionais mais bemsucedidos do mundo, sempre nos primeiros lugares das avaliações mundiais como o sistema PISA (Programme for International Student Assessment), os alunos só passam a receber notas depois dos 14 anos. Um dos pais entretanto disse: – Mas se é preciso dar nota, por que vocês não dão as notas? – É isso que faremos, respondeu a diretora. – Mas vocês vão cobrar algo deles para dar a nota. – Faremos avaliações bem simples... – Ah, então a nota é dada, mas não é de graça... Se vocês são obrigados a dar notas, deveriam apenas dar notas. Todos olharam o pai que pediu para a escola dar a nota sem cobrar nada como se ele fosse um louco. Tinham dificuldade de entender a lógica tão simples que aquele pai trazia. Ferrer diria que ele era um anarquista. Desenhar uma metodologia para o cinema estar na escola passava também por essa aposta trazida pelos anarquistas que problematizavam as premiações, radicalizadas no capitalismo contemporâneo. O lugar dos alunos não será organizado de fora por um sistema de avaliação que escolhe protagonistas e coadjuvantes, uma preocupação que Augusto Boal trazia em sua poética do oprimido (BOAL: 2014). Para nós, até mesmo a diferença entre quem estava na frente ou atrás da câmera precisa por vezes ser eliminada; a câmera estava no meio e nossos esforços se concentrariam em não criar distinções por prêmios. Na mesma linha, em uma entrevista em 1988, a artista inglesa Bridget Riley narra sua formação no Royal College of Art em

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que, segundo ela, a pedagogia era: “o mundo lá fora vai ser muito difícil, então é melhor começar com as dificuldades aqui” (RILEY apud ALLEN: 2011, p. 25). A ideia de que a escola precisa antecipar o mundo que nos desagrada não é exclusividade do Royal College que Riley conheceu, mas está presente em uma enorme parte da educação. Essa antecipação de mundos possui pelo menos dois aspectos determinantes para o que será a escola. O primeiro é que o mundo está pronto e a escola é um modelador – na mais tradicional técnica disciplinar. A escola precisa treinar e adaptar os jovens para “o que está aí”: a competição, o individualismo, a ideia da superação, a atenção constante, a maximização do tempo, a resistência física e intelectual aos desafios do trabalho “que irão te exigir no limite”. Assim deve ser a escola: um espelho do que virá. A ironia maior é que conseguimos isso. A escola do pobre é pobre, a do rico é rica. Adaptar os estudantes para o mundo que está aí pode ainda ter desdobramentos mais trágicos para jovens que vivem em bairros violentos com altos índices de criminalidade. Ter a escola como microcosmos de mundos possíveis parece ser o mínimo a se exigir da educação. O segundo, de ordem mais estritamente temporal, retira o presente da escola como um problema ético, estético e pedagógico para colocar no futuro as justificativas para aquilo que a escola é hoje. A escola tratada como um problema do amanhã. Ou seja, se a relação entre alunos, professores e funcionários não é boa, se a escola não possui artes ou música, se os jovens estão exaustos e estressados, se a participação dos pais é clientelista, se muitos alunos são medicados, nada disso é visto como um problema pedagógico, mas como algo a ser administrado para que a escola possa ter bons resultados. Tal problema temporal reverte a função da avaliação, tanto da escola quanto do aluno. No lugar de avaliar, a avaliação modula. No lugar de mapear sucessos e problemas, a avaliação impõe modelos. Nesse sentido, o Enem deveria ser completamente diferente a cada ano. Em um ano o texto exigido poderia ser uma

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poesia, no outro uma carta para o Dorival Caymmi, no terceiro um diálogo entre amantes. Talvez isso ajudasse a trazer a educação para o presente. E quando alguém perguntar o que vai cair na prova, poderíamos responder: a vida inteira38. Em Porto Velho, em uma das formações com professores, um deles, que já tinha intimidade com o universo do cinema, depois de analisar cuidadosamente o material de apoio do projeto, comentou que sentia falta de uma gramática básica de cinema: tamanho de planos, tipos de corte e estratégias de montagem. Sim, não havia nada disso nas propostas de exercício que fazíamos ali, mas certamente não era por esquecimento. Com as melhores intenções, o professor colocou ainda que sem essa gramática era difícil saber se o aluno tinha aprendido ou não o que propúnhamos. Aquela colocação me pareceu das mais interessantes e, de alguma maneira, explicitava para nós mesmos as opções que havíamos feito. Por um lado, apostávamos em uma experiência com a imagem sem partirmos do mundo organizado do cinema. Ou seja, experimentar o cinema na escola era como inventar o cinema, como se as invenções ainda não tivessem nome. Talvez, também por isso, o “Minuto Lumière”seja sempre tão bem-recebido. Quando o aluno fazia um plano nas oficinas, o que interessava não era o nome ou o tamanho do plano,

38 Depoimento de pai de uma criança de 4 anos: “Quando fui procurar uma creche para meu filho de um ano no Rio, descobri que há uma disputa feroz por vagas. Descobri também algo maluco. As melhores escolas do Rio, ou aquelas que dizem terem os melhores resultados no Enem por ter mais procura do que vagas fazem uma prova de seleção com crianças de cinco anos, o tal vestibulinho. Veja que louco, a escola que deveria ser o lugar da inclusão, passa a ser já de cara o lugar da exclusão. Afinal o que será testado em uma criança de cinco anos? Quais são seus conhecimentos? O pior: uma série de creches se vendem como o lugar ideal para preparar o seu filho para o vestibulinho. E em uma reunião ouvi uma coordenadora pedagógica falar o absurdo de que se seu filho não pintasse as folhas da árvore de verde ele não passaria no vestibulinho. Como se as folhas do mundo fossem apenas verdes, como se não pudéssemos inventar folhas de outras cores. O mais grave é que os pais acham ótimo que os filhos sejam preparados para o tal vestibulinho e ficam orgulhosos quando os filhos passam. Meu primeiro critério de escolha de uma escola foi aquela em que não há seleção alguma, no máximo, se há um problema de vagas, que se faça um sorteio” (Roberto Robalinho – no Facebook, fevereiro de 2015). 

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mas as opções feitas, o que foi inventado: o ritmo, as escolhas do que podia ser visto ou não, o ângulo, as linhas, os contrastes e mesmo a pluralidade de planos – do close ao plano geral – em uma mesma tomada, como Langlois chamava atenção no caso dos Lumière. Com o tempo, talvez o estudante e o professor sentissem a necessidade de se referir ao que estavam fazendo e usassem um nome: plano médio, por exemplo, para falar de suas opções. Mas poderiam ainda chamar de “quase pertinho”, não sei. Naquele comentário, me tocou ainda a preocupação do professor em ter elementos para avaliar se o aluno havia aprendido ou não. De alguma maneira o professor reproduzia algo tão corrente na escola em que muito do que se faz se resume a uma escolha binária: aprendeu ou não aprendeu. Sabe o que é um plano geral, ou não? O que nos distancia desse método é algo que serve também para a língua. Na escola acreditamos que antes de escrever sobre o que é importante ser escrito, precisamos aprender a escrever bem. Como notou Gabriel Cohn-Bendit; se aprendêssemos a falar na escola, seríamos mudos até os 10 anos (COHN-BENDIT: 2013, p. 44). O Enem hoje no Brasil novamente nos serve de exemplo. Uma grande importância é dada à redação. Uma redação que é corrigida como uma múltipla escolha. O aluno escreveu 30 linhas? Tem introdução, desenvolvimento e conclusão? Não expressou opiniões politicamente incorretas? E assim por diante. Os eventuais erros ortográficos são punidos severamente. Os erros ortográficos são uma prova de que o aluno não está apto a entrar na universidade, que não pertence à cultura letrada. No meu caso, só fui capaz de escrever uma tese porque tinha uma poderosa inteligência coletiva no meu corretor de texto do Word, que aponta muitos dos erros que faço. Obrigado! A ortografia, na escola e no Enem, é uma forma de exercer um poder e uma opressão sobre os alunos, uma forma de pontuar milimetricamente os estudantes e garantir que apenas alguns entrem nas melhores universidades; se for estrangeiro, está perdido. Sem o uso do computador no Enem, a avaliação opta por um arcaísmo que joga fora o saber coletivo porque precisa avaliar o indivíduo isolado do grupo. Se essa educação fosse música, só teríamos

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cantores à capela, jamais corais, bandas ou orquestras. A pontuação milimétrica não é exclusividade do Enem. Na universidade mesmo, pontuamos um aluno com a nota 8 e o outro com 7,75. Para quê? Para dizer que um é melhor que o outro. Não há interesse educacional que possa justificar isso. Se o Enem fosse pontuado por A, B, C, D, teríamos que mudar todo o sistema universitário e o ensino médio. Mas não, preferimos tratar nossos jovens como nadadores olímpicos, que perdem a medalha por 0,003 segundo. Um tempo que só existe graças aos fabricantes de cronômetro e nos aceleradores de partículas – ambos importantes! Nossas opções, no caso do cinema, retiravam o privilégio da escritura clássico-narrativa como o modelo a ser seguido. Nos distanciávamos assim de uma ideia bastante corrente que nos ensina que primeiro se aprende o clássico para depois subverter. Felizmente a história do cinema é repleta de experiências em que são os próprios criadores que inventam suas regras de criação, antes de estarem atrelados a um modelo estético, político ou narrativo. Mesmo a noção de uma arte essencialmente moderna distancia o cinema tanto da necessidade de ser uma arte que atenda às expectativas de uma comunidade, quanto uma arte submetida a regras de representação que antecedem as obras, como vimos no capítulo dois, com Rancière. Agradeço esse caríssimo professor de Porto Velho por ter permitido uma excelente conversa no dia seguinte. Com ela foi possível formularmos um pouco melhor o que estávamos fazendo. Com o cinema, assim como com a língua, é preciso falar, filmar, escrever. O melhor motivo para aprendermos as regras gramaticais, para usarmos melhores corretores de texto ou para discutirmos problemas é a liberdade da comunicação, da poesia e da criação. Fica quieto e vai ler um livro “Esses meninos não leem nada, não têm saída. Vão sair da escola sem saber quem é Machado de Assis”, nos disse uma professora

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em Nova Iguaçu entristecida com sua incapacidade de fomentar a leitura nos jovens. Essa colocação, não rara nas escolas, nos remeteu a algumas reflexões de Charles Fourier sobre educação, feitas no início do século XIX. Nessas reflexões, uma atenção secundária é dada aos livros e à cultura letrada na infância e na adolescência. Atento às vocações e energias de crianças e jovens, a educação não poderia esvaziar as intensidades vitais dos jovens nem se tornar excessivamente desconectada do que não era escola. A crítica de Fourier a uma educação que se fazia na autonomia da vida cotidiana e, para que houvesse essa separação, os livros eram essenciais. Os livros ajudariam a educação a se tornar abstrata e a demarcar o que era escola – os livros – e o que não era – o trabalho coletivo, a sociabilidade, a brincadeira e o jogo – produzindo um verdadeiro divórcio entre escola e vida. Fourier temia que uma educação excessivamente marcada pelo livro dificultasse a forma mais intensa de aprendizado que acontece quando a criança “solicita ensinamento”. Para que ela pudesse solicitar, a educação precisaria estar em contexto; Fourier fala de uma “realidade do encontro”. Uma bela expressão para manter junto a vida, as energias vitais e o desejo de conhecimento. Encontrar, escreveu Peter Pal Pelbart, influenciado por Oswald de Andrade, “é sempre afetar e ser afetado, mas igualmente envolver aquilo que se encontra, apossar-se de sua força sem destruí-lo” (PAL-PELBART: 2013, p. 337). Obviamente, não seria o caso de fazermos hoje uma crítica à cultura do livro, mas, ao mesmo tempo, é evidente como uma enorme centralidade dessa cultura na educação traz desafios para pais e educadores. Com frequência escutamos a reclamação dos pais: “Ele não estuda! Ele não lê nada”. Ler e estudar fazem parte dessa associação natural que no início do século XIX desagradava Fourier. Nos perguntamos então: como o livro é parte de um leque de possibilidades para o estudo? Claro, está tudo na Internet, mas é como se fôssemos desafiados a encontrar e inventar o ritmo para a entrada do livro nos estudos, sem esperar que ele tenha a centralidade, também porque a centralidade do livro gerou um segundo pro-

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blema sério na educação. Em nosso projeto de cinema nas escolas, uma das mais frequentes narrativas que recebemos, vinda, sobretudo, de professores, era sobre a forma como alunos que precisavam de uma atenção particular para trabalhos que demandavam escritas mais elaboradas – “o menino ruim em português” –, frequentemente se destacavam na execução dos trabalhos com imagens. Esse foi um dos motivos que nos levou a pensar a metodologia nos concentrando na experiência com a imagem. Não falamos em roteiro, por exemplo, justamente porque queríamos focar em uma relação com o mundo que não precisasse da mediação da palavra escrita em primeiro lugar. O que não excluía a escrita, obviamente, mas apenas não a deixava em primeiro plano. De alguma maneira, nossa metodologia espelhava 1) a tentativa de colocar o livro e a escrita como eventuais instrumentos para o trabalho, e não como aquilo que deve ser conhecido antes e 2) o trabalho na atenção de desfazer hierarquias internas à sala de aula, centradas na escrita. Mas a expressão de Fourier (1971) “a realidade do encontro” nos dava mais um elemento para o que estávamos construindo com nossa metodologia. Fourier, na sua busca por uma educação harmônica, palavra que ele utilizava com frequência em seus textos, dava especial destaque às capacidades naturais das crianças, mas, para isso, ele chamava atenção dos gostos dominantes da infância – e um deles é o gosto por vasculhar. Vasculhar é algo extremamente forte em crianças de dois anos de idade e, com o tempo, tende a ganhar focos de atenção. A criança “não para quieta”, felizmente, de outra forma não aprenderia. Ou, como coloca Paulo Freire, “a curiosidade é já conhecimento. Como a linguagem que anima a curiosidade e com ela se anima, é também conhecimento e não só expressão dele” (FREIRE: 1996, p. 23). O risco da escola está em trabalhar com métodos em que esse princípio associativo e curioso da criança é desprestigiado em favor de uma centralidade do livro. Quantas vezes, como pais ou educadores, não falamos ou tivemos vontade de falar: “Pare quieto e vá ler um livro!”.

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Bem depois de Fourier, já no início do século XX – época de intensa especialização da escola – Whitehead expressava essa preocupação dizendo que havíamos deixado uma época de interesse na educação para a sabedoria em direção ao conhecimento livresco – text-book knowledge – de disciplinas. O problema disso era o abandono de uma reflexão sobre a sociedade para uma educação que se adaptasse a uma praticidade, no limite da estagnação intelectual. O texto de quase 100 anos é bem atual. Nos tornamos uma sociedade que felicita alunos brilhantes que com notas altas passam para as melhores universidades e ficam ricos trabalhando na especulação com o capital. O que é um desastre em uma educação em que a comunidade está em jogo, é visto como um sucesso pelas escolas e universidades. A cultura do livro não pode ser uma cultura à parte, separada de uma demanda do estudante e das conexões sociais em que ele se forma. Grande desafio para pais, professores, arquitetos de escolas etc; colocar o livro e a cultura letrada dentro de uma educação que transcenda o livro como fim. Como diziam os antigos: “você não pode ser um sábio sem alguns conhecimentos básicos, mas você pode facilmente adquirir conhecimento e permanecer vazio de sabedoria” (WHITEHEAD: 1967, p. 46). Nascidos no mundo digital – Eles nasceram no mundo digital, na Era da Internet! – Desde pequenos estão com seus computadores e celulares etc. Estas falas expressam um senso comum sobre as relação de crianças e jovens com o mundo digital. Uma fala que ouvimos de professores e pais e que traz uma marca temporal que os separa dos mais jovens. Nesse caso, a tecnologia é entendida como um elemento de ruptura entre duas gerações. Mais do que isso, entende-se que pelo fato de hoje os jovens e as crianças terem tido que lidar com dispositivos de comunicação móveis desde pequenos, haveria neles uma marca constituinte em seus processos subjetivos

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que os diferenciariam da geração dos professores – pelo menos os mais velhos – que entraram no mundo da comunicação 24/7, com o bonde andando. Por isso, nossa experiência pede que matizemos essas afirmações, dando, sobretudo, um lugar para a tecnologia que não é tão central, nem tão definidor dos processos subjetivos. Antes de organizar uma ruptura entre a geração anterior e os nativos digitais, nos parece que ambos encontram os mais variados espaços e ritmos na relação com o mundo digital. Os modos de demanda de atenção pelo universo da informação e do consumo fazem parte da comunidade e com eles aparecem múltiplas formas de relação, apropriação e resistência. Na escola, nos deparamos com alunos que no recreio usavam aparelhos móveis com Internet para jogar, namorar ou consultar assuntos discutidos em aula. Nos deparamos com professores que, no meio da aula, buscavam o celular incessantemente enquanto reclamavam de alunos que faziam o mesmo. Ou, por conta de uma questão de classe, o mais corrente nas escolas em que trabalhamos, são crianças que simplesmente não têm acesso à Internet em seus telefones. Mais do que uma linha de ruptura, o mundo digital parece entrar como mais um dos elementos constituintes dos modos de o conhecimento se fazer e não como um definidor em que os nativos digitais teriam vantagens, desvantagens ou especificidades em relação aos imigrantes digitais, como chamou Prensky (2001). Essa separação essencializa a relação da idade com a tecnologia, o que nos parece enganoso. A relação da tecnologia com os processos subjetivos é mediada de maneiras distintas entre diferentes indivíduos, comunidades e culturas. O que não quer dizer, é claro, que não haja uma forte modificação em aspectos relevantes da vida urbana, uma vez que essas vidas se encontram em forte relação com as tecnologias de comunicação digital. Com a revolução nas comunicações, escreveu Dewey em 1899, “as viagens foram facilitadas; liberdade de movimento, com a troca de ideias que a acompanha, também facilitada. O resultado tem sido

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uma revolução intelectual. A aprendizagem foi colocado em circulação. Enquanto ainda há, e provavelmente sempre haverá uma classe particular tendo o negócio da informação na mão, uma separação de classe no aprendizado é doravante fora de questão. É um anacronismo. O conhecimento não é mais um imóvel sólido; ele foi liquefeito. Ele está se movendo ativamente de todas as correntes da própria sociedade” (DEWEY: 2010, p. 13). Essa percepção de Dewey, que parece tão atual, não parou de se radicalizar nos últimos anos, inclusive com a noção de um conhecimento líquido. Jonathan Crary (2013) aponta, por exemplo, para a forma como as tecnologias de informação estão fortemente associadas a novos estados de atenção e repouso na vida contemporânea. Quando tudo é acessível 24/7, deixamos cada vez mais de lado nossas horas de sono para nos colocarmos em estado de vigília, mesmo no sono. Stand by state, como se tivéssemos uma luzinha vermelha na testa, pronta a ficar verde. Segundo o autor, cresce exponencialmente o número de pessoas que acordam no meio da noite para checar a entrada de mensagens em suas redes sociais. Esse processo que afeta o corpo é inseparável das demandas capitalistas que estimulam uma atividade constante de mercados e regimes de troca de dados constantes. Qualquer leitor reconhece esse fenômeno narrado por Crary em pessoas nascidas antes e depois dos anos 1980. Nativos digitais ou não. Com essa crença em mãos, quando construímos nossa presença nas escolas, nosso problema não é nem a exclusão dos dispositivos digitais das escolas, nem a essencialização dos jovens como capazes ou incapazes de utilizar os dispositivos desta ou daquela maneira por serem nativos digitais. A rede em que esses dispositivos nos permitem navegar e da qual eles mesmos fazem parte, nos demanda antes que nos perguntemos quais são as conexões e ritmos que eles permitem. Voltando ao Whitehead: Quais são as conexões frescas que eles permitem? A cada momento que o dispositivo se tornar um homogeneizador de ritmos de atenção e um estabilizador de conexões, são os processos subjetivos que perdem em invenção e diferença.

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Podemos ir para a escola Se em diversos momentos os dois últimos capítulos parecem ter se distanciado de questões diretamente ligadas ao cinema, à educação e aos direitos humanos, a apresentação desse caminho político-estético nos pareceu necessária, uma vez que foi com ele que organizávamos uma prática; uma entrada na escola. De alguma maneira, essa exposição teórica é também um posicionamento, um engajamento e uma desnaturalização da maior parte dos princípios que regem as ações nas escolas hoje. Nas ações públicas, por exemplo, o debate político parece ter se limitado, em grande medida, aos problemas de gestão. No nosso caso, felizmente, tivemos a possibilidade de trazermos aportes e experiências de diversos campos: do cinema, da arte, da filosofia e da comunicação, principalmente, e com eles desenharmos um campo político-estético em que nos interessava atuar. Em um breve resumo, poderíamos dizer que esse campo coloca o cinema como parte de um processo político com seis aspectos principais. 1) Primeiramente, é com o cinema que se vê e se faz na escola que, mais do que entender o mundo e as diferenças, somos transformados por ele. Há uma experiência com a alteridade e com as formas que o cinema constrói e faz ver, que complexifica códigos e formas de estar no mundo. Como se, pelo cinema, fosse possível uma vivência entre códigos excêntricos e não dominantes, uma verdadeira abertura para possíveis. 2) É a partir da presença dos estudantes nessa virtualidade – nesse universo de possíveis em que eles são agentes – que a emancipação pode aparecer. Uma emancipação que é inseparável da cena em que a produção de imagens entre professores, estudantes, tecnologia, éticas e comunidades torna possível. Ou seja, há uma segunda dimensão política no fazer cinematográfico na escola, uma vez que toda produção é uma cena em que cada um leva as suas possibilidades e saberes. Essa é a cena de uma potencial igualdade de inteligências, emancipatória para estudantes. Sem regras e livre,

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sem função ou palavras de ordem, o cinema atravessa a educação refazendo laços de pertencimento ao universo do aprendizado e do desejo, entre alunos e professores, permitindo uma produção coletiva e um engajamento no presente. 3) Ao aproximar os estudantes de situações e imagens, ao possibilitar um conhecimento por montagem, o cinema perfaz mais uma de suas dimensões políticas que nos interessa. Não só ele desnaturaliza as imagens dadas, questiona códigos e clichês, como permite, com a montagem, um pensar com imagens, uma intervenção nas coisas do mundo sem que uma retórica esteja em primeiro plano. O cinema é uma experiência de escritura – frágil, ensaística, inventiva –, não um aparelho de comunicação. 4) Abrir a escola e os estudantes para a comunidade, para a diferença, para o desconhecido do passado e do presente. Essa parece ser uma quarta dimensão política do cinema na escola que nos mobiliza, uma vez que ela traz para a educação o cotidiano que afeta alunos e professores e o que está distante e poderia fazer parte da educação. O cinema, nesse caso – e talvez em todos os outros – não é um instrumento de conforto para as escolas. 5) O cinema na escola recoloca condições de produção singulares, distantes da circulação midiática, distante dos grande meios e, mesmo assim, consequente para a comunidade, efetiva em suas experiências. Pelos modos de produção, em si políticos, o cinema aparece na escola. 6) Nos modos de trabalho, na ruptura de certas hierarquias e premiações, na problematização das palavras de ordem e das disciplinas que horizontalmente servem para impor respeito inabalável ao diretor ou ao capital, o cinema pode ainda, ser um ator político. * Nas semanas seguintes à formação dos mediadores, em Niterói, iniciamos dois processos paralelos; a mobilização das escolas com chamadas para grupos de professores nos municípios escolhidos e a finalização do material de apoio que seria enviado a elas.

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A mobilização das escolas nos municípios aconteceu de maneira bastante diversa e com respostas também heterogêneas. Fornecemos aos mediadores folhetos, cartazes e cartas que poderiam ser levadas às escolas e Secretarias de Cultura. Apesar de nosso apoio e da mobilização de nossas redes, com a ajuda da Secretaria de Direitos Humanos, a mobilização das escolas dependia em grande parte da capacidade do mediador. Como expusemos acima, podíamos trabalhar com 10 escolas por municípios; em Belém, por exemplo, depois de uma semana de mobilização, mais de 70 escolas haviam se inscrito. Isso significa quase ¼ de nossa capacidade total de trabalho no Brasil. Números como esse colocavam em xeque a ideia de que estávamos trabalhando em um grande projeto. Com a equipe trabalhando e o material de apoio e os equipamentos nos municípios, estávamos prontos, assim imaginávamos, para iniciarmos o projeto em aproximadamente 270 escolas dos seguintes municípios: Rio Branco (AC), Manaus (AM), Porto Velho (RO), Boa Vista (RR), Macapá (AP), Imperatriz (MA), Fortaleza (CE), Natal (RN), Parnaíba (PI), Belém (PA), Recife (PE), Conde (PB), Delmiro Gouveia (AL), Aracaju (SE), Rio de Contas (BA), Brazlândia (DF), Pirenópolis (GO), Porto Nacional (TO), Campo Grande (MS), Paraty e Niterói (RJ), Vitória e Vila Velha (ES), Belo Horizonte (MG), Bauru (SP), Florianópolis (SC), Curitiba (PR), Bagé (RS) e Campo Grande (MT).

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NA ESCOLA

Inevitavelmente O garoto de sete anos entra na cozinha onde sua mãe faz o jantar e o pai fuma. Cantando, ele avisa a família. – Eu não retornarei mais à escola. – Por quê?, pergunta a mãe. – Porque na escola eles me ensinam coisas que eu não sei. Assim começa o curta metragem En rachâchant de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, com texto de Marguerite Duras, realizado em 1982. O caso é grave e Ernesto precisa ser levado à direção da escola, onde o garoto continua, com pouquíssimas frases, revelando a lógica escolar. – Não estou lhe reconhecendo, diz o diretor. – Eu estou lhe reconhecendo, responde Ernesto. – Então você recusa a se instruir. E por quê? – Porque isso já durou demais. – O estudo é obrigatório. – Não em todos os lugares, diz o garoto. O diretor levanta, bate na mesa e mais uma vez faz o seu papel reconhecível. O plano segue fixo na mesa do diretor. – Aqui é aqui e não é “todos os lugares”. Ernesto, que não quer mais a escola, é interrogado pelo professor sobre seus conhecimentos. Quando o professor mostra uma foto do presidente François Mitterrand e pergunta quem é, Ernesto responde: um companheiro. “E isso?”, o professor mostra uma borboleta em uma placa de vidro. “É um crime”, responde Ernesto.

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Para cada objeto que o professor busca um saber organizado pela escola, Ernesto devolve um outro saber; crítico, múltiplo, pragmático ou abstrato. – E isso? Pergunta o professor mostrando um globo terrestre. Por acaso é uma bola de futebol ou uma batata (pomme de terre)? – É uma bola de futebol, uma batata e a terra, responde o garoto, seguro de si. – Um caso único diz o professor intrigado. Uma criança que só quer aprender o que ele já sabe. O professor coloca então a pergunta decisiva e fundamental. – Mas como essa criança pretende aprender o que ela não sabe? O menino então dá sua cartada final. – En rachâchant, diz ele, inventando uma palavra que parece misturar pesquisa – recherche – e canto – chant: rachâchant. A tensão aumenta e o professor chega a ameaçar fisicamente a criança. A mãe impede a agressão. E o professor pergunta então: – E como Ernesto irá aprender a ler, escrever e contar? – Inevitavelmente, diz a criança. Levando ao extremo a evidência de que o mundo ensina e de que o aprendizado está em tudo. Ernesto deixa a sala enquanto o pai questiona o professor: – Ele conseguirá aprender, ler, trabalhar, trabalhar? – Sim, responde o professor. O filme, organizado como uma comédia em que todos atuam com gestos hipercontrolados, é agudo na crítica à forma como a escola inventa um mundo de conhecimentos autojustificáveis, desconectados da pesquisa individual e do canto, da poesia. Mais de 50 anos antes, em um artigo sobre o ensino de matemática, Whitehead fazia essa crítica, dizendo que o ensino era baseado em detalhes extremos, distante do conhecimento comum e das grandes ideias. Ou como dizia, Ira Shor em conversa com Paulo Freire “Quando os estudantes realmente querem alguma coisa, movem céus e terras para consegui-la” (IRA e FREIRE: 1986, p. 12). Inclusive negar a escola, como Ernesto.

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na escola

É cinema Em uma quente Recife, chegamos na escola com o mediador Caio Sales para o trabalho com alunos entre 10 e 12 anos. Naquele dia, Caio e o professor Alberto Lopes programaram fazer o Minuto Lumière no Conjunto Habitacional do Cordeiro, que fica ao lado da escola, onde a maioria dos alunos mora. Na chegada, uma turma agitada recebeu o mediador com abraços e empolgada: “Queremos armar o tripé! Onde está a câmera?”, diziam os alunos.

Com a turma sentada, Caio disse: “Vamos fazer um plano. O que é um plano?”. Rapidamente os alunos responderam: “O que se filma entre o ligar e o desligar da câmera”. Para o Minuto Lumière, fomos para o Conjunto Habitacional, espaço construído para receber os moradores que foram despejados de suas precárias moradias no bairro de Brasília Teimosa, ao lado de Boa Viagem, no Recife39. Logo que chegamos ao Conjunto, as crianças foram orientadas pelo professor a não passar da lanchonete que fica logo na entrada do bairro. Fiquei responsável por um grupo de cinco meninas. 39 Esses espaços estão presentes no excelente Avenida Brasília Formosa (2010), de Gabriel Mascaro. 

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Quando começamos a escolher o lugar para fazer o plano, duas meninas ficaram inquietas pedindo que fôssemos ao Conjunto número 20. Elas diziam: “Nós conhecemos tudo aqui, não faz sentido filmar apenas na entrada do Conjunto”. Uma delas argumentava enfaticamente: “Se é pra inventar com a diferença, é preciso ir lá para dentro! Aqui todos conhecem, não tem diferença”. Na hora, apenas aceitei as regras do professor como nossas próprias regras, as regras dos adultos. Disse a elas que combinamos que iríamos filmar apenas na rua de entrada do Conjunto. Evidentemente eu recolocava o lugar do professor como autoridade. O que a menina estava me dizendo era: aqui eu conheço. Esse lugar eu domino. Minhas capacidades aqui dentro são enormes! Para esse exercício, estávamos os três, cada um com as suas inteligências e capacidades naquele lugar. Caio e eu com a câmera – com o cinema –, o professor como uma referência para as meninas – a escola – e os alunos como verdadeiros conhecedores daquele território. Nesse momento estava claro – ou melhor, depois ficou claro para mim: havíamos inventado efetivamente uma cena de igualdade de capacidades mobilizada pelo cinema e pelo dispositivo que colocávamos em prática. Infelizmente, no calor da hora, a autoridade foi mais forte e não respeitamos a possibilidade de aquelas meninas compartilharem conosco, plenamente, o conhecimento e a inteligência que elas têm sobre o território. Estávamos com plenas condições de vivenciar essa igualdade que aparecia com o nosso método, mas ele teria que ser constantemente recolocado à prova, sob o risco de refazermos as mesmas hierarquias, a mesma organização das inteligências que na maior parte das vezes anula e menospreza as capacidades e possibilidades dos alunos. Para nós, adultos, é mais fácil ser professor que Ernesto. Nesse mesmo dia uma aluna de 12 anos, ao reparar que uma colega começava a fazer um Minuto Lumière em uma viela molhada, com marcas de mofo nas paredes e roupas penduradas, se aproximou agitada da amiga e disse: “Não filma isso não, é muito feio”. Eu estava distante e preferi não interferir, desejando que o plano fosse

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feito ali, naquele lugar. A amiga titubeou e acabou fazendo o seu Minuto Lumière dando atenção à profundidade da viela. Quando chegamos à escola e dedicamos uma boa hora assistindo cada plano feito pelo grupo, após vermos o plano em questão, perguntei à menina que havia pedido que aquela parte do conjunto não fosse filmada: – O que você achou do Minuto de sua amiga? – Gostei, é cinema! A formulação tão simples me intrigava. Não havíamos mudado nada de lugar; as roupas, o mofo, as paredes descascadas, tudo continuava ali. Entretanto havia um deslocamento feito pela imagem que fazia com que a percepção da menina fosse alterada. A experiência com o local parecia sofrer uma real mutação. Esta mutação, me parece, é causada pelo deslocamento de uma imagem à outra, ou seja, a menina saía de uma imagem generalista expressa pelo adjetivo feio, calcada em algo objetivo – o mofo, a sujeira – à uma imagem recortada, portadora de um ponto de vista, atravessada por decisões de enquadramento, movimento, ritmo, cores. A imagem geral, ao ser incorporada no discurso – isso é feio –, acaba por abstrair o próprio local e qualquer outra coisa que ele possa ser. Em certo sentido, é como se ao dizer “é cinema”, fosse o próprio local que pudesse reaparecer, distante agora de um julgamento sobre ele. Em oposição ao feio, não estava o bonito. Ela não disse que o que era feio havia ficado bonito, mas que o que era feio havia virado cinema. O que se opunha ao feio era, então, uma aparição, uma imagem, algo a ser visto e experimentado; o cinema. Se o feio era algo que resumia e se colava ao local, foi na experiência com aquela imagem que talvez ela possa ter sido incitada a perceber que o feio não pertencia mais ao lugar em que ela mora, mas que era uma forma de ver, uma contingência. O cinema não tornava o Conjunto Habitacional bonito, mas suspendia um julgamento sobre ele. Essa dinâmica se faz atravessada por uma reordenação da compresão de si e da comunidade, e das imagens que circulam sobre aquele local, largamente presente na mídia depois que o então presidente Lula esteve em Brasília Teimosa. Esse

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deslocamento é inseparável de uma dimensão estética. No deslocamento da percepção da menina, não está colocado uma nova representação que virá a substituir o modo como ela se relaciona com o lugar que mora, mas a contingência mesmo de uma representação ordenada, no caso, pelo “feio”. De alguma maneira, o que acontecia com aquela menina era a descoberta de uma imagem mesmo. Quando ela dizia, “é cinema”, podemos intuir que havia ali uma percepção de que a imagem não se confunde com o real – não é a coisa – e que há uma distância mediada por um dispositivo técnico e por um ponto de vista. Talvez, um dos papéis fundamentais de um exercício tão simples como o Minuto Lumière seja justamente esse: fazer uma imagem aparecer, nos permitir a experiência da imagem; a fragilidade, incompletude e necessária invenção de qualquer imagem. A partir das regras que reproduzem a experiência inaugural dos Irmãos Lumière no final do século XIX – câmera fixa sobre tripé, sem som e um plano de no máximo 53 segundos – há um deslocamento da coisa à imagem e com ela a própria experiência da produção de um mundo. A experiência da criação e da força de se poder fazer opções sobre ver, falar e sentir. A expressão da menina, “é cinema”, talvez tenha sido a própria percepção de que havia na passagem do que ela conhecia à imagem, uma invenção, uma construção, mas também uma opacidade, uma boa dose de mistério acrescida ao real. Corro o risco de forçar a mão na leitura da reação da menina, mas na educação, me parece que essa relação do cinema com a alteridade e com a comunidade se expressa justamente nos possíveis deslocamentos que o cinema faz com os objetos do mundo; produzindo estranhamentos, novas formas de olhar, sentir e intervir no real. Como escreveu Comolli, “O cinema pode transformar o mundo, mas não o legenda” (COMOLLI: 2012, p. 199), ou como nos lembra Bresson: “Não filmar para ilustrar uma tese ou para mostrar homens e mulheres limitados a seu aspecto exterior, mas para descobrir a matéria de que são feitos […]” (BRESSON: 1979, p. 41 apud GENARO: 2015). Assim, antes de dar uma imagem o cinema

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tem a capacidade de suspender as imagens rígidas e limitadoras, afetando o próprio sujeito. Minuto Lumière: mediação e acaso Adriana Fresquet dedica todo um capítulo de seu Cinema e educação à presença do Minuto Lumière na educação. Nesse trabalho, Fresquet retoma um diálogo entre Henri Langlois, Eric Rohmer e Jean Renoir em torno da mise-en-scéne dos Lumière. Um debate que no limite é sobre a imagem mesmo e a necessária distância com o real, uma distância que pode ser percebida e experimentada quando o Minuto Lumière é realizado na escola. Nesse diálogo, Langlois faz uma defesa da poética dos Lumière e dos operadores que rodaram o mundo com as câmeras dos irmãos de Lyon. Cito um longo trecho dessa conversa que explicita a descoberta da criação na representação com o cinema. O problema é que, nas origens do cinema, ele tinha X metros e nada mais. E nesses X metros tinha que se compor algo. Se olhamos com atenção os filmes de Lumière, parecem muito espontâneos; colocamos a câmera na rua e a rua desfila, se o resultado é bom nós guardamos, se não jogamos fora.... Nós dizemos: é o acaso. Mas não é acaso, porque há planos de Lumière que são evidentes. Por exemplo, quando vemos em um filme de Louis Lumière, como que por acaso, [...] o filme começa com um bondinho que entra no quadro pela direita. Há uma sucessão de movimentos e termina com um bondinho que entra no quadro pela esquerda. Acredita que isso é fruto do acaso? Em absoluto. Eles buscaram uma boa localização, observaram durante um tempo o que acontecia. Escolheram o melhor ângulo, e conseguiram algo extraordinário, algo que esquecemos, que, durante esses segundos, conseguiram introduzir em uma imagem, sem alterar o lugar da câmera um máximo

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de planos, o primeiro plano, o plano médio, o americano, o geral, com um movimento que os une a todos. Não é acaso, é técnica. [...] o mais maravilhoso dos filmes de Lumière é que ele não nos ensina a história, mas a vida. E a vida não é o que todo o mundo pensa [...]. Situar a câmera, mostrar as pessoas que passam pela rua... a vida é algo mais profundo, por isso os filmes de Lumière são tão importantes. A vida não é só o aspecto exterior, é o aspecto profundo, a filosofia da época, da arte da época, do pensamento da época, dos costumes da época. E seus filmes refletem tudo isso (LANGLOIS apud FRESQUET: 2013 p. 74)40.

De alguma maneira, Langlois volta a se filiar a uma certa compressão da vida humana a partir de mil outros elementos que a cerca e a constitui, uma vida que, pela superfície do que é visto, o cinema consegue documentar. Peter Pál Pelbart, pensando o cinema com Gilles Deleuze escrever “que o plano fixo, como coloca o cinema, sobretudo, o livro Imagem-tempo, não é a imobilidade, mas precisamente a coexistência de todos os micromovimentos, da molecularidade agitando-se em um único plano...” (PÁL PELBART: 2013, p. 331) em que todas as coisas se moverão. Ou seja, não apenas o plano dos Lumière já trazia muitas das possibilidades criativas do cinema, como é no plano fixo que podemos já identificar algo essencial ao cinema – a interconexão de todos os movimentos. Mas podemos ir além: o plano determina ainda um fora de campo, sobre o qual o próprio Deleuze escreve: “Num caso, o fora de campo designa o que existe algures, ao lado ou à volta: num outro, o fora de campo designa uma presença mais inquietante, de que nem sequer se pode dizer que ela exista, mas que ela ‘insiste’ ou ‘subsiste’, um Algures mais radical, fora do espaço e do tempo homogêneo” (DELEUZE: 2004, p. 32). A fixidez da câmera e os limites dos filmes dos Lumière se abriam assim para um engajamento dos sujeitos ali colocados em suas deci40 Original da conversa, disponível em: . 

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sões estéticas – como aponta Langlois –, bem como para uma relação entre o que é visto e o que não é visto, um dentro e um fora de quadro, um visível e um invisível, uma atualidade e uma virtualidade. No limite, um plano é a copresença do sujeito e da materialidade do mundo, sem que um esteja submetido ao outro, e, simultaneamente, um fio estendido para um fora que aponta para um não-sei-o-quê de possibilidades que podem ou não se atualizar, adentrar o campo, alterando a relação interna dos micromovimentos que vemos no quadro. Um Minuto Lumière realizado41 em uma escola de Belo Horizonte que funciona dentro de um Centro Socioeducativo – em que os adolescentes podem ficar até três anos internos – nos desafiava a pensar o próprio exercício e suas possibilidades. A professora e a mediadora, depois de apresentarem o exercício e mostrar planos feitos pelos irmãos Lumière, começaram uma reflexão sobre o plano que cada grupo desejava realizar. Um dos grupos, entretanto, disse que não gostaria de fazer plano algum, uma vez que todos os planos que eles haviam visto aconteciam na rua e eles não podiam sair dali, estavam presos àquele lugar. De alguma maneira eles haviam entendido a essência da proposta: a circulação, a experiência com a alteridade, o conhecimento e a descoberta da comunidade. O professor foi colocado em uma situação limite: seus estudantes entendiam a proposta e era essa compresão que os impossibilitava de realizá-la. Diante desse impasse, a professora Josiane Félix teve uma saída brilhante. “Façamos o seguinte, vocês irão me descrever minuciosamente o plano que gostariam de realizar: o que ele mostra, onde está a câmera, como começa, como termina, de onde vem a luz, os movimentos no interior do plano etc. Depois que o plano for intensamente imaginado e discutido, eu mesma irei realizá-lo, o mais fielmente possível às suas intenções”. Os jovens descreveram: no Parque da Municipal, situando no centro de Belo Horizonte, uma senhora costumava ir lá todos os

41 Mediação de Marília Dias – Escola Estadual Jovem Protagonista. 

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dias fazer tricô ao lado de um chafariz. Eles, os jovens, frequentavam o parque e, muitas vezes com fome, a senhora lhes pagava um sanduíche e um refrigerante. Eles queriam uma imagem dela com o chafariz. Durante a semana a professora foi ao parque e confessou ficar surpresa ao encontrar a senhora exatamente no lugar em que os rapazes haviam descrito. Ela explicou para a “personagem” porque estava ali, o que a deixou bastante tocada, e, com sua ajuda, fez o plano dirigido pelos garotos sem que eles estivessem presentes.

A jogada de mestre da professora produzia pelo menos dois movimentos inesperados nesse Minuto Lumière; primeiramente ela gerava uma representação em que a mediação era dobrada. No lugar do contato dos estudantes com o que eles queriam filmar através da mediação da câmera, uma nova camada se colocava. Uma camada que passava pela necessidade de uma imaginação coletiva e da presença de uma terceira parte – a professora. Essa representação dobrada, explicitava a dimensão necessariamente mediada de qualquer representação, uma mediação que demanda criação e imaginação, algo que o documentário moderno explorou intensamente. Com Jean Rouch ou Glauber Rocha, a ficção sempre foi uma forma de adentrar a realidade. Ou, como disse certa vez o cineasta Eduardo Coutinho sobre seus documentários: “Eu quero as aparências! Esse é o lugar em que o cinema me interes-

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sa” (COUTINHO: 2008, p. 191). Em segundo lugar, a proposta da professora trazia a possibilidade dos olhos serem emprestados, a possibilidade de vermos pelos olhos do outro em um sistema de tradução em que o outro traz o real e ao mesmo tempo se faz presente. Como define Bruno Latour: “Traduzir é ao mesmo tempo, transcrever, transpor, deslocar – e então transportar transformando.” (LATOUR: 2010, p. 30). Se o próprio cinema é um sistema de traduções, ao acrescentarmos novas camadas na representação, talvez estejamos ainda mais próximos do cinema e de suas possibilidades. O cinema não é apenas uma variação de pontos de vista pessoais, mas uma imagem que se faz na invenção que não pertence a um ou outro sujeito, mas que se faz em copresenças entre sujeitos que afetam a imagem. Mas, e a verdade dessas imagens? Garantida e presente. A verdade no cinema está na falha que existe entre o objeto e a imagem. Na semana seguinte a professora voltou à escola e exibiu o plano aos estudantes, que a partir desse momento se engajaram enfaticamente ao projeto. Diante do plano, eles fizeram apenas uma solicitação: queriam que a professora “usasse aqueles efeitos de Instagram” e deixassem a imagem com “cara de velha”, para ficar mais próxima da memória deles. A criação e a mediação pediam agora filtros e correções de cor. Novas camadas inventivas para chegar na realidade. O debate de Langlois talvez fosse melhor colocado se não precisássemos fazer uma oposição entre criação/técnica e acaso. No caso dos Minutos Lumière, há uma forte presença dessas duas dimensões que produzem uma imagem. Para que o acaso possa aparecer e deixar a marcas de um certo encantamento do mundo, onde o não-roteirizavel, o imprevisto e o não dominado por ninguém possa irromper na imagem, é preciso um olhar que não apenas observa, mas que constrói uma situação de observação. Uma observação atenta demanda um deslocamento em relação às velocidades do mundo e às demandas da ação. Se nossa atenção é constantemente requerida por imagens e informações, para que o

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acaso se transforme em uma cena, é preciso antes construir a cena; o que implica em pensar um ritmo, um recorte, uma espera e uma disponibilidade. Essas escolhas, como apontava Langlois, dependem enormemente de uma preparação, de um conhecimentos dos movimentos e formas que não dependem de acaso algum. O acaso só existe quando sabemos o que é esperado, por isso sua força desroteirizante e encantadora. Nesse sentido, quanto mais dominamos uma situação, mais realçada é a aparição do que rompe nossas expectativas, mais tocante é a revolta do mundo à ordem que pretendemos lhe impor. Uma das forças do cinema documental, como um Minuto Lumière, é essa abertura para o acaso. No filme Boca de lixo (1993), de Eduardo Coutinho, por exemplo, há uma cena em que o cineasta está filmando pessoas que trabalham catando lixo em um depósito da cidade. Ao passar a câmera por trás de uma dessas pessoas, vemos que ela veste uma camiseta de uma universidade em que se lê “arqueologia”, em português e em árabe.

Subitamente, o gesto do catador de lixo encontra o gesto do arqueólogo que explora, em um pequeno pedaço de terra, vestígios de vidas e corpos. A cena, por ser demasiadamente explicita, se torna impossível na ficção; no documentário, entretanto, se torna um susto, uma surpresa, uma montagem em que dois universos distintos se aproximam pelo acaso. O acaso, neste plano, estende uma linha entre humanidades presentes e históricas.

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Em Pirenópolis, Goiás, o mediador Anderson Melo narrou sua experiência com o Minutos Lumière em uma cena banal, que das mais diferentes formas vimos acontecer em vários lugares. Certa vez, um aluno construiu seu quadro, na execução de um Minuto Lumière, explorando a paisagem de uma rua de uma das regiões mais pobres da cidade, com a serra e o céu exuberantes ao fundo. Havia ainda um detalhe singular que compunha também o quadro, um Fusca velho, com um colchão amarrado sobre o teto, estacionado em frente a uma das casas da rua. Subitamente, durante o minuto de filmagem, uma criança aparece correndo no quadro, girando com a mão uma corda sobre a cabeça. A corda lhe escapa, cai sobre o telhado da casa. A criança entra pela porta da casa, e sai acompanhada de um adulto, que sobe sobre o colchão amarrado no teto do carro, puxa a corda com um rodo e a devolve para a criança. O plano termina com a criança correndo e dando pulinhos de alegria, girando novamente sua corda sobre a cabeça. Alegria, encontro, inventividade. Ao mirarmos uma câmera para um lugar qualquer do espaço, captamos algo além do que se apresenta visível aos sentidos do corpo, captamos algo de imponderável, de inefável, algo que jamais poderá ser reproduzido ou ocorrido da mesma forma, uma singularidade que surge do movimento de espontaneidade dos sujeitos, ali interagindo.

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Há no acaso, ainda, uma dimensão política que nos parece imediatamente poética. Algo acontece sem que nada nem ninguém possa prever, como se, subitamente, em uma imagem, múltiplas forças, desejos e presenças viessem deixar suas marcas. Como se a imagem estivesse sempre em tensão com o que ainda não a compõe, aberta a existências e formas de habitar o mundo que estão fora de quadro, que não vemos nem imaginamos, mas que estão ali, flutuando em mundos possíveis. O efeito do acaso na imagem é o encantamento do mundo como um todo. A partir de um plano onde algo inesperado acontece, são todas as coisas que se tornam grávidas de uma desordem poética. Experimentar o mundo politicamente é saber que o que há é passível de desestabilização e transformação, e para isso, podemos nos organizar e criar para que forças que ainda nem sabemos existir venham se juntar a nós. Uma sensibilidade comum Na escola Dona Maria Teresa Corrêa, no Recife, o professor Raphael França analisava com a sua turma as fotografias feitas na comunidade do Alto José do Pinho, a partir do primeiro dispositivo proposto pelo material de apoio: “Recortar molduras em papel e enquadrar imagens do cotidiano levando em conta os elementos de composição. Fotografar este enquadramento mantendo as molduras de papel na foto”42. Uma das fotografias apresentava uma mulher sentada à porta de casa enquanto uma criança brincava no chão na rua, à sua frente. Com a câmera distante, a fotografia chamava atenção pela composição, pelas linhas da perspectiva e por sua relação cromática. Durante a apresentação, a autora da foto, uma menina de 13 anos, disse: “Essa mulher é usuária de drogas”. Um de seus colegas completou: “De crack”. A partir disso teve início uma conversa sobre a nossa percepção daquela imagem. Para nós, que não conhecíamos a mulher, ela era apenas uma mulher sentada na porta da sua casa com o filho. Tranquilamente ela via a 42 Ver anexo página: Molduras e máscaras. 

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vida passar, cuidava da família, observava o final de tarde; era o que estava na imagem. Nada apontava para o fato de ela ser usuária de crack. Como a imagem não produzia nenhuma marca da relação com a droga, ficamos mais próximos daquela mulher, algo que causava estranhamento aos próprios alunos. Uma situação banal colocava aquela pessoa como mais uma da comunidade. Poderíamos dizer que, por conta da imagem, havia uma igualdade que se fazia entre os alunos e aquela mulher. Com a imagem foi possível conversar sobre a questão das drogas e do preconceito em relação ao usuário. Percebíamos que a mulher, antes de ser uma usuária, vivia uma experiência sensível na rua, na frente do filho, observando o mundo como qualquer outra pessoa; “como nós também a observávamos”, concluiu um aluno mais velho. A relação com o outro ali se fazia de maneira discursiva, pelo debate que a foto não temática suscitou; mas também afetiva, pela forma como a estudante foi tocada por uma sensibilidade comum à usuária de crack. Como colocou César Guimarães: “Se as imagens podem criar um comum entre os espectadores é porque ela liga os separados sem preencher a distância que se abre entre eles” (GUIMARÃES: 2015 p. 5). Essa colocação é especialmente importante. A sensibilidade comum traz uma presença do outro sem que haja harmonia. O comum aqui poderia atuar mais como a perturbação que o outro traz à sensibilidade de um sujeito do que a produção de um consenso entre sensibilidades. Nesse sentido, há uma identificação, mas uma distância também. Uma comunidade existe na medida em que processos subjetivos são afetados pelos sujeitos que nela se inventam, em uma interação entre singularidades que não se excluem de um destino comum. Voltando às nossas opções metodológicas, ao que parece, se a questão das drogas aparecesse antes da imagem, se o exercício fosse pautado pelo tema, estaríamos provavelmente reforçando preconceitos e não produzindo a possibilidade de uma igualdade sensível que se efetivava no debate. O mais difícil é romper algumas barreiras sensíveis e perceptíveis que organizam o lugar dos

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corpos, das falas, do que é considerado ou não na comunidade; isso vale para as opções sexuais, as marcas de classe ou de raças. Nesse cotidiano da escola, ficava cada vez mais claro a urgência de pensarmos os direitos humanos nessas fronteiras das sensibilidades e visibilidade, permitindo que as demarcações rígidas de quem faz ou não parte de um mesmo universo comum sejam perturbadas por experiências como a dessa menina que fotografou a usuária de crack. De alguma maneira, o cinema faz buraco no que é conhecido pela comunidade, no esquadrinhamento do que deve e pode ser sentido e do que deve ser visto ou não em um grupo. No sentido que fala Rancière (2005), o cinema inventa um recorte sensível, ao mesmo tempo em que perturba as partilhas dadas. Estas demarcações produzem exclusões, preconceitos e limites subjetivos para a aceitação do outro. A desorganização dos lugares de fala e visibilidade é o início da política, uma política que só começa quando o eu se diferencia dele mesmo, quando o eu não é igual a ele mesmo e pode ser atravessado pelo outro. Talvez não tenhamos outra forma de seguir no cotidiano a não ser utilizando nossos recursos sensório-motores, aqueles que fazem com que entremos em uma escola laica com uma cruz em cada sala sem que nem mais percebamos as marcas de um poder atuando. São os mesmos recursos sensório-motores que fazem com que andemos pela rua e consigamos dar um passo a mais ao vermos pessoas utilizando crack e sendo levados a contragosto para abrigos. Há, nesse processo, uma sensibilidade que se organiza para tornar possível uma motricidade. Não é sem pesar que vemos crianças de três ou quatro anos se indignarem com a pobreza, perguntando: mãe, por que existe pobre? E, logo depois, se tornarem como todos nós, imunes ao ataque que a impossibilidade do outro viver plenamente as suas potências traz à própria comunidade. Educamos nossos filhos e alunos assim, comendo Nestlé, “porque não é possível se opor a tudo o tempo todo”, e cientes do desastre ecológico que nos cerca. A possibilidade de continuarmos

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no cotidiano violento, entre o crack e a Nestlé, demanda um espaço em que saibamos circular, em que se conheça as coordenadas, em que se saiba para onde ir. Já o evento político que altera o sensível, que perturba uma certa ordem da comunidade acontece justamente no momento em que esse topos se perturba, onde as coordenadas não estão mais tão claras. No caso da usuária de crack, é como se uma mesma imagem tivesse duas formas de habitar a sala de aula. A primeira como aquilo que sabemos o que é; o que nos permite um julgamento e uma organização em que o representado é rapidamente rotulado. Uma segunda em que há uma suspensão das formas de compreensão do que vemos; antes de uma nova organização, uma perturbação do sensível que se dá pelo que há de comum entre quem vê e quem é visto, sem que qualquer harmonia se estabeleça. Sim, houve uma mudança na comunidade para que a mulher, consumidora de drogas, como disse a estudante que a fotografou, fosse de alguma forma vista como uma igual. Nesse sentido, o que se altera é o estatuto daquela mulher na comunidade aos olhos da criança, ao mesmo tempo em que há uma mudança sensível no próprio sujeito, explicitando a implicação inalienável entre devires individuais e coletivos. Não isolar o outro é o princípio para a possibilidade de criar junto, de inventar um mundo comum. Mas há mais uma dimensão nessa transformação sensível da comunidade. Uma coisa seria dizermos que se aquela mulher que é vista dentro de uma possível igualdade com os jovens passa a fazer parte do mundo que já pertence aos jovens, ou seja, como se já houvesse um mundo pronto que, a partir de um acontecimento, passa a aceitar aquela mulher; outra, que nos parece mais adequada, seria pensar que tal mudança no sensível não é a ampliação de um mundo preexistente, mas a criação de um movimento no próprio mundo. Ou seja, não se trata de integrar a usuária de crack ao mundo dos meninos mas constituir um mundo comum em que a dor do outro afeta a todos, sem que estes formem uma unidade ou uma harmonia. Essa distinção é fundamental, de outra forma, o direito humano é sempre o “meu direito humano”, aquele ao qual

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o outro deve se submeter. Mais do que aceitar, a invenção de uma comunidade com a diferença não se faz com harmonia ou com resolução de conflitos. Uma vez que a diferença é parte, ela passa a constituir a comunidade, fazer parte dos caminhos dessa comunidade. Em relação ao crack, nos perguntaremos menos o que fazer com o usuário ou como excluí-lo, mas como funciona uma comunidade em que há usuários de uma droga tão destrutiva. Da gravidade das imagens Fuck you, I won’t do what you tell me. Rage Against the Machine

Nossos dispositivos foram fortemente marcados pela história e pelos debates em torno do documentário e do cinema ensaístico. Este livro está repleto de justificativas fragmentadas para tal escolha e, uma delas, nos leva a dizer que escolhemos o documentário porque nele nenhum gesto é inconsequente: a luz que se acende, a palavra que se dirige ao outro, o tempo da escuta, a imagem do outro que deixa a rua e vai para uma sala de cinema ou para a televisão, a presença dos corpos no presente; nenhum desses movimentos se faz sem consequências incalculáveis. O cinema documentário é necessário, também, porque nenhuma outra produção de imagens coloca tantas questões ao mundo das imagens. As imagens do documentário levam ao limite a questão que deveria ser central: o que é fazer uma imagem? No dispositivo Lá longe / Aqui perto queríamos enfatizar as diferentes formas da câmera se aproximar de alguém, as formas de enquadramento e a necessária relação que a câmera e o cineasta estabelecem com aquele que ele deseja filmar. O dispositivo é simples: trata-se de fazer três planos de uma pessoa desconhecida e, em um quarto plano, entregar a câmera para a pessoa filmada para que ela mesma faça o plano que desejar. De uma maneira lúdica, desejávamos voltar também a experiências frequentes do melhor

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cinema brasileiro como Jardim Nova Bahia (1971), de Aluysio Raulino, O prisioneiro da grade de ferro (2003), de Paulo Sacramento ou, mais recentemente, Rua de mão dupla (2004), de Cao Guimarães, Doméstica (2013), de Gabriel Mascaro, como se tivéssemos um subtexto: filmar o outro pode ser compartilhar os meios, deixar o outro filmar, sabendo, obviamente, que isso não garante nenhuma autenticidade na representação do outro. No trabalho em Niterói com esse dispositivo, o mediador Eduardo Brandão nos trouxe uma situação que não esperávamos e que despertou um forte debate com a turma. Eduardo trabalhava com adolescentes em torno dos 13 anos, quando um deles escolheu um senhor em uma esquina que varria a rua para ser o personagem no exercício. Antes dele, as crianças já haviam realizado o dispositivo com outras pessoas, mas quando chegaram nesse senhor, o dispositivo foi questionado. Parte importantíssima desse trabalho é compartilhar com o jovem a responsabilidade sobre o que filmar; não se filma qualquer pessoa, de qualquer jeito, filma-se o outro, e essa imagem é negociada; parte fundamental da responsabilidade de se fazer uma imagem. Esse senhor aceitou ser filmado, mas no momento de receber a câmera disse que não queria filmar. Os alunos já haviam explicado que era simples, e ele disse saber disso e acrescentou “vocês já filmaram o que tinha que ser filmado”. Subitamente nosso dispositivo estava desmontado. O personagem escolhido pelas crianças se impunha não pelo que iria filmar, mas por dizer que sua escolha não teria nenhuma exclusividade, nenhum privilégio por ser o olhar dele; ao mesmo tempo, enfatizava a gravidade – a importância – da imagem. Sua honrosa postura era dizer “não” como parte fundamental da relação com o outro. Não seria apenas para satisfazer os jovens que ele filmaria – para fazer o seu plano seriam necessários reais motivos para isso. Os acontecimentos daquele dia foram levados para a sala de aula e a mais importante questão não veio de nenhuma das imagens feitas pelos alunos, mas a opção do senhor em não fazer nenhuma imagem. Tínhamos a impressão de que os jovens subita-

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mente percebiam que uma imagem não era algo banal e que, tão importante quanto fazer uma imagem é não fazê-la ou, ao menos, nos perguntarmos sobre a pertinência de “mais uma imagem”. Depois do debate fomos para a montagem. A edição do dispositivo não poderia ser mais simples. Os quatro planos são colocados um depois do outro. Mas o que fazer com a montagem no dispositivo em que uma imagem faltava? Se apenas deixássemos três planos jamais teríamos qualquer relação com a recusa do senhor. O mediador Eduardo Brandão, que nos narrou essa história, conta: “Na realização dos outros dispositivos, frequentemente encontramos pessoas que se sentem desconfortáveis em aparecer na câmera, mas nunca em filmar. Por que aquele senhor aceitara, sem incômodo, ser filmado, mas se recusara decididamente a segurar a câmera? Imediatamente as crianças começaram a esboçar hipóteses sobre aquele personagem. Naquele momento, nossa discussão virou uma pesquisa sobre aquele homem, a partir das imagens que a gente tinha e, claro, sobretudo, pela imagem que a gente não tinha, que o personagem havia se recusado a nos dar”. Um desdobramento tão rico para esse dispositivo depende da perspicácia dos professores em ação e da possibilidade do exercício encontrar formas de se transformar, incorporando novos atores, fazendo daquele que é filmado um ator e não um objeto que deve ser bem enquadrado e fotografado. Sem querer, os jovens haviam encontrado um Ernesto. Como dizíamos acima, ouvimos com muita frequência: “as crianças e adolescentes estão o tempo todo filmando tudo”. De alguma maneira isso é verdade, mas é nesse momento que talvez o cinema se faça mais necessário. Inclusive para que esse “tudo” comporte alguns nãos, como o do senhor filmado em Niterói. Em uma outra oficina do Inventar, um professor nos contou a seguinte experiência: “Durante o trabalho, fizemos um exercício com fotos em que cada participante da oficina deveria fazer imagens respeitando certas questões formais que havíamos estabelecido anteriormente; profundidade, perspectivas e diferentes camadas de

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interesse no quadro; primeiro plano, segundo plano e fundo. Para o exercício, não definimos quantas imagens cada participante faria. Cada grupo de três alunos saiu com uma câmera. Durante uma hora circulamos pelo bairro. Os alunos voltaram para a sala de aula com os cartões de memória lotados e sem nenhuma organização. Descarregamos as imagens em um grande HD e fomos assisti-las. Como rapidamente percebi, as imagens eram parecidas e os alunos não conseguiam dizer qual das imagens era a escolhida ou qual deveria ser discutida com a turma. Um pouco no susto tomei a decisão: vamos ver com atenção todas as imagens; o que beirava o insuportável. Fizemos isso e era como se os alunos tivessem percebido que uma imagem não é apenas colocar alguma coisa em um HD.” Esse relato nos aproximava de uma preocupação comum aos professores com quem convivemos. A preocupação de discutir com o aluno a necessidade de uma reflexão sobre fazer uma imagem, sobre o gesto banal de fazer mais uma imagem com dispositivos portáteis sempre junto ao corpo. Imagens que, mesmo banalizadas, continuam sendo imagens, construindo e falando sobre o mundo. Representando pessoas e espaços. Essa brevíssima experiência nos conectava com um dos desejos que nos movia no Inventar. O desejo de compartilhar uma certa crença nas imagens, sua gravidade, sua não descartabilidade e, ao mesmo tempo, a responsabilidade em produzir e compartilhar uma imagem. Lembremos de filmes como O fio da memória (1991) de Eduardo Coutinho, Carta para Jane (1972), de Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin ou Sur la plage de Belfast (1996) de Henri-François Imbert, filmes significativamente diferentes mas baseados em uma imagem, ou em uma sequências delas, dispostos a investigar e desdobrar essa imagem; dedicados ao que elas representam, claro, porém mais do que isso, às linhas que se abrem a partir de suas condições de possibilidade que são também políticas, ideológicas e materiais. Para os meninos e meninas que fizeram mais imagens do que poderiam suportar, nos restaria ainda perguntar: Como devolver o mundo às imagens que se multiplicam?

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Ritmo Ver filmes e imagens não é acumular, mas estar com o filme, vê-lo e revê-lo, mas, para isso é preciso tempo. É preciso dar tempo ao conhecimento. É preciso ter tempo para a experiência. Por vezes não são os filmes que estão amarrados ao clichê e perderam o mundo, mas nossa própria impossibilidade de nos autorizar o ritmo do outro, como se os ritmos do mundo fossem únicos, prontos para neles entrarmos sem esforço ou crítica. Assim, perdemos o tédio, a lentidão ou as hipervelocidades. A escola, com suas faixas etárias, grades curriculares e anos escolares, está constantemente dizendo qual é o lugar da criança e qual o ritmo adequado para ela crescer. À criança, nenhum tempo é dado para que ela encontre o seu lugar. O controle do tempo, seja no esquadrinhamento, seja na ocupação constante, se configura como poderosa forma de controle. A otimização do tempo não parou de ganhar novas feições com horários demarcados, arquiteturas hiperfuncionalizadas e sem espaço de encontro ou dispersão, professores ganhando por hora-aula, sinos e sinais sonoros para demarcar a passagem do tempo e constantes passagens de nível. Todo esse intenso esquadrinhamento está constantemente produzindo um aluno que não pode perder tempo, que com sete anos se sente intensamente ocupado e com 11 passa por testes vocacionais. Certa vez, em uma escola de Niterói, estávamos acompanhando uma oficina ministrada por um aluno da UFF. Me chamou atenção um jovem de aproximadamente 12 anos que se mantinha um pouco afastado do grupo que entusiasmadamente rodeava o mediador, o professor e a câmera. Me aproximei do rapaz e depois de quatro ou cinco minutos de conversa ele me disse que quando entrou na escola houve um erro e ele estava sempre “atrasado”. “Se em vez de nascer no início de maio eu tivesse nascido no final de abril, eu estaria certo”. Alguma coisa acontecia naquele ambiente que fazia com que o rapaz recebesse informações constantes de que tinha uma inadequação temporal em relação ao grupo. A esco-

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la dizia que ele não estava entre as pessoas que deveria estar e esse “desacordo” organizava e justificava todos os outros. Intuitivamente, a relação com o tempo nos trabalhos que propúnhamos tinha uma especial atenção: primeiramente não queríamos definir trabalhos por faixas etárias, mas deixar que cada um colocasse nos exercícios o que tinha para ser colocado, sob a mediação dos professores. Definitivamente não gostaríamos de cair no discurso que isolou o aluno de Niterói; nesse sentido, tivemos respostas bastante positivas sobre os trabalhos feitos no contraturno das escolas – 57% das oficinas do Inventar. Frequentemente essas eram turmas em que havia uma forte heterogeneidade etária. Algumas escolas tinham alunos de 11 a 17 anos na mesma turma, recolocando um espaço de interação entre diferentes idades; o que é facilitado por exercícios que não exigem uma educação formal mais avançada. Dispositivos como o Minuto Lumière, Máscaras e Molduras ou História de objetos podem ser feitos por crianças bem pequenas, assim como são estratégias utilizadas por importantes cineastas profissionais, basta lembrar o filme Lumière e Cia (1995)43, em que cineastas como Theo Angelopoulos, Youssef Chahine, Peter Greenaway, Michael Haneke, James Ivory, Abbas Kiarostami, Cedric Klapisch, Jacques Rivette, Wim Wenders e Zhang Yimou, entre outros, refazem a experiência do Irmãos Lumière, utilizando uma câmera original. Em segundo lugar, desenvolvemos dispositivos em que indicávamos um tempo de execução que não tinha nenhuma obrigatoriedade de ser cumprido. Em uma de nossas intensas reuniões de acompanhamento do projeto, no Kumã, uma das coordenadoras regionais nos avisou que um mediador estava preocupado porque ele não ia conseguir fazer o projeto todo. Nos entreolhamos sem entender direito o que era esse “todo”, uma vez que não imaginávamos uma linearidade. Mas, para o mediador, que apesar de ter passado pelo período de formação em Niterói e estar em constante contato com a gente, se ele não cumprisse o tempo dos 43 Adriana Fresquet faz uma atenta análise desse filme em Cinema e educação (FRESQUET: 2013). 

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dispositivos e realizasse o filme-carta no final, estaria descumprindo a temporalidade do projeto. Foi no processo do Inventar que, para nós mesmos, foi necessário ir explicitando que não podíamos entrar na mesma ordem temporal da escola e que era possível imprimir outras formas de organizar o tempo, os resultados e a participação dos alunos. Em outra escola, vivemos uma situação diferente; depois de dois meses de oficina o mediador nos ligou para dizer que estava preocupado. Ele já tinha estado em uma escola quatro vezes e a cada novo encontro o professor tinha organizado a turma para fazer apenas o Montagem na câmera, um trabalho que traz uma certa complexidade. “Eles já fizeram o mesmo dispositivo 4 vezes!”, contava indignado o mediador: “Assim não vai dar tempo de fazer mais nada”. É verdade, dissemos, mas ele já está fazendo muito. De alguma maneira o professor encontrava naquele dispositivo alguma coisa que o mobilizava a continuar. O mediador pareceu mais tranquilo quando o lembramos que os irmãos Lumière haviam feito algumas centenas de “minutos”. Parecia então que nossa tarefa era trabalhar o cinema na escola de forma a mobilizar outras relações com o tempo, permitindo que certas imagens fossem vistas e revistas e que certas práticas encontrassem uma forma de estar com os estudantes que não fosse apenas acumulativa. O cinema assim se distancia de um produto a ser consumido, de uma passatempo divertido ou de uma tarefa a ser cumprida e se autoriza a entrar no ritmo do outro44. Uma temporalidade que se faz na relação, e não verticalmente. Em Florianópolis, certa vez, chegamos em uma escola e, da entrada até a sala de aula, cruzamos com duas turmas barulhentas. Do corredor era possível sentir a intensidade e agitação que percorriam as salas. A professora que nos acompanhava fez um comentário que não era raro em nossas idas às escolas. “Tá difícil de

44 O cineasta Andrea Tonacci diz que fazer um documentário é conseguir andar no ritmo do outro. (Palestra proferida em 2012, na abertura do seminário temático: Cinema, estética e política – Socine). 

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ocupar esses meninos, os professores estão tendo que concorrer com Internet, joguinhos, celulares... Eles (os estudantes) têm sempre alguma coisa mais divertida para fazer”. Eu também, pensei comigo mesmo. Nem sempre os longos trajetos até as escolas das periferias era a coisa mais divertida que tínhamos para fazer naquele dia. Mas, o que a professora colocava, mais uma vez, era como usar o tempo? Como tê-lo a nosso favor, possibilitando múltiplos ritmos de interesse e atenção? Quando no início do século XIX Joseph Jacotot escreveu que “Educar não é entreter”, ele não podia imaginar que a ideia de ligar a educação com o entretenimento ganharia tamanha ressonância. Não é raro que ouçamos formulações como: “a escola deve ser um lugar legal, divertido e animado para poder interessar o aluno. Ainda mais com a concorrência dos dispositivos de comunicação móvel”. Triste fim para a escola. Precisa concorrer com o espetáculo para fazer o seu papel. Se assim for, o jogo está perdido. Até nesse ponto a lógica do espetáculo consegue organizar o debate, como se a escola devesse ser pautada por suas regras. O professor se torna assim um animador, divertido e ágil, com vários truques na manga caso o Ibope caia. O prazer da escola precisa achar um outro tempo, menos imediato que o espetáculo, que mobilize outros afetos. Mais múltiplo que o consumo e que possibilite às crianças e jovens atuarem em velocidades variáveis, em ritmos diversos. Isso não significa, obviamente, um isolamento do mundo e das velocidades contemporâneas. Mas também não significa entregar para o professor o papel de animador/acelerador. Os ritmos do espetáculo e das telas nos mobilizam 24 horas por dia, sete dias por semana porque queremos mudar o mundo ou comprar um pouco mais – nos tiram o sono e nos mantêm no lugar quando viajamos, mas não me parece que seja com essa velocidade que a escola deva concorrer. Se a comunicação contemporânea e o espetáculo são pautados por velocidades excessivas e instantâneas, talvez a escola possa oferecer outras velocidades, enquanto tenta desvendar um pouco do mundo que diz que ela é um tédio.

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Se temos tão pouco para ensinar, o que é questão entre alunos e professores deve ser trabalhado exaustivamente, ou seja, não se abandona nenhuma questão rapidamente: insistimos com o problema, ouvimos muitas pessoas, partimos para as pesquisas. Conhecimento superficial e profundo não estão em oposição na escola, são também um problema de ritmo; da mesma forma que concentração e dispersão são elementos fundamentais para que o conhecimento se produza. Como escrevera belamente Michel Tournier em Sexta-feira ou os limbos do Pacífico: “Estranha prevenção essa que valoriza cegamente a profundidade à custa da superfície e que faz com que “superficial” signifique não “de vasta dimensão”, mas, sim, “de pouca profundidade”, enquanto “profundo” significa, pelo contrário, “de grande profundidade” e não “de fraca superfície” (TOURNIER: 1991, p. 60-61). Com o cinema, se optássemos em formar professores e alunos especialistas, trabalhando em profundidade, provavelmente teríamos mais facilidade, os conteúdos seriam mais claros e palpáveis, mas, ao mesmo tempo, perderíamos o necessário descontrole que incorpora os saberes e possibilidades de cada grupo, possibilitando as combinações frescas. Combinações em que o cinema pode aparecer com um catalizador. O cinema como parte da escola pressupõe encontrar meios para que os estudantes sejam tocados por um filme, por um plano. Talvez o primeiro pacto desse encontro seja o tempo compartilhado. É preciso ter tempo, ver, rever, sair de certa lógica de consumo midiático e da velocidade do entretenimento. Experimentar a imagem sem que a tarefa do aluno seja reproduzir a leitura do professor. Como escreveu Baltasar Gracián, citado por um teórico do tempo, Guy Debord: “A única coisa que temos de nosso é o tempo, do qual gozam até os que não têm morada” (DEBORD apud GRACIÁN: 1997, p. 103). Pedir tempo aos alunos é uma das tarefas mais difíceis, mas igualmente a única coisa que o professor efetivamente pode demandar: compartilhar a ignorância dos professores e alunos, como diz Jacques Rancière, possibilitar que o filme seja um “outro” para que alunos e educadores, juntos,

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cada um com os seus meios, sejam capazes de se aproximar e de compartilhar as experiências que o cinema lhes traz. Como inventar múltiplos ritmos para o trabalho com jovens? Quando os corpos são reduzidos a uma homogeneidade de demandas, reticulados por posturas e atenções monorrítmicas, estamos justamente reduzindo as potências que os corpos possuem de serem afetados e de afetarem o mundo. O ritmo é uma questão política que deve nos interessar se temos os direitos humanos como objetivo. O surpreendente é que com frequência nos deparamos com estudantes jovens que não encontram obstáculo em assistir um filme de Abbas Kiarostami, uma obra experimental de Maya Deren ou entrar na poética de Julio Bressane. Estes jovens, frequentemente mais hábeis que adultos para transitar entre múltiplos ritmos, circulam como se tivessem um estoque de ritmos da atenção guardado em algum lugar, mas pouco usado. Um de nossos esforços foi criar dispositivos que permitissem a circulação no bairro e o encontro com pessoas e histórias, marcas da forte influência do documentário. Para dispositivos como História dos objetos ou Volta no quarteirão, criamos limites temporais para as entrevistas e encontros, no intuito de dar ao momento de filmagem uma intensidade e uma gravidade, como dizíamos. Felizmente alguns desses limites foram rompidos e começamos a nos deparar com entrevistas longas, de quinze ou trinta minutos, realizadas por jovens frequentemente acusados de não conseguirem se concentrar em nada. Um desses encontros nos chegou quase como um material bruto realizado em Belo Horizonte. Uma entrevista com um casal de mais de setenta anos que conta sobre os filhos, sobre a cidade, sobre as transformações do local. Essa circulação e esses encontros não estão prontos. A mediadora Marília Dias, de Belo Horizonte, conta que foram os alunos mesmo que com o tempo foram mobilizando a escola até convencer a direção de que eles deveriam filmar no lado de fora da escola. “Quando eu chegava na escola, contou ela, eu comentava o que encontrava pelo caminho: um botequim-mercearia-sacolão em um mesmo espaço, homens

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e mulheres sentados nas calçadas, becos que eu não sabia onde iam dar etc. Até que os próprios estudantes exigiram da direção que nos deixasse filmar fora da escola”. A escuta ao casal que vemos no filme, acontece em um segundo momento de mobilização. Depois do tempo e da atenção pela história do outro, o grupo volta à escola onde, como narra Marília, “os estudantes falaram sobre parentes e ou amigos que foram para os Estados Unidos trabalhar como pedreiros e faxineiros”. Comentaram sobre o fato do casal ter contado que não conseguiu visto para visitar a filha, “porque não serviriam de “mão de obra” em razão da idade.” A entrevista abriuse ainda para o “debate sobre desigualdades sociais, preconceitos a que estamos submetidos e que reproduzimos sem pensar como se tudo fosse assim mesmo e sobre como os idosos são tratados pela sociedade”. Subitamente, o que parecia dispersão para a direção da escola, se tornava atenção, escuta e profundidade. Lembremos que o cinema é contemporâneo das transformações urbanas que permitiam o vagar sem destino, o passear entre lojas e galerias no anonimato das grandes cidades, a flânerie. Entretanto, em contraste, ele sempre nos exigiu outra presença do corpo. No cinema deixamos vários sentidos de lado para nos entregarmos a visão, à escuta e à imobilidade de uma sessão. Como escreveu Comolli “para se tornar espectador de cinema, o cidadão deve passar de um regime de mobilidade a outro. Renunciar a essa sequência de deslocamentos corporais que caracterizam a flânerie (acompanhada de todo tipo de estados mentais, de agitação à la stase) para adotar uma prostração corporal que deve favorizar uma intensidade psíquica (visão, escuta, projeção mental)” (COMOLLI: 2012, p. 201). Além do interesse efetivo que desperta nas pessoas, é como se o cinema se separasse das velocidades ordinárias e dos ruídos cotidianos, nos mobilizando para uma outra dinâmica dos sentidos, potencializando capacidades de escuta, visão e atenção. Como dizia uma aluna de Belo Horizonte ao mediador Bruno Paes: “sempre passo por ali e nunca havia reparado na forma das árvores, até precisar filmar”.

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Fabular A cultura é algo em que se age e não algo que se aprende sem ação. O cinema pode fazer parte dessa ação, assumindo não o papel de “levar cultura para quem não tem”, mas se colocando na disponibilidade do encontro. Por isso, o cinema não faria nenhum sentido para nós sem a ação e o protagonismo de quem está na escola. Descobrimos que no momento que as crianças produzem seus exercícios e filmes, elas trazem para dentro da escola seus mundos de uma maneira singular, estética e mediada. Enquanto por vezes o funk, a violência, a relação com a igreja ou outras manifestações do universo das crianças são apenas desconsideradas ou proibidas, quando essas questões aparecem pelo cinema, esses mesmos elementos são deslocados da coisa em si para serem discutidos como representação, como aquilo que é parte da comunidade, permitindo e convocando o trabalho dos professores. Nesse sentido, debates sobre questões como bullying, drogas e violência, se tornam mais eficazes e reveladores quando aparecem através de uma narrativa, de uma ficcionalização ou pela voz dos estudantes. Em uma de nossas oficinas, depois de trabalharmos com o professor no contraturno, fomos apresentados ao diretor da escola. Esse diretor reproduziu um discurso que não é raro: “esses meninos são violentos, não têm disciplina e não respeitam nada”. Ele tinha em mãos um exemplo que lhe parecia definitivo. Um jovem de 14 anos havia feito uma réplica em papelão de uma pistola automática, cuidadosamente bem-acabada. Ele até havia dado um nome para o revólver, gravando-o na arma. O diretor confiscou o brinquedo e foi categórico: “Tá vendo? Deu até nome para arma, isso é coisa de bandido”. Nesse momento, o mediador trouxe o cinema para a escola: “Se o senhor quiser posso pensar uma cena com o revólver e discutir a violência com os jovens”. Com essa proposta, subitamente, o objeto foi ficcionalizado e colocado como parte de uma fabulação possível sobre os meninos e sobre a comunidade. A fabulação é antes de tudo uma produção coletiva e estética. Um

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processo de invenção de si e de um dizível que ganha uma dimensão política na medida em que não é reprodução de um discurso modelo, mas parte de um processo de criação que transcende um único sujeito e os engaja de maneira reflexiva na questão. Colocar o revólver e o garoto em fabulação, significa dizer que o revólver não estava mais pronto, representando uma situação acabada e um jovem com determinadas características, mas apto a entrar nas fabulações possíveis com o cinema. Transformando-se em algo que é parte da comunidade, mas que pode também ser narrado, pensado, transformado, brincado. Na escola, diante da proposta do mediador ao diretor – uma proposta que trazia a fabulação para o lugar – o diretor foi categórico: “Não é o caso.” Perdemos ali uma grande possibilidade de reconfigurar uma relação do rapaz que fez a arma com todo o ambiente escolar. Deixamos a escola abalados nesse dia. Nos lembramos de Pedro, personagem de Buñuel em Los Olvidados (1950). Dividido entre a rua e a ordem da casa, sofrendo frequentes violências da mãe e sendo traído constantemente pela gangue da rua. Pedro é envolvido em um assassinato e acusado injustamente de roubo. A fragilidade de Pedro é trágica, cada passo que dá o envolve em problemas maiores. A sequência de traições e exclusões acaba por levá-lo a morte. Morto, ele é traído mais uma vez por amigos que jogam o corpo em um barranco, no lugar de enterrá-lo ou entregá-lo à família. Naquele dia, sentimos fazer parte de um mundo de traições, sem conseguir conectar o jovem com a fabulação. Na escola, tínhamos a sessão de podermos recolocar o estudante como parte da escola – com a fabulação e o cinema – assistindo e discutindo Buñuel. Entretanto isso seria um problema para o diretor que, de alguma forma, vivia o prazer de ter o revólver como exemplo da situação difícil que vivia em uma escola em que as grades organizavam todos os espaços. Através da ficção e da invenção, é possível se explicitar e viver certas situações sem que elas tenham que ser prejulgadas ou

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atribuídas a este ou aquele indivíduo. Ver filmes e entrar no universo do fazer cinematográfico, engaja os alunos com o universo da imaginação e com uma cultura que lhes permite transitar em complexos mundos. O simples deslocamento do revólver para uma oficina de cinema teria colocado a arma, feita com esmero e destreza, como parte de um universo ficcional apto a conectar o jovem com diferentes narrativas, literaturas e artes. Filmes-carta Nos dispositivos que formulamos, havia sempre uma abertura para o improviso, para a relação com o outro e para a criação com elementos propriamente cinematográficos sem que necessariamente houvesse a necessidade de chegarmos a um filme. Era com um certo temor que cogitávamos levar à escola a ideia de que um filme seria realizado pelos alunos. A possibilidade dessa proposta ocupar um lugar excessivo nas práticas, com resultados frustrantes, era grande. No momento que elaborávamos nosso material de apoio, com todos os dispositivos, a professora Rúbia Mércia encerrava sua dissertação de mestrado na UFRJ sobre filmes-carta, retomando vários ensaios importantes da história do cinema. Foi a participação nessa banca de mestrado que me reconectou com os filmes-carta. Essa possibilidade de ensaio, mais do que um gênero, parecia permitir que os alunos realizassem um filme, com liberdade e poucos meios. Uma carta, mesmo que escrita com um lápis sem ponta em um guardanapo ou na margem de uma folha de jornal, pode continuar a ser uma carta forte. Entretanto, a opção de propormos em nossa metodologia um filme-carta não se fez sob grande risco. Trazemos aqui algumas justificativas para essa opção, sem entretanto termos absoluta certeza sobre a efetividade dos resultados, apesar de diversos filmes-carta terem sido realizados com narrativas tocantes e grande engajamento com as questões locais. Tecnologia – Inicialmente, o filme-carta nos interessa pela forma como ele estabelece uma relação singular com a tecnologia. Lon-

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ge de ter que atender a um padrão, ele é facilmente adaptável a diferentes tecnologias. Sem uma norma técnica rígida, os filme-carta são pensados a partir das regras internas que eles propõem e não a partir de um bem fazer em que facilmente conseguimos organizar as hierarquias entre o que é o bom e o mau roteiro, a boa e a má fotografia. Com filme-carta não há filme malacabado, pelo menos não por carências técnicas, o que é libertador quando estamos em oficinas e escolas. Em artigo escrito por Isaac Pipano (2012, p. 28) 12 etapas e uma lição para se fazer um filme carta (em tempos de whatsapp), eles diz: “depois de escrever a carta, pegue uma câmera (leia em voz alta e confira se há erros gramaticais. Caso os encontre, mantenha-os. Se não houver, invente alguns: ninguém confia numa carta sem erros, escrita assim tão verdadeiramente sem rasuras)”. Essa liberdade de meios, enseja uma relação reflexiva com a tecnologia. Algo que nos interessava em uma pedagogia na qual tecnologia é importante, mas que não poderia ter a centralidade. Como costumava dizer o cineasta Alexandre Veras, “é sempre preciso enganar o japonesinho que está dentro da câmera”45. Simondon, de outra maneira, coloca também essa preocupação na relação do humano como os objetos técnicos: “[...] é o trabalho que dá sentido aos objetos técnicos, não o objeto técnico que dá sentido ao trabalho” (SIMONDON: 2012, p. 327). Essa afirmação implica em uma forte politização dos objetos técnicos como atores que não estão prontos a serem usados, mas precisam entrar em relação e transformação com outros elementos. É Simondon ainda que faz uma saborosa observação sobre a perfeição das máquinas. Ele nos explica que quanto mais elas forem indeterminadas, mais perfeitas serão (SIMONDON: 1969). Ou seja, as máquinas mais perfeitas são aquelas cujas capacidades e funções ainda não conhecemos ao certo. Câmeras, microfones, tripés, projetores; essa mistura de máquinas se aproximam da indeterminação mesmo dos dispositivos que propúnhamos. Uma indeterminação que deveria deixar brechas para a entrada dos outros atores; alunos, professores, territórios etc; reforçando nossa pedagogia dos disposi45 Conversa informal em Fortaleza, 2012. 

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tivos. E é interessante que seja também Simondon que tenha se dedicado a pensar a educação e o espaço pedagógico, marcando, a seu modo, o fim da Era disciplinar. Em um texto de 1954, o autor coloca o seguinte: “O século XIX teve que construir em algumas décadas uma sociedade de especialistas, adaptados à Era da termodinâmica, segundo o princípio de rigidez: gerando um reforço da estrutura vertical, tornando-se onipresente e se estendendo mesmo onde antes havia estruturas horizontais. Nós devemos agora fazer em alguns anos uma educação que transforme a sobrevivência das relações verticais em relações horizontais” (SIMONDON: 2014, p. 237). É nessa horizontalidade das relações entre sujeitos e tecnologia que os filmes-carta podem nos ajudar. Reflexividade – Se o cinema produz uma imagem discrepante em relação ao mundo filmado, em que ela é sempre mais ou menos que a realidade, qualquer adequação ideal entre filme e realidade é uma violência. Esse, que é princípio da imagem mesmo, não é uma evidência; somos frequentemente assombrados por proibições em representar isso ou aquilo ou por imagens que se colocam no lugar de substitutas do real. Há uma construção propriamente pedagógica no filme-carta que coloca os estudantes imediatamente no desafio de um lugar parcial ante a realidade. Assim como qualquer estilo ou movimento, todo filme é uma forma de olhar e construir o mundo; se isso é uma evidência, precisamos de instrumentos para o trabalho e o filme-carta nos aproxima de uma multiplicidade de possibilidades e decisões de realização que aproximam os estudantes da singularidade da imagem e da necessidade de um ponto de vista, de um recorte e de uma montagem do mundo. Espectador – Quando Jean-Luc Godard é convidado por Michel Piccoli a fazer um filme sobre os 100 anos de cinema, a prática reflexiva do cineasta devolve a pergunta ao organizador das comemorações: “o que exatamente nós comemoramos?”. “Comemoramos a primeira sessão paga”, responde Piccoli em 2X50 (1995). Na resposta de Piccoli, os filmes universitários ou feitos em escolas não são cinema: compartilham os elementos técnicos e de linguagem,

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mas não têm um público pagante. Certamente que levamos a lógica de Piccoli bastante longe, entretanto, esse é um dos desafios para o cinema feito em espaços educacionais. Como inventar um público? De maneira completamente distinta da noção cara ao marketing e à publicidade, não se trata de pensar um público-alvo. Nas artes, o público é inventado na própria obra, ele não preexiste como um consumidor que deve ser atendido, ou criado com o produto. No caso do filme-carta esse público é dobrado, trazendo novos desafios para os estudantes. Por um lado, elege-se um destinatário – a mãe, o amigo, uma outra cidade, o mundo – constrói-se uma relação dual entre aquele que escreve e aquele que recebe a carta. Por outro, não há apenas dois: é de um filme que se trata e este será visto em grupo, no cinema eventualmente. O filme-carta traz assim um fio estendido que vai do realizador ao destinatário, mas que ao chegar ao destinatário já chega rachado, aberto a uma multiplicidade de destinatários que o cinema virtualmente possui. Essa linha rachada é parte de uma máquina cinema que opera na fragilidade do gesto da carta, e, ao mesmo tempo, na busca do espectador qualquer. O filme-carta possui assim um aspecto relevante nos desafios do ensino: sem espectador não ficamos, ele existe, mesmo virtualmente, mesmo que a carta nunca seja aberta. O estudante tem assim um triplo desafio na relação de seu filme com os espectadores: 1) eles precisam inventar um espectador – não modelo; 2) precisam estar à altura desse espectador; 3) precisam estar preparados para o espectador qualquer, aquele que vai à sala de cinema, que abre o blog da escola, e que faz rachar a linha reta entre destinatário e remetente. O espectador não é assim o outro dos realizadores, mas uma presença em todo o processo. No filme-carta essa presença do espectador é inalienável do seu fazer, o que frequentemente traz um engajamento mais intenso dos estudantes com as imagens produzidas. Não se trata apenas de um exercício, mas de uma relação direta de um sujeito, de um grupo, com um outro. Mas esses desafios não cabem apenas aos realizadores, mas aos próprios espectadores que recebem ou compartilham a carta do outro.

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Nas próximas páginas, teremos com frequência o filme-carta como ponto de partida para algumas discussões e experiências. Em anexo há a orientação para este dispositivo, entretanto, vale destacar que uma de nossas indicações é que o filme-carta seja feito também com a montagem de dispositivos, aproximando três ou mais dispositivos e construindo roteiros e narrativas a partir deles, o que diminuiria a centralidade de um roteiro que partisse do zero. Meio ambiente Questões ecológicas foram uma constante nos filmes-carta. De alguma forma esse foi um desdobramento que nos surpreendeu, sobretudo, por conta da reincidência do tema nas escolas mais heterogêneas. Gostaria de partir desse tema e pensar duas questões com a escola. Primeiramente a urgência dessa questão ser trabalhada na educação de maneira complexa e interdisciplinar; em segundo lugar, gostaria de pensar sobre a dificuldade mesmo de uma relação interdisciplinar – palavra “fraca”, uma vez que mantém a centralidade da disciplina e tende a manter os termos isolados – em um sistema esquadrinhado e que coloca o estudante em frequente ameaça de reprovação. Por um lado, as questões do meio ambiente são de fácil compreensão e mobilização; há uma dimensão das questões ecológicas que todos entendem e compartilham. Poluir, gastar água, não separar o lixo, por exemplo, são percepções dos estudantes que com frequência voltavam aos filmes. Entretanto, tais elementos e gestos aparecem com frequência desconectados de um contexto que abarca muitas outras esferas da vida. É como se aqui a montagem pudesse voltar para nos ajudar a pensar. Ao mesmo tempo em que as questões ambientais estavam presentes, elas pareciam se esquivar da radicalidade da questão, uma vez que não traziam problemas centrais, como as formas de consumo e uso de energia. A esquiva acabava por transformar a mais dramática das questões contemporâneas – aquela que nas próximas décadas produzirá gigantescos números

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de vítimas e desastres sociais irreparáveis – em algo pontual e local, como se pequenos gestos fossem a solução. “Ah, mas os estudantes não estão preparados para a complexidade do problema”, poderíamos argumentar. Não é verdade, primeiramente não há nada complexo. Nossos padrões de consumo – tenhamos eles ou aspiremos por eles – nos levam ao fim da vida no planeta. É simples e sem mistério. Em segundo lugar, crianças e jovens são capazes de lidar com problemas complexos, entendendo as relações entre fatos que podem parecer dispersos e sem conexão: carros poluentes nas cidades, o fracasso do transporte público, o plástico da garrafa em que bebem água, as demandas de consumo na televisão, a seca ao lado de casa, as tempestades inimagináveis em várias partes do mundo e as lutas de terra no norte do país. Montagens que podem ser lidas e construídas por jovens de diferentes idades, produzindo múltiplos níveis de complexidade. Sem entrarmos na larga dimensão da questão, podemos nos contentar com o politicamente correto. Uma opinião politicamente correta pode apenas ser a reprodução de um clichê e isso, na escola, pode ser pior que não trabalhar com essas questões, uma vez que retira o protagonismo dos estudantes e o próprio desafio ao pensamento que questões importantes nos colocam. Mas não se trata de evitar que alunos trabalhem com questões como do meio ambiente, desde que o tema não seja domesticado e transformado em “semana da árvore”. Ou, como escreveu Félix Guattari, sempre extremamente atento às questões ambientais: “Não se trata de proteger artificialmente a criança do mundo exterior, de criar para ela um universo artificial, ao abrigo da realidade social. Ao contrário, deve-se ajudá-la a fazer frente a ela; a criança deve aprender o que é a sociedade, o que são seus instrumentos. Mas isso não deveria efetuar-se em detrimento de suas próprias capacidades de expressão” (GUATTARI: 1985, p. 54). Com prazer descobrimos momentos em que complexidade dos problemas ambientais era trazida com simplicidade. Em um filme-carta realizado em Imperatriz, no Maranhão, e endereçada aos alunos de Florianópolis, depois do aluno falar do prazer de

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olhar “com mais detalhes o que está em nosso redor” e mostrar os detalhes de grãos de areia escorrendo, o filme toma um posicionamento bastante político em que questiona questões ambientais associadas às diferenças de classe; para isso, mostra esgotos a céu aberto em contraste com uma orla cercada de prédios para famílias abastadas, isso tudo depois de localizar Imperatriz no Maranhão e no Brasil. Em um filme de cinco minutos, os alunos de aproximadamente 15 anos, produziram um universo de interrogações que passa por questões sociológicas, econômicas, químicas, físicas, biológicas, históricas e geográficas; tudo isso mediado por problemas de linguagem. Esse filme-carta, endereçado à Florianópolis, poderia também ser um filme-carta endereçado a nós, educadores. As inquietações estão explícitas e para aprofundá-las a escola se apresentaria como um espaço ideal, associando saberes. O breve exemplo do filme-carta de Imperatriz explicita a possibilidade de uma produção de conhecimento transversal às blocagens disciplinares e etárias em que o cinema não aparece para ensinar ciências ou geografia mas é o ponto de conexão entre processos que afetam as vidas dos estudantes e que mobilizam o desejo de conhecer e aprender46. Rio de Contas, três filmes-carta Em Rio de Contas, uma série de filmes-carta bastante heterogêneos nos mobilizou pela diversidade de formas e lugares para os estudantes que esse tipo de exercício poderia ter. Por se tratar de um filme, estamos frequentemente sob o risco de os roteiros e os textos assumirem um lugar excessivo na construção dos exercícios, tornando esse trabalho bastante exigente para professores e mediadores.

46 No caso do Inventar com a diferença, os professores que trabalhavam com o projeto vinham de muitas áreas, explicitando a forma como o trabalho com cinema pode interessar múltiplas competências: artes 15%; história 13%; português 12%; geografia 7%; sociologia 4%; biologia 3%; física 2%; matemática 2%, informática 3%; filosofia 2%; língua estrangeira 2% e professores de ensino fundamental com mais de uma disciplina 15%. 

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Em um dos filmes-carta, realizado com as professoras Joelita Barbosa Nunes e Marlene Araujo Barbosa, com a mediação de Gláucia Soares, descobrimos uma história de fantasmas através da memória oral das crianças e dos adultos da cidade. O filme começa com planos observacionais de natureza, com a tranquilidade de quem tem tempo para olhar e esperar um movimento das árvores ou da água. Há um certo mistério nas imagens que logo depois são acompanhadas por uma narração sobre um estranho evento acontecido anos antes. Uma figura humana desconhecida

teria

feito aparições nas redondezas. Vemos em seguida uma foto que comprovaria essas presenças. Para ampliar o mistério, várias imagens subjetivas nos levam por veredas, como se algo pudesse subitamente aparecer. Paralelamente vemos a foto e uma conversa com dona Maria Rosa que, na porta de casa, conta as histórias. Fundamentalmente, o filme é feito com os dispositivos Fotografias narradas e Câmera subjetiva, uma mistura que não poderíamos imaginar que seria feita, mas que, sem a necessidade de fugir aos elementos básicos e de fácil acesso aos professores e alunos, acabou produzindo um encontro com a comunidade e memórias locais. O filme foi realizado na Escola Juvenal de Oliveira, em Rio de Contas. A mediadora Gláucia Soares nos contou sobre a dificuldade em engajar os alunos, o que foi resolvido com indicações da coordenadora regional, Mariana Porto, com uma solução simples e precisa: brinque. A solução da mediadora foi inventar histórias coletivas que acabariam resultando no “roteiro” para os filmes-carta: “Comecei falando que eu tinha escutado uns sons estranhos durante a Semana Santa e acabamos chegando na história do velho da foto que é conhecida na cidade. Vi que poderíamos trabalhar com o dispositivo Fotografias narradas para esse vídeo. Quando fomos até o Poço Azul me dei conta também que o dispositivo Câmera subjetiva serviria e propus que um deles fizesse a câmera, imaginando que é o ponto de vista de alguém no meio do mato”. A partir da brincadeira, rapidamente o filme partiu para a conversa e uma descoberta da comunidade e de pessoas mais velhas através de associações de dispositivos. A pers-

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picácia da mediadora e dos professores, nesse caso, parece ter sido no encaminhamento e escolhas de dispositivos que permitiam a circulação dos jovens. No lugar de dizer vamos entrevistar dona Maria Rosa, a proposta mais claramente compreendida pelos alunos se mantinha no universo lúdico, “vamos fazer uma fotografia narrada”, o que dava foco aos estudantes e facilitava o trabalho com as regras de onde partem os dispositivos. Em outra escola de Rio de Contas, um outro filme-carta47 explicita como o mediador pode ter múltiplos papéis e o filme funcionar como um disparador para diversos interesses e conhecimentos dos alunos. Gláucia nos conta que após muita conversa sobre o que seria o filme-carta os estudantes decidiram filmar em Ingregil, um sitio arqueológico a duas horas de caminhada e com vestígios de uma cidade pré-histórica. Para ser realizado, o filme precisou engajar um conhecedor da região, um “mateiro”, que vinte anos antes já havia acompanhado um grupo à Ingregil. Nesse dia, uma parte dos alunos deixou o cinema de lado. Para alguns, no entusiasmo com o lugar não coube o cinema. Sem conseguir realmente realizar alguns dispositivos, a mediadora autorizou a dispersão de uma parte do grupo enquanto outro fez imagens do local. Com o grupo mais focado entrevistou o mateiro, personagem central e conhecedor da região. Se por um lado, a grande movimentação dos estudantes em um programa de um dia inteiro para a realização da oficina se mostrava de difícil controle, por outro, mesmo tendo a mediadora assumindo certo protagonismo no filme, foi possível ter o cinema como um disparador para a história, a cultura local, a geografia e o estudo dos povos pré-colombianos48. Algo que está no filme que depois foi finalizado pela mediadora e os estudantes. Um terceiro filme-carta feito em Arapiranga, também com a mediação de Gláucia Soares, aponta ainda para outro processo na realização dos filmes e exercícios. O filme começa com uma car47 Disponível em: . 48 Ingregil foi descoberto em 1984, pelo arqueólogo Gabriel Dannuzio Baraldi. Seus antigos moradores deixaram marcas que hoje tem mais de quatro mil anos. 

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ta. Uma menina escreve e, em off, ouvimos sobre o desejo dela de ser jogadora de futebol. O off tem um explícito tom fabulatório em que a personagem fala do desejo de ganhar dinheiro aos detalhes de um gol que ela fará jogando por grandes times. Acompanham os offs planos bem elaborados, de diferentes tamanhos, entre gerais em plongé a closes dos pés com a câmera colocada na altura do chão, opções que não são evidentes para jovens iniciantes no cinema. Acompanhamos ainda um jogo de futebol, explicitamente feito para o filme, e planos de reação da personagem do filme. Estávamos diante de algo bastante elaborado, em que apareciam relações com o desejo e sonhos para o futuro, sem, entretanto, sentirmos um excesso de presença dos professores e mediadores, um limite sempre extremamente difícil. Mas que, como contou a mediadora, foi fruto de um intenso trabalho de preparação, se opondo intensamente ao filme de Ingregil. “Eles queriam falar de futebol,” ela contou: “Eu perguntava: mas o quê em relação ao futebol? É ficção, é documentário, é futebol masculino ou feminino? Eu ia perguntando e eles iam pensando e respondendo”. Com seu computador ligado ao projetor eles foram descrevendo o filme que queriam fazer enquanto a mediadora organizava as cenas na tela. “Me lembro de um menino, contou Gláucia, bem desatento e bagunceiro que, à medida que o filme ia saindo ali no telão ele ia se ajeitando na cadeira, parando de conversar e aproximando a mesa dele da frente da sala. Um outro, nesse mesmo dia, falou com entusiasmo: “Eu vou fazer um filme, eu nunca fiz um filme!”, como se estivesse surpreso com suas próprias possibilidades. Essas expressões de engajamento com o trabalho e com suas capacidades surgiam da simples tradução do desejo de um filme na elaboração de um plano de filmagem. Um engajamento que vemos fortemente refletido no exercício finalizado. Novamente aqui, o filme tinha a possibilidade de trabalhar questões relativas ao futuro dos jovens a partir de seus desejos, mas mais do que uma explicitação do que gostariam de fazer no futuro, a elaboração veio junto com uma experiência de criação dos estudantes. Como se pensar o futuro e ser

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ativo no presente, confiante em suas capacidades, fossem dimensões inalienáveis. Essas três experiências são ricas pela forma como os filmes foram construídos com diferentes relações com os estudantes. Por vezes é possível acolher os desejos, entrar fortemente no diálogo com eles, usando diferentes dispositivos. Em outros momentos, chegamos ao limite e teremos que respeitar o cansaço, a dispersão e a mudança de foco. Com diversidade estética e temática, essas experiências apresentavam alguns dos movimentos que gostaríamos de ver mobilizados nos filmes-carta; uma relação reflexiva com a comunidade, seus moradores e histórias, a abertura do filme para uma pluralidade de conhecimentos e uma relação inventiva e fabulatória com o cotidiano em que os estudantes assuma o protagonismo e experimentem a criação. Entre grades Um dos marcos do neorrealismo italiano é o filme de Victorio de Sica, Vítimas da tormenta, (Sciuscià) (1946) os personagens principais – Pasquale e Giuseppe – são levados para uma prisão para jovens. O título em italiano, bem mais interessante, deriva da sonoridade do inglês shoeshine – engraxate. Nesses primeiros anos do cinema dito moderno, a preocupação com esses espaços de exclusão que são pautados por um discurso inclusivo, já estava ali. Na prisão há uma breve discussão entre o diretor do estabelecimento e um outro homem, seu assistente, que cobra melhores condições para os meninos. Essa conversa parece ainda bastante atual no momento em que no Brasil – e outros países – se discute a redução da maioridade penal. Ao ser cobrado pelo assistente, a resposta do diretor exprime a lógica que organiza muitos dos discursos. Ele diz: “Isso aqui é uma prisão e não um centro de cuidados. Se você esquecer isso, será para sempre um assistente.” O pragmatismo do diretor é cruel e explicita que o tratamento que ele deseja para os jovens não tem relação alguma com a segurança, com uma reflexão

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sobre a sociedade ou com o futuro dos jovens, mas exclusivamente com seu lugar de poder. Quando começamos o Inventar com a diferença, graças ao engajamento e interesse de diversos mediadores, tivemos a surpresa de ver o projeto chegar a um grupo para alfabetização de idosos, em Belo Horizonte, escolas de educação especial no Piauí e a três escolas destinadas a jovens internos, cumprindo medidas socioeducativas49. No caso dos jovens internos de Centros Socioeducativos, antes da temática dos direitos humanos, o acesso desses jovens aos meios audiovisuais, lhes permitindo experimentar, brincar e narrar com sons e imagens, nos parecia, em si, uma vigorosa intervenção política na vida de adolescentes que terão pela frente desafios gigantescos para não terem suas vidas definitivamente marcadas pelo universo da delinquência e das prisões.

Em uma dessas escolas, no Recife, Caio Sales já havia nos mostrado um Minuto Lumière feito por uma interna. No CASE 49 Apesar de alguns dos vídeos produzidos em CASES terem chegado até nós, muitas vezes nos relatos de mediadores e professores, recebíamos a seguinte resposta: “Os vídeos gravados encontram-se com a diretora de atendimento do centro, não tendo autorização para exibição fora da instituição.” 

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Santa Luzia, a adolescente de 16 anos se filma sem mostrar seu rosto, ao mesmo tempo em que desvenda o que ela chama de pergaminho. Uma carta em forma de rolo de papel, com vários metros de comprimento e com escritos como “eu te amo” em letras garrafais, desenhos, aprendizados e uma forte carga afetiva. Já havíamos ficado tocados com o contraste entre os desejos da menina expressos nesse vídeo e a sua condição em “medida socioeducativa”. Sem nos pedir nada, a menina havia conseguido inventar um “nós” nessa história. Nós que escrevemos, desejamos, inventamos e temos projetos. Por um instante, um mundo comum se fazia entre ela e os que pelos mais diversos motivos tiveram a sorte de não estar ali. Alguns meses depois, esse mesmo grupo produziu um filme-carta em que diversos Minutos Lumières foram montados e narrados50. Em cinco minutos, com simplicidade, o filme traz essa intensa carga documental de que o cinema é capaz. Estão ali presentes, como raramente vemos, a vida de adolescentes em situação de grande fragilidade, sob a tutela do Estado. Muitos dos planos escolhidos pelas adolescentes utilizam as janelas e portas como moldura, seguindo um dos dispositivos do material de apoio: Molduras e máscaras. Entretanto, aqui as molduras são gradeadas. Vemos com frequência a tentativa das meninas em mostrar o lado de fora, fazendo menção ao que elas ainda conseguem ver da rua ou das comunicações que estabelecem com o exterior e com as famílias; como nos pergaminhos. “O tempo vai passando, às vezes vai piorando, às vezes vai melhorando e assim a gente vive a vida da gente aqui nesse lugar horrível”. Escutamos isso enquanto vemos uma janela com grades e do lado de fora as palmeiras que, com o vento, reproduzem o que levou Geoges Mélies a dizer, em 1895, vendo os primeiros filmes dos Lumière: “no cinema, as folhas se movem”. A beleza do filme está nesses pequenos contrastes e na forma como o trabalho com o cinema 50 Mediação: Caio Sales. Orientação: Carlos Tomaz, Lourdes Paz. Realização: E.M.S.S., G.B., G.S.A., M.M.S., P.B.S. Disponível em: . 

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parece ter trazido mais uma possibilidade de reflexão sobre o lugar e a condição das meninas, uma reflexão mediada por uma escritura frequentemente poética em que o extracampo é o mundo todo. Um extracampo brutalmente gigantesco e proibido àquelas meninas.

Mas há ainda outra dimensão política. Com o filme as adolescentes parecem terem adquirido as ferramentas para articular sua própria falta de liberdade. Não apenas a câmera e técnicas cinematográficas, mas um conjunto maquínico, que passa pelo cinema, por festivais51, pela relação com o mediador e com a instituição que permite que as palavras e gestos das estudantes se choquem com os discursos consensuais e normativos sobre elas. A liberdade aparece na possibilidade de expressar a falta de liberdade, na possibilidade da diferença irromper onde deveria estar silenciosa. Com o cinema a liberdade das meninas é experimentada na linguagem mesmo. Nessas imagens, ao mesmo tempo em que o mundo prisional se inscreve, a invenção de mundo feita com o cinema perfaz o desacordo entre o que restringe as capacidades expressivas e inventivas das meninas e essas mes-

51 Em 2014 este filme recebeu um prêmio no Festival de Curtas de Pernambuco. Infelizmente as meninas não puderam deixar a prisão para receber o prêmio diante do cinema lotado. 

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mas capacidades de, apesar de tudo, encontrarem brechas para desenharem um mundo para si. Em um outro Centro de Medidas Socioeducativas, em Belo Horizonte, a professora Josiane Félix fez um emocionante relato sobre seu trabalho com jovens, que, segundo ela, tiveram uma forte melhora em seus resultados acadêmicos depois que começaram a trabalhar com o cinema. Nessa ocasião, em Ouro Preto, ela exibiu o filme-carta feito pelos jovens internos. Novamente, a criatividade da professora e da mediadora contribuía para melhorar os dispositivos que propúnhamos. Para realizar um filme-carta, eles primeiro fizeram uma oficina em que algumas dezenas de palavras-chave foram elencadas como representativas da vida dos jovens ali. Palavras que apontavam para faltas, como: família, amigos e liberdade, palavras que apontavam para o cotidiano do encarceramento no Centro, como justiça, alvará, paciência e estudar. Se a ação ficasse só nas palavras, alguns bons resultados poderiam aparecer no debate, entretanto, o segundo movimento era fundamental. A que imagens e sons essas palavras se conectam? Como entram na narrativa e na experiência dos jovens? Impedidos de mostrar o rosto, por estarem sob a guarda da justiça e serem menores de idade, os jovens são obrigados a buscar enquadramentos nada ordinários para narrar o cotidiano no Centro Socioeducativo. Entortam a câmera, filmam espaços vazios, escondem os rostos com um primeiro plano poluído por objetos como pratos e canecas de plástico ou estouram a imagem, tornando-a tão clara que os rostos não podem ser identificados. Nessas opções, uma impressionante relação entre a forma e o conteúdo se faz presente. Mesmo que as palavras não estivessem presentes, as imagens e os enquadramentos davam conta de uma cotidiano e de uma privação. Ao mesmo tempo em que as imagens eram privadas dos rostos, apagando os jovens, nas opções dos enquadramentos singulares e em conexão com as palavras, os jovens se faziam presentes novamente, talvez com mais força do que se seus rostos fossem mostrados. Por fim, o filme de dois minutos é todo feito com

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uma música. Normalmente aconselhávamos que os filmes não tivessem música em sua totalidade, sobretudo para que as imagens não ficassem submetidas aos ritmos e narrativas da música, como acontece em vários videoclipes. Entretanto, nesse caso os jovens escolheram um rap do Emicida, com participação da cantora Pitty. A música marca uma dicotomia presente nas imagens e nas palavras. Com uma voz suave a cantora começa na primeira pessoa uma situação de dor e isolamento: “Hoje cedo / Quando eu acordei e não te vi / Eu pensei em tanta coisa / Tive medo / Ah, como eu chorei, eu sofri / Em segredo / Tudo isso / Hoje cedo”. Na sequência, o rapper Emicida continua com um tom de revolta e com certa agressividade continua: “Holofotes fortes, purpurina / E o sorriso dessas mina só me lembra cocaína / Em cinco abrem-se as cortinas / Estáticas retinas brilham, garoa fina / Que fita / Meus poema me trouxe / Onde eles não habita”. Quando o refrão retorna, a suavidade da cantora e a revolta de Emicida estão juntas, como que fundindo um sentimento que atravessa as palavras, as imagens e a criação daqueles jovens: a tristeza e uma certa delicadeza, que vemos nos planos e nas palavras escolhidos, com a revolta e injustiça evidente. Nessa história, dificilmente saberemos os efeitos deste trabalho com cinema e direitos humanos nesses jovens, apesar da professora insistir na importância deles para o engajamento dos jovens na escola como um todo, – mas o efeito do relato dessa professora e do vídeo certamente foi intenso em todos nós. Os necessários fracassos Enquanto professores e mediadores trabalhavam nas escolas realizando os dispositivos e filmes-carta, tentávamos assistir o máximo de exercícios produzidos. Apesar do resultado dessas práticas ser apenas uma parte do processo pedagógico, ele nos possibilitava

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ter uma boa noção da abordagem dos mediadores e professores, bem como do engajamento dos alunos. Entretanto, nem sempre chegávamos rapidamente às imagens produzidas. Por vezes, simples problemas de conexão de Internet nos impossibilitava de ver, durante longos períodos, o que era produzido nas escolas distantes. Se os mediadores estavam com os professores nas escolas, isso já era em si algo rico, mas não foi sem uma boa dose de frustração que descobríamos, sobretudo nos filmes-carta, trabalhos que iam no sentido oposto do papel que imaginávamos para os exercícios no projeto. O filme-carta era o único exercício que se configurava como um filme, o que dava ao exercício uma dimensão bastante singular. Talvez, por ser um filme, mediadores e professores acabavam deixando de lado parte do caráter experimental e processual dessa experiência, optando por aderir a formas narrativas mais estabelecidas, perdendo uma certa dimensão ensaística que imaginávamos para esse exercício. No encontro final do projeto que tivemos em Niterói, em 2014, com todos os mediadores e com observadores externos, chegamos a questionar se os filmes-carta deveriam continuar como proposta no trabalho das escolas. Hoje, vendo os filmes e conhecendo os processos, não tenho muitas dúvidas sobre as possibilidades dos filmes-carta em nossa metodologia. Não queríamos reproduzir oficinas de vídeo com crianças em que os filmes possuem a cara do adulto que a ministra e o acabamento de um profissional. Isso não poderia acontecer. Durante o processo de realização de alguns filmes-carta, acabamos tendo esse tipo de interferência: se o filme não transpirar a presença dos estudantes, ele pouco vale a pena. Com frequência aconselhamos também que os mediadores apontassem para a possibilidade de os professores finalizarem seus filmes sem efeitos ou músicas que dessem aos filmes a impressão de clipes. Esses procedimentos acabam desviando a atenção das imagens e dos problemas de montagem. Tratava-se, claro, de uma indicação. Sabemos como às vezes é difícil resistir ao botãozinho que produz uma fusão e nos livra de ter que pensar na passagem seca de uma imagem à outra. Quando

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pudemos ver todos os filmes-carta juntos e escutamos os depoimentos de mediadores e professores, descobrimos a diversidade temática e formal, o engajamento dos alunos e o modo como os filmes foram importantes na relação dos alunos com a escola, com a família e a comunidade. Diria que quando os filmes realizados por estudantes ficam distantes de suas possibilidades na escola, isso se deve a dois motivos principais. 1 – Os filmes excluíam as crianças e se tornavam belos filmes dos mediadores ou dos professores. Como se trata de um filme, há uma preocupação excessiva com o “produto”; aparecem as fusões, os créditos, a fotografia com correção de cor. Os filmes que deveriam ser um material para ser visto e discutido pela comunidade e pelos estudantes como uma produção dos alunos, acabavam por se tornar uma obra em que os estudantes assumiam um papel secundário e os mediadores e professores vinham para o primeiro plano, talvez no ímpeto de mostrar para os outros a “boa forma” de fazer; o que entrava em total contradição com a ideia mesmo do filme-carta: um ensaio sem uma boa forma, ou com regras de realização e acabamento. 2 – Em alguns filmes os estudantes eram colocados como objetos e eventualmente entrevistados pelos adultos, reproduzindo vícios de jornalismo em que a tese já está pronta na boca do entrevistador e os entrevistados são colocados para confirmar determinadas situações. Aqui, novamente, as crianças são eliminadas do processo, por mais que estejam aparecendo na imagem; o que nunca foi nossa proposta, apesar de não ser isso um problema em si. Frequentemente, de maneira paternalista, essas entrevistas configuravam o contrário da igualdade que tanto buscamos. O paternalismo aparece, sobretudo, quando nos colocávamos no lugar dos que estão “levando cultura” aos despossuídos. O que constitui uma negação do princípio de igualdade e eliminação dos estudantes como sujeitos. Certamente outros ganhos existiam e os filmes não retratam as relações e aprendizados, poderíamos argumentar. É verdade,

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mas se os filmes-carta se tornassem um esforço em direção a uma relação com as imagens que confiamos pouco, melhor seria simplesmente nos fixarmos nos dispositivos e não em um filme mesmo. Entretanto, esses insucessos nos alertavam para a necessidade de um período maior de compartilhamento desse universo cinematográfico – dos filmes ensaísticos e dos documentários – com os mediadores, o que já vem sendo feito na continuidade do projeto. De maneira esquemática, acreditamos que devemos partir de uma máxima: o que a criança não tiver como fazer como protagonista, ninguém faz por ela. Essa máxima nos serve como princípio para que todos os filmes e exercícios sejam parte de um processo de descoberta, produção de conhecimento e produção de si dos estudantes. Se um mediador assume um filme, ou impõe ao grupo seus interesses e sua fala, é essa dimensão coletiva da experiência do conhecimento e da participação que perdemos. Estar com as crianças em um processo criativo só é possível se a inexistência do filme for eminente, se estivermos sempre sob o risco de não haver filme. Quando os filmes feitos em escolas não transpiram esse desmoronamento e a proximidade do fracasso, algum poder excêntrico ao grupo assumiu o controle e, para isso, eliminou o estudante. Mas mesmo essa formulação é passível de crítica. Não estamos na pele dos estudantes, não conhecemos os efeitos que a realização desses trabalhos exerceu sobre eles. Após um semestre do Inventar com a diferença em 27 cidades, reunimos os mediadores e os coordenadores de região na UFF para uma avaliação do que havíamos vivido e do que faríamos adiante. Este encontro foi acompanhado pelo professor da UFMG André Brasil e pela professora Adriana Fresquet. Os dois nos ajudavam como observadores externos e críticos. Dois dias foi um tempo excessivamente curto para tudo que tínhamos para compartilhar e discutir, mas essas percepções sobre os filmes-carta e o risco ali presente apareceram, sobretudo, nesses dois dias. De maneira ampla, após esse encontro, poderíamos tecer algumas críticas ao que havíamos realizado. Primeiramente, nos parece

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que o envolvimento do mediador com a escola precisa ser enfatizado, que a relação seja aprofundada e que o processo não fique em segundo plano. O que é isso? Cada mediador estava trabalhando idealmente com dez escolas, fazendo visitas quinzenais a cada uma delas. Em determinados casos esse número foi menor, ou porque o mediador não conseguiu manter as dez escolas, ou simplesmente porque os professores envolvidos desistiram do projeto. Entretanto, com dez escolas para acompanhar, as possibilidades de o mediador desenvolver qualquer outra ação na escola, para além das oficinas em si, era extremamente pequena. Pelas narrativas que vimos, percebemos que o trabalho intelectual e o envolvimento de cada mediador com a escola é grande, e, com dez escolas, por vezes esse comprometimento se tornava exaustivo. Nos parece que para que o projeto fique plenamente presente na escola em que está, é necessário que o mediador tenha mais tempo com as turmas, com o espaço escolar, com a comunidade, promovendo cineclubes, exibição de filmes e discussões. Estive, por exemplo, em uma pequena escola em Florianópolis em que a professora responsável pela educação especial não sabia da existência do projeto depois de estarmos na escola há quatro meses. Esse tipo de situação, colocada pela forma como o projeto engajava os mediadores, nos parece enfatizar a necessidade de um trabalho como este não ser compreendido como um projeto de oficinas, mas como ação de cinema e direitos humanos que tem a escola como epicentro, e que porém não se resume a ela. Fazer uma avaliação geral de um projeto que envolveu quase quatro mil estudantes em todos os estados do Brasil52 não é algo que se faz com velocidade ou facilidade. Procurei narrar neste capítulo algumas das experiências que vi ou que me foram descritas. Não são propriamente as mais exóticas ou singulares, mas aquelas que em seu conjunto nos dão um quadro geral das formas que o cinema e esse trabalho com a imagem e os direitos humanos foi recebido, nas mais diferentes formas de educação. Procurei me concentrar no momento em que algo efetivamente acontecia na escola; 52 Ver página 209 com o total de participantes. 

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uma cena de emancipação, uma descoberta de um território, um engajamento no conhecimento, uma inquietação e revolta, uma fagulha de igualdade, a descoberta de uma potência criativa ou a abertura à diferença em um processo subjetivo. Em 2015, depois do primeiro ano do Inventar com a diferença, durante uma palestra na Universidade de Roehampton, na Inglaterra, um professor e coordenador de projetos sociais me colocou uma questão para a qual o projeto já tinha resposta, mas que eu não havia ainda elaborado. Ele me dizia: “ok, você consegue contar várias histórias de atuação do projeto nas escolas, mas isso não é uma medida do impacto do projeto. Como medir o impacto? E mais, como você não elegeu os temas ligados aos direitos humanos, como você vai saber se agora as crianças respeitam mais os direitos humanos, depois do projeto passar por elas?” Em uma outra palestra, também na Inglaterra, uma professora da educação colocou: “Então o objetivo do projeto é que as crianças façam coisas criativas, e daí?” Perguntas e colocações claras e pragmáticas, de pessoas nitidamente incomodadas com o fato de não trabalharmos apontando o inimigo, seguindo a tradição da militância – necessária – com direitos humanos, mas, mais do que isso, pessoas talvez desconfortáveis com nosso excesso de crença na arte e na aposta em um trabalho com os direitos humanos que depende de um campo sensível e não de palavras de ordem que partam de propostas universalizantes. Certamente precisaríamos de um grande número de pesquisadores na escola, conhecer os alunos, acompanhar seus trabalhos durante um bom tempo e conviver com professores para termos uma noção maior do “impacto” de um projeto como este. Não há outra forma, mas, mesmo assim, jamais conseguiremos medir o efeito exato que o trabalho com o cinema trará para as vidas dos estudantes. Temos narrativas como a da mediadora de Belo Horizonte, que nos contou que o efeito do projeto em um Centro de Socioeducativo foi sentido por todos e as notas dos alunos aumentaram, ou do mediador Anderson Melo, de Pirenópolis, Goiás, que nos falou sobre o engajamento de um professor que, percebendo

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os efeitos do trabalho, decidiu por conta próprio levá-lo a outras escolas. Além da metodologia estar sendo usada em diversos outros lugares sem estar atrelada ao Inventar: é o caso do Festival da Fronteira, no Acre, do projeto de oficinas de Larissa Figueiredo e Rafael Urban, em Curitiba, do grupo do professor Carlos Miranda em Campinas e das oficinas que serão ministradas por Clarissa Nancherry em comunidades indígenas em 2016. De qualquer forma, com frequência a pergunta que nos chega sobre os efeitos do projeto reproduzem o funcionalismo que criticamos nas escolas. Como convencer um patrocinador se não há números para provar o resultado, além do número de escolas, alunos e professores envolvidos?, nos perguntam. Uma cruel pergunta para quem trabalha com direitos humanos e experiências estéticas na educação; uma pergunta que em si desautoriza o projeto. Apesar de ser incomensurável o efeito que um Picasso, um Glauber Rocha ou uma Hilda Hilst traz para a vida de uma pessoa, temos certeza que a vida é melhor com eles por perto. Minha resposta era frágil, é verdade, mas, como medir os efeitos da arte? Como medir efeitos de debates e experiências sensíveis que afetam a longo prazo os modos de ser dos sujeitos? Talvez resida aí a essência de nossa aposta. A possibilidade de fazer comunicar na educação uma dimensão estética com uma pragmática. Uma aposta de que o descontrole da arte, essa que não pede nada em troca nem se baseia em palavras de ordem, é essencial para um mundo mais livre e justo. De certa maneira, nossos trabalhos nunca deixaram de ser experimentais, e assim entendemos que a arte deve estar na educação. Diria, sem medo de me equivocar, que os mais belos e intensos trabalhos que vimos foram feitos por professores e mediadores que abraçaram as incertezas, falhas e incompletudes de nossas propostas. Nesse sentido, nunca deixamos de conviver com pequenos e grandes fracassos. Um filme feito em escola está sempre entre a mais límpida descoberta de um mundo e a impossibilidade de ser feito. Durante o processo, tivemos dificuldade de agregar narrativas de professores, mediadores e coordenadores, provavelmente

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pelo excesso de trabalho e pela pouca tradição que temos de fazê-lo. O lugar do professor é raramente visto como um lugar de pesquisa. A pesquisa é reservada aos acadêmicos, como se o trabalho do professor não devesse ser acompanhado de uma constante reflexão e produção sobre o que fazem. Fracassamos em muitos casos em mobilizar a comunidade, em deixar o projeto mais arraigado, ao ponto de se tornar independentes de nós. Para isso precisamos encontrar meios para estar na escola de múltiplas formas, com uma cultura cinematográfica intensa e diversa. Tivemos ainda grandes dificuldades de aproveitar mais o talento dos coordenadores regionais. Pessoas capacitadíssimas que, sem uma dinâmica de proximidade, fizeram seus trabalhos sem que conseguíssemos incorporar suas experiências e práticas de maneira plena na continuação dos projetos. As soluções e invenções do norte raramente chegavam ao sul, por exemplo. Esses pontos, brevemente elencados, fazem parte das inquietações e desafios que a prática nos traz. Mas para não convivermos com esses fracassos teríamos que ficar com a porta de nossos laboratórios, escolas e casas fechadas.

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Pedagogia do Mafuá

Escola Em uma sala de professores ou no pátio se decide muito do que é a escola. Está na mão dos professores uma enorme parte do presente e do futuro da escola. Nesses ambientes encontramos professores com enorme engajamento, dispostos a dar horas suplementares de trabalho e ajudar nas tarefas mais distantes do que podemos imaginar ser o papel do professor; como uma professora de uma escola que conhecemos em Nova Iguaçu, que vendia doces para pagar o toner da impressora que costumava faltar em momentos cruciais; um engajamento que não deixava de ser embaraçoso para todos nós, nos jogando na cara a precariedade inaceitável de uma escola pública. Mas, por vezes, o engajamento é acompanhado de uma forte nostalgia em relação a um tempo que não temos muita certeza se existiu. Como disse um importante pensador: “Nossa juventude é maleducada... Ela zomba da autoridade e não tem nenhum respeito pelos mais velhos. Nossas crianças de hoje... Não se levantam quando uma pessoa mais velha entra na sala, eles respondem aos pais e conversam no lugar de trabalhar. Eles são simplesmente péssimos” (SÓCRATES apud COHN-BENDIT: 2013, p. 32). A escola pode ser um espaço de nostalgia: “antes era melhor”...Tal nostalgia pode ser absolutamente danosa quando se trata de pensar a escola na relação com os processos subjetivos que acontecem no presente. Em nossas andanças cruzamos com professores que lamentavam que os pais não podiam dar mais “pedagógicas palmadas” em seus filhos. Quando se trata de pensar a escola, com a frequente ajuda dos sindicatos, dificilmente saímos

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das transformações pontuais, ligadas aos salários e condições de trabalho. Evidentemente, grande parte das questões da escola passa por aí, mas, resolvidos esses problemas, teremos uma nova escola? Teremos um equilíbrio com os desejos dos jovens e as potências da comunidade? Parece-nos que não. Uma reforma da escola pública não passa apenas por uma valorização do professor e por uma retomada da autoridade disciplinar, como queria Sócrates e a professora com saudades das palmadas. O que significa então refazer um pacto que não seja pautado pela lógica funcionalista e competitiva neoliberal? Em outras palavras, o que significa ter a escola na sociedade como algo que faz sentido para os jovens, para a comunidade e para o mundo, e não apenas para eventuais sucessos individuais? Se essa pergunta pode ser feita como algo fundamental é porque com o cinema na escola e com as práticas que fizemos, vimos o engajamento dos alunos, o prazer em estar na escola, a amplidão das questões tratadas e aprendidas, a dedicação e o respeito de tantos jovens dedicados ao trabalho. “Ah, mas com o cinema é fácil, quero ver com matemática e química”, nos dirá o professor que vive as dificuldades de seu trabalho. É verdade, talvez muitos dos que escolheram o cinema o tenham feito justamente porque matemática e química lhes parecia ser algo profundamente entediante. Mas, não é de se acreditar que não tenha sido uma empolgação, um desejo e um entusiasmo que levou esses professores à matemática e à química. Mas, mesmo que não seja o caso, sem uma relação com o mundo, com o território e com o que nos afeta no cotidiano, parece difícil ter esse engajamento dos alunos. Sobretudo no trabalho com crianças, todo educador sabe que se escolheu essa profissão, seu sucesso está menos ligado às disciplinas que gosta de ministrar do que ao prazer de estar com os estudantes. Como dizia Paulo Freire, com seu saboroso senso de realidade, “na educação libertadora, o professor usa o espaço educacional sem ser ingênuo. Ele sabe que a educação não é a alavanca para a transformação revolucionária precisamente porque deveria sê-la”. (IRA e FREIRE: 1986, p. 29).

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pedagogia do mafuá

Pensemos em uma pedagogia não como uma forma de ensinar, mas como uma relação entre múltiplos atores em que a constituição de sujeitos e comunidades está em questão. Como reiterou Dewey tantas vezes, a educação não é preparação para a vida, mas a vida mesmo (DEWEY: 2004). O que não é diferente das questões ligadas aos direitos humanos. Certa vez um colega nos disse: “Com esse projeto é a primeira vez que os estudantes estão tendo contato com os direitos humanos”. Profundo engano. Desde que nasceram eles estão tendo contato com os direitos humanos, com a vida – os direitos humanos são transversais a tudo. O respeito aos direitos humanos é anterior a qualquer conhecimento que as crianças possam vir a ter sobre Thomas Jefferson, a revolução francesa ou artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em direitos”. O que é viver esses direitos, essa liberdade e igualdade? Quando pensamos uma pedagogia, estamos nos interrogando sobre os diferentes papéis dos sujeitos que estão na escola e nos ambientes educacionais, sobre o lugar político que esses espaços têm, sobre as formas do conhecimento se fazer, sobre os modos da comunidade ser afetada pela diferença. Coloca-se assim uma interrogação que diz respeito às aspirações e possibilidades dos sujeitos e aos desejos e potências das comunidades, ou seja, uma pedagogia é necessariamente uma construção individual e coletiva, que trabalha as possibilidades pessoais dos indivíduos e seus engajamentos com a comunidade, com a diferença, com a alteridade. Nesse sentido, entendemos que é salutar que uma pedagogia seja realista e utópica. Individualmente todo aluno precisa estar preparado para caminhar e criar no mundo como ele se apresenta, com os desafios que nem sempre seriam aqueles aos quais gostaríamos de dedicar nosso tempo. Em outras palavras, como pensar a formação de um jovem hoje sem ajudá-lo a escrever um texto argumentativo de 30 linhas e quatro parágrafos, como lhes é demandado no Enem? Mas como não ter nessa mesma pedagogia uma formação dos sujeitos atravessada por uma liberdade de invenção

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de mundos que nem sabemos possíveis, ou de mundos que apenas podemos juntos idealizar? A educação que abandona uma das duas perspectivas nos parece fadada ao fracasso. Uma pedagogia não pode nem aceitar cegamente o mundo tal qual ele se apresenta, e isso é particularmente verdade no Brasil, com todas as desigualdades e violências que nos marcam, nem pode negar certas ordens existentes, sob o risco de ser apenas uma matéria desgarrada, isolada em seu próprio mundo. É claro que no momento que a escola se torna nosso foco, a ideia de uma pedagogia não cessa de ganhar contornos ainda mais complexos. Como pensar uma pedagogia sem questionar a arquitetura das escolas, a circulação de sons, o transporte dos alunos, as estruturas administrativas, o desinteresse das escolas privadas pela educação de todos, a relação com o estado, a função da direção e a relação com a tecnologia, as tensões com o capital? Em cada um desses aspectos os problemas relativos aos direitos humanos deveria estar presente. Ou seja, uma pedagogia é inseparável de relações culturais, econômicas e políticas. Se aqui podemos desenvolver uma reflexão sobre a pedagogia, sabemos que ela não é uma cartilha a ser aplicada, mas um punhado de ferramentas e crenças com as quais podemos operar no mundo e na escola tal qual eles se apresentam hoje e, ao mesmo tempo, atravessando-os por desejos e perspectivas. Talvez uma certeza deva ficar explícita. A educação pública de qualidade é o mais importante elemento para superarmos as diferenças de classe no país. Quando a educação se torna aquilo que mantém o pobre pobre e o rico rico, estamos apenas reproduzindo um desastre. “Como defender o público na educação, quando o público a ninguém interessa?”, pergunta Jorge Larrosa Bondia53. Pois, a muitos o público interessa. Nossa experiência em escolas tem sido com pessoas e comunidades ligadas à educação que vivem grandes desconfortos com a fragilidade da escola pública. O Estado e as corporações podem ser ambos opressores, 53 Disponível em: . 

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desinteressados na coisa pública, mas é claro que para termos uma educação pública, o Estado é decisivo; pelo menos na realidade que conhecemos hoje. Entretanto, a educação em vários lugares do mundo vive um dilema em relação ao lugar do Estado. Por um lado, podemos acompanhar vários anarquistas do início do século XX e dizer: “deixem-nos em paz”. Nesse sentido, o dinheiro público deve retornar ao público sem que o Estado tente organizar o que a comunidade delibera. Poderíamos pensar em escolas públicas com autonomia curricular, com liberdade para que pais, professores e alunos escolham os professores, diretores e formas de avaliação, mas que, ao mesmo tempo, fossem abertas à comunidade, não seletivas e gratuitas. Tais princípios retiram o Estado da centralidade que temos hoje. Se a oposição à privatização generalizada da educação e o lucro como fim são práticas absolutamente decisivas para uma democracia, depois disso, ela não pode estar entregue à centralidade do Estado, historicamente interessado na manutenção de seus poderes e ordens. Em relação à privatização da educação, sabemos que ela não acontece somente quando é o lucro que a organiza, mas quando o que acontece na escola tem como fim a formação de pessoal para as empresas e corporações que tem o lucro como opção central, ou quando a competição é naturalizada entre professores e alunos. O pragmatismo desse modelo nega que qualquer invenção de mundo possa atravessar a escola, eis a mais cruel das privatizações; uma apropriação da escola como produtora de mão de obra e de consumidores para a reprodução de uma ordem do capital em detrimento do que é comum, independente de classe. No século XX, vimos a disciplina do trabalho que organizava a escola ser substituída pelo controle do emprego (LAZZARATO: 2006). A ameaça e o medo de não se ter emprego justificam a privatização dos modos de ser e educar na escola. Se essa crítica à privatização é banal, ela se torna ainda mais necessária quando defendemos que a educação pública universal não pode estar centralmente organizada pelo Estado, mas que grupos, indivíduos e comuni-

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dades deveriam poder, também, se responsabilizar por organizar escolas, pensar currículos, contratar professores etc. Não são necessárias muitas conversas sobre educação para nos depararmos com a máxima que diz que se os pais da classe média frequentassem a escola pública ela seria melhor. Talvez seja verdade, mas tal afirmação enseja uma triste realidade: a qualidade da escola pública estaria ligada à uma questão de classe. Mesmo sendo verdade, precisamos nos desfazer dessa premissa, primeiro porque a escola não pode estar atrelada a essa ou àquela classe, segundo porque a educação de jovens é antes tarefa do mundo do que dos pais. Mas, seria isso a retirada completa do Estado? Certamente que não. Como dizíamos anteriormente, a dimensão utópica não é um desgarramento absoluto, por isso acreditamos na necessidade de avaliações mais livres e continuadas dos alunos, na fiscalização de agências representativas da comunidade, que acompanhem e fortaleçam os trabalhos locais, dando assistência administrativa, financeira e legal às escolas em que o princípio seja o da educação universal, gratuita e livre. O dilema dessa proposta aparece na forma como temos hoje dificuldade em sair da dicotomia entre educação privada voltada para o lucro e educação pública com a centralidade do Estado. Pois, se levarmos a sério a necessidade de não termos nem a ordem do estado nem a centralidade do lucro, poderíamos pensar em uma educação comum em que o estado seja mais um promotor de práticas diversas sem deixar, entretanto, de oferecer educação universal para todos. A aposta na educação pública que passa não somente pela ideia de que ela é igualitária e gratuita, mas também pela ideia de que seu fim não é um sucesso privado organizado pelas grandes corporações ou pelo Estado, mas pela diferença, frequentemente caótica e inapreensível, mas que precisa de bases igualitárias e democráticas para se inventar em sua plena potência.

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Cinema Quando o cinema sai da sala, do escuro e do ingresso pago, ele se multiplica em formas e dispositivos que as artes visuais estão constantemente renovando: múltiplas telas, projetores móveis, intervenções dos espectadores nas imagens e nos sons, reorganizações do espaço e do tempo dos espectadores. Na escola, temos mais um exemplo desse cinema expandido, mas, que se expande naquilo que o cinema inventou de mais forte em sua história: formas de ver e inventar o mundo. Nos interrogamos então em como a máquina cinema tensiona outras máquinas que atravessam processos subjetivos, políticos e de grupo, ou seja, como a existência do cinema em uma comunidade afeta a própria comunidade, não porque narra isso ou aquilo, mas porque há uma forma de o cinema mobilizar o real que afeta o próprio real. O cinema na escola é, assim, menos um problema de uma migração do cinema para um outro espaço do que uma operação no interior do tempo e do espaço da escola. Explicito tal princípio por entender que, quando o cinema chega na escola, o que ele traz – com sua história, com os filmes, com o seu fazer – é antes um modo de tornar o mundo pensável, que perturba o pensável do que não é cinema: nós mesmos, a escola. O cinema traz um modo de fazer relações entre imagens, sujeitos, discursos, objetos, narrativas que transfiguram, por assim dizer, outros espaços e relações; no caso, a escola. Antes de apresentar conteúdos, com suas possibilidades discursivas e sensíveis, ele provoca, intensifica e potencializa o que a educação inventa. Para isso, a história do cinema possui uma enorme generosidade de formas, meios e dispositivos; acolhendo processos e inventividades as mais heterogêneas. O primeiro aporte igualitário que o cinema tem a nos dar está na forma como ele é essencialmente um lugar habitável por um qualquer, tanto como espectador, como realizador. O estudante, quando está com o cinema na escola, está lidando com uma dimensão imediatamente ética e política da imagem.

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Não foi outra nossa atenção nesse projeto. Os estudantes escolhem como o mundo se reproduz na imagem, na comunicação e na poesia. Quando falamos de cinema, falamos assim de uma maneira de conhecer o que nos cerca, de trazermos as questões que nos afetam para a sala de aula, mas, ao mesmo tempo, falamos da responsabilidade de inventar e criar com aquilo que nos cerca, de forma representacional e afetiva. Entre o real e a imagem há uma diferença essencial, lugar em que o sujeito se instala, não para organizar, mas para diferenciar-se de si próprio. Na transformação das formas de ver e sentir os processos subjetivos se instalam. O cinema é documento e desejo, percepção e crítica, história e imaginação, reprodução e invenção. Todas essas esferas nos parecem inalienáveis e especialmente intensas quando pensamos o cinema em um processo educativo. Nossa ligação com os direitos humanos, a partir desse viés, se liberou de uma cartilha para investir nas forças do cinema como forma de produção e sensibilização inventiva com a alteridade, com a diferença. Na escola o cinema se põe a trabalhar intensamente, nas formas de mostrar o que constitui a comunidade, seus poderes, identidades, normas, injustiças, mas também como prática que resiste a esses poderes, que se abre ao outro e participa da invenção da própria comunidade. Nos caminhos que fizemos com vários filmes, vimos como o cinema construiu não apenas uma representação do mundo infantil, mas uma forma de pensar e habitar o mundo que depende da criança. Não porque a criança traz uma ingenuidade ou um traço identitário, mas porque com a poética das imagens e uma atenção aos processos subjetivos infantis, nos foram revelados os poderes e as formas de eliminar a singularidade do universo infantil do mundo que inventamos, como em Vítimas da Tormenta ou Pixote – filmes em que, apesar de tudo, acompanhamos ainda tracejamentos da criança resistindo e tocando o mundo adulto, como na clássica cena em que Pixote – Fernando Ramos da Silva – mama no seio de Sueli, interpretada por Marília Pêra. Vimos o cinema dedicar tempo e atenção aos micromovimentos infantis que resistem

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ao mundo adulto, como em Ninguém pode saber, O silêncio ou o Pequeno fugitivo, vimos ainda as macrorresistências e necessárias profanações do mundo adulto, como em En râchanchant, Jogos proibidos e Ensina-me a viver. Descobrimos em Cria Cuervos ou Eu nasci, mas..., as fabulações vindas de crianças que, submetidas à ordem do mundo, escapam poetizando, desenhando mundos e se rebelando enquanto se inventam. O cinema foi ainda prodigioso em nos trazer o silêncio de crianças que veem demais, que ouvem demais e acabam por nos colocar em um lugar de interrogação e inquietação em relação ao mundo e os destinos que construímos. Talvez a experiência da guerra tenha sido tanto mais intensa no cinema, por conta do olhar infantil. Não porque ali ele é o mais frágil, mas porque na poética infantocinematográfica somos atravessados pelo insuportável desses eventos. Nas formas como a criança corre em se adaptar e a cada momento seu mundo infantil não deixa de encontrar escapatórias – violentas ou silenciosas, como vimos em A infância de Ivã ou como poderíamos ter analisado em Alemanha ano zero, (1948) de Roberto Rosellini. Alguns filmes ainda foram felizes em nos colocar no centro do conhecimento sendo produzido junto aos processos subjetivos, em relação com a comunidade, com a natureza, com os animais, ou seja, sem isolamento do que é escola e do que não é, como vimos em O corredor e A canção da estrada. Algumas tarefas serão adiadas e o desenvolvimento de uma pedagogia pela criança no cinema é uma delas, aqui apenas esboçada. Que essas páginas inspirem outras pesquisas. Em nossos dispositivos, não recortamos temas e assuntos, mas propusemos colocar a realidade em situação. Propomos regras e dispositivos que atuam como aberturas para o acaso, para as fissuras do real, para a presença do estudante e de seu gesto criador. A cada dispositivo, como desenvolvemos mais longamente no capítulo três, entregamos ao grupo – professores, estudantes e mediadores – a possibilidade e responsabilidade de fazer uma imagem, de montar um plano, de ouvir o outro; sem ter o aprendizado específico sobre este ou aquele objeto do mundo ci-

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nematográfico, mas como uma forma de descoberta e apreensão da “realidade que é” e a “realidade que poderia ser”. Por princípio, trabalhamos com uma metodologia em que não havia nada para aprender, a não ser tudo que o estudante desejasse, tudo que ele pudesse conectar com o que lhe fosse apresentado e com o que fosse vivenciado com o grupo e com o cinema. Nunca pretendemos formar cineastas, mas aproximar estudantes e professores de uma forma singular de pensar e inventar o mundo com as experiências sensíveis que essas práticas produziriam. Tal compreensão da imagem, se compartilhada, coloca o adulto – mediadores, professores, diretores – em uma situação pouco simples, mas, regida pelo o que entendemos serem os princípios democráticos fundamentais na educação em que cada um assume seu lugar de criador e produtor de conhecimento, responsável pelo o que está próximo ou distante, como vimos em tantos filmes em que as questões ecológicas, de gênero, de liberdade, indígenas, raciais etc., vieram à tona e se tornaram centrais nos debates nas escolas sem que as tivéssemos pautadas por princípio. Ao professor, antes de ensinar isso ou aquilo, antes de se organizar como um transmissor de saberes, trata-se de criar uma ambiente, um espaço em que as imagens, e o mundo que as acompanha, possam transitar entre o discurso e o silêncio. Porque o cinema pode ser efetivo, como vimos em tantos filmes-carta, em construir um território, em operar nas denúncias, em explicitar o que perturba nas diferenças de classe, em empoderar uma minoria, em ajudar nos direitos civis e nas lutas identitárias. Mas, é ele também silencioso, não discursivo e uma das suas forças na educação é não pedir nada em troca; por vezes, nem mesmo a compreensão ou a transformação das imagens em palavras ou discursos. Não cabe assim ao professor o papel de dizer o que aquelas imagens querem dizer, mas descobrir com os estudantes como elas funcionam, como são feitas, com o que podem ser montadas; com que textos, práticas ou outras imagens. Com o cinema na escola não há criação sem a intensa tentativa de participação dos estudantes

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na tradução e na forma de serem afetados pelas imagens. O mestre deveria, nesse caso, ter a capacidade de manter o indizível das imagens quando o grupo tender à organização do cinema em formas conhecidas e discursivas; ser capaz de se deixar afetar por um extracampo que está sempre nos interrogando. O professor é aquele que se dedica ao incontrolável e ao não formalizável das imagens. Com o cinema em tantas escolas, vivemos a evidência de que não falta motivação para os jovens estarem na escola nem para buscarem conhecimento. Se o entusiasmo em lidar com a câmera e com o microfone era imediato, como vemos nos filmes, ele rapidamente se desdobrou em interesse pela história, pela tecnologia, pelas questões sociais, pela estética ou pela biologia. Se inicialmente tínhamos na transversalidade de conhecimentos que o cinema possibilita uma aposta fundamental, a prática explicitou os acessos que estudantes e professores puderam usufruir tendo o cinema como ponto de partida. Entre os silêncios e a eloquência das imagens, jovens e adultos transitam entre múltiplos saberes – esses que nas escolas são organizados como disciplinas. O filme não é um objeto domesticável, ele exige algo do espectador. Um filme para o qual já temos a linguagem para falar dele normalmente é um filme menor. Estar aberto então para um filme é permitir que nosso saber seja também colocado em dúvida, problematizado pelo próprio filme. A criação no cinema não é feita com escalas de plano, nomes de movimentos de câmera ou tipos de montagem. Todo esse saber vem em um segundo momento, como ferramentas para que possamos falar sobre os filmes, para que a criação seja compartilhada, mas, partir do saber organizado e encaixar o filme nesse saber é matar o cinema. Experimentar um filme é saber que este filme nos acompanhará. Que a partir daquele momento ele fará parte de nossas vidas, que nos autorizamos uma conexão com os pensamentos e sensações ali colocadas, que elas serão parte de nós para além da sala escura. Vendo, discutindo, sentindo, crio condições para que estes afetos me habitem em diálogo: com o filme, com os personagens, com o mundo. Ao mes-

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mo tempo, é preciso entrar no processo do cineasta dos filmes que vemos. Imaginar junto a ele, se colocar em seu lugar e como diz Alain Bergala, retroceder ao momento em que as escolhas estavam abertas. Ver o cinema entre dois momentos, entre o que está na tela e foi decidido e o momento anterior à decisão, em que o cineasta ainda precisava escolher se a personagem seria vista de frente ou de costas, se seu cabelo estaria preso ou solto, se a gola de sua blusa estaria engomada ou não, se ouviríamos o que ela diz ou não. Experimentar o cinema imaginando a criação do outro e se colocando nesse lugar do criador. Com os dispositivos, tentamos partir do não isolamento de nenhum ator ou da hierarquização das posições – não há o professor que sabe e o aluno que não. O saber e o conhecimento precisam fazer comunidade, não pertencem a um indivíduo e não a outro, mas são coisas que produzem mundo, que transitam entre indivíduos em sua transformação e troca. A cada momento que o conhecimento é privatizado, separado da comunidade como um todo, esvaziamos o caráter social da educação e do saber para transformar o que é coletivo em histórias de sucesso pessoal. É preciso criar situações em que os alunos aprendem com os outros alunos e que professor esteja em ato de descoberta. Há uma comunidade de conhecimento que se concretiza quando se faz um plano, um filme. Uma comunidade de conhecimento, na descoberta do conhecimento. A prática do cinema na escola é automaticamente social e individual; esse é o engajamento do cinema com o mundo, com aqueles que ele filma, ao mesmo tempo em que ele é feito por pessoas que não cessam de tomar decisões sobre esse engajamento, sobre os modos de representar, pelas formas de fazer existir e durar na imagem nossa realidade sempre cambiante. Assim, é tarefa do cinema na educação filmar onde a vida faz sentido e produzir novos sentidos com o que se filma. A história do cinema traz a riqueza de acolher os processos criativos e subjetivos mais extravagantes. Circular por essa história é transitar entre nomes de realizadores, países e estéticas que

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se cristalizam e que hoje fazem parte da grande história do cinema. Entretanto, mais do que isso, estar na história do cinema é inventar para si um caminhar entre muitas linhas possíveis, entre gestos que, por vezes encobertos pelas histórias hegemônicas, se apresentam ávidos a serem renovados, reinventados. A história, do mundo e do cinema, se torna assim anacrônica, bagunçada, aparecendo por montagem. Podemos imaginar essa escola onde, um dia o menino quieto, silencioso, calado, motivo frequente de preocupação para pais e professores, pegou a câmera e filmou a irmã dormindo durante seis horas; não conhecia Andy Warhol. O outro, sem que ninguém visse, prendeu a câmera na roda da bicicleta e deu um volta e meia no quarteirão. Foi repreendido, baixou a cabeça e pensou em amarrar a câmera em um elástico e deixá-la cair do alto do prédio; não conhecia Michael Snow. A menina sentou na cama, enquadrou seu joelho com tal proximidade que não podíamos ver ao certo de que parte do corpo se tratava. Tirou seu diário da gaveta e o leu lentamente, durante 40 minutos. Foi difícil. Mostrou só para a professora, que preferiu não exibir para o resto da turma. “Você está se expondo demais!” Ela não conhecia Sadie Benning. O menino ligou e desligou a câmera muitas vezes enquanto filmava o palhaço no circo, filmou pouquíssimos segundos de cada vez; não conhecia Jonas Mekas. A outra juntou os amigos adolescentes e reencenou uma festa. Todos atuavam, mas tudo parecia real. Nunca mostraram para ninguém. Não conheciam Larry Clark. No domingo, o jovem sentou na frente da avó e pediu que ela falasse sobre as músicas que marcaram sua vida. O menino havia visto um filme de Eduardo Coutinho na escola. O que talvez o cinema tenha para ensinar seja a sua essencial ignorância sobre o mundo, ponto exato em que criação e pensamento se conectam. É no âmago de sua ignorância que as imagens nos demandam, não necessariamente como eu ou você, mas como parte de uma humanidade pensante. Essa parece ser uma potência fundadora do cinema. Um relacionar-se com o mundo que mais interroga, vê e ouve do que explica; posicionamento

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propriamente estético da ordem da ocupação dos espaços, dos tempos, dos ritmos, dos recortes, das conexões e rupturas. No limite do que é espaço e do que é vazio, do que é fala e do que é grito, do que é sonho ou realidade, do que é este e do que já é outro mundo. Instalar-se nessas indiscernibilidades é o que pode e o que arrisca o cinema. O cinema não pede nada, apenas se aconchega nas capacidades sensíveis dos sujeitos comuns. O cinema não se encontra na escola para ensinar algo a quem não sabe, mas para inventar espaços de compartilhamento e invenção coletiva, colocando diversas idades e vivências diante das potências sensíveis de um filme. Como dizia Deleuze pensando, entre outros, a obra de Glauber Rocha: “o povo falta”. Não se trata de “dirigir-se a um povo suposto, já presente, mas contribuir para a invenção de um povo” (DELEUZE: 2005, p. 259). Não há conexão e transformação ideal entre presente e futuro, bem como não há povo pré-determinado que o cinema possa levar a algum lugar. O povo falta. Esta ausência do povo se configura como uma impossibilidade de representá-lo e, talvez mesmo, de educá-lo. Entretanto, sabemos da necessária crença nas capacidades inventivas desse povo em devir. Como escreveu Henry Miller: “Não crer é tornar-se como o chumbo, é jazer prostrado e rígido, eternamente inerte” (MILLER: 1988, p. 15). Pois, a primeira crença é no cinema e na sua possibilidade de intensificar as invenções de mundo. A segunda é na escola, como espaço em que o risco destas invenções é possível e desejável. O terceiro é na criança, como aquele que tem a criar com o mundo, com os filmes. Assim, quando chegamos na escola com o cinema, não é para formar cineastas, não é para transformá-los em consumidores de cinema, não é para livrá-los das drogas, não é para apresentar um conteúdo funcionalizável. Se com o ensino de arte não temos um norte: nem a história, nem o mercado, nem a comunicação, nem a revolução, o que podemos pedir como resposta para estudantes quando chegamos com o cinema?

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A resposta é simples: de preferência, nada. Mas, se não podemos pedir respostas, se não podemos indicar um caminho, se não temos a chave para a liberdade do estudante na experiência com as artes, em suma, se não podemos hierarquizar uma relação e fazê-los agir, pensar ou sentir, o que pode então o cinema na escola? Podemos em primeiro lugar partir da democracia – não como algo a ser atingido, mas como uma prática imediatamente igualitária. Um princípio e um fim em si mesmo, em que a igualdade de competências seja colocada à prova na sua própria prática. Essa igualdade, todavia, não é simples! A igualdade não é entre indivíduos. Como vimos em tantos dos trabalhos feitos nas escolas, a igualdade de competências não significa a igualdade entre sujeitos onde todos podem as mesmas coisas. A igualdade é antes a entrada de sujeitos, máquinas e tradições em um emaranhado, em um aparente caos formado por objetos e sujeitos de muitas naturezas, espaço/tempo entre máquinas e processos subjetivos em que a experiência com a diferença é parte das transformação de si e dos modos de ser da comunidade. Um mafuá. Uma bagunça de ordens momentâneas e inclusivas. Pedagogia do mafuá Essa reflexão sobre um projeto de cinema e direitos humanos na educação extrapola conteúdos específicos e nos mobiliza sobre as formas dos processos subjetivos se fazerem, suas ligações e transformações com/ e na comunidade. De alguma maneira nos perguntamos sobre as formas da educação contribuir para uma sociedade mais democrática, mais inventiva e livre. Noções que estão em forte relação, uma vez que a democracia só existe quando a inventividade e a liberdade de um sujeito ou grupo pode afetar e fazer parte da comunidade como um todo. Quando no processo de constituição de si, as experiências com o que não é o próprio sujeito são também produtoras de uma comunidade mais aberta e culturalmente rica. Nós, professores, militantes e artistas, temos

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esse privilégio de estarmos em trabalhos que diretamente nos conectam com mundos em constante formação e transformação. A angústia de um professor passa frequentemente pela maneira como ele tem acesso àquilo que pode produzir uma sociedade mais justa e criativa – a escola – mas, com frequência sua possibilidade de ação é ínfima e, mesmo quando não é, vivemos a angústia de lidarmos com tão poucos: uma turma, uma escola e, no caso desse projeto, 234 escolas em um universo de mais de 200 mil. Utilizamos a palavra comunidade neste livro. Sim, esta noção nos fala daquilo que estamos constantemente construindo e modificando com nossas ações, aquilo que nos liga ao outro por um traço comum, não necessariamente determinado pelo espaço físico. Trazer a diferença para a comunidade é o que permite que o mundo em que vivemos seja constituído por tudo aquilo que difere de mim, que traz marcas de pertencimento a outras comunidades e, ao mesmo tempo, me pertence. A comunidade da rua, da escola ou dos direitos humanos, constitui nosso espaço de atuação e é nesses espaços que precisamos acreditar, tanto no efeito que eles podem ter sobre as vidas que ali existem, como nas possibilidades de novas e múltiplas conexões que as comunidades fazem entre si. Uma comunidade na educação pressupõe que a educação não seja para ela, para o povo ou para o pobre, mas do povo, da comunidade. Essa pequena variável traz uma mudança por vezes escandalosa para a atual organização da educação escolar. Cada vez mais verticalizada, frequentemente distante das necessidades, saberes e práticas das comunidades e descrente da autonomia dos professores. Uma comunidade é um pertencimento e uma abertura, um fazer-se e um desfazer-se, uma centralidade e um desgarramento. Somos tocados então pela necessidade de pensarmos a educação com um forte operador na constituição e na abertura de comunidades democráticas em que as potências de um sujeito qualquer encontrem espaço de experimentação e crescimento. Foi nesse sentido, extrapolando os conteúdos da arte, do cinema e dos direitos humanos que acabamos por pensar a educa-

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ção na potencialização de processos subjetivos, individuais e coletivos, que desenham uma comunidade mais rica e democrática, como um mafuá. O mafuá como gesto, ação, montagem, encontro e festa em que o conhecimento se faz possível e os agenciamentos – humanos, não-humanos, simbólicos, sociais e cósmicos – se transformam. Ele facilita pensar a potência inventiva de uma sala de aula – espaço em que um acontecimento pode se dar – e a potência igualitária do encontro na escola com o cinema ou outro conhecimento qualquer. O mafuá é uma bagunça, é verdade, mas, como pensar o mundo infantil, o mundo escolar ou os processos inventivos sem uma bagunça e sem uma certa desordem? Como pensar o crescimento dos sujeitos sem uma experimentação constante em caminhos ainda não tracejados? Como retomar a tradição dos educadores que resistiram à escola como uma operadora do poder sem que a liberdade e a democracia sejam componentes primeiros da prática educativa? A bagunça é também o caminho menos curto, mais esquizoide. Uma relação com o tempo e com o percurso que coloca uma forte atenção no próprio caminhar. Em tantas oficinas a angústia dos professores em relação aos alunos era: “eles não focam”, ou, no “último momento eu mesma fui lá e gravei, se não, não haveria filme” ou em Belo Horizonte, quando a professora precisou incorporar a brincadeira nas goiabeiras para poder trabalhar com o cinema – as crianças, como lobos, precisam inventar caminhos tortos, não repetitivos e bagunçados para ir de um lugar a outro, caso contrário serão capturados. Louvoyer, esse belo verbo que em francês traz esse andar bagunçado dos lobos como forma de fazer um caminho errático. O universo infantil não é linear e é a não-linearidade que o mafuá incorpora em seu emaranhado de seres, objetos e técnicas. No final de Pixote, de Babenco, lá estava o garoto cambaleando ludicamente nos trilhos do trem depois de cumprir todos os papéis de um cruel mundo adulto. A ordem que se estabelece no mafuá depende de seus próprios objetos e atores; não é imposta de fora. Ou seja, o mafuá não

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pode ser entendido como apenas bagunça ou ordem, mas como acoplamentos e montagens com arranjos e organizações instáveis e passageiras, nas quais podemos nos agarrar e aprofundar, enquanto ela não para de ser afetada pelos tantos outros objetos e atores que instabilizam a manutenção de uma ordem. O mafuá é ordem e desordem para quem está dentro e pura bagunça para quem está fora. Para quem está fora, bastaria impor sua vontade, exercer a autoridade e organizar a “brincadeira”, a partir de formas de premiação, provas universais ou palavras de ordem. Para quem está dentro, sejam eles professores, saberes, sonoridades, histórias, alunos, o mafuá terá que encontrar ordens que dependem de suas ações e montagens, de narrativas e poéticas. Em Recife, por exemplo, quando o revólver não foi incorporado à ficção, era justamente a negação de uma poética possível com o objeto e da entrada do talento do rapaz na fabricação dos objetos em uma bagunça não dominada pelo diretor da escola. Ficcionalizar é próprio ao mafuá; poetizar a ordem e encontrar ordens passageiras, acoplamentos momentâneos e instáveis, movidos por interesses, desejos, curiosidades e engajamentos dos atores em uma questão. O mafuá é assim menos um espaço do que um corpo de processos e materialidades que absorve uma multiplicidade de objetos e saberes em um universo metastável, para usarmos a noção de Simondon. Ou seja, na horizontalidade das relações, o mafuá é um operador de montagem entre múltiplas materialidades e afetos. No caso do trabalho com o cinema, algo se materializa – um plano, uma fala, uma foto, um som. O mafuá é a materialidade – porque em nossas bagunças não há apenas caos – e a imaterialidade – porque o todo se encontra à disposição, virtualmente aberto a novas invenções. E, logo depois, aquilo que se materializou – um Minuto Lumière sobre uma mulher que usa drogas, por exemplo – não para de atuar no mafuá, está de volta à abertura instável, para novas conexões, sons e pensamentos, afetando processos subjetivos individuais e coletivos. Sem que a imagem e os discursos estejam no mafuá – sendo afetados pela diferença do outro – não haveria a

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própria transformação da menina e da comunidade em que se sofre com a dor do usuário de crack. É na horizontalidade e montagem de saberes que algo se troca e se cria. O conhecimento em sala de aula depende de um mafuá que coloca em relação saberes, palavras e tecnologias frequentemente em bagunça, desordem; mas tal desordem é apenas um estado necessário para a não hierarquização dos objetos, das linhas e dos saberes. Quando fomos para o Conjunto Habitacional com as meninas no Recife, inventamos um mafuá e, ao mesmo tempo, tivemos dificuldade em vivê-lo plenamente, refazendo uma ordem exterior à atuação dos atores ali presentes. É dessa tensão instável que novos acoplamentos inventivos, de indivíduos e de grupos, se fazem. E é desse agrupamento festivo que aquilo que se materializa ou se atualiza é excessivo ao imaginável, por qualquer uma das partes. No mafuá, a posição dos sujeitos e dos objetos não antecede a pragmática. No mafuá não há estabilidade dos sujeitos e bagunça das coisas, pois o mafuá é formado pela instabilidade de ambos. Instabilidade do romance, nos termos de Whitehead – mas o que é o romance sem festa? O mafuá é a própria operação do pensamento e dos corpos; não um lugar, mas um campo de conexões frescas e experiências que instabilizam as formas e permitem o pensamento. O pensamento é o que acontece na passagem entre formas; quando um conhecimento se produz. O mafuá, na bagunça em que os atores sabem se movimentar, é a forma e o desforme, a ordem e o caos, a materialidade e a imaterialidade. O acoplamento necessário para o mundo andar e a complexidade hiperconectiva para o mundo diferir. O mafuá é também um baile popular, uma feira com jogos, uma festa, um enroscar-se que não deixa de ter uma sensualidade sem linha reta. É no sentido de um encontro menor e desordenado, que vemos em Manuel Bandeira em seu Mafuá do malungo (1948), com o delicioso subtítulo Versos de circunstância. Nesse livro, como apontou Carlos Drummond de Andrade, “o poeta se diverte”. Se o mafuá é um enroscado com pontos de convergência e ordens circunstanciais, sem divisões e partilhas pré-estabelecidas, ele é tam-

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bém atravessado por essa dimensão festiva, curiosa, divertida, expressando a abordagem de Bandeira para: “a poesia está em tudo, tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como disparatadas”. Como na cabeleira de “Sweet Lou” Dunbar, dos Harlem Globetrotters, desenho animado dos anos 1970, de onde chinelos, amores, tudo mais poderia sair. A cabeleira é o mafuá, apenas um ponto de entrada para um espaço sem limites. Na superfície do mafuá, um não-sei-o-quê de possíveis está sempre à espreita. Sua forma não é verdadeiramente uma forma, mas um objeto ao mesmo tempo de passagem – de um objeto a outro: ele pode ser cabelo, bolsa, foguete, e ao mesmo tempo um recipiente sem fim. Prejudicar a educação e o aprendizado é predefinir o que ela e os estudantes podem, é retirar da produção de conhecimento sua inventividade não regrada. É acreditar que a liberdade e a criação vêm depois de algo ou que a autoridade como princípio pode ensinar liberdade. O mafuá traz uma dimensão quase mágica por não estar preso a ordens temporais e espaciais. Pelo fato de poder aproximar o que não pode ser pré-definido, o mafuá é o que permite à escola inventar o que não está escrito em nenhum roteiro, o que não pode ser antecipado por nenhum poder; nem o Estado, nem o capital. O mafuá é emaranhado com espaços vazios em que o sentido está sempre se fazendo e desmoronando. O que se atualiza é um susto, um lapso, um aparecimento sem orquestração, mas não independente dos sujeitos e comunidades. Idas e vindas entre a superfície e a profundidade, entre o específico e o global, mas pautadas pela bagunça do entusiasmo de quem tem pela frente o máximo de conexões possíveis de onde os arranjos mais inesperados podem sair. Não há nada escondido no mafuá, não há aparências que escondem uma verdade a ser descoberta ou revelada, está tudo ali. Mas, colocar o “tudo” em uso, em produção, é a ação inventiva dos atores que o habitam. O mafuá é o quadro em que a comunidade organiza sua bagunça – uma bateção de coco em Aracaju, uma capoeira em Rio de Contas, um funk no Rio de Janeiro – mas

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pedagogia do mafuá

é também o fora de quadro que se movimenta e que subitamente transforma o específico e produz novos acoplamentos. Uma pedagogia do mafuá é inseparável de uma variação de ritmos entre o que conhecemos e é transmissível e a disponibilidade para ritmos excêntricos que abrem espaços para a diferença que circula no que ainda não organizamos, no que ainda não é parte do quadro. Entre curiosidades e invenções, não chegamos a descobrir o que é o mafuá, mas a desestabilizá-lo, movimentá-lo. E, no mafuá, não há invenção que não seja imediatamente um deslocamento dos processos subjetivos, das éticas coletivas e da organização dos modos de ver e sentir; ou como diria Rancière, uma reordenação nas partilhas do sensível. Uma nova forma de ver e sentir, produzida pela conexão entre um estudante e uma história familiar de um outro, ao qual ele dedicou seu tempo, não enseja apenas uma transformação para aquele sujeito, mas uma variação nos modos de ser da comunidade, uma linha estendida entre modos de vida que produzem novas ligações e conexões no todo que os constitui. Sim, podemos ensinar o que não sabemos, justamente porque o mafuá inclui aquele que sabe e o que não sabe e, se ambos fazem parte do mesmo mundo, o conhecimento deixa de ser um problema de posse e transmissão, mas de acesso e movimento entre humanos e não-humanos. Conhecer é criar ordens instáveis entre saberes dados, uma criação que se faz imediatamente como resistência aos poderes que decidem o que é a estabilidade do saber. Conhecer é criar, descobrir e fazer processos subjetivos em caminhos não traçados no emaranhado que inclui o conhecido e os buracos em que o conhecido é colocado como pura contingência. Nesse limiar entre a repetição e a diferença se forjam processos subjetivos imediatamente coletivos. Ensinar é compartilhar uma trajetória na bagunça, permitindo pontos de estabilidade e profundidade inseparáveis de desvios e flutuações. No mafuá, subitamente sabemos onde estão os óculos, em que página está aquele verso que gostamos ou um cartão-postal da adolescência. As ancoragens são compartilhadas em um todo aberto e não consensual. “Tudo está

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inevitavelmente cinema

em tudo”, como dizia Jacotot, mas esse tudo não está nem organizado nem tem pertencimentos individuais, por isso, nesse mafuá, o acoplamento e a montagem perfazem o princípio para o conhecimento. Inventar com a diferença é tracejar um comum onde parecia só haver distância, não é apenas tolerar ou aceitar o outro, mas habitar na invenção um mundo comum em que algo se faz junto e algo se mantém irreconciliável. Na invenção, quando algo se forma, podemos passar a vida toda sobre um ponto de equilíbrio, inventando novos mafuás que não param de crescer e se multiplicar. Podemos transitar entre o romance, a precisão e a generalização, como propunha Whitehead. Para cada passo na profundidade, um mafuá na superfície. Ou seja, na educação, o acúmulo é inseparável das conexões excêntricas e a profundidade não se opõe à superfície, mas são partes de um mesmo movimento de conhecimento. Se o professor e o aluno são plenos de profundidade, de identidade e memória, é no encontro com a educação que esses pontos de estabilidade acham a desordem e a possibilidade de coexistência entre as ordens do eu e as desordens da diferença que não cessam de constituir e desmontar o eu existente. Assim, não há contradição entre o apagamento do mestre e uma pedagogia emancipatória. O apagamento do mestre é o princípio de igualdade necessário para que o estudante, e os mafuás que o acompanham e que com ele se inventam, assuma a possibilidade de produzir conhecimento e inventar com o mundo e com a necessidade da diferença. O mafuá é a possibilidade de um diálogo intenso e acentrado que encontra pontos de estabilidade nele mesmo, mas não na ordem dos falantes, não em uma posição de fala que antecede o diálogo; o que torna o papel do mestre altamente arriscado. O cansaço dos bons professores está diretamente ligado à dificuldade de habitar um mafuá, necessário para o conhecimento e necessário para que ele deixe de ser ele mesmo o tempo todo, transitando em deslocamentos subjetivos desmesurados afetados pela presença de múltiplos atores em festa, curiosidade intensa e desordem. Os caminhos individuais são assim; tracejamentos momentâneos, estabilidades

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pedagogia do mafuá

de múltiplas naturezas e aberturas a constantes reinícios. O mafuá perfaz o vasculhar, a busca em meio à desordem, onde sabemos onde está o que conhecemos – profundidade, pesquisa, tempo – e onde se acha o que não se procura. Na educação contemporânea nos acostumamos a olhar o mundo, organizar suas necessidades – que na verdade são nossas – e, a partir disso, decidimos como as crianças se encaixarão nesse mundo. Dois problemas. Primeiramente não estamos tão satisfeitos assim com o mundo que temos, motivos não nos faltam e seria um tanto enfadonho descrever nossos desastres. Em segundo lugar, não nos perguntamos o que é a produção de conhecimento para as crianças. Como se conhecer fosse algo dado, algo pronto a ser entregue aos estudantes. O mafuá é a tentativa de incluir a criança no conhecimento que ela adquire e produz sem retirar do processo educativo o mal-estar com o mundo que a espera. O mafuá é necessário para que algo que não conhecemos possa surgir como forma de ver e viver em outros mundos possíveis que não podem ser antecipados pelos adultos. Se organizamos a educação de crianças e jovens para um mundo que não lhes pertence e que não nos agrada, a escola está fadada ao fracasso. Faz sentido uma educação que não antecipa o mundo por vir, e que, ao mesmo tempo, se inquieta e se rebela com o atual.

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

INVENTAR COM A DIFERENÇA

O projeto foi realizado entre o segundo semestre de 2013 e o primeiro de 2014. Coordenado pela UFF em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. As oficinas aconteceram no primeiro semestre de 2014, semanalmente. Neste período, em cada um dos 27 munícipios ligados ao projeto, um mediador fazia visitas quinzenais a cada uma das escolas sob sua responsabilidade. O número de escolas variou entre 3 e 12 por município. O mediador ia a escola trabalhar com as crianças, mas, sobretudo, fazer uma formação continuada com os professores, que quinzenalmente realizavam as oficinas sem os mediadores. Todas as oficinas tinham uma dimensão prática; dispositivos sem equipamentos de cinema quando a oficina era ministrada apenas pelo professor – caso a escola não possuísse equipamento – e com equipamentos quando o mediador estava presente. 246 escolas iniciaram as oficinas; 189 finalizaram o projeto; 257 turmas participaram; 459 professores participaram da formação inicial; 307 professores participaram do projeto até o final; 133 oficinas forma oferecidas no contraturno e 99 no período das aulas. Em 2014 e 2015 a metodologia do Inventar foi utilizada em diversos projetos de cinema e educação. Em 2015 a prefeitura de São Gonçalo do Amarante – CE adotou o Inventar com a diferença em todas as 32 escolas do município.

AGRADECIMENTOS

Na construção deste livro estive bastante acompanhado. Por vezes pelo silêncio coletivo das bibliotecas, sobretudo, da Biblioteca Britânica, onde a quase totalidade deste livro foi escrita, outras vezes pela intensidade dos debates, discussões e trabalhos com todos que nos últimos anos circularam pelo Kumã, na UFF. Devo muito à energia que a presença constante dos alunos de graduação e pós levaram para um pequeno espaço dentro de uma universidade pública. Agradeço à UFF e aos colegas do Departamento de Cinema que deram condições materiais e intensos incentivos para que o Inventar com a diferença existisse, e com ele esse livro, especialmente: Martha de Luca, Elianne Ivo Barroso, João Luiz Vieira, Tunico Amancio e India Mara. Agradeço a dedicação e talento de Luiz Garcia, doutorando e responsável pela concepção do projeto, comigo e com Isaac Pipano. Agradeço à Juliana Lopes, pela fundamental contribuição nos poucos meses em que esteve no Inventar. Esses trabalhos foram possíveis por conta do encontro intenso entre a UFF e a Secretaria de Direitos Humanos de Presidência da República, sobretudo a secretária executiva, Patrícia Barcelos. A confiança mútua nos trabalhos me parece exemplar do que pode ser feito entre a universidade e o poder público. Meus mais intensos agradecimentos à toda equipe do Inventar com a diferença. Com prazer e orgulho, passamos longos dias com pessoas de todas as partes do país, algumas delas citadas nominalmente nesse livro.

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Agradeço ainda os patrocinadores do Inventar com a diferença, Petrobras, Organização dos Estados IberoAmericanos e à Capes, que me concedeu uma bolsa de pós-doutorado de um ano na Inglaterra, onde pude conhecer o sistema educacional inglês, suas experiências com arte e cinema e desenvolver essa pesquisa. Agradeço ainda a atenção e interesse por esse trabalho dos colegas na Inglaterra: Judith Suissa (UCL), Mark Reid (BFI), John Potter (UCL), Dima Saber (Birmingham City University) e Muna Golmohamad (Roehampton). Agradeço os amigos que quase sem saber ajudavam na escritura desse livro, como o Adilson Mendes, o Daniel Caetano, a Ilana Feldman, a Clarissa Alvarenga. Agradeço imensamente o professor Michael Witt, pela viva generosidade com que me acolheu na Universidade de Roehampton e por todas as portas que abriu durante minha estada no país. Meus mais intensos agradecimentos aos amigos e companheiros de trabalho que colaboraram com a escritura desse livro com críticas e colocações fundamentais. Muito obrigado, Adriana Fresquet, Clarissa Nacherry, Isaac Pipano, Alexandre Guerreiro, João Luiz Leocadio e André Brasil. Agradeço o Diego e a Elisa. Nossas longas horas juntos me ensinaram enormemente sobre o que é crescer, aprender e, sobretudo, resistir. Serei eternamente grato. O cotidiano do Inventar, da escritura desse livro e da vida toda foram acompanhadas de perto pela Flavia Oliveira. Meu amor sempre. Finalmente, agradeço a cada um que em algum momento abriu as portas de uma escola para que pudéssemos trabalhar e ver o trabalho acontecendo.

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ANEXOS: MATERIAL DE APOIO INVENTAR COM A DIFERENÇA

Índice PRÓLOGO

7

ABERTURAS

13

Eu sou aquele que está de saída

15

A licenciatura em cinema

18

Kumã

21

Alain Bergala

23

Inventar com a diferença, primeiros contatos

30

POLÍTICA

33

Imagem e invenção

33

Criança e estética

38

Escritura e ética

46

Experiência

50

Molecularidades

58

Emancipação

64

IMAGINAR

75

Desenho do projeto

75

Dispositivo

78

Combinações frescas e montagem

81

Produção

88

Educação para o futuro

90

Mediadores

92

Disciplina

96

Funcionalidade da escola e captura pós-disciplinar Saída pela arte



101 106

Prêmios e punições

108

Fica quieto e vai ler um livro

115

Nascidos no mundo digital

118

Podemos ir para a escola

120

NA ESCOLA

125

Inevitavelmente

125

É cinema

127

Minuto Lumière: mediação e acaso

131

Uma sensibilidade comum

138

Da gravidade das imagens

142

Ritmo

146

Fabular

153

Filmes-carta

155

Meio ambiente

159

Rio de Contas: três filmes-carta

161

Entre grades

165

Os necessários fracassos

170

PEDAGOGIA DO MAFUÁ

179

Escola

179

Cinema

185

Pedagogia do mafuá

193

BIBLIOGRAFIA 203 INVENTAR COM A DIFERENÇA

209

AGRADECIMENTOS 211 ANEXOS: MATERIAL DE APOIO INVENTAR COM A DIFERENÇA

213

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