Inglês para fins específicos: o ensino de inglês para negócios pela perspectiva do professor + O uso do Global English Corporate Learning Service™ como ferramenta para o desenvolvimento da autonomia de aprendizes de inglês para negócios

May 23, 2017 | Autor: Elisa Mattos | Categoria: Business English, Learner Autonomy, English language teaching, Teaching Business English
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Descrição do Produto

Antonio Ferreira da Silva Júnior Breno Soares Martins Leandro da Silva Gomes Cristovão Organizadores

EDUCAÇÃO, IDENTIDADE E ENSINO DE LÍNGUA(GUEM) NA CONTEMPORANEIDADE: MÚLTIPLOS OLHARES

Copyright© 2014 por Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão. Título Original: Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares. Editor André Figueiredo Editoração Eletrônica Ana Paula Cunha

E244 Educação, identidade e ensino de língua(gem)na contemporaneidade: múltiplos olhares / Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão (orgs.) — Rio de Janeiro : Publit, 2014. 822 p. : il., fotos ; 21 cm. ISBN: 978-85-7773-748-2 Inclui bibliografia. 1. Linguagem – estudo e ensino. 2. Ensino de Línguas – Aspectos sociais. I. Silva Junior, Antonio Ferreira da. II. Martins, Breno Soares. III. Cristóvão, Leandro da Silva Gomes. IV. Título. CDU 801:37 CDD 407.1

Publit Soluções Editoriais Rua Miguel Lemos, 41 sala 712 Copacabana - Rio de Janeiro - RJ - CEP: 22.071-000 Telefone: (21) 2525-3936 E-mail: [email protected] Endereço Eletrônico: www.publit.com.br

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO DA OBRA..............................................................................................9 (A) LITERATURA, ARTES E OUTRAS LINGUAGENS................................13 CIDADES DE MUROS EM LAS VIUDAS DE LOS JUEVES E LA ZONA: ALTERIDADE E SOCIEDADE DO MEDO NOS ENCLAVES FORTIFICADOS..........................................15 DE PORQUINHOS, LOBOS E CHAPEUZINHOS: UMA LEITURA DOS CONTOS DE FADAS EM O INVASOR E O LOBO, O BOSQUE E O HOMEM NOVO...............................25 REPRESENTAÇÕES DO NEGRO EM CRÓNICA DE MÚSICOS Y DIABLOS................34 DOIS FARÓIS NA CONTRAMÃO DA HISTÓRIA.............................................................43 CETICISMO, TRAGÉDIA E BOEMIA EM TANGOS DOS ANOS 20 E 30........................54 REFLEXOS DA SUBJETIVIDADE NA REPRESENTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA E LITERÁRIA ATRAVÉS DE UMA LEITURA COMPARATIVA DO CONTO “EL OTRO LADO” E DO FILME LA ZONA.........................................................................................................63 DIÁLOGOS E TOMBEAUX: HAROLDO DE CAMPOS, NÉSTOR PERLONGHER E SEVERO SARDUY................................................................................................................72 "CHAC MOOL": MEMÓRIA E DIÁ-LOGO NA OBRA DE CARLOS FUENTES.................83 EUCLIDES DA CUNHA, PRÉ-MODERNO. DE QUE MODERNIDADE?.........................94 ANÁLISE COMPARATIVA DAS OBRAS LA VOLUNTAD (1902) E TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA (1915): ESTUDO DO ANTI-HEROÍSMO E MELANCOLIA DOS PROTAGONISTAS.........................................................................................................103 MODERNIDADE OU MODERNIDADES LATINO-AMERICANAS?................................114 CONTRAVIDA: MEMÓRIA COLETIVA E MEMÓRIA INDIVIDUAL NA OBRA DE ROA BASTOS.........................................................................................................................129 EXCLUSIVIDADE E SOCIEDADE DO MEDO PRODUZINDO REFUGOS HUMANOS NO FILME LA ZONA.............................................................................................................140 MONTEVIDEANOS DE PAPEL EM UMA MONTEVIDÉU LÍQUIDA: REPENSANDO AS RELAÇÕES DE BENEDETTI A METRÓPOLE DE LA “OTRA ORILLA”.........................149 A PELEJA SILENCIADA:O LUGAR DA CULTURA POPULAR NO CABRA MARCADO PRÁ MORRER DE FERREIRA GULLAR.......................................................................157

DO ACESSO RESTRITO À ESCRITA FEMININA NO SÉC. XIX: AS CORRESPONDÊNCIAS DE MANUELA SÁENZ..........................................................................................165 A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO INTANGÍVEL NA CIDADE DE NOVA FRIBURGO/ RJ...................................................................................................................................175 A CONSTRUÇÃO LITERÁRIA NO BRASIL REPÚBLICA E A FORMAÇÃO DO CARÁTER NACIONAL A PARTIR DA OBRA DE LIMA BARRETO...................................................188 LITERATURA E CINEMA MUDO: ARTES QUE SE ENTRECRUZAM NOS ESCRITOS DE HORACIO QUIROGA................................................................................................200 ENGAJAMENTO E LITERATURA: TENSÃO E INTERLOCUÇÃO NA OBRA DE EDUARDO GALEANO................................................................................................................209 QUESTÕES CONCEITUAIS SOBRE AS LITERATURAS NACIONAIS NA AMÉRICA LATINA...........................................................................................................................221 REPRESENTAÇÕES ANIMALIZADAS DA ALTERIDADE EM AS VIÚVAS DAS QUINTAS-FEIRAS:O MEDO DO DIFERENTE NA EXPERIÊNCIA DE ANTI-CIDADE DO “BARRIO CERRADO”.....................................................................................................................228 MÚSICA E SOCIEDADE: UM OLHAR SOBRE CARTOLA............................................237 OS DESDOBRAMENTOS DO PODER NOS DOMÍNIOS INDIVIDUAL E SOCIAL EXPRESSOS NA POESIA LATINO-AMERICANA ROBERTA SILVA BARREIRA...............248 NOSSO BARROCO: OBJEÇÕES TEÓRICAS À VINCULAÇÃO HEGEMONICA DA LITERATURA COM A HISTORIOGRAFIA NACIONALISTARODRIGO LABRIOLA................257 CARTOGRAFIAS DESEJADAS DA HISPANIDADE SÉRGIO LUIZ DE SOUZA COSTA............................................................................................................................274 A VIOLÊNCIA DO PROCESSO CIVILIZADOR ARGENTINO E A DESCONSTRUÇÃO DO ETHOS GUERREIRO NO ROMANCE JUAN MOREIRA SIMONE EMILIANO DE JESUS.......................................................................................................................283 FIGURAÇÕES DA ALTERIDADE EM: PERROS EN LA NOCHE E BLADE RUNNER...295 CIDADE E EXCLUSÃO DA ALTERIDADEEMDOISCONTOS DE CARLOS GARDINI E JULIO RAMÓN RIBEYRO..............................................................................................308 UMA ANÁLISE DAS TRANSFORMAÇÕES DA LÍNGUA EM UM CONTO DE LUANDINO VIEIRA TATIANA VIEIRA B. FARIAS.............................................................................319 A CULTURA CHICHA: ASPECTOS RELEVANTES DE UMA CULTURA MARGINAL....326

O CONTRAPUNTEO DE GUILLÉN DA TESSITURA SIMBÓLICA DA IDENTIDADE ANTILHANA WANESSA CRISTINA RIBEIRO.....................................................................338 A REALIDADE SEGUNDO A POLIFONIA OU A POLIFONIA SEGUNDO A REALIDADE: POSSIBILIDADES TÉCNICO-ESTÉTICAS YANN CARLOS DE ALMEIDA...................349 (B) EDUCAÇÃO, TRABALHO E IDENTIDADES: MÚLTIPLOS OLHARES.................361 FORMAÇÃO DE VALORES DE ALUNOS DO CURSO DE GRADUAÇÃO...................363 TRAJETÓRIA DA EDUCAÇÃO NA CIDADE DE NOVA FRIBURGO: REGIMES E MÉTODOS DE ENSINO...........................................................................................................377 A EDUCAÇÃO NA AMÉRICA LATINA: DO OLHAR COLONIZADOR AO SÉCULO XXI.390 FLAGRANTES DISCURSIVOS – UM MODO DE VER A HISTÓRIA DA PROFISSÃO DOCENTE KELLY CRISTINE OLIVEIRA DA CUNHA.........................................................399 MESTRES DA ESCOLA, MESTRES DA RUA: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE AS PRÁTICAS SÓCIO CULTURAIS E O ENSINO FORMAL................411 SERÁ QUE SOMOS TODOS RAJ ANANDA? IDENTIDADES MASCULINAS NAS TELENOVELAS E SUA (RE) CONSTRUÇÃO EM SALA DE AULA.......................................419 (C) ENSINO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS: (RE) VISITANDO QUESTÕES................................................................................................427 COMUNICAR-SE: REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA EM LE – UM ESTUDO COM ALUNAS DE LÍNGUA INGLESA COMO FINS ESPECÍFICOS.............................................429 O LETRAMENTO COMPUTACIONAL NA AULA DE INGLÊS: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA................................................................................................................436 CERVANTES, DICKENS E SHAKESPEARE: A PRESENÇA DE TEXTOS LITERÁRIOS NA SALA DE LE DO ENSINO MÉDIO............................................................................447 GRAMÁTICAS DE LENGUA ESPAÑOLA: UN ESTUDIO COMPARATIVO...................456 REFLEXÕES SOBRE O USO DO TEXTO LITERÁRIO NA AULA DE LÍNGUA ESTRANGEIRA..............................................................................................................462 UM OLHAR SOBRE A CONTEXTUALIZAÇÃO EM AULAS DE ESPANHOL COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA......................................................................................................474 POLÍTICAS LINGUÍSTICAS E ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS: DISCURSO FUNDADOR NO COLÉGIO PEDRO II...........................................................................480

TRADUÇÃO: O CAMINHO DA TRADIÇÃO OU DA TRAIÇÃO? PODEM ESTRATÉGIAS DE TRADUÇÃO INFLUENCIAR NO PROCESSO DE COMPREENSÃO LEITORA?....487 DO IMPRESSO AO DIGITAL: O HIPERTEXTO NO DESENVOLVIMENTO DA COMPREENSÃO LEITORA E DOS CONHECIMENTOS ENCICLOPÉDICOS DE ALUNOS DE EJA...........................................................................................................................500 IS THERE SOMETHING WRONG WITH THE ACCENT? WHAT BEGINNERS THINK ABOUT IT DENIZE DINAMARQUE DA SILVA...............................................................514 USING BLOGS IN THE EFL CLASSROOM: STUDENTS' AND TEACHER'S PERCEPTIONS.............................................................................................................525 INGLÊS PARA FINS ESPECÍFICOS: O ENSINO DE INGLÊS PARA NEGÓCIOS PELA PERSPECTIVA DO PROFESSOR..................................................................................533 O USO DO GLOBAL ENGLISH CORPORATE LEARNING SERVICE™ COMO FERRAMENTA PARA O DESENVOLVIMENTO DA AUTONOMIA DE APRENDIZES DE INGLÊS PARA NEGÓCIOS..........................................................................................................541 A INTERDISCIPLINARIDADENAS AULAS DE LITERATURA LATINO-AMERICANA...554 METODOLOGIAS LÚDICAS DE ENSINO: REPENSANDO O ENSINO DE ITALIANO COMO LE.......................................................................................................................567 O GÊNERO FICCIONAL E AS AULAS DE ESPAHOL E/LE...........................................575 ADEQUAÇÃO CURRICULAR: DA AULA DE ESPANHOL COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA AO EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO NO BRASIL............................................583 A IMPORTÂNCIA DAS COLOCAÇÕES NO ENSINO DE VOCABULÁRIO DE INGLÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA.....................................................................................591 O ENSINO DE INGLÊS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA): UMA PROPOSTA PARA UM CURSO NA MODALIDADE DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA (EAD) L Í DIA DE ANDRADE RIBEIRO RAMOS............................................................................604 “YES, WE CAN!”: (RE) CONSTRUINDO A AUTOESTIMA DOS ALUNOS NA AULA DE LÍNGUA INGLESA ATRAVÉS DE PRÁTICAS DE LETRAMENTO CRÍTICO.................614 ARTES VISUAIS COMO RECURSO DIDÁTICO EM AULAS DE LÍNGUA ESPANHOLA...................................................................................................................626 A INTERAÇÃO SOCIOCONSTRUTIVISTA NOS CHATS COMO PRÁTICA DE LEITURA E ESCRITA NO ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA.....................................................636

CINEMA NA SALA DE AULA: FERRAMENTA PODEROSA NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA..........................................................642 CHAVO DEL 8: EL HUMOR ACERCANDO CULTURAS................................................648 LEIO, LOGO EXISTO: A LEITURA E OS GÊNEROS TEXTUAIS COMO INSTRUMENTOS DE AÇÃO NO MUNDO NAS AULAS DE INGLÊS PARA O ENSINO MÉDIO................658 DIÁLOGO ENTRE O LETRAMENTO LITERÁRIO, AS LITERATURAS HISPÂNICAS E UMA LICENCIATURA DE ESPANHOL...........................................................................672 ENTRE A LICENCIATURA EM LETRAS E O LICENCIANDO DE ESPANHOL: POR QUAIS VEREDAS CAMINHAM AS LITERATURAS HISPÂNICAS?..........................................678 ENSINO-APRENDIZAGEM DE E/LE NO CONTEXTO DA TERCEIRA IDADE: CONHECENDO O LICOM/LETI..................................................................................................688 RECONOCIÉNDOSE CULTURAL E HISTÓRICAMENTE AL APRENDER/ENSEÑAR E/LE................................................................................................................................697 COMO INSERIR A LITERATURA NA SALA DE AULA...................................................706 ANÁLISE DE PROVAS DE CONCURSO PÚBLICO PARA PROFESSOR DE INGLÊS: DIFERENTES SABERES PARA O MESMO...................................................................712 ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR E A IMPORTÂNCIA DO APRENDIZADO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA: UMA EXPERIÊNCIA COM PROJETO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA PIBIC-EM........................................................................................................................717 UMA ANÁLISE DISCURSIVA DE ATIVIDADES LEITORAS DO LIVRO ESPANHOL SÉRIE BRASIL...........................................................................................................................730 A IDENTIDADE GLOBAL DO ADOLESCENTE NA TIRA CÔMICA GATURRO..............738 EL APORTE DE LAS TIC A LA ENSEÑANZA/APRENDIZAJE DEL ESPAÑOL COMO LE.......................................................................................................................748 DA SALA DE AULA PARA A REDE SOCIAL: UMA EXPERIÊNCIA NO ENSINO DE INGLÊS COMO LÍNGUA ADICIONAL................................................................................761 A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO NO CONTEXTO INTERDISCIPLINAR DE ESPANHOL SOB PERSPECTIVA DO DISCENTE..............................................................776 PRÁTICAS DE LETRAMENTO E O PROCESSO DE ENSINO/APRENDIZAGEM DE ESPANHOL EM SALA DE AULA....................................................................................783

A AULA DE ESPANHOL LÍNGUA ESTRANGEIRA (E/LE) COMO UMA PREPARAÇÃO PARA A DISCUSSÃO DE TEMAS DE CIDADANIA........................................................792 O USO DE SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS PARA O DESENVOLVIMENTO DA ORALIDADE EM LÍNGUA ESTRANGEIRA: UM ESTUDO DE CASO..................................................799 O DESAFIO DO NIVELAMENTO DE TURMAS DE ENSINO FUNDAMENTAL NO ENSINO DE LÍNGUA INGLESA. REALIDADE OU UTOPIA?.................................................806 AS REPRESENTAÇÕES CULTURAIS E IDENTITÁRIAS DO PROFESSOR BRASILEIRO DE ELE...........................................................................................................................812 OS ORGANIZADORES..................................................................................................818

Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão

EDUCAÇÃO, IDENTIDADE E ENSINO DE LÍNGUA(GUEM) NA CONTEMPORANEIDADE: MÚLTIPLOS OLHARES

APRESENTAÇÃO

A

pós cinco anos da realização do primeiro evento vinculado a um Curso de Pós-Graduação Lato Sensu do CEFET/RJ, apresentamos, nesta edição, a junção de artigos de pesquisadores participantes de três Simpósios realizados em nossa instituição de ensino: II Encontro da Hispanidade (CEFET, Nova Friburgo, ano de 2009), I Simpósio sobre Ensino de Línguas Estrangeiras (CEFET, Maracanã, ano de 2011) e II Simpósio sobre Ensino de Línguas Estrangeiras (CEFET, Maracanã, ano de 2012). Esta edição reúne textos de diferentes pesquisadores do país afiliados à área da Educação, dos Estudos Culturais, dos Estudos Literários e/ou Estudos Linguísticos, constituindo um mosaico de reflexões sobre inúmeras questões, dentre as quais podemos citar: Educação e Identidade(s) na América Latina, Formação de Professores, As novas tecnologias da informação e comunicação aplicadas à Educação, Ensino/aprendizagem de línguas, Ensino/aprendizagem de Artes, Literaturas dos países da América Latina, Ensino de cultura e literatura na escola regular, Estudos Interdisciplinares, Diálogo entre a universidade e a escola, Ensino de línguas para finalidades específicas, Métodos de ensino, Práticas de Letramento crítico e as abordagens reflexivas de ensino/aprendizagem. Os oitenta e um textos selecionados para esta edição foram divididos em três seções: (A) Literatura, Artes e outras linguagens; (B) Educação, trabalho e identidades: múltiplos olhares; (C) Ensino e formação de professores de línguas estrangeiras: (re)visitando questões. A divisão dos textos nas seções buscou simplesmente orientar a leitura dos textos. Acreditamos que, pelo caráter multidisciplinar da obra, os referenciais teóricos e as inquietações propostas perpassam as seções de apresentação/divisão da obra. Nesta edição, o leitor terá acesso às seguintes reflexões:

9

Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares NOME DO AUTOR EM ORDEM ALFABÉTICA Aiga Nóbrega Coutinho Alberto Simões de Andrade Alessandra Corrêa de Souza Aline Cunha Queiroz Silva Aline Guimarães de Souza Almiro Schulz Amanda Letícia Oliveira

SEÇÃO DO TÍTULO DO ARTIGO TRABALHO Cidades de muros em Las Viudas de los Jueves e La Zona: alteridade e sociedade do A medo nos enclaves fortificados De porquinhos, lobos e chapeuzinhos: uma leitura dos contos de fadas em O invasor e A O lobo, o bosque e o homem novo A Representações do Negro em Crónica de Músicos y Diablos A Dois faróis na contramão da história Comunicar-se: reflexões sobre a prática em LE – um estudo com alunas de língua C inglesa como fins específicos B Formação de valores de alunos do curso de graduação A Ceticismo, tragédia e boemia em tangos dos anos 20 e 30

Amanda Moreira de Lima

A

Reflexos da subjetividade na representação cinematográfica e literária através de uma leitura comparativa do conto El otro Lado e do filme La zona

Ana Paula Loureiro

C

O letramento computacional na aula de inglês: relato de uma experiência

Andrea Conceição Braga Antunes; Kelly Pereira de Carvalho; Luciana Maria da Silva Figueiredo

C

Andréa Cristina da Cruz Soares

C

Angélica Teixeira da Silva

C

Antonio Andrade Antonio Ferreira da Silva Júnior Antonio Ferreira da Silva Júnior Aura Maria Ribeiro Faria; Luanda de Oliveira Bruno da Cruz Faber

A C C B A

Camila Dias Amaduro; Línea Schneider; Maria Beatriz Abicalil Couto; Romilda. N. Machado; Sheila Cerbino

B

Carla da Glória Corrêa Senra

C

Célio Diniz Celso Felizola Santos

A C

Cláudia Estevam Costa

C

Cristina Bongestab

A

Cristina do Sacramento Cardôso de Freitas

C

Cristina Vergnano Junger; Eduardo Alves Inez; Fernanda Caetano de Lima

C

Denize Dinamarque da Silva Diana Araujo Pereira Doris de Almeida Soares Elaine de Almeida Elen Fernandes dos Santos

C A C A A

Elisa Mattos de Sá

C

Elisa Mattos de Sá

C

Fernanda Fernandes da Silva

C

Gabriel Macedo Poeys

A

Heleine Fernandes de Souza

A

Isabela Roque Loureiro

A

Jefferson Evaristo do Nascimento Silva Jéssica Balbino da Silva Jonathan da Rocha Silva; Rodrigo De Benedictis Delphino

C C A

Juliana P. Rosa; Maria Cândida F. A. Neves

A

Karina Magno Brazorotto

A

Katia Celeste Dias Henriques

C

Kelly Cristine Oliveira da Cunha

B

Leila Maria Taveira Monteiro

C

10

Lídia de Andrade Ribeiro Ramos; Maria Filomena Correia do Rego

C

Lindinei Rocha Silva Lindinei Rocha Silva

A A

Luciana Amorim Pereira

C

Luciana Amorim Pereira; Patrícia Helena da Silva Costa

C

Lusimar dos Santos de Andrade

C

Marcelo Amaro Pessanha Quadros

C

Márcia Verena Firmino de Paula

C

Margareth de Souza Pinto

C

Michele de Campos Viegas

A

Cervantes, Dickens e Shakespeare: a presença de textos literários na sala de LE do ensino médio A construção do conhecimento no contexto interdisciplinar de Espanhol sob perspectiva do discente Práticas de letramento e o processo de ensino/aprendizagem de espanhol em sala de aula Diálogos e tombeaux: Haroldo de Campos, Néstor Perlongher e Severo Sarduy Gramáticas de lengua española: un estudio comparativo Reflexões sobre o uso do texto literário na aula de língua estrangeira Trajetória da educação na cidade de Nova Friburgo: regimes e métodos de ensino "Chac Mool": Memória e Diá-logo na obra de Carlos Fuentes A Educação na América Latina: do olhar colonizador ao século XXI A aula de Espanhol Língua Estrangeira (E/LE) como uma preparação para a discussão de temas de cidadania Euclides da Cunha, pré-moderno. De que modernidade? Um olhar sobre a contextualização em aulas de espanhol como língua estrangeira Políticas lingüísticas e ensino de línguas estrangeiras: Discurso fundador no Colégio Pedro II Análise comparativa das obras La Voluntad (1902) e Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915): estudo do anti-heroísmo e melancolia dos protagonistas Tradução: o caminho da tradição ou da traição? Podem estratégias de tradução influenciar no processo de compreensão leitora? Do impresso ao digital: o hipertexto no desenvolvimento da compreensão leitora e dos conhecimentos enciclopédicos de alunos de EJA Is there something wrong with the accent? What beginners think about it Modernidade ou modernidades latino-americanas? Using blogs in the EFL classroom: students' and teacher's perceptions Contravida: memória coletiva e memória individual na obra de Roa Bastos Exclusividade e sociedade do medo produzindo refugos humanos no filme La Zona Inglês para fins específicos: o ensino de inglês para negócios pela perspectiva do professor O uso do Global English Corporate Learning Service™ como ferramenta para o desenvolvimento da autonomia de aprendizes de inglês para negócios A interdisciplinaridade nas aulas de literatura latino-americana Montevideanos de papel em uma Montevidéu líquida: Repensando as relações de Benedetti a metrópole de la “otra orilla” A peleja silenciada: O lugar da cultura popular no Cabra marcado prá morrer de Ferreira Gullar Do acesso restrito à escrita feminina no séc. XIX: as correspondências de Manuela Sáenz Metodologias lúdicas de ensino: repensando o ensino de italiano como LE O gênero ficcional e as aulas de espahol E/LE A preservação do patrimônio intangível na cidade de Nova Friburgo/RJ A construção literária no Brasil República e a formação do caráter nacional a partir da obra de Lima Barreto Literatura e cinema mudo: artes que se entrecruzam nos escritos de Horacio Quiroga Adequação curricular: da aula de espanhol como língua estrangeira ao Exame Nacional do Ensino Médio no Brasil Flagrantes discursivos – um modo de ver a história da profissão docente A importância das colocações no ensino de vocabulário de inglês como língua estrangeira O ensino de inglês na Educação de Jovens e Adultos (EJA): uma proposta para um curso na modalidade de Educação a Distância (EAD) Engajamento e Literatura: tensão e interlocução na obra de Eduardo Galeano Questões conceituais sobre as literaturas nacionais na América Latina O uso de sequências didáticas para o desenvolvimento da oralidade em língua estrangeira: um estudo de caso “Yes, we can!”: (Re) construindo a autoestima dos alunos na aula de língua inglesa através de práticas de letramento crítico Artes visuais como recurso didático em aulas de língua espanhola O desafio do nivelamento de turmas de ensino fundamental no ensino de Língua Inglesa. Realidade ou utopia? A interação socioconstrutivista nos chats como prática de leitura e escrita no ensino de língua estrangeira Cinema na sala de aula: ferramenta poderosa no processo ensino-aprendizagem de língua estrangeira Representações animalizadas da alteridade em As Viúvas das Quintas-Feiras: O medo do diferente na experiência de anti-cidade do “barrio cerrado”

Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão Michele de Souza dos Santos Fernandes

C

Munira Queiroz

B

Nanímia Conde Ferreira de Moraes Góes Viegas

A

Odir Teixeira Pessanha

B

Patrícia Helena da Silva Costa

C

Raquel de Castro dos Santos

C

Raquel de Castro dos Santos

C

Roberta Maranguape Olmos Coutinho; Ronaldo Claudio de Araujo; Angela Marina Chaves Ferreira

C

Roberta Silva Barreira

A

Rodrigo Labriola

A

Rogério Alexandre das Dores Rosangela Piveta Sérgio Luiz de Souza Costa

C C A

Simone Emiliano de Jesus

A

Simone Silva do Carmo

A

Sylvia Helena de Carvalho Arcuri

A

Tatiana Vieira B. Farias; Valéria Muniz Tereza Cristina Filippo

A C

Thaís Duarte Passos Teixeira do Amaral

C

Thayssa Taranto Ramírez

A

Úrsula Maruyama

C

Valdiney da Costa Lobo Valdiney da Costa Lobo Valéria Jane Siqueira Loureiro

C C C

Victor Brandão Schultz

C

Wanessa Cristina Ribeiro

A

Yann Carlos de Almeida

A

Chavo del 8: el humor acercando culturas Mestres da escola, mestres da rua: Uma breve análise sobre as relações entre as práticas sócio culturais e o ensino formal Música e sociedade: um olhar sobre Cartola Será que somos todos Raj Ananda? Identidades masculinas nas telenovelas e sua (re) construção em sala de aula Leio, logo existo: a leitura e os gêneros textuais como instrumentos de ação no mundo nas aulas de inglês para o ensino médio Diálogo entre o letramento literário, as literaturas hispânicas e uma licenciatura de espanhol Entre a Licenciatura em Letras e o licenciando de Espanhol: por quais veredas caminham as literaturas hispânicas? Ensino-aprendizagem de E/LE no contexto da terceira idade: conhecendo o LICOM/LETI Os desdobramentos do poder nos domínios individual e social expressos na poesia latino-americana Nosso Barroco: objeções teóricas à vinculação hegemonica da literatura com a historiografia nacionalista Reconociéndose cultural e históricamente al aprender/enseñar E/LE As representações culturais e identitárias do professor brasileiro de ELE Cartografias desejadas da hispanidade A violência do processo civilizador argentino e a desconstrução do ethos guerreiro no romance Juan Moreira Figurações da alteridade em: Perros en la Noche e Blade Runner Cidade e exclusão da alteridade em dois contos de Carlos Gardini e Julio Ramón Ribeyro Uma análise das transformações da língua em um conto de Luandino Vieira Como inseri a literatura na sala de aula Análise de provas de concurso público para professor de inglês: diferentes saberes para o mesmo A cultura chicha: aspectos relevantes de uma cultura marginal Abordagem interdisciplinar e a importância do aprendizado em língua estrangeira: uma experiência com projeto de iniciação científica PIBIC-EM Uma análise discursiva de atividades leitoras do livro Espanhol Série Brasil A identidade global do adolescente na tira cômica Gaturro El aporte de las TIC a la enseñanza/aprendizaje del español como LE Da sala de aula para a rede social: uma experiência no ensino de inglês como língua adicional O contrapunteo de Guillén da tessitura simbólica da identidade antilhana A realidade segundo a polifonia ou a polifonia segundo a realidade: possibilidades técnico-estéticas

Os textos da coletânea incrementam discussões e olhares contemporâneos para as problemáticas anunciadas anteriormente, proporcionando um material de consulta para alunos de diferentes níveis de ensino. O livro também contribui para o amadurecimento de novas proposições sobre os temas abordados. A presente edição também serve como memória do trabalho realizado pelos organizadores desta coleção e demais professores do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca atuantes na implementação de cursos de Especialização na área de Humanidades e de Letras desde o ano de 2009. Gostaríamos de agradecer o apoio de alguns dirigentes que contribuíram para o crescimento e o amadurecimento dos cursos de Lato Sensu em nosso Centro Tecnológico. São eles: Prof. Miguel Badenes Prades Filho, Prof. Carlos Henrique Figueiredo Alves, Prof. Maurício Saldanha Motta, Prof. Pedro Manuel Calas Lopes Pacheco e Profa. Fernanda Rosa dos Santos. Antonio Ferreira da Silva Júnior Breno Soares Martins Leandro da Silva Gomes Cristóvão

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão

(A) LITERATURA, ARTES E OUTRAS LINGUAGENS

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão

CIDADES DE MUROS EMLAS VIUDAS DE LOS JUEVES E LA ZONA: ALTERIDADE E SOCIEDADE DO MEDO NOS ENCLAVES FORTIFICADOS

Aiga Nóbrega Coutinho

A

ocupação coletiva de um território gera inevitavelmente heterogeneidade e a cidade é um espaço que na sua essência constitutiva propicia encontros e desencontros entre os habitantes. Nela estamos expostos a todo o momento a circular entre desconhecidos, de modo que se potencializam as possibilidades de situações imprevistas e enriquecedoras. O presente trabalho visa a discutir como se estruturam as relações interpessoais em um novo espaço que está sendo criado em grandes metrópoles no qual se imbricam o público e o privado. Estamos falando dos residenciais de alto padrão que se projetam como “bairros fechados”. A partir do romance de Claudia Piñeiro (Las viudas de los jueves) e com base no filme mexicano La Zona (dirigido por Rodrigo Plá, México/Espanha, 2007, 97’), discutiremos a representação das mulheres e das crianças nesses espaços fechados. Para isso, recorremos ao sociólogo Zigmunt Bauman que utiliza as ideias dos refugos humanos e das relações interpessoais na modernidade; ao Marcelo Lopes de Souza e Janice Caiafa que propõem conceitos da fragmentação do espaço sócio-urbano a partir da auto-segregação de uma classe alta, com intenção de habitar novos espaços que forneçam tudo o que o Estado não foi capaz de cumprir, ou “privatopias”. Além deles, nos apoiamos em Beatriz Jaguaribe na análise do fator da estética do consumo e do poder de representação que possui o mercado imobiliário no processo de construção de realidade. Propomos-nos assim, a problematizar em que medida esses novos espaços tornam realmente mais difíceis as relações com a alteridade? A partir da construção de um mundo de iguais, ou seja, em que medida os choques, frutos dos contatos com a alteridade, podem efetivamente ser minimizados ou eliminados, nessa utopia de uma zona exclusiva na qual não haveria espaço para o diferente.

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares

Os grandes centros urbanos não param de crescer. O crescimento desenfreado propicia encontros nunca antes imaginados entre diversos setores da população. Esses grupos sociais fazem da cidade uma grande arena visando dar “significados” a suas existências. Classificam a si mesmos e aos outros para a garantia de legitimidade dos seus “saberes”. As cidades contemporâneas são grandes laboratórios sociais, nos quais a vida se faz em ações cotidianas. O filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), ao pensar sobre alguns dos problemas políticos e sociais da sociedade de seu tempo, afirma que o fator novo a impactar com profundas conseqüências a vida pública européia é o fato das aglomerações. Assim ele o define: eu denomino o fato da aglomeração de ‘cheio’. As cidades estão cheias de gente. As casas, cheias de inquilinos. Os hotéis, cheios de hóspedes. Os trens, cheios de passageiros. Os cafés, cheios de consumidores. Os passeios, cheios de transeuntes. Os consultórios dos médicos famosos, cheios de pacientes. Os espetáculos, não sendo muito fora de época, cheios de espectadores. As praias, cheias de banhistas. O que antes não costumava ser problema agora passa a sê-lo quase de forma contínua: encontrar lugar. (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 36).

Esses centros urbanos “cheios” como os percebe Ortega y Gasset são em verdade conseqüência do surgimento das multidões e da ocupação dos espaços públicos pelas massas que começam a coincidir (e em querer coincidir) em seus desejos, ideias, atitudes, modos de ser com os grupos de privilégio. Cada vez mais indistintos em meio à multidão de subalternos que avança, os grupos hegemônicos ameaçados buscam defender sua individualidade. A diferença entre as aglomerações e as minorias neste caso, é que “nos grupos que se caracterizam por não serem multidão e massa, a coincidência efetiva de seus membros consiste em algum desejo, a ideia ou ideal, que por si só exclui o grande número. Para se formar uma minoria, seja qual for, é preciso que, antes, cada um se separe da multidão por razões especiais, relativamente individuais.” (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 38). O medo de sofrer agressões físicas, de ser vítima de crimes violentos ou a repulsa aos espaços urbanos “cheios” onde devem dividir o espaço com o diferente, constituem preocupações centrais das minorias citadas por Ortega y Gasset. De acordo com CAIAFA (2007), por terem ascendido socialmente esses grupos cons16

Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão

troem uma imagem hierarquizada da sociedade e expressam um forte desejo de segregação, uma ânsia de isolar-se dos problemas da cidade, de fugir das urbes representadas por eles através de uma visão generalizadora que BAUMAN (2009) nomeia de “sociedade do medo”. Esse imaginário de insegurança compartilhado é um dos fatores que motivam o deslocamento de parcelas mais abastadas da sociedade para os novos espaços conhecidos como “bairros exclusivos”, nos quais buscam uma saída para a “rebelião das massas” e o convívio compulsório com a alteridade através das novas microurbes, que pretendem manter os diferentes do lado de fora. Jaguaribe (1998) afirma que: A especulação imobiliária e a vendagem publicitária superam a ação pioneira do Estado […] e garantem acesso irrestrito ao consumo aos eleitos com poder aquisitivo. Essa apologia ao consumo é construída como opção de vida, estilo de comportamento, escolha de valores. Nos redutos dos condomínios fechados, nas piscinas, quadras de tênis, academias de ginásticas e nas imagens de belas famílias, a glorificação da materialidade transforma-se em opção de vida saudável.(JAGUARIBE, 1998, p. 143).

É possível observar na tessitura narrativa de Las viudas de los jueves(2005) como o discurso que projeta a imagem idealizada do barrio cerrado orienta também a vida das personagens que escolhem este tipo de condomínio de casas de luxo denominado na obra de Altos de La Cascadacomo seu novo espaço de morada.Cito um trecho da caderneta de Virginia que afirma “los que venimos a vivir en los Altos de La Cascada decimos que lo hacemos buscando ‘el verde’, la vida sana, el deporte, la seguridad. Excusados en eso, inclusive ante nosotros mismos, no terminamos de confesar por qué venimos.”(PIÑEIRO, 2005, p. 30). Com a intenção de ser réplica da cidade, o “bairro exclusivo” busca reproduzir os valores do individualismo e da família, da comunidade homogênea, da arquitetura da proteção, emoldurando o jardim fechado e domestificado para o conforto ameno através da venda da mitologia da felicidade. Neste microcosmo social observamos primeiramente apenas um equilibrado e feliz convívio entre iguais, mas essa utopia de uma sociedade composta apenas pela mesmidade logo é negada pelo real cotidiano no qual emergem múltiplos tipos de alteridade. Os personagens femininos e infantis pertencem e vivem os barrios cerrados em sua totalidade. Relacionam-se entre si e participam de atividades coletivas. 17

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Repetem-se em suas vidas iguais, diferenciando-se dos homens que podem participar de realidades diversas quando se deslocam do condomínio para a cidade. Mulheres e crianças são os modelos de uma geração de “bairro exclusivo”. A personagem feminina que mais se destaca no condomínio Altos de La Cascada é a Virgínia Guevara. Trata-se de uma das narradoras do romance e das mais antigas moradoras que teve os mesmos motivos que levaram seus vizinhos a buscar este bairro fechado ou country (como o definem os argentinos) e que após uma crise econômica do país, viu a situação econômica de seu marido deteriorar-se, permanecendo este desempregado por anos. Visionária, Virginia observa que o bairro não possuía uma empresa imobiliária que conhecesse a realidade interna e soubesse articular um discurso que correspondesse à demanda daqueles que buscam este “recanto do paraíso”, bem como aos interesses dos condôminos no processo de seleção de novos moradores. Ao abandonar o papel clássico de moradora do condomínio de luxo, sair de casa e começar a trabalhar fora do lar e do próprio condomínio, acessando outros espaços que lhe permitem um novo olhar, ela assume a condição de personagem fronteiriça. Como única mulher da trama que trabalha para sustentar o lar, realiza as tarefas da casa por não poder manter uma empregada doméstica diária e, principalmente, ultrapassa diariamente as fronteiras do condomínio para trabalhar em sua imobiliária, que se localiza no enclave de pobreza nas aforas do condomínio. Seu escritório situa-se muito próximo à comunidade Santa María de los Tigrecitos, e isto faz com que represente a imagem de mediadora de discursos intra e extramuros. Desse modo, a representação de Virginia ganha grande relevância, pois se projeta como contraponto e é uma das poucas que empreende uma caminhada de desalienação em relação às imagens idealizadas que são construídas para representar o mundo exclusivo. Ao receber os clientes em sua imobiliária, realiza a função de seletora já que seus vizinhos confiam a ela a ação de triagem que restringe a entrada de novos moradores a partir do estudo de seus históricos familiares, profissões e árvores genealógicas. Virgínia tem também uma outra função, a de narradora, o que reforça seu papel como elaboradora da representação do condomínio. O objeto que comprova essa função de construção da imagem e ao mesmo tempo explicita seu olhar crítico e o próprio poder inerente aos discursos de representação é a sua caderneta vermelha. Nela se anotam todas as informações pertinentes para Virginia que precisa estar sempre atenta ao que ocorre nesse espaço.

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A caderneta vermelha está dotada do poder de representar, de construir a narrativa que será mantida como memória do condomínio e que desconstruirá a ideia de utopia tão bem articulada pelo marketing imobiliário.Cada anotação serve como referência para localizar o leitor diante do carrossel de frustrações, ócios e violência que circundam o microcosmo: Su libreta roja fue ganando valor con los años y la experiencia. De alguna manera se convirtió en leyenda en el barrio. Formaba parte del mito de Mavi Guevara. Todos sabíamos que existía pero, aunque algunos asegurában que sí, nadie la había leído. Temíamos haber sido incluidos, pero también haber sido ignorados. Y sospechábamos, equivocadamente, que entre todos podíamos armar oralmente un rompecabezas parecido al que en ella se escondía, juntando frases aisladas que le fuimos escuchando a lo largo de los años e inventando adecuadamente otras. […] Y Virginia nos contradecía. “Portate bien que te anoto en mi libreta roja”, amenazaba, y se reía.(PIÑEIRO, 2005, p. 64).

Podemos perceber como é intensamente auratizado pelo discurso o espaço de privilégio dos condomínios fechados, tanto em Altos de La Cascada com em La Zona, denominação do condomínio exclusivo no filme homônimo. Quando os novos moradores passam a viver nestas regiões, passam por um processo de seleção e reconstrução das memórias. Em um dos trechos do livro, a narradora diz que em Altos de La Cascada não é raro ignorar-se tudo sobre o outro, o que foi antes de ir ao condomínio e inclusive o que é no presente, como conseqüência da garantia à intimidade, uma vez que se fecha a porta de sua casa temos um mundo fechado dentro de outro mundo fechado. O pretérito é preterido ante um presente auratizador que impera nesta verdadeira “zona sagrada”. Trata-se de um reduto da manipulação da memória. Até as mulheres passam por esse processo. Necessitam deixar do lado de fora dos muros alguns hábitos que trazem consigo da cidade. Virginia diz em sua caderneta que no início custa muito a elas abandonar alguns costumes adquiridos, como não usar meia de seda, sapato de salto alto e deixar as cortinas arrastando pelo chão. Em outro contexto, esses detalhes seriam diferenciais de bom gosto ou elegância. Essas mulheres adentram o espaço como emergentes que muitas vezes não concluíram o ensino médio e por conta da posição social que seus maridos ocupam, elevam-se a categoria de socialites. Segundo Jaguaribe, essas mulheres so19

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brevoam o congestionamento urbano em helicópteros, navegando em limusines à prova de bala e munidas de telefones celulares, vão ao tradicional chá das cinco. Rezam o terço na afirmação dos valores católicos. (JAGUARIBE, 1998, p. 146). Além disso, tem em comum o fato de que a grande maioria não trabalha, apenas administra a casa e o cotidiano das crianças enquanto aguardam os seus maridos. Ocupam-se em entreter-se com cursos promovidos no próprio bairro como aulas de pintura ou Feng-Shui, por exemplo. Acreditam demonstrar seu interesse pelos menos favorecidos ao recolherem entre elas doações para a comunidade vizinha, embora invistam sempre nas estratégias de evitação que impedem os contatos entre os Outros e elas. A heterogeneidade definitivamente não é um vocábulo previsto no projeto desses “bairros exclusivos”. Sendo todas elas padronizadas em estilo, comportamento e estética, limitam-se no convívio diário a estabelecer contatos com as mulheres de sempre. O acaso que a cidade pode gerar, as situações imprevistas e os estranhos não formam parte da rotina dessas mulheres. Ao contrário, repetem-se e confundem-se na mesmidade de um grupo à parte. Recorrendo uma vez mais à caderneta de Virginia, nota-se o tom de preocupação para que não se pareçam coincidentes: Todas acá somos muy distintas, aunque algunos se confundan y crean que vivir en un lugar así hace que las mujeres terminemos pareciéndonos. Mujer country, nos llaman. La falsedad del estereotipo.” (PIÑEIRO, 2005, p.38).

Denominam-se entre elas como as “Damas do Alto”. O tão idealizado reduto de lazer, segurança e conforto gera uma vida acomodada, em que o ócio contamina a rotina. Tal rotina deriva no sufoco, na anulação da identidade feminina numa vida vazia e sem sentido. O incômodo gerado por uma vida confortável manifesta-se através dos casos de mulheres que afogam suas frustrações no álcool, mulheres impotentes diante da violência doméstica, mulheres que busca saídas várias para fugir da solidão e até em jovens que recorrem à droga como alternativa. As minorias privilegiadas fogem da cidade, esquivam-se da violência, dos crimes e refugiam-se num mundo perfeito, no qual não conseguem fugir à frustração, aos medos que levaram consigo. No fim, estão diante dos mesmos problemas dos quais fugiram e a reprodução mimética da cidade está completa quando se deparam com tudo aquilo que acreditavam ter deixado para trás, do lado de fora dos muros.

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As relações interpessoais das mulheres e de seus maridos são representadas através do velho modelo segregacionista patriarcal. Os homens são os protagonistas das ações relacionadas ao mundo externo, já que trabalham e devem deslocar-se periodicamente entre a cidade e o “gueto voluntário”. As mulheres raramente extrapolam os limites de seus bairros e além de não poderem decidir e opinar sobre as escolhas de seus maridos, durante os eventos organizados em suas casas ocupam sempre um espaço diferente daquele em que se divertem os maridos numa mostra clara de segregação sexual. Os curtos ou mínimos registros de diálogos encontrados na obra demonstram pela exigüidade e pouca expressividade a falta de diálogo entre os casais. Os homens realizam atividades esportivas diferentes das femininas, como a prática do tênis, do golfe, do xadrez e ainda se encontram todas as quintas-feiras para jogar cartas enquanto as mulheres permanecem em casa ou devem ir ao cinema. A sexuação do lazer é uma das marcas desses territórios. A grande diferença de narração entre as obras literária e cinematográfica é o foco do narrador. Na primeira, todo a narrativa é feita a partir de uma polifonia de vozes femininas que se alternam ao longo dos capítulos. Por outro lado, as cenas do filme apresentam apenas o olhar do adolescente Alejandro, que acompanha todo o processo de “caça” ao intruso que invadiu o condomínio. As mulheres não têm voz e não acompanham a busca, afinal a caça é um elemento tipicamente masculino. A mãe de Alejandro que sempre o teve muito próximo em sua criação observa que o jovem se afasta dela para adentrar no universo masculino e deixa o uso da razão de lado para participar da busca com os outros homens como necessidade de obter emoção nesta rotina que representa a vida dos jovens de La Zona. Alejandro assume o papel de sujeito do foco narrativo de La Zona, pois participa de praticamente todas as cenas e os fatos nos são apresentados a partir do seu olhar. O ponto de vista do jovem é de extrema importância para o expectador, na medida em que ele passa por um processo aprendizagem e de amadurecimento durante as aproximadamente vinte e quatro horas da trama, expressando simbolicamente através de um pequeno conjunto de fatos a transição da fase infantil para a adulta. O adolescente possui talvez o seu primeiro contato com um Outro como ele, já que este reside em uma comunidade ao lado de seu condomínio onde moram meninos com idades semelhantes à dele. Em outros termos, Alejandro depara-se com o seu duplo. Conhecer uma historia diferente da sua, compreender quais valores regem o espaço onde vive no qual nem o poder do

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Estado é capaz de interferir na estrutura de poder interna, é algo que mobiliza Alejandro e o leva a refletir sobre quais aspectos o diferenciam de Miguel (seu duplo). Neste momento, ocorre uma ruptura da mesmidade. O adolescente passa a rechaçar os valores que regem as vidas de seus amigos mergulhados num outro processo de socialização: passam a participar da milícia, pois entendem que se trata de um animal à solta em um espaço que não lhe pertence, ou do jovem que orienta o trânsito em um dos simulacros de ruas. A partir da observação de um personagem que se torna mediador desse contexto, recordamo-nos de outra personagem de profunda relevância no romance Claudia Piñeiro. Ramona é uma menina adotada que chega ao condomínio já grande, com mais de sete ou oito anos e que, por ter tido outra experiência de cidade e vivenciado outro processo de socialização, não aceita o local onde vive e permanecerá em eterna dissonância estética e de valores com o mundo para o qual a levam. Rejeita a ideia de ter que apagar as suas memórias, agora que participa deste novo espaço e fica indignada com o que sua mãe adotiva faz com o seu irmãozinho, que, ainda muito pequeno, não é capaz de reter em sua memória suas experiências do período vivido no mundo exterior. Ramona não pode impedir a mudança de nome imposta pela mãe adotiva que juntamente com o patronímico tenta alterar completamente a sua identidade através da adoção de prenome Romina. Ela constitui-se como mais uma personagem fronteiriça que, assim como Virgínia, é capaz de absorver as informações e analisá-las criticamente, já que detém o conhecimento da experiência extramuros e a partir desta detém um olhar não se coaduna com a realidade idealizada pelo discurso do mundo ilusório em que passa a viver após a adoção. Em nenhum momento ela se considera igual aos demais. Juani, o filho de Virginia, será o único capaz de entendê-la por conta da sua condição de diferente interno, elemento oriundo do espaço do condomínio, mas marcado por uma estrutura familiar atípica. Juntos, os dois adolescentes trocarão confidências, experimentarão bebidas alcoólicas e maconha. Mais que experiências, terão uma relação de cumplicidade na ação de construir narrativas críticas sobre a realidade interna, ou seja, proporcionarão (a partir de sua câmera de vídeo) a emergência de uma outra dimensão narrativa que se processa como um olhar de voyeur a flutuar sobre cotidiano do barrio cerrado. Eles representam a consciência ante o incômodo derivado das vidas de fachada, a consciência da falsidade da imagem das famílias perfeitas, a qual é erodida de dentro. À noite, passeiam pelo bairro com uma câmera fil22

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madora e registram cenas cotidianas da rotina dos moradores. A partir do olhar destes adolescentes, desconstrói-se a utopia desta nova sociedade. As imagens gravadas na máquina permitem apreender e problematizar o conjunto de valores que ordenam esse espaço. A máquina filmadora é um objeto de voz, um instrumento de narração que, assim como a caderneta de Virgínia, é capaz de produzir a representação. Ambos geram imagens e propiciam uma leitura crítica, pois o discurso é construído a partir de uma zona de contato, de um lugar deslizante que é a fronteira, a qual lhe permite vivenciar ao mesmo tempo a condição de estar dentro e fora ao mesmo tempo. O discurso da caderneta de Virgínia permite observar o choque entre as condutas dos habitantes e a imagem de defensores da moral e da ética construída para consumo público. A narrativa que deriva das filmagens garante ao leitor que as acompanha, uma releitura baseada a partir de uma perspectiva crítica frente aos acontecimentos. Ambas são muito produtivas quanto aos processos de recriação de novas memórias, já que a imagens produzidas por Ramona e Juani são recortes que problematizam a imagem dominante de mundo perfeito. Tanto a caderneta como a máquina possuem um olhar dessacralizador que esvazia o sentimento utópico presente nos discursos. Vale ressaltar que a máquina filmadora é um objeto comum nas duas obras e detém a função de desvelar os reais motivos dos crimes ocorridos. Ambas refletem o olhar de adolescentes que anseiam em descobrir emoção em suas vidas e têm como ponto de contato que o que representaram servirá para prova de que o crime é algo muito maior do que se acredita no primeiro momento. O crime é o próprio modo de vida do barrio cerrado. Os crimes dos condomínios não consistem apenas em assassinatos ou suicídio coletivo. Os significados são muito maiores, pois denotam que é o crime da sociedade, derivando na própria criação da réplica exclusiva de cidade. Resulta na exposição da frustração da utopia e a visão crítica que alguns personagens podem ter em relação a este projeto, e este é a prova mais cabal de que se trata de um crime contra a cidade. Isto fica claro em dois segmentos mais frágeis dentro das obras: mulheres e crianças/adolescentes. São justamente eles que acabam prisioneiros deste espaço fechado. A pretendida nova ágora vira prisão. Uma prisão da qual os homens podem sair quando vão ao trabalho, mas aos elementos da alteridade presentes no espaço interno (mulheres, crianças e adolescentes) há outras barreiras e fronteiras que os tornam prisioneiros.

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REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. ______. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001 ______. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Pereira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. ______. Vidas desperdiçadas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. ______.Confiança e medo na cidade. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. CAIAFA, Janice. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. JAGUARIBE, Beatriz. Fins de século: cidade e cultura no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. PLÁ, Rodrigo. La zona. [DVD, 97 min. cor]. Espanha/México: Dreamland, 2007. ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Tradução Marylene Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 1987. PIÑEIRO, Claudia.La viuda de los jueves. Buenos Aires: Arte Gráfico, 2005. SOUZA, Marcelo Lopes de.Fobópole: o medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

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DE PORQUINHOS, LOBOS E CHAPEUZINHOS: UMA LEITURA DOS CONTOS DE FADAS EM O INVASOR E O LOBO, O BOSQUE E O HOMEM NOVO

Alberto Simões de Andrade

O

presente trabalho procura demonstrar de que forma as obras de Senel Paz, um autor cubano, e do brasileiro Marçal Aquino dialogam com as historias infantis dos três porquinhos e Chapeuzinho Vermelho. Tal diálogo, porem, não acontece como mera intertextualidade funda no pastiche, a recontar, de modo atualizado, os clássicos contos de fada. Aqui esses contos infantis são trazidos ao contexto da modernidade, mas também submetidos a um profundo processo de problematização segundo o qual as noções de bom e mal não são tão estanques e passam a constituir um mesmo indivíduo Nos contos de fada existem dois lados claramente opostos, com intenções também muito explicitas desde o inicio dos relatos. A partir de um corte dicotômico assumidamente maniqueísta, vilões e heróis são facilmente identificáveis. Isso pode ser explicado se pensarmos que tais narrativas representam um mundo imaginário idealizado por adultos para um destinatário infantil. Este universo tão claro e ordenado simplifica a realidade no plano do maravilhoso, que se mostra bem distante da realidade, noção essa compartilhada inclusive pelas crianças que sabem que não vão encontrar um dragão ou uma princesa no seu cotidiano. Marçal Aquino e Senel paz dialogam com dois desses contos de fadas para a partir deles questionarem situações bem diferentes. Enquanto o primeiro ambienta sua história em uma grande cidade onde a velocidade trazida pela modernidade faz com que os personagens tenham que se adaptar sob pena de se tornarem vítimas vorazes dos valores que se desmancham no ar como também ocorre com aquilo que é sólido. Senel ambienta sua narrativa ao período especial, fase crítica da Revolução Cubana, na qual identificamos as contradições de um homem novo cheio de velhos valores e preconceitos. Isto se observa na figura de um personagem homossexual que se configura como uma ameaça para o sistema social e

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político, diante do qual se ergue como sujeito dos ventos de mudança a promover uma ruptura nas convicções de um jovem militante do PC. “O lobo, o bosque e o homem novo”, conto de Senel Paz, passa- se em Havana e trata principalmente da amizade entre David, um estudante universitário inserido nas estruturas do regime instituído e o homossexual Diego, marginalizado perante o sistema devido a sua opção religiosa e a sua condição de intelectual e católico. As possibilidades promissoras de tal relacionamento seriam, à primeira vista, improváveis, pois em um contexto como o descrito acima indivíduos que ocupam posições tão diferentes, são quase inimigos. No inicio da narrativa, David procura mostrar a Diego a posição a partir da qual fala e vê o mundo ao passar a carteirinha do partido de um bolso para outro. Ao realizar tal ação, David procura manter a alteridade à uma distancia segura, mas não alcança o efeito desejado e o Outro lança pontes em sua direção que proporcionarão a aproximação de ambos, desta decorrendo uma sensação de incômodo, a qual aumenta ao ponto de David fabricar desculpas a si mesmo para justificar o fato de ter ido à casa de Diego. Já podemos encontrar nesse primeiro momento pontos de contato entre narrativa e o conto Chapeuzinho Vermelho, relação essa presente já no título. Assim como no conto temos o personagem do lobo, representado por Diego, pois ele se trata de um estranho, o que vive à margem do ordenado mundo de David. O narrador-personagem diretamente associado à cor dominante que simboliza estereotipadamente o Partido Comunista, se mostra constantemente hesitante e, como ele mesmo afirma, incapaz de dizer não, podendo ser visto como uma espécie de Chapeuzinho Vermelho, pois assim como a menina da história parece estar perdido entre o que o sistema determina e o que ele pensa. O lobo, a principio associado à figura de Diego, é rechaçado, mas aos poucos vai insidiosamente entrando no mundo de um David sempre em conflito consigo mesmo. O jovem militante começa a perceber que nem tudo o que o sistema diz, deve ser aceito como regra. Através da literatura e da música, por exemplo, David vai conhecendo um novo mundo através das mãos do lobo, embora, inicialmente, atribua essa amizade à necessidade de investigar um inimigo do sistema, sistema esse corporizado, principalmente por seu amigo Ismael (Miguel no filme), um militante exemplar e em quem David se espelha, mas do qual gradualmente se afasta até o rompimento simbolizado no filme Morango e chocolate, obra baseada do livro, quando David

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vai visitar Diego e encontra Ismael e ambos acabam brigando. Ismael é o típico quadro partidário, pois segue todas as orientações do regime e vive de acordo com as normas ditadas, sem aparentar qualquer senso crítico, elemento que vai começar a surgir com a figura em David. David vai se reconhecendo na amizade com Diego que, ante os olhos do próprio David, vai perdendo a condição de lobo como símbolo do que é negativo. No curso da narrativa percebe-se uma problematização da dicotomia simplista presente no conto-base à noção de bem e mal, diferentemente dos contos infantis, nos quais, como já foi dito, estes valores são fechados e imutáveis. Fica claro que o caminho ditado pelo sistema não é único e Diego mostra que a intolerância não é o caminho certo quando diz “As coisas desagradáveis dessa vida não podem ser eliminadas simplesmente olhando para o lado”. O contato com outro é inevitável. Nesse tipo de sistema de governo é comum a exclusão de grupos considerados nocivos, como se tais grupos fossem inimigos, entrando assim em uma dimensão de superioridade/ inferioridade. Partindo dessa noção e divulgando a seus partidários criam-se justificativas para as maiores barbaridades, pois se o Outro é inferior, até mesmo sua morte pode ser considerada um bem para o sistema, perdendo-se assim a dimensão de humano. David, assim como Chapeuzinho, tem a cor vermelha associada ao seu universo identitário, e também não pode falar com estranhos, outro ponto em comum com a personagem do conto infantil. Diego leva David a vivenciar um processo de aprendizagem e amadurecimento, especialmente através da desconstrução dos valores estabelecidos, mostrando ao inocente Chapeuzinho que não é mau (semelhante ao lobo do conto). A mãe de chapeuzinho (que encontra uma espécie de duplo na figura da avó) pode ser simbolizada pelo regime revolucionário, visto que ambos são responsáveis pelas orientações passadas a Chapeuzinho/David. Os dois devem evitar sair do caminho pré estabelecido e evitar os elementos perigosos. Contudo, diferentemente do conto infantil, na obra de Senel tomar outro caminho significa ampliar o potencial de aprendizagem e com isso poder tornar-se mais crítico, não aceitando de forma irreflexiva qualquer ordem ou ideologia. O lobo enfim, se mostra um personagem negativo para o sistema em geral, mas para David que tanto cresce com sua associação com ele, o tal lobo é fundamentalmente positivo.

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O homem novo a que se refere o título, na verdade, não existe, pois as práticas dos indivíduos que integram a sociedade mesmo sob um novo regime permanecem sendo as mesmas. Práticas preconceituosas que associam a diferença ao perigo que deve ser eliminado, ainda que eliminação não signifique necessariamente morte no sentido literal, já que a chamada “morte branca” é muito comum nesse contexto e consiste em fazer com que a vítima desapareça dos registros e se torna uma espécie de morto vivo, pois, como é um desafeto do regime, perde emprego, amigos e tem seu nome apagado dos registro oficiais somo se jamais tivesse nascido. Sequer seu nome não pode ser mencionado ou suas obras publicadas ou encontradas em livrarias e bibliotecas. A outra obra literária estudada é O invasor, narrativa que deu origem ao filme homônimo com roteiro também escrito por Marçal Aquino. Se o texto de Senel estabelece um diálogo explícito com “Chapeuzinho vermelho”, o livro e roteiro escritos por Marçal remetem a outro conto infantil, o clássico “Os três porquinhos”. O primeiro indício de tal relação se percebe quando ficamos sabendo que três dos personagens principais são os sócios de uma construtora. O filme, assim como o livro, se inicia com a conversa de dois desses sócios com um assassino a fim de eliminar o terceiro. Assassino esse que seria o lobo do conto infantil, pois quer matar um dos porquinhos e mais tarde invadir seu espaço. Na trilha sonora do filme podemos ouvir um trecho de hip-hop que diz: “bem vindo ao pesadelo da realidade”, frase essa que parece resumir de forma perfeita o que a narrativa de Marçal nos mostra a seguir. Uma inocente historia infantil traduzida para o universo cruel da realidade contemporânea de uma grande urbe na qual “tudo se desmancha no ar” e as máscaras mudam com rapidez. No contexto em que se passa a narrativa, a metrópole pós-moderna dos tempos líquidos, o poder do dinheiro é o elemento que dita quem conseguirá atingir seus objetivos, mas este já não é o lobo ou os porquinhos, mas sim aquele que consegue transitar pelos diferentes papéis e territórios da cidade. Alaor e Ivan são os sócios que contratam o assassino Anísio, de modo que, ao contrário do conto infantil, aqui são os porquinhos vão em busca do lobo. Um conflito de mundos diferentes já se mostra nessa primeira cena, pois ao entrarem no bar são observados de maneira estranha na porta, denotando que não são bem vindos naquele mundo. Representantes da classe alta ou média alta, ambos são verdadeiros invasores no mundo do lobo.

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No texto literário temos toda a ação narrada por Ivan, um dos sócios majoritários da empreiteira que contratam os serviços de Anísio. Tal narrador sente-se desconfortável desde esse primeiro momento. Para ele o fato de cruzar a fronteira para ir a um outro mundo em busca dos serviços de um subalterno vinculado ao mundo do crime lhe parece algo arriscado e questionável, mas seus valores não são nada sólidos e ele se deixa levar pelo amigo e não impede o desenrolar da trama de ações violentas que deriva desse primeiro movimento. Ivan é um porquinho que embora consciente de que sua casa está prestes a cair não faz nada para salvá-la, como podemos ver também por sua atitude diante do casamento que ele observa fracassar passivamente. O conflito que leva Ivan a se transformar em algo de que ele mesmo afirmava ter nojo emerge justamente da sua passividade e da carência de valores que orientem sua ação. Elemento intermediário de dois mundos com seus códigos e valores específicos, flutua entre ambos e sem saber como lidar com a tomada de decisões que exigem uma prévia análise critica e valorativa, torna-se também um assassino ao contratar um matador. Mas antes mesmo já era um duplo de Anísio, pois pode ser identifica como um primeiro agente da invasão do mundo da classe alta representado por Estevão, o herdeiro de uma rica família de quem foi companheiro nos tempos de faculdade. O outro contratante, Alaor, é o oposto de Ivan, partindo dele, inclusive, a proposta de eliminar o terceiro sócio. Apesar de ser um personagem mais definido e de apresentar um universo de valores ou desvalores mais claros, Alaor também vai passar por uma profunda transformação ao longo da história. Sua trajetória mostra a relativização dos valores e a aceitação de um contexto no qual, as atitudes dependem sempre das circunstâncias. Os atores assumem diferentes personagens segundo o momento, podendo o porquinho virar lobo e Alaor justifica perspectiva da identidade como algo mutável e relacional ao expor sua teoria de que “faço antes que façam comigo”. Esse argumento parece manter sua consciência limpa em relação a algo considerado condenável em seu mundo ordenado segundo leis pensadas pelo grupo hegemônico. Para além do de que os três personagens trabalham em uma construtora, uma primeira referência ao conto “Os três porquinhos” pode ser identificada na cena em que Alaor conta a historia dos três porquinhos para a filha usando um nariz de porquinho. Pode-se dizer Alaor usa uma máscara falsa, já que só tem aparência de porquinho, as noções de bem e mal são postas em dúvida.

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Ao contrario de Ivan, Alaor consegue manter seu mundo de aparências, alias Alaor não só transita no mundo dos lobos, como se converte em tal. A intenção dos porquinhos era contratar o lobo e depois de tudo esperava-se que esse lobo sumisse, voltasse para seu mundo, porém o lobo / assassino cobra um preço muito alto: fazer parte do mundo dos porquinhos. O filme mostra, portanto, dois movimentos de cruzamento da fronteira urbana, um o dos porquinhos que vão ao mundo do lobo e o outro o do lobo que invade a casa para prestar um serviço útil aos dois e já não querem mais sair. Usando um código que os porquinhos não dominam, o lobo, aos poucos, avança nos território dos porquinhos que quiseram brincar de lobos. Tal domínio só aumenta e os porquinhos utilizarão estratégias diferentes para lidar com esse invasor, estratégias essas que determinarão o destino de todos os envolvidos. Alaor aceita tal invasão com pretexto de ganhar tempo, essa estratégia acaba criando uma relação de confiança que facilita ainda mais o transito de Anísio pelos dois mundos, é o outro que se mantém perto através de ameaças sutis. Com essa proximidade, o lobo conhece ainda mais profundamente as regras do novo mundo em que transita e pode planejar como lidar com cada um deles. Aproximação com Alaor logo se torna uma aliança completando assim a transformação dele em lobo. Já Ivan, o outro porquinho entra em um conflito crescente, visto que não consegue dar conta dessa realidade que não lhe dá espaço. A culpa pelo crime e a velocidade em que tudo acontece tornam os acontecimentos seguintes cada vez mais imprevisíveis e quando pensa ter uma trégua, alguém com quem dialogar (seu relacionamento com Paula) percebe estar diante de mais uma faceta dessa realidade. Os lobos Alaor e Anísio o vigiam de perto e estão no controle da situação. O final de Ivan é trágico, pois ele passa a ser o elemento deslocado que não encontra espaço num mundo onde não é possível permanecer fiel a uma identidade ou conjunto de valores fixos. O estabelecimento absoluto do lobo Anísio no mundo que anteriormente era dos porquinhos, ou dos patrões, pode ser simbolizado na frase dita perto do fim do filme “Eu não faço, mando fazer”. Nisso ele se torna um igual aos porquinhos e fica à vontade em sua nova realidade. Ele logo percebe que o mundo dos empreiteiros não é assim tão diferente do seu: ambos estão permeados pela violência, pelas articulações dos poderosos, todos pelas drogas e pelo sexo.

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No conto, o lobo destrói a casa dos porquinhos por que ela é de palha, já na historia de Marçal o lobo não quer destruir, mas sim apropriar-se da casa e se possível conviver com os porquinhos. Sair de seu mundo de pobreza para outro de luxo e riquezas. Diferente do relato infantil no qual o porquinho foge para casa do irmão, Ivan não tem possibilidade de fuga. Não pode fugir de si mesmo. Em “O lobo, o bosque e o homem novo” percebemos a transformação de David em um cidadão mais crítico enquanto em “O invasor” o porquinho Ivan é esmagado pela realidade. Dois personagens considerados “do bem”, mas trazidos à realidade têm destinos bem diferentes: Chapeuzinho descobre um novo caminho e o porquinho Ivan acaba sem casa e sem vida. Os conceitos de bom e mau são problematizados nas duas obras, o que deriva da própria complexidade doe mundo real em oposição ao mundo da fantasia. No mundo imaginário dos contos de fadas as mascaras são fixas e os personagens monolíticos ou mesmo maniqueístas. No mundo real a própria identificação dos heróis já é problemática. Não há heróis, lobos ou porquinhos, apenas seres humanos, porquinhos-lobos e lobos-porquinhos. A reação dos protagonistas ao lobo, em um primeiro momento, é ditada por instituições reguladoras no caso de “O lobo, o bosque e o homem novo” é o sistema revolucionário que exclui as minorias. É o que causa o desprezo de David por Diego, assim como em “O invasor” o incomodo inicial dos protagonistas pode ser explicado, em parte, pelo fato de que em seu mundo a sociedade não considera benéfico o contato com a alteridade. Marina, filha do sócio morto, porém não é afetada por isso, apesar de pertencer ao mundo dos bacanas, ela só se pronuncia no mundo do outro. Para ela os modelos impostos pela sociedade não dizem nada, por isso a união com o lobo Anísio é até previsível, para ela, assim como para Alaor Anísio é um igual. Marina é uma espécie de alteridade no mundo dos porquinhos. A alteridade é representada pelo lobo em ambas as narrativas infantis com o mesmo objetivo de identificar o elemento perigoso capaz de destruir algo (a casa, ou a vida de uma pessoa) Deslocados desse contexto, o vilão dessas historias se mostram seres mais nuançados exigem uma leitura muito mais rica do real. Como afirma Todorov, o encontro com o Outro é inevitável, ainda que se finja indiferença, levantem-se barreiras, construam-se muros ou os enviem para gue-

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tos ou enclaves territoriais. A estratégias que, movidas pelo medo, tentam manter a alteridade afastada não são a solução. Ela está sempre no meio do nós. Ela também está no próprio Eu. Diferentemente dos contos de fadas nos quais a alteridade morre ou simplesmente foge, na realidade ela está ao nosso lado o tempo todo e nos influencia de alguma forma. Como percebemos pelos dois textos, o Eu não é tão diferentes da alteridade e o que pensamos ser nocivo é apenas um sujeito que sofre com a intolerância ou a exclusão. Voltemos à cena a partir da qual O invasor já assume explícitamente o diálogo com a fábula. Numa casa de classe média um pai dramatiza num teatrinho a história dos três porquinhos e o lobo, usando um singelo nariz de porco. A história já se introduz de modo problemático, pois o pai que transmite os valores para a proxima geração e que representa no teatrinho familiar o papel de proquinho ingênuo é na verdade o mentor do assassinato do sócio (o outro porquinho), configurando-se depois como um lobo que se veste de porquinho. Não seria equivocado deixzer que, apartir de certa perspectiva, Anísio (como Diego) é nada mais que um poruinho que usasa uma fantasia social de lobo. Em releituras nada moralistas, os personagens que encarnam agora os elementos das duas fábulas optam por não seguir as orientações de um elemento hegemônico (família, classe social ou Estado socialista) e assumem trajetórias bem mais complexas e ricas. Em ambos os textos destaca-se a atração pela alteridade definida originamente como um elemento perigoso e ameaçador. Não importa sob que pretexto inicial, há um movimento de aproximação em relação tanto ao homossexual Diego quanto ao assassino Anísio, movimento esse que desestabilizará o equilíbrio das vidas dos protagonistas ao mesmo tempo que as enriquecerá. Parece que as narrativas de Senel e Marçal querem nos colocar da criança questionadora que não toma as histórias que lhes são contadas como verdades ou padrão de orientação para sua vida mas sim como elemento problematizador da realidade exterior. Pode-se conluir isto especialmente a partir do final das tramas reconfiguradas quando percebemos que há uma verdadeira inversão de papéis com os porquinhos assumindo a condição de lobo mau (em O invasor) e com a desconstrução da figura violenta e violadora do malvado lobo diante do inocente estudante vermelho (“O lobo, o bosque e o homem novo”). As narrativas mostram como o mundo é mais complexo e como os papéis no mundo real fogem do previsto pelos defensores de um mundo ordenado e estável, acabando por se embaralhar diante de nós.

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REFERÊNCIAS

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O INVASOR. Brasil, 2001. 97 min. Direção de Beto Brant. Roteiro: Marçal Aquino, Beto Brant e Renato Ciasca, baseado em livro de Marçal Aquino. Fotografia: Toca Seabra. Elenco: Alexandre Borges (Gilberto), Malu Mader (Cláudia), Paulo Miklos (Anísio), Marco Ricca (Ivan), Mariana Ximenes (Marina), Chris Couto (Cecília), George Freire (Estevão), Tanah Correa (Dr. Araújo), Jayme del Cuento (Norberto). Música: Paulo Miklos, Pavilhão 9, Tolerância Zero Black Alien, e Professor Antena. MORANGO E CHOCOLATE. Título original: Fresa y Chocolate. Cuba, 1994. 108 min. Direção de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío. Roteiro: Senel Paz baseado no conto “El lobo, el bosque y el hombre nuevo”, de Senel Paz. Fotografia: Mario García Joya. Elenco: Jorge Perugorría (Diego), Vladimir Cruz (David), Mirta Ibarra (Nancy), Francisco Gattorno (Miguel), Joel Angelino (Germán), Marilyn Solaya (Vivian).

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REPRESENTAÇÕES DO NEGRO EM CRÓNICA DE MÚSICOS Y DIABLOS

Alessandra Corrêa e Souza UFS

C

omeço o diálogo de hoje a partir de uma citação que para mim é muito pertinente como pesquisadora, Fanon em seu livro Peles Negras e Máscaras Brancas afirma que:“[…] falar é existir de modo absoluto para outro.” (FANON, 1979, p. 17).Pois bem: A proposta desta pesquisa partiu de inquietações particulares em busca de respostas a algumas questões, como por que os irmãos subsaarianos são sempre representados como bodes expiatórios na história universal ou por que fomos escolhidos para sermos os outros no discurso do Poder? Até mesmo quando a narrativa tem como meta a exaltação do sujeito negro alguns autores deslizam em determinados estereótipos que foram criados para justificar a dominação. O que nós, pesquisadores, podemos fazer para romper as representações criadas e enraizadas no inconsciente de toda a população? Trazer à tona, questionar, caminhos e direções são muitos, por estes motivos iniciamos a nossa pesquisa; acreditamos que se ficamos na caverna não encontramos respostas, por isso resolvi sair e começar a caminhar. Caminhadas que nos levaram a Crónica de Músicos y Diablos de Gregorio Martínez que, por sua vez, nos direcionou ao temada dissertação, Representações do Negro em Crónica de Músicos y Diablos. Nossa área de concentração são os estudos literários, opção literaturas hispânicas, especificamente literaturas hispano-americanas. A linha de pesquisa em que insere nosso trabalho é Literatura, História e Sociedade. Quanto à problemática inicial da dissertação, constatamos que, em Crónica de Músicos y Diablos, Gregorio Martínez apresenta o universo do negro e do mestiço, resgatando a história de diversas comunidades afro-peruanas.

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Considerando esses elementos, estabelecemos o seguinte problema: Como o negro é representado em Crónica de Músicos y Diablos? Partimos da hipóteseque a obra apresenta dois tipos de atuação dos negros no Peru, ao longo da história. No primeiro tipo estão os Músicos – a família do casal Gumersindo Guzmán-Bartola Avilés e seus vinte e cinco filhos varões, que mostram o início da mestiçagem no Peru, entre criollos e negros. Já o segundo tipo refere-se aos Diablos, que seriam os rebeldes, associados aos cimarrones1. Em uma perspectiva maniqueísta consideramos numa primeira leitura que os dois tipos apresentados por Martínez - os músicos e os cimarrones – eram representados da seguinte forma: os cimarrones eram ‘malvados e perversos’; enquanto os músicos eram ‘bondosos’. No entanto, detectamos algumas “pistas” que nos levaram a estabelecer uma nova hipótese, a de que ambos lutariam pelos seus direitos de cidadãos. A diferença consiste em que os cimarrones utilizavam a violência, enquanto os músicos, com a finalidade de criticar os poderosos, utilizavam-se da música como instrumento de defesa. Quanto à relevância e a originalidade desta dissertação, trata-se de questionar as representações do ‘outro’ que foram impostas pelos europeus colonizadores desde a descoberta do ‘Novo Mundo’. Estes impuseram ao negro, ao índio, à mulher estereótipos e preconceitos de longa duração. O romance aqui analisado traz um rico material para discutir a história não-oficial do Peru e também para provocar leitores mais atentos ao novo e ao lúdico da nova narrativa hispano-americana. Podemos reforçar que vimos no decorrer dos capítulos a questão do negro e como este é representado no imaginário universal, tanto na época da colonização como nos dias atuais. Quanto à estrutura do texto, optamos por dividi-lo em quatro capítulos. O primeiro, introdutório, apresenta a questão do negro, no que se refere a tópicos comoetnicidade e discriminação, identidades e negritudes, transculturação e sincretismo religioso. No transcurso da análise, procuramos pontuar como a cultura africana foi responsável por configurar os traços culturais peruanos com diversas marcas herdadas da África e discutimos também o papel da migração nos dias atuais.

Cimarrónera o escravo fugido que se escondia no campo ou nas florestas buscando sua liberdade. (BUSTO DUTHURBURU, 2001, p.38). 1

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Neste capítulo em específico problematizamos as identidade(s) e as negritude(s). Quando pensamos em identidades e negritudes afro-peruanas pensamos no plural porque há pluralidade na gênese da população negra no continente peruano. Quanto ao conceito de Identidade, concordamos com a professora Bernd, ele não deve estar vinculado a um alvo determinado a ser atingido; deve ser travessia, movimento contínuo de desconstrução dos espaços que se opacificaram devido a sucessivos processos de apropriação e controle do outro, e de construção de espaços transparentes onde são inventados novos modos de relação. (BERND, 1984, p.140). A pesquisadora Zilá Bernd afirma também que há dois sentidos para o termo negritude, por um lado temos Negritude(s), como substantivo com (n) minúsculo, que é utilizado para refletir a tomada de consciência de uma situação de dominação e de discriminação e a conseqüente reação pela busca de uma identidade negra. Por exemplo: o “marronaje”, no Caribe; o “cimarronaje”, na América Hispânica e o quilombismo no Brasil, iniciados logo após a chegada dos primeiros negros na América (p.20). Já a Negritude, substantivo próprio, refere-se a um momento pontual na trajetória da construção de uma identidade negra, dando-se ao mundo com o outro. No Peru houve transculturação ou sincretismo religioso? A partir das leituras e dos levantamentos de dados pudemos perceber que no início da colonização peruana, os negros que foram trazidos a América, utilizavam o sincretismo religioso para evitar futuras complicações com o Poder vigente, contudo se analisamos o Peru hoje, podemos afirmar que hoje há transculturação, termo criado por Fernando Ortiz que é bem pertinente para o nosso diálogo, pois este teórico afirma que transculturação é um processo no qual sempre se dá algo a mudanças do que se recebe; é um toma lá e dá cá. No segundo capítulo, destacamos o início e as características de obras que são classificadas como pertencentes ao novo romance histórico, para alguns; já outros, alcunham como nova narrativa hispano-americana; a terminologia empregada por diversos autores são importantes, contudo. O interessante é o que este novo modelo literário fez em favor das discussões das minorias. E foi isto que procuramos abordar nos capítulos de análise do romance. Delimitamos o autor e a obra e o processo de representação do negro no romance Crónica de Músicos y Diablos. 36

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Encontramos quatro das seis características do novo modelo literário alcunhado por Seymour Menton como novo romance histórico que são: “a subordinação, em diferentes graus de reprodução mimética de certo período histórico e a apresentação de algumas idéias filosóficas, […] seu caráter imprevisível, ou seja, os sucessos mais inesperados e mais assombrosos podem ocorrer. ”(SEYMOUR MENTON, 1993, p.42). No romance CMD, percebemos o caráter cíclico pontuado por Menton, como por exemplo: as viagens da família Guzmán, ou seja, idas e vindas desta família entre várias cidades do Peru. O segundo ponto seria a distorção consciente da história mediante omissões, exageros e anacronismos. Este também é percebido noromance, quando Martínez representa a história dos negros cimarrones, da família Guzmán e dos homens brancos do poder. Para Menton (1993), todo texto é a absorção e a transformação de outro; pois bem, a intertextualidade é observada no início do livro quando Martínez utiliza fragmentos de jornais e revistas da época da colonização no prólogo e no epílogo de Crónica de Músicos y Diablos. Há também personagens bíblicos como Noé e Jonas, referências a Babilônia e a santos da Igreja Católica. O último tópico é muito importante, pois faz referência aos conceitos bakhtinianos de: dialogismo, carnavalização, heteroglosiae paródia. A paródia e o carnavalesco são utilizados quando Martínez descreve os negros e os brancos e também quando nos mostra as violações e as relações sexuais no romance. Já a heteroglosia, multiplicidade dos discursos, representa o uso consciente de distintos níveis ou tipos de linguagem. Percebemos essa característica em Crónica de Músicos y Diablos manifestada nas greves dos camponeses, na destruição de Parcona, e na criação do Pisco por um negro que não sabia ler, tampouco escrever, mas fez um rótulo para estampar a garrafa da bebida. E por último a determinação da mulher afro-peruana. Quanto ao autor, Gregorio Martínez nasceu em Coyungo, Nazca em 1942. Ele é narrador, professor universitário, jornalista. Atualmente reside nos Eua e trabalha como colecionador em um antiquário. Obras do autor: Tierra de Caléndula (1977), Canto de sirena (1985), La gloria de piturrín y otros embrujos del amor (1985) e Crónica de Músicos y Diablos (1991).

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Crónica de Músicos y Diablos é um romance de corte histórico que possui estrutura binária. Por um lado conta-se a história dos Guzmán, uma família de músicos negros que viajam de Cahuachi a Lima e depois a Sondondo na Sierra; e de outro, narram-se diferente relatos onde se tenta reivindicar a negritude e o processo de mestiçagem na Costa. O terceiro capítulo segue a análise do romance que foi iniciada no capítulo anterior; nele discutimos o início da mestiçagem na obra, o papel da mulher no romance, as viagens da família Guzmán, o movimento de resistência, verificamos que mesmo com o início da república havia escravidão disfarçada no Peru. Quanto ao início da mestiçagem no romance, podemos observar que se dá a partir da “quimera do ouro” no novo continente, tendo como personagens o espanhol Pedro Guzmán e seu sobrinho Felipe Guzmán, que representam na obra o início da mestiçagem no Peru: o primeiro como hidalgo e o segundo como mestiço que se casa com uma moça burguesa que foi criada em um convento, e que, portanto, se expressa muito bem. Pedro de Guzmán chega à cidade de Cahuachi sem planejamento nenhum, mas afirma que possui uma carta da coroa espanhola, a qual lhe concede privilégios para a exploração das riquezas minerais de tal cidade. Quanto ao tópico, as mulheres no romance, propomos a discussão das relações de gênero onde o regime patriarcal estabeleceu que o gênero masculino é o detentor do Poder frente ao feminino. Partindo deste olhar, vale relembrar que no romance Crónica de Músicos y Diablos há elementos que constituem o novo modelo literário, como a humanização da natureza, maior liberdade para a questão do erotismo e dos tabus morais e sociais. Gregorio Martínez apresenta-nos à mulher afro-peruana, valoriza e questiona os estereótipos criados no imaginário nacional, em alguns momentos utiliza o recurso de exaltação da imagem da mulher, em outros recai nos estereótipos criados quanto à imagem feminina. Quanto às viagens da família Guzmán, vale destacar que o romance é cíclico e as histórias se entrelaçam. Observamos que a família Guzmán se inicia com o primeiro colonizador que chega ao Peru e começa a exploração dos bens da terra: depois seu sobrinho Felipe Guzmán casa-se e tem um filho bastardo, a quem dá seu nome. A partir do filho de Felipe nasce Gumersindo Guzmán, que por sua

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vez se apaixona por Bartola Avilés, negra retinta, em uma festa religiosa. Ele a seqüestra, depois se casam e o casal tem vinte e cinco filhos varões. Como a vida começa a ficar difícil, as colheitas bem escassas, Gumersindo resolve viajar a Lima para solicitar uma pensão vitalícia ao Presidente da República, benefício dado a famílias numerosas. Gumersindo no primeiro momento pensou em ir sozinho, mas ao comentar sua idéia com a esposa Bartola Avilés, esta se propõe a acompanhá-lo com seus vinte cinco filhos varões. Logo começa a viagem de ida e volta dessa família. Quanto ao movimento de resistência no Peru, os cimarrones eram os escravos rebeldes, fugitivos, que levavam uma vida de liberdade em espaços pequenos nas cidades e no campo em palenques. Eles preferiam fugir e rebelar-se contra o opressor sistema. Cabe destacar que os palenques seriam como os quilombos no Brasil. Cada qual com a sua especificidade, contudo, ambos espaços de resistência e afirmação de um grupo que lutava por liberdade. Assim que foi proclamada a independência do Peru e o fim da escravatura, o negro ainda continuava sendo explorado. Segundo o pesquisador Oscar Ramírez, os afro-peruanos eram objeto de negócio e braços para o trabalho, a sociedade peruana não os aceitava, tampouco queria aceitar sua condição de seres humanos. Gregorio Martínez em seu romance nos apresenta este tipo de situação, ou seja, na república os negros continuavam a ser peças, mas de forma disfarçada. O negro ex-escravo agora não é mais vendido por moeda corrente, mas é trocado como uma coisa ou um utensílio para executar alguma tarefa. No último capítulo, fazemos uma pequena reflexão sobre a representação do negro na mídia retomando os pontos trabalhados no primeiro capítulo. Séculos passaram-se e a discriminação frente ao negro continua tão presente como no passado, apenas escamoteada em um racismo cordial que prega que preconceitos e diferenças já foram superadas pela população há muito tempo. Trouxemos à tona as vozes dos silenciados, ora com o instrumento da palavra ora com imagens e ilustrações de teóricos comprometidos com a real mudança que ainda não aconteceu, como muitos afirmam. Complementamos a dissertação com vídeos extraídos da internetque rememoram a cultura afro-peruana, apresentam-nos o papel da religiosidade e os pro39

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cessos de resistência através da música, e que dialogam com a temática do livro e com o título do romance. Terminamos, propondo um convite aos leitores à reflexão: como somos representados para os outros e quais são os nossos papéis como sujeitos colonizados, em pleno século vinte e um.

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REFERÊNCIAS

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DOIS FARÓIS NA CONTRAMÃO DA HISTÓRIA

Aline Cunha Queiroz Silva

Chico e Bocage: Dois faróis na contra - mão da história

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presente estudo procura abordar a poética dos autores Chico Buarque de Hollanda e Manuel Maria Lê Doux Du Bocage à luz do contexto histórico em que ambos estão inseridos. É equivocado fazer uma análise estática das obras escritas pelos referidos poetas. Seus versos foram compostos durante dois grandes marcos históricos, que embora sejam diferentes na aparência, são iguais na essência: a Santa Inquisição, que prendeu Bocage em uma cela de Portugal, e a ditadura, que exilou Chico Buarque do Brasil. Devido ao obscurantismo das épocas atravessadas por ambos, há versos encobertos pela ambigüidade, figuras de linguagem e construções polissêmicas, o que indica que devem ser analisados dentro do espaço que ocupam, ou seja, no contexto a que pertencem. Segundo Tynianov (1971), citado por Carvalhal (2003, p. 47), “Um mesmo elemento tem funções diferentes em sistemas diferentes”. De acordo com Carvalhal (2003): Um elemento retirado de seu contexto original para integrar outro contexto, já não pode ser considerado idêntico. A sua inserção em um novo sistema altera sua própria natureza, pois aí exerce outra função. (CARVALHAL, 2003, p. 47).

O conceito de Tynianov, ampliado por Tânia Carvalhal é oportuno, pois elucida o fato de Bocage ter ficado conhecido, pública e literariamente, como um poeta erótico e satírico. Sua poesia não foi devidamente analisada dentro do período histórico em que se inscreve. Faz-se necessário lembrar que Bocage foi preso e torturado, sob a acusação de ser herege e atentar contra o Estado. A acusação foi desencadeada pelo poema “Pavorosa Ilusão da Eternidade”, que questiona diversos dogmas religiosos.

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Segundo Tynianov (1971), citado por Carvalhal (2003, p. 47), “a obra literária se constrói como uma rede de relações diferenciais firmadas com os textos literários que a antecedem, ou são simultâneos, e mesmo com sistemas não literários”. De fato, a biografia desses dois poetas, incorporada ao seu contexto histórico, revela que leram grandes autores da literatura mundial, o que permitiu que suas obras apresentassem uma visão crítica de mundo. Enquadrar Bocage em categorias como: lírico, satírico ou erótico, ou dizer tratar-se de um espírito inquieto, é ter uma visão anti-historicista, que pertencia aos primeiros formalistas. Apenas uma perspectiva diacrônica permite decodificar as mensagens contidas nas frases ambíguas, nas construções polissêmicas e nas figuras de linguagem da chamada “poesia de fresta”, termo utilizado para definir a técnica da linguagem poética das músicas compostas por Chico Buarque de Hollanda no período do regime ditatorial no Brasil, durante os chamados “anos de chumbo”. O objetivo era fugir da censura imposta pelo regime militar instituído pelo Ato Institucional nº 5. O texto escuta as vozes da história e não mais as representa como uma unidade, mas como jogo de confrontações (BAHTIN, 1986). Aparelhos ideológicos de Estado O artigo ora apresentado foca a produção poética do poeta Bocage durante a Santa Inquisição em Portugal e a poesia das letras de Chico Buarque durante o regime ditatorial. O escopo do trabalho é a análise do discurso francesa (AD), que estabelece que o contexto histórico social, o contexto de enunciação, constitui parte do sentido do discurso e não é apenas um apêndice, que pode ou não ser considerado. Em outras palavras, para a AD francesa os sentidos são historicamente construídos. A santa Inquisição e o regime militar devem ser entendidos como aparelhos ideológicos de Estado (AIE). De acordo com Althusser (1970, p.5): A classe dominante para manter sua dominação gera mecanismos que perpetuam e reproduzem as condições materiais, ideológicas e políticas de exploração, dentre esses mecanismos, os aparelhos ideológicos de estado (AIE). O discurso é um aparelho ideológico.

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Os dogmas da igreja do período inquisitorial, assim como as regras do AI5 do regime militar são, então, aparelhos ideológicos de Estado, que permitiram a manutenção do poder nas mãos de uma burguesia militar. Eram discursos ideologicamente construídos para impedir que o poder centralizado fosse transferido de mãos. Para Roland Barthes (1997, p.14) “fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer. Para ele só a literatura pode fazer ouvir a língua fora do poder, por ser o lugar de eleição das forças de liberdade”. Todo discurso, na verdade, está carregado de intenção e prática ideológica. Os poetas ora analisados tinham um discurso provido de ideologia, mas elegeram a literatura como o lugar das forças de liberdade. A diferença reside na maneira como se defende uma ideologia. Chico e Bocage escreviam seus versos com a força da ideologia, seus opressores assinavam sentenças com a ideologia da força. A importância do conteúdo latente Utilizando como base a análise de discurso francesa, que entende os sentidos do texto como algo historicamente construído, e o olhar da hermenêutica, que enxerga no texto um conteúdo latente (aquilo que está nas entrelinhas) e um conteúdo manifesto (aquilo que está expresso no texto, o que é aparente), é possível reler duas obras que marcam a produção destes dois poetas que caminharam na contra - mão da história. A primeira é “Pavorosa Ilusão da Eternidade”, de Bocage, e a segunda é “Deus lhe pague”, de Chico Buarque. As duas produções poéticas foram analisadas anteriormente por outros autores a partir de uma perspectiva teológica, o que não desmerece a leitura, mas a restringe, observando-se apenas um campo de significações. Segundo Boff (2004): Como dizer “Deus lhe Pague” diante de situações que parecem não ter nada a ver com Deus – um crime pra comentar, amor malfeito, cachaça de graça, fumaça, desgraça, os andaimes, pingentes, que a gente tem que cair, as moscas bicheiras, enfim, a paz derradeira (morte)? Natural que disséssemos “Deus lhe pague pelas coisas boas, pelo pão pra comer, pelo chão pra dormir, pela piada no bar, pela praia, pelo domingo que é lindo e pela missa e outras positividades.(BOFF, 2004, p. 50). 45

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A leitura do teólogo deve ser vista da ótica da estética da recepção, que estabelece que a obra de arte literária é um diálogo entre esta e um leitor imaginário condicionado por fatores de natureza diversa: ideológicos, sociológicos, culturais, estéticos e etc.Estes fatores são determinantes do horizonte de expectativa responsável pela primeira reação do leitor à obra. O horizonte de expectativa de Leonardo Boff estaria comprometido por sua ideologia cristã e por sua filosofia religiosa. No entanto, partindo do pressuposto de que toda obra literária tem um conteúdo latente e um conteúdo manifesto, como foi acima explicitado, fica a sensação de que a análise feita por Leonardo Boff prendeu-se apenas ao conteúdo manifesto, mas suprimiu o conteúdo latente, o que está nas entrelinhas da canção: Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir Por me deixar respirar, por me deixar existir Deus lhe pague Os signos pão e chão têm conotações de direitos básicos de todo cidadão, o alimento e a moradia, logo, agradecer por algo que lhe é de direito encerra uma marcada ironia. Além disso, a contração “pra” pertence a um registro coloquial de linguagem, o que dá ao texto uma conotação de fala popular. O eu lírico fala com a voz do povo, que está emudecido pela situação opressora. No segundo e terceiro versos da primeira estrofe, “a certidão pra nascer e a concessão pra sorrir / por me deixar respirar, por me deixar existir”. A certidão é a prova da existência material de uma pessoa inserida em uma estrutura social, a prova de seu nascimento, portanto dizer “Deus lhe pague” pela “certidão pra nascer” é o mesmo que agradecer a quem oprime pelo direito de existir, como se a permanência da existência do eu lírico neste mundo dependesse da vontade do opressor. No segundo verso, “a concessão pra sorrir” confere ao texto poético um tom predominantemente irônico, pois sorrir é um ato involuntário que demonstra expressivamente uma emoção de satisfação. Concessão para sorrir seria então uma antítese, uma contradição expressa pela palavra sorrir, ato involuntário e concessão que significa dar permissão. No momento em que a antítese é estabelecida, o sorriso perde o caráter de espontaneidade, é um sorriso que não exterioriza emotividade, expressa medo.

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As antíteses continuam presentes no terceiro verso “por me deixar respirar/ por me deixar existir. Deixar, permitir (depende da vontade de outrem) X respirar (ato involuntário). A mesma situação ocorre em relação aos pares antitéticos deixar (permitir) X existir (viver, estar vivo). As antíteses do primeiro verso têm como conteúdo latente a denúncia cantada de uma situação de abuso de poder por parte daquele a quem o poeta agradece “Deus lhe pague”. A antítese também se faz presente na natureza gramatical dos verbos, nascer, sorrir, respirar e existir, pois se trata de verbos intransitivos, ou seja, que têm sentido completo. Tais verbos intransitivos estão ligados a um verbo transitivo direto e indireto, que é deixar. Logo é uma ironia dizer deixar respirar, pois sendo este verbo intransitivo, apenas se respira, sem que isso dependa de ninguém. A segunda estrofe da canção traz uma antítese passível de dupla interpretação: Pelo prazer de chorar e pelo “estamos aí” Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir Um crime pra comentar e um samba pra distrair Deus lhe pague O verso “prazer de chorar” pode ser visto de maneiras distintas. Na primeira análise, o foco é o conteúdo manifesto, o que está explícito, uma antítese devido aos pares de oposição prazer x chorar, prazer tem conotação de alegria e chorar, de tristeza. Mas esta frase também é passível de uma segunda análise, na qual o foco é o conteúdo latente, o que está por trás do texto, que seria o prazer de chorar pela convicção e o contentamento de não compactuar com as idéias de quem lhe causa tristeza, o preço de estar “contra a corrente”, é chorar. Ainda na segunda estrofe, “a piada no bar, o futebol para aplaudir, o samba para distrair, são pelo seu conteúdo manifesto, supérfluos perto de um crime pra comentar, parecendo estar desconexos do ponto de vista semântico. Mas, na realidade, o conteúdo manifesto de toda a estrofe revela o samba, a piada e o futebol como mecanismos de alienação, cujo fim é esquecer a dor não de um crime para comentar, mas do que ele simboliza, ou seja, todos os crimes praticados nos porões da ditadura. Na terceira estrofe, “o amor malfeito depressa, fazer a barba e partir” observa-se uma seqüência cronológica dos fatos narrados, alguém chega de surpresa, faz amor com sua companheira depressa, porque está apreensivo com algo que pode ocorrer a qualquer momento, depois se levanta, faz a barba e parte. 47

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Semanticamente, a palavra partir, não é um sinônimo perfeito de sair ou ir embora, existe em partir uma gradação em relação a sair, pois partir suscita a idéia de uma saída sem volta prevista, por uma longa temporada. A frase o amor malfeito depressa, indica a frustração do eu lírico por ter que se sujeitar a uma situação em que não é possível ignorar o medo, nem o amor pode ter vazão assim. Podemos dizer que o conteúdo latente da terceira estrofe, revela um eu lírico, que provavelmente, dado o contexto histórico da obra, é alguém perseguido pela ditadura que chega sem ser esperado na casa de quem ama, faz amor e foge depressa para não ser encontrado por aqueles que o perseguem. A quarta estrofe revela, mais explicitamente, o ressentimento e a inconformidade do eulírico: Pela cachaça, de graça, que a gente tem que engolir Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair. Deus lhe pague No segundo verso desta estrofe, fumaça e desgraça, têm conotações negativas e o que antes estava implícito, agora é explicitado pelo eu lírico: a situação angustiante que a partir desta estrofe ganha força com a palavra desgraça, o tom de passividade começa a ser abandonado. No fragmento “pingentes que a gente tem que cair”, novamente o eu lírico usa um verbo intransitivo, cair como se dependesse de outra pessoa para que esta ação acontecesse, cair então adquire o sentido de “ser jogado”. Na penúltima estrofe o eulírico está colérico, o tom de passividade foi totalmente abandonado: Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir E pelo grito demente que nos ajuda a fugir Deus lhe pague A palavra agonia e os verbos suportar e assistir conferem ao texto um tom confessional. A crítica deixa de ser velada, a impotência imposta por aquele a quem o eu lírico agradece é exteriorizada pelos verbos que denotam passividade: suportar

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e assistir. O segundo verso acirra o tom colérico, demonstrando a raiva do eu lírico contida por um ranger de dentes, como uma fera pronta para o ataque. Sua ferocidade é tamanha, sua dor contida é tão viva, que zuni aonde quer que vá pela cidade. No último verso, “o grito demente que nos ajuda a fugir”, o grito é a explosão da raiva, é a exteriorização de todo o sentimento nutrido pelo eu lírico, desde a primeira estrofe. A demência significa a perda da razão que “nos ajuda a fugir”. O último verso mostra o desespero do eulírico que vê o escapismo através da morte, a redenção do pecado de suportar e assistir calado pelo medo: Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir E pelas moscas – bicheiras pra nos beijar e cobrir E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir Deus lhe pague Nesta última estrofe, aparecem vários símbolos fúnebres: a mulher carpideira para chorar em seu velório, as moscas-bicheiras, que pousarão sobre seu corpo após a morte e por fim, no último verso, o eu lírico utiliza um eufemismo “paz derradeira”, crendo em um escapismo na morte: “E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir”. É interessante observar que o poema começa com um discurso que se refere apenas ao eu lírico: “por me deixar respirar, por me deixar existir”, como se os fatos narrados afetassem a ele em particular. No entanto, da quarta estrofe em diante, o eu lírico generaliza seu discurso, retratando fatos que afetam a uma coletividade, através da inserção do pronome oblíquo “nos”: “a paz derradeira que enfim vai nos redimir”, deixando claro que a cumplicidade através do silêncio diante dos abusos praticados pelos que oprimem o povo, é uma responsabilidade de todos. Faz-se necessário ressaltar que a mais fina ironia da canção está no refrão da música, “Deus lhe pague”, pois está é uma expressão de origem cristã, cujo sentido é agradecer por uma graça recebida, desejando que a pessoa receba uma graça da mesma magnitude de volta. Quando o eu lírico deseja “Deus lhe pague”, após discorrer sobre fatos que lhe causam angústia, dor, raiva ou medo, está desejando que aquele a quem se refere experimente sentimentos da mesma natureza.

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A leitura calcada apenas no conteúdo manifesto impossibilitou que grandes poetas da história fossem compreendidos dentro de seu contexto histórico. O desconhecimento popular da obra Bocageana, deve-se em grande parte a uma análise fechada, que contemplou apenas o que ficou expresso no texto. A publicação do poema Pavorosa ilusão da Eternidade, que culminou em sua prisão, sob a acusação de herege, também foi interpretada superficialmente, apenas analisando o que era visível, o que estava explícito no texto. É preciso vislumbrar o que não foi dito para entender o que foi dito: Pavorosa ilusão da Eternidade, Terror dos vivos, cárceres dos mortos; D’almas vãs sonho vão, chamado Inferno, Sistema da política opressora Freio que a mão dos déspotas, dos bonzos, Forjou para boçal com credulidade; Dogma funesto, que o remorso arreigas Nos ternos corações, e paz lhe arrancas; Dogma funesto, detestável crença, Que envenenas delicias inocentes Perpétua escuridão, perpétua chama Incompatíveis produções do engano, Não me assombram tuas negras cores; Dos homens o pincel e mão conheço Os versos “Pavorosa ilusão da Eternidade/ Terror dos vivos, cárcere dos mortos.”, apresentam um conteúdo latente, em que se encerra a idéia de que a Pavorosa ilusão da Eternidade, a figura do Deus da igreja inquisitorial, implacável e impiedoso é uma ilusão do que seria a figura divina na realidade. Também é o “cárcere dos vivos”, pois os dogmas religiosos desta igreja, materializados pela figura amedrontadora de um Deus desprovido da capacidade de ser misericordioso, restringem o livre arbítrio de seus fiéis oprimidos pela vontade “divina”, que seriam perseguidos e punidos pelo crime de heresia, caso questionassem algum dogma ou agissem contra a natureza de suas leis. Além disso, é também “o cárcere dos mortos”, ou seja, a prisão daqueles que à Igreja ousaram ofender, contestando suas regras e sendo punidos com a prisão e a sentença de morte, a intolerância é a responsável por tantos mortos..

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Na terceira estrofe, a palavra inferno sofre personificação. Trata-se de um substantivo comum escrito com letra minúscula, mas no poema traz a palavra “Inferno” com letra maiúscula como se estivesse materializado, personificado pela própria figura de um Deus carrasco. Na segunda estrofe “Sistema da política opressora/ Freio que a mão dos déspotas, dos bonzos, /Forjou para boçal com credulidade”; existe um tom explícito de denúncia, a transfiguração da figura divina para coibir desejos e questionamentos de vozes oriundas do povo, ou seja, os dogmas religiosos em geral que são justificados como vontade divina formam um sistema de política opressora. Já nos fragmentos “Freio que a mão dos déspotas, dos bonzos, /Forjou para boçal credulidade”, o eu lírico revela que a figura de um Deus tirânico é um artifício dos déspotas (clero e nobreza). É o mecanismo que irá frear as dúvidas do povo quanto a validade destes dogmas e que garantirá uma “boçal credulidade”, ou seja, uma crença cega e nada crítica , que promove uma aceitação absolutamente passiva a tudo que lhe for imposto. O autor assume na terceira estrofe uma postura extremamente combativa ao dizer, sem recorrer a uma linguagem figurada: “Dogma funesto, detestável crença/ Que envenenas delicias inocentes”… Neste verso está presente a idéia de que o dogma religioso da igreja inquisitorial era algo que via atitudes espúrias em todos os prazeres naturais da vida. Na antítese “perpétua escuridão/ perpétua chama”, escuridão tem conotação de obscurantismo cultural, em uma escuridão nada pode ser enxergado, logo os dogmas vedam os olhos do povo para a verdade, viver sob os ditames dos dogmas, é o mesmo que viver em uma escuridão eterna. Já o verso “perpétua chama” refere-se às fogueiras inquisitoriais, para as quais eram enviados os hereges. A antítese “perpétua escuridão/ perpétua chama” tem seu sentido desdobrado pelo verso “incompatíveis produções do engano”. Incompatíveis são: a chama, que semanticamente significa luz e a escuridão, que é justamente a ausência de luz. Este par antitético é o que o autor chama de “incompatíveis produções do engano”. Na última estrofe, o eu lírico diz: “Não me assombram tuas negras cores/ Dos homens o pincel e mão conheço/ Trema de ouvir sacrílego ameaço/ Quem dum Deus quando quer, faz um tirano; /Trema a superstição; lágrimas, preces”…

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No primeiro verso da estrofe acima, o eu lírico reage, estabelecendo um enfrentamento ao dizer: “Não me assombram tuas negras cores/ Dos homens o pincel e mão conheço/”. Aqui o eu lírico desmascara o artifício da construção ideológica de uma figura divina temível, declarando que não sente medo de tão pesada figura, pois reconhece em tal construção as marcas da interferência e da intenção política e ideológica humana, representadas respectivamente pelos símbolos pincel e mão. Metaforicamente, o que quer dizer é que o homem pinta a figura de Deus como lhe convém. Desta maneira, o eu lírico retira da igreja inquisitorial o direito de estar acima de qualquer julgamento por tratar-se de uma instituição que representa a vontade divina, atribuindo características mundanas a esta igreja, que utiliza o temor como instrumento mantenedor de poder. Conclusão A própria tradição literária classifica Bocage como um poeta erótico e satírico. Sua produção literária mais confessa e autobiográfica é justamente sua obra de cunho político. O que deflagrou tal equívoco hermenêutico foi retirá-lo de seu contexto original, ou seja, de sua tradicional luta pela liberdade poética contra as formas pré-estabelecidas em detrimento do conteúdo, suas idéias abolicionistas e aspirações iluministas e a crença em uma equidade política e social. A audácia e genialidade que Bocage empresta aos seus versos nos remetem às metáforas embebidas de crítica social e lirismo do poeta dos anos de chumbo, Chico Buarque. Suas palavras passavam sem obstáculos pelos olhos sedentos de poder e intoxicados de estupidez dos militares que mataram, torturaram e exilaram tantos trovadores que cantavam a realidade de uma população alarmada pelo medo e emudecida pela força bruta exercida por patentes e fardas. Época em que a poesia era a luz que tentava passar por entre as copas fechadas das árvores nos bosques do passado.

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REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Fernando Mendes de. Sonetos de Bocage. Rio de Janeiro: Editora de Ouro, 1968. BARTHES, Roland. Aula.São Paulo: Editora Cultrix, 1997. CARVALHAL, Tânia. Literatura Comparada. São Paulo: Editora Ática, 2003. CIDADE, Hernani. Sonetos Obras Primas da Língua Portuguesa: Livraria Bertrand. FERNANDES, Rinaldo. Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond: Fundação Biblioteca Nacional, 2004. FERREIRA, Joaquim. História da Literatura Portuguesa. 2º ed. Porto: Editorial Domingos Barreira. MASSAUD, Moisés. A Literatura Portuguesa. 3ºed. São Paulo: Editora Cultrix, 1965. MUSSALIM, Fernanda. Introdução à Lingüística: São Paulo: Editora Cortez, 2001, v2. RAMOS, Feliciano. Das origens ao meado do século XX. 5º edição. Editora Livraria Cruz Braga, 1961. TORRES, Alexandre. Antologia da Poesia Portuguesa, séculos XXVII‒XX. Porto: Lello & Brandão Editores, 1997, v.2. WERNECK, Humberto. Chico Buarque, letra e música. São Paulo: Companhia das Letras, 1989

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CETICISMO, TRAGÉDIA E BOEMIA EM TANGOS DOS ANOS 20 E 30

Amanda Letícia Oliveira Canción maleva, canción de Buenos Aires, hay algo en tus entrañas que vive y que perdura, canción maleva, lamento de amargura, sonrisa de esperanza, sollozo de pasión. Este es el tango, canción de Buenos Aires, nacido en el suburbio, que hoy reina en todo el mundo.1 Manuel Romero Essa música me comove, tem um significado que até hoje não consegui averiguar, é um mistério; deixemo-lo assim… Jorge Luis Borges

O

tango nasce em uma Argentina marginal, com um caráter transgressor e uma espécie de “missão” a cumprir: a de se tornar um espelho da vida portenha, relatando o cotidiano de uma população de classe média-baixa e marginal – formada por imigrantes, ladrões, prostitutas, entre outros – e discriminada pela elite letrada do país. Ao retomarmos vários acontecimentos históricos ocorridos em solo argentino nos deparamos com o nascimento não somente de um estilo musical, mas de uma possibilidade de conhecer uma época, seus hábitos sociais, sua cultura popular e o sentimento pessimista, frequentemente encontrado nos tangos argentinos. 1

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Letra de tango La canción de Buenos Aires(1933).

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Definir a origem do tango como vocábulo e estilo musical não é uma tarefa simples, devido à existência de vários estudos e autores que divergem sobre suas raízes. Há alguns estudos que relacionam a origem do vocábulo tango a instrumentos musicais africanos que, a partir do som produzido, remetem à onomatopéia tangó; outros afirmam que o termo derivaria da forma verbal latina tangere que, dentre vários significados, corresponde ao vocábulo tanger, e está diretamente associado à ideia de tocar um instrumento musical. Também não poderíamos deixar de registrar algumas divergências referentes à origem do tango enquanto estilo musical. Athos Espíndola, em seu Diccionario de Lunfardo (2003), faz menção à possibilidade de o tango ter derivado a Habanera e a Milonga, como se pode ver no trecho a seguir: […] difundida nos ambientes ribeirinhos pelos marinheiros que faziam a rota comercial entre o Río da Prata e as Antilhas – se fixa durante a década de 60 (1860) […] e se transforma gradualmente em milonga. (ESPÍNDOLA, 2003, p. 463)2

Tal como Espíndola, Helio de Almeida Fernandes em Tango, uma possibilidade infinita (2000) também disserta sobre a possibilidade de o vocábulo tango possuir raízes africanas; porém, também faz referência a uma citação de Horacio Ferrer sobre a existência deste termo no Japão: Uma região próxima à cidade de Osaka se designava Tango. Também no antigo Japão o conceito de número estava associado a animais e objetos: […] e a essa associação se chamava tango. Ainda no Japão atual, a festa das crianças […] se denomina a Festa do Tango. A palavra tango, em conseqüência, é muito anterior ao fato rio - platense – música, canção e dança – que a mesma designa. (FERNANDES, 2000, p. 58)

No entanto, apesar da existência de inúmeros estudos referentes às possíveis e variadas origens deste estilo musical, a maioria das obras consultadas associam o surgimento do tango enquanto música ao movimento imigratório ocorrido durante o século XIX, com o incentivo à aquisição de mão-de-obra europeia; consequen[…] difundida en los ambientes de la ribera por los marineros que hacían la ruta comercial entre el Río de la Plata y las Antillas – afinca durante la década del 60 (1860) […] y se transforma gradualmente en milonga. 2

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temente, o nascimento do tango estaria relacionado à convivência forçada entre imigrantes europeus e cidadãos argentinos em bairros de classe média-baixa da época. Alemães, italianos e outros, em território argentino, instalavam-se nos chamados conventillos e munidos de flauta, violino e violão – sendo que a flauta foi posteriormente substituída pelo bandoneón – formavam grupos musicais para a complementação da renda familiar. Com isso, agregavam seus conhecimentos musicais prévios aos costumes locais e, deste modo, com os ares nostálgicos dos imigrantes, teria surgido de modo gradual o tango que conhecemos atualmente. Deste modo, é possível resumir o sentimento tangueiro a partir de duas palavras citadas por Fernandes: “tristeza e ressentimento” (2000, p. 25). O tango é definido, de modo simples e exato por Enrique Santos Discépolo como “um pensamento triste que se baila” (FERNANDES, 2000, p. 12), e por José Gobello como “[o tango] não foi feito para cantar o que se tem, mas o que se perdeu”. (Ibidem, p. 12). Obviamente, existem vários estilos musicais que expressam lamentos, como o fado português, o jazz e o blues norte- americanos, as balalaicas russas, as modinhas e sambas brasileiros, entre outros. Daí, nos questionamos: o que diferenciaria o tango dos demais estilos musicais? O tango pode ser relacionado a um estilo musical introspectivo, que expressa ressentimentos e mágoas, a partir das quais toda a “história” do tango se desenvolve, ou seja, o pranto, a mágoa e sentimentos relacionados se tornam elementos essenciais e centrais na canção. Porém, não podemos deixar de abordar que, no tango, há um determinado prazer em exaltar tais sentimentos e, consequentemente, a sensação de pessimismo. Obviamente, encontramos letras de tango com abordagens mais otimistas; de fato, existem, porém em número reduzido e restritas às temáticas campestres3, maternais e urbanas, sendo que esta última, especificamente quando há referência a Buenos Aires. Com isso, o otimismo é um sentimento inexistente em letras de tangos que abordam temas como boemia, tragédias, relações amorosas, cabarés e situação sócio-política local. Ao abordar temas do cotidiano do cidadão portenho e difundir-se em bares, prostíbulos e locais frequentados pela classe média-baixa, o tango adquire um caráter popular. Até então, não possuía prestígio social por estar associado às classes baixas e à marginalidade. Para ilustrarmos a opinião das classes sociais altas sobre a Estilo que marcou o início da carreira de Carlos Gardel, com a representação dos campos, trabalhadores rurais, etc. 3

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nova música nacional nesta fase, incluímos um comentário de um embaixador da Argentina em Paris, sobre esta vertente musical em solo europeu: O tango é em Buenos Aires uma dança privativa das casas de má fama e dos antros da pior espécie. Não se dança nunca o tango nos salões de bom tom, nem entre pessoas distintas. Para os ouvidos argentinos, a música do tango desperta idéias realmente desagradáveis. (FERNANDES, 2000, p. 66)

Tempos mais tarde, com a aparição de Carlos Gardel, Enrique Discépolo e outros, o tango ganha reconhecimento internacional, cidadania argentina e prestígio em território nacional; e somente passa a ser aceito no país de origem após ser bem recebido na Europa. Podemos relacionar a evolução musical do tango e suas fases ao contexto sócio-histórico argentino. Desta forma justificamos a preferência pela abordagem de temáticas locais, ainda que seja possível constatarmos a presença de temas diversos em períodos comuns, pois a classificação do tango sob a forma de fases é bastante flexível. De modo geral, ainda sob alguma influência musical dos payadores – ou trovadores – os primeiros tangos privilegiavam os temas arrabaleros até aproximadamente a década de 20. A partir de 1920, inicia-se a fase do tango “cabareteiro” e do campestre; durante a década de 1930, a chamada “década infame”, predominam letras de tango repletas de ceticismo social, filosófico e existencial, devido à fase de dificuldades socioeconômicas pelas quais passava o país. Logo depois, há a chamada “década de ouro”, em 1940, assim conhecida devido à retomada do desenvolvimento social do país, e com a abordagem de temáticas tangueiras mais otimistas como a vida, o amor, a cidade e os problemas sociais. Já na década de 1950, ainda motivados pela prosperidade nacional, destaca-se a fase do tango sentimental; e por último, nos anos 60, há a retomada de uma temática tradicional, porém com características modernas introduzidas pela geração de Astor Piazzolla, Horacio Ferrer e outros. Atualmente o tango vive não mais como o fenômeno de massas que o engendrou, mas como elemento identificatório da alma portenha e em frequentes manifestações espalhadas por toda Buenos Aires. Como anteriormente mencionado, o tango “nasceu” nos conventillos portenhos, pelas mãos de personagens marginalizados pela elite argentina. Conside-

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rando o tango proveniente da classe média-baixa, os espaços onde ocorrem os fatos narrados por essas canções não poderiam deixar de ser aqueles ambientes comumente frequentados pelos seus criadores e cantores, como os cabarés, os cortiços, os boliches (bares), os prostíbulos, as ruas, os arrabales (subúrbios) de Buenos Aires. Neste cenário tangueiro, encontramos uma vasta tipologia de personagens, característicos do subúrbio portenho. Para defini-los, não basta o conhecimento lexical da língua espanhola, considerando que “poetas” tangueiros reproduzem em suas “obras” o segundo idioma dos portenhos, – ou talvez o primeiro –, o Lunfardo – a linguagem das ruas, e de personagens tangueiros como as pebetas (moças), cafishes (cafetões) e muitos outros. Com tal “idioma”, os poetas do tango nomearam seus personagens, claramente identificáveis como típicos do subúrbio portenho. Uma das formas mais eficazes de difusão de algum tipo de expressão da cultura popular certamente é a linguagem e os diferentes grupos lexicais utilizados pelas classes sociais. Segundo Martín-Barbero, a linguagem popular constitui […] a revanche contra uma ordem do mundo que os exclui e os humilha e contra a qual as pessoas do povo se confrontam, desorganizando o tecido simbólico que articula essa ordem. […] é a transformação […] da situação na oportunidade aproveitada para impor-se ou para parodiar a retórica daqueles que, de fato, falam bem.” (MARTÍN-BARBERO,2003, p. 332).

Ao analisarmos letras de tangos, a linguagem assume um papel de destaque: este material constitui uma das mais interessantes formas de expressão da cultura popular argentina, ao expor seu riquíssimo acervo lexical da linguagem lunfarda. O lunfardo – um forte traço da cultura popular argentina e elemento essencial para a composição de letras de tangos– é uma linguagem portenha, formada durante a segunda metade do século XIX. Assim como o tango, nasce no ambiente marginal dos bairros pobres, devido à convivência forçada entre a grande massa de imigrantes e a população local. De acordo com Espíndola (2003), o Lunfardo é um idioma que mescla a língua espanhola a indigenismos quéchuas, guaranis e querandis, além de agregar traços de idiomas dos imigrantes alemães, italianos e outros. Não há praticamente nenhuma letra de tango que esteja escrita totalmente em espanhol: as palavras em lunfardo são ingredientes essenciais para a sua composição.

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A estrutura do lunfardo se baseia na substituição de substantivos, verbos, adjetivos e interjeições em idioma espanhol por termos cujo significado seria modificado, de origens germânica, italiana e seus dialetos, francesa, do português, das línguas indígenas e inclusive de palavras hispânicas às quais se atribuiu um sentido oposto em relação ao original. Um elemento auxiliar do lunfardo é a pronúncia das palavras invertendo a ordem das sílabas: tango é gotán, mujer é jermu, pagar é garpar, pedazo é zopeda e assim sucessivamente. A inversão de sílabas não se restringe a vocábulos, sendo possível seu emprego em orações completas como “Dáme una feca con chele”4 e outras que inicialmente soam incompreensíveis como ¡Qué facha de chanta tiene ese tipo de sonrisa fayuta!5. Atualmente, vários termos do lunfardo se encontram completamente incorporados ao discurso coloquial portenho, entrelaçando-se com outros argentinismos que foram surgindo posteriormente. Formular um conceito para justificar o porquê de tanta tristeza, pessimismo, tragédia e boemia presentes em letras de tangos é uma tarefa tão árdua quanto especificar sua origem enquanto vocábulo e estilo musical. Para explicar a persistência na composição de tangos com tais temáticas, destacamos duas possíveis justificativas: a primeira – e a mais provável – seria devido a uma série de golpes de estado, de governos militares, crises sócio-econômicas e a exclusão social de várias parcelas da sociedade provocada pelo projeto de nação, que poderiam ter gerado no cidadão argentino de classe média-baixa um sentimento de ceticismo social, filosófico e existencial, conforme expresso na letra de tango Cambalache, de 1934, composta por Enrique Discépolo: ¡Hoy resulta que es lo mismo ser derecho que traidor!… ¡Ignorante, sabio o chorro, generoso o estafador! ¡Todo es igual! ¡Nada es mejor! ¡Lo mismo un burro que un gran profesor! No hay aplazaos ni escalafón, Tradução para o espanhol: Dáme un café con leche. Tradução para o espanhol: Que rostro de macaneador tiene esse tipo de sonrisa fayuta. Versão para o português: Que cara de mentiroso tem esse homem de sorriso fajuto! 4 5

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los inmorales nos han igualao. Si uno vive en la impostura y otro roba en su ambición, ¡da lo mismo que sea cura, colchonero, rey de bastos, caradura o polizón! […] ¡Siglo veinte, cambalache problemático y febril!… El que no llora no mama y el que no afana es un gil! Já a segunda, de caráter subjetivo, está associada a um estereótipo atribuído ao cidadão argentino, presente no imaginário popular; frequentemente, a imagem do portenho está vinculada a estados de ânimo como mau-humor, pessimismo, ceticismo e outras características já expressas em Martín Fierro, como vemos no trecho: Junta esperencia en la vida, Hasta pa dar y prestar, Quien la tiene que pasar Entre sufrimiento y llanto; Porque nada enseña tanto Como el sufrir y el llorar. (HERNÁNDEZ, 1978, p. 26) Quando se pensa nos personagens femininos tangueiros, em sua grande maioria, a mulher é representada como alguém extremamente preocupado em conseguir bons “partidos” e lucros através de suas estratégias de sedução. Nestas se incluem sinuosidade no andar, a conciliação entre “a arte de seduzir com as regras da etiqueta” (SOUZA, 1987, p. 92), ou seja, explorar sua beleza e sensualidade e simultaneamente demonstrar modéstia e recato, como na letra de tango Aquel tapado de armiño, no qual a mulher sensibiliza o parceiro para que este lhe compre um casaco de peles. Roberto Arlt, cronista portenho da época, faz duras e irônicas críticas à artificialidade e hipocrisia das estratégias utilizadas para que uma moça pequeno-burguesa conseguisse bens materiaisou status social através do casamento. Como estratégia para obter bens materiais, podemos destacar a

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sedução, como ocorre nesta letra de tango composta em 1928 por Manuel Romero. Nesta letra, a mulher – provavelmente uma prostituta – expressa sua vontade de ganhar um casaco; no entanto, apesar de o parceiro não possuir dinheiro suficiente para comprá-lo, atende ao pedido da amada e, posteriormente, lamenta as economias que fez durante um mês para conseguir presentear-lhe o casaco: Y yo, con mil sacrifícios, Te lo pude al fin comprar: Mangué amigos, vi usureros Y estuve un mes sin fumar… No entanto, saberemos que os esforços do parceiro não foram suficientes, pois a mulher, no desenrolar da letra de tango, revela seu verdadeiro objetivo: permanecer com o parceiro somente até conseguir o casaco de pele. Após atingir seu propósito, ela o abandona, e é vista usando a vestimenta acompanhada de um gigolô. Ao final, notamos que para o personagem masculino principal, a tragédia constitui uma espécie de ruína moral, por ter sido enganado por uma mulher em troca de uma vestimenta: Aquel tapado de armiño Todo forrado en lamé Que tu cuerpito abrigaba Al salir del cabaret… Cuando pasaste a mi lado Prendida a aquel gigoló, Aquel tapado de armiño ¡cuántas penas me causó…! (BENEDETTI, 2005, p. 228-229) As pequenas histórias retratadas em tangos das décadas de 20 e 30 têm como base fatos e curiosidades da rotina do cidadão portenho comum e demonstram uma relação estreita entre tal manifestação cultural e a vida cotidiana da época. Através dos tangos, é possível revisitar a cidade de Buenos Aires dos anos 20 e 30, seu cenário sócio-histórico, seus habitantes, costumes locais e melhor compreender as ideologias da época.

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REFERÊNCIAS

BENEDETTI, Héctor Ángel. Las mejores letras de tango. 3. ed. Buenos Aires: Booket, 2005. ESPÍNDOLA, Athos. Diccionario de Lunfardo.2. ed. Buenos Aires,2003. FERNANDES, Hélio de Almeida. Tango, uma possibilidade infinita ,2000. HERNÁNDEZ, José. Martín Fierro. Havana: Editorial Gente Nueva, 1978. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

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REFLEXOS DA SUBJETIVIDADE NA REPRESENTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA E LITERÁRIA ATRAVÉS DE UMA LEITURA COMPARATIVA DO CONTO “EL OTRO LADO” E DO FILME LA ZONA

Amanda Moreira de Lima

Introdução

E

ste trabalho tem como objetivo fazer uma abordagem comparativa do conto “El Otro Lado”, da escritora uruguaia Laura Santullo, e do filme La Zona, do diretor Rodrigo Plá, que foi baseado no conto de Santullo. O intuito deste trabalho é abordar como nas duas narrativas se representa um mesmo elemento de forma diferenciada. Para isto, privilegiamos o recorte da estratégia que leva o personagem do Eu ao outro lado: o processo de espelhamento (presente no espelho do conto) e de desdobramento (presente na identificação com o duplo, tal como podemos observar no filme). Um objeto tão simples e cotidiano como o vidro espelhado de um carro ou um espelho comprado num antiquário, objeto que de modo quase desapercebido está constantemente presente em nossa vida mostrando nosso Eu exterior, pode converter-se no instrumento mágico que leva o personagem principal ao desconhecido ou, através da exposição de seu reflexo naquele que lhe parecia estranho, atuar como catalisador no processo de amadurecimento. O espelho também está presente na narrativa fílmica de um modo mais sutil: quando o personagem Alejandro, adolescente que vive em um condomínio de luxo, encontra Miguel, adolescente como ele que vive na favela ao lado e invade o “bairro fechado” numa noite de tempestade. Ao deparar-se com o invasor, Alejandro identifica seu eu refletido. A partir deste recorte que privilegia o diálogo do conto com algumas cenas do filme, pretendemos mostrar como, em narrativas que recorrem a duas linguagens diferentes, a cinematográfica e a escrita, se representa o sentimento de atração e repulsa do ser humano pelo Outro, ou seja, pelo que lhe é diferente, estranho, o que possui uma vida diferente da sua, mas que em certo momento invade e transita pelo seu mundo. Isso é, como o desco-

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nhecido causa impacto, assusta, ao mesmo tempo fascina, e provoca profundas transformações na figura da mesmidade. Portanto, pretende-se ler o conto “El Otro Lado” e o filme La Zona segundo a análise proposta Lúcia Helena de Azevedo Vilela, sobre “alteridade e perigo”. E sobre o conceito de espelho na literatura. Observa-se uma tendência pela eliminação do que é diferente, tendo apenas um ponto de vista, a sociedade elimina o Outro, o repudia. Porém, quando o Eu entra em contato com esse mundo estranho e novo, sofre uma mutação do caráter. As personagens do livro e do filme se transformam à medida que vão descobrindo um mundo que não lhes pertence, as experiências com o diferente os tornam vulneráveis e os fazem colocar-se no lugar do outro tal qual em um espelho o Eu já não vê mais o outro, mas vê a si próprio refletido com inúmeras características até então consideradas alheias. “El Otro Lado” O conto narra a história de uma personagem que compra um espelho em uma espécie de antiquário. E, ao deixá-lo em uma parede de casa percebe que há algo estranho na superfície do espelho. Ao tocá-lo sua mão mergulha para dentro do objeto assustando-a! Mas o susto dá lugar à curiosidade e ao mergulhar totalmente no espelho descobre um mundo novo de possibilidades, um corredor como vários espelhos que refletem o cotidiano de pessoas, os outros. A partir daí, a personagem entra e uma jornada na vida do “outro” e tentando entender o estranho, o desconhecido, deixando cada vez mais de fazer parte dela mesma: Al entrar en la intimidad de sus baños , en la comodidad de sus alcobas, en las miserias y maravillas de sus cuerpos reflejados, siento un poco de pudor pero sobre todo un mucho de piedad por aquellos todos que se buscan la cara en los espejos; para creer en las cremas que les ahorrarán las arrugas, para fumarse un cigarrillo a escondidas, para lavarse los dientes o limpiarse las narices, pero también para reconocerse, para odiarse a sí mismos hasta llegar al perdón para saberse únicos, para llorar solos. (SANTULLO, 2005, p. 17).

Ao observar o trecho destacado nota-se a reação de estranhamento e fascínio da personagem ao ver o cotidiano das pessoas e o que fazem diante do espelho. Sente o pudor, mas sobre tudo pena ao perceber vulnerabilidade do ser, toda imagem refletida 64

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no espelho se perderá um dia, pois os espelho não guardam as memórias do que já refletiram. Ou seja, os espelhos não possuem tempo, refletem o efêmero o que não se pode ter domínio. Além disso, a personagem afirma várias vezes que os espelhos não têm luz própria: “El otro lado carece de luz propria”. Portanto, o espelho também tem sua fragilidade, não são mais que reflexo do real, uma ilusão. Outro fator notável é que apesar de sentir vergonha ela não sai do espelho, não se detém em sua jornada, segue com seu jogo perigoso que vai além da sua curiosidade. Assim, ao sentir-se com confiança, a personagem arrisca uma proximidade de um ser refletido, uma idosa na cama já no fim da vida. Ao chegar tão perto, descobre com pavor e espanto que a imagem que viu agora faz parte dela mesma. Logo, apavorada, corre à outro espelho que lhe dê uma imagem mais jovial; descobrindo assim, um jogo perigoso e fascinante. Deslumbrada com tal possibilidade, acredita-se poderosa e que tal poder pode ajudar aos outros com seu juízo de valor, ou seja, pode emprestar as características que lhe parecer melhor ao ser refletido, dando um instante de ilusão, mostrando-lhe algo que não lhe pertence para que possa saciar seu Eu. Assim, ela mesma sacia a si mesma como uma benfeitora. Estoy dentro de un juego maravilloso con infinitas posibilidades: soy el espanto, la otra realidad, el delirio, la fe, soy la pesadillay el sueñomás hermoso; pequeñas criaturas, imágines robadas, reflejos mentirosas que poseen toda la violencia de una verdad posible para quien me ve y en mí cree versera sí mismo. Voy perdiendo la prudencia mientras el vértigo crece, me siento poderosa. (SANTULLO, 2005, p. 20).

Através desse pequeno fragmento percebe-se que a importância que se dá a imagem, o espelho é o instrumento que permite estar frente a frente com seu exterior, tal qual é visto diariamente pelos outros. A valorização da aparência, uma exaltação à beleza, nota-se claramente o mito de Narciso, paradigma do homem que se deixar fascinar pela sua própria imagem, bela mais também mortal. Ao se dar conta do perigo desse jogo, a personagem foge buscando a saída para seu espelho, mas ao mesmo tempo em que tenta fugir vai adquirindo todas as faces dos espelhos que encontra, já não tem mais seu rosto, seu corpo, como afirma: sólo soy un reflejo.A mulher que está dentro do espelho já não é mais a mesma, não passa de um reflexo de outras imagens: “Esa que no soy yo, posee todo lo que me pertenece, ha usurpado mi cuerpo, mi lugar, todo lo que fui.” (SANTULLO, 2005, p. 22). 65

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Neste pequeno fragmento, observa-se que a mulher real é a que está do lado de fora e não que está dentro do espelho, a que está dentro do espelho era apenas uma ilusão. Portanto, observou-se que este conto trata da dualidade, da busca de uma identidade e reconhecimento no outro. O reflexo no espelho não é mais que a necessidade de se (re)conhecer, um paradigma do outro mundo, da morte, o que não possui luz, é um mero reflexo do que já existiu. No conto nota-se a dualidade da personagem através do espelho e é ele que a conduz para esse novo olhar. La Zona O filme de Rodrigo Plá, baseado no conto de Santullo, se passa na periferia da Cidade do México, dominada por favelas, onde fica La Zona, um condomínio fechado de alta classe que se apresenta como um oásis em meio à miséria que o cerca. Numa noite de tempestade, a segurança do condomínio é comprometida, abrindo caminho para que três jovens invadam o local para roubarem os moradores. O que deveria ser um roubo fácil se converte em tragédia quando, descobertos, dois dos invasores são mortos pelos seguranças e o terceiro, Miguel (Alan Chávez), um garoto de aproximadamente 15 anos, consegue se esconder, mas não abandona o local. Os moradores, liderados por Gerardo (Carlos Bardem), se reúnem e se dividem num dilema. Caso avisem à polícia do ocorrido, perderão os privilégios concedidos ao condomínio, que funciona quase como se fosse um estado à parte, com legislação própria e regras que se acumulam sempre com o intuito de proteger o lado de dentro do caos que se instaura lá fora. A outra opção é a que acaba prevalecendo, a de procurarem por conta própria o invasor antes que fugisse da zona e dar cabo dele. Livrando-se dos corpos através do sistema de coleta de lixo urbano, fazem com que tudo volta a ser como antes. Ou pelo menos é o que imaginam. Alejandro (Daniel Tovar) é um adolescente que vive dentro do condomínio junto com os pais, um arquiteto (Daniel Gimenez Cacho) e sua esposa. É ele quem vai encontrar Miguel no porão de sua casa e a relação que se estabelece entre ambos fará com que Alejandro questione as atitudes dos adultos e reveja a sua própria vida enclausurada no condomínio, de onde não sai nem para freqüentar a escola. Com a linguagem cinematográfica o diretor Rodrigo Plá eleva a um patamar mais acima os problemas do mundo moderno, como a violência urbana. O diretor

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choca com seu realismo exacerbado na representação de uma sociedade que quer fazer leis com suas próprias mãos, segurança acima de tudo, mesmo que para isso viva em estado autoritário. Segundo Lucia Helena de Azevedo Vilela, em seu texto, Alteridade e perigo: Observamos o Outro, estamos em constante referência àquele sujeito único, que não admite a presença da diferença. Este centramento existe dentro da sociedade e é introjetado por nós em nossas relações com o Outro. (VILELA, 1995, p. 32).

Isso quer dizer, que o ser humano tem dificuldade de aceitar o Outro, o que não pertence ao seu grupo, ou mesmo que faz parte de seu grupo, mas tem um comportamento diferenciado, este já não mais me representa, é diferente de mim e merece ser afastado, regeitado. Não se aceita a diferença de modo tão simples. O que é estranho a mim deve ser eliminado para preservar a mim mesmo. A eliminação, o afastamento é um espécie de defesa perante àquele que ameaça a minha própria identidade. O que a sociedade tenta fazer é uma espécie de ritual de eliminação do Outro, podendo esse ritual ser real ou simbólico. Esta figura do Outro constitui para a sociedade um bode expiatório: um pharmakos. (VILELA, 1995, p. 32).

O trecho destacado enfatiza a reação dos condôminos em La zona, uma vez que os mesmo decidem resolver o problema à sua maneira sem chamar a polícia para prender o criminoso. É o personagem Alejandro que com o incidente no condomínio se vê confrontado, no dia do seu aniversário, com o personagem Miguel que está sendo procurado pelos condôminos para pagar com a própria vida pelo crime de invadir o lugar. Alejandro é confrontado pelo Outro, e ao perceber que este é um duplo dele mesmo se transforma. Assim, ao ter contato com Miguel, Alejandro passa a conviver ao mesmo tempo com o pai, e com suas atitudes diante dos fatos. Alejandro então questiona o comportamento de seu pai e dos que vivem ali e suas próprias atitudes. Aos poucos ele amadurece e seus valores mudam, porque percebe que Miguel é como ele, um jovem que gosta das mesmas coisas, é de certa forma seu reflexo, o Outro que é tão parecido com ele. Assim, Miguel passa do desconhecido à representação de um ser duplicado em Alejandro. Por fim, o personagem de Alejandro consegue ver além das diferenças existentes entre ele e Miguel, ele passa a enxergar a Miguel através de suas seme-

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lhanças com ele mesmo e ao presenciar a morte do amigo, que também representa a morte do seu antigo Eu, passa a analisar o mundo de forma mais crítica, permitindo-se a liberdade de conhecer o outro lado, transitar no espaço que os Outros frequentam, ou seja, o lugar onde Miguel vivia e vive tantos outros como ele. O filme termina com Alejandro fazendo o caminho inverso ao de Miguel. O espelho no conto “El Otro Lado” e no filme La Zona Sabe-se que o espelho teve importância para várias civilizações. O espelho é símbolo solar quando reflete uma luz. Ele também pode simbolizar o mundo da morte, o outro lado, o outro mundo. O espelho pode ter várias conotações simbólicas é na sua essência o duplo, reflete apenas o que está perto dele, não possui vida, mas é visto com fascínio por carregar um histórico mítico na qual ganhou muitos significados por apenas refletir o ser invertendo a imagem que lhe aparece. Ele ganha vida no conto fantástico, uma vez que mostra o extraordinário, o insólito e que provoca, desconstroi. O Dicionário de símbolos: Espelho vem da palavra latina Speculum . El alma participa de la imagem y por esa participación sufre uma transformaciíon. Existe pues uma configuración entre el sujetocontemplado y el espejo que lo comtempla. El alma acaba por participar de la belleza misma a la cual ella se abre. M.-M.D. (CHEVALIER, 1995, p. 477). El hombre en cuanto espejo refleta la belleza o la fealdad. (CHEVALIER, 1995, p. 476).

No conto a personagem da mulher ultrapassa o espelho para conhecer o olhar do outro lado da realidade. O espelho no conto “El otro lado” tem sentido do paradigma da identidade versus dualidade, essa dúvida do ser e do conflito com ele mesmo pelo seu outro lado, esse lado obscuro desconhecido até por ele mesmo. Porque o espelho só reflete a luz dentro dele não há luz. A imagem do espelho não passa de um ilusão, a mesma ilusão que reflete a imagem dos que vivem do lado de fora do espelho, e admiram sua beleza e juventude refletida. Uma fantasia do que não pode existir para sempre, e tal objeto não pode guardar em sua memória, é apenas reflexo. Porém, devido a incompletude do espelho e a infinidade do espelho deste objeto, podem se espelhar nele todos os mundos de símbolos-reais 68

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ou imaginários. O real e o imaginário se misturam e o espelho pode representar os dois lados. Neste caso o conto deixa em aberto se o que acontece é real ou imaginário, a real mulher é a que está fora ou a que está dentro do espelho. Logo, o espelho é como um portal que permite que a personagem do conto, possa conhecer outros mundos e vê a si mesma refletida, fazendo-a questionar quem ela é na realidade. No entanto, no filme La zona, o espelho é o duplo de Alejandro representado por Miguel, são de mundos diferentes, embora vivam na mesma cidade, são completos desconhecidos, mas que um entra no mundo do outro causando transformações que muda o caráter de Alejandro. Miguel pode ser considerado uma imagem invertida de Alejandro, por terem semelhanças, além de Miguel e tudo que acontece com ele mudar a forma de pensar de Alejandro, fazendo amadurecer, saindo da condição de menino a homem e através disso dando identidade ao próprio Miguel como sujeito da transformação de Alejandro, sendo peça essencial para tal mudança. Esse repúdio pelo o Outro pode ser entendido como medo, medo de se sentir usurpado do que lhe pertence. Medo na obter mais certezas de que tudo é igual e controlável, o que foge ao controle deve ser banido, já que cuidar par se entender o que lhe é estranho e novo demanda muito trabalho, paciência, conhecimento e desmistificação do Outro. É muito mais fácil o estereotipar que se permitir conhecer. Os dois textos permitem observar a busca e curiosidade pelo Outro como uma espécie de complementação do Eu: A busca para entender esse diferente e também se entender a si mesmo. E a transformação causada pelo impacto do trânsito por essas novas facetas, ou esse novo ambiente. A mulher do conto que se vê nos outros e que a cada espelho perde um pouco de si e adquiri algo característico do Outro e no final se questiona si a mulher que está fora do espelho é outra e não ela mesma que está dentro vendo seu reflexo do lado de fora. No entanto, o Alejandro se descobre reflexo de Miguel, começa a transitar pelos mesmos espaços do amigo e é sua transformação que o permite ter a liberdade de sair sem medo, pois ele também já não é mais o mesmo, tem um novo olhar do mundo que o cerca e transito pelos dois mundos sem medo, sem limitações. Portanto, o espelho peça usual no cotidiano tem várias representações e no conto é instrumento mágico que transita pelos dois textos, seja numa figura representada como objeto seja como representação simbólica de algo místico, assim como o próprio conto real maravilhoso, permitindo um transito entre real e ima69

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ginário. Característico dos contos fantástico onde não existe o impossível, ditado pela descontinuidade entre causa e efeito e dentro desta realidade são possíveis eventos extraordinários. Conclusão Por tudo isso, este trabalho mostrou que o conto de Laura Santullo, o filme La Zona, de Rodrigo Plá, dialogam entre si, apesar de outra leitura dada por Plá, no filme em relação ao conto. Isto porque os dois textos permitem a representação e o entendimento de uma maneira ampla, já que tanto o filme como o conto, tratam de temas muito parecidos em sua essência, ambas levam ao questionamento da identidade versus dualidade, as buscas das personagens por uma identidade, da inquietude na falta de certezas, as mudanças deixa as personagens em busca de uma outra verdade que os representem nessa nova fase. Um adolescente que se transforma em adulto e passa a fazer suas próprias escolhas independente de seus pais, escolhendo o que é melhor ou não para si mesmo. Transitando por um mundo diferente do seu, mas com liberdade de escolher com juízo moral independente do outro. Por outro lado, o conto deixa em aberto a transformação sofrida por sua personagem que ao transitar pelo mundo dos outros descobre que já também perdeu um pouco de si mesma, não reconhecendo se o que está fora é a realidade ou o que está dentro é o falso, o vazio, o nada nem ela mesma, porque já adquiriu o que observou dos outros. Essa dualidade é propiciada pelo instrumento/ personagem do conto e por si só é dual: o espelho, que só reflete a imagem invertida. É ao mesmo é responsável pelas transformações do conto e o filme, porque Miguel é reflexo de Alejandro e ambos representam um ao outro, eles são o duplo. Logo, o conto e o filme também dialogam com o recorte proposto no início do texto com o objetivo de ampliar o olhar através de linguagens diferentes assim, se baseando também de outras fontes como o dicionário de símbolos e a texto de Lúcia Helena de Azevedo Vilela.

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REFERÊNCIAS

CHEVALIER, Jean y Alain Cheerbrant. Versión castellana de Manuel Silvar y Arturo Rodriguez de la obra: Diccionario de los Símbolos. Editorial Herdes; 5º edição, 1995, Barcelona. PLÁ, Rodrigo. Filme: La Zona, 2007. México SANTULLO, Laura. “El Otro Lado”. In: ___. El otro lado. Montevideo: Ediciones de la Banda Orienta, 2005, p. 13-22. VILELA, Lúcia Helena de Azevedo. “Alteridade e perigo: o pharmakos”. In: Limites: Anais do 3º Congresso ABRALIC. São Paulo: Edusp; Niterói: ABRALIC, 1995, p. 31-36.

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DIÁLOGOS E TOMBEAUX: HAROLDO DE CAMPOS, NÉSTOR PERLONGHER E SEVERO SARDUY

Antonio Andrade (UFRJ) À memória de Fabrício […] ter um amigo, olhá-lo, segui-lo com os olhos, admirá-lo na amizade, é saber de maneira um pouco mais intensa e antecipadamente contristada, sempre insistente, inesquecível cada vez mais, que um dos dois fatalmente verá o outro morrer. Um de nós – diz cada um consigo –, um de nós, chegará esse dia, ver-se-á não mais vendo o outro. (Jacques Derrida, Chaque fois unique, la fin du monde, apud ROUDINESCO, 2007, p. 223)

C

omeçarei o meu percurso apresentando dois poemas que Haroldo de Campos dedicou, in memoriam, ao amigo e escritor argentino Néstor Perlongher e ao cubano Severo Sarduy, respectivamente. Em seguida, tentarei demonstrar como a questão da morte e a tipologia do “poema-tombeau” são importantes não só para compreender o diálogo intertextual travado por esses autores, que desenvolveram em diferentes vertentes o estilo neobarroco, mas também para evidenciar determinadas problemáticas que se verificam na passagem do moderno ao contemporâneo. neobarroso: in memoriam n. perlongher hay cadáveres” – canta Néstor perlongher e está morrendo e canta “hay . . .” seu canto de pérolas-berruecas alambres boquitas repintadas restos de unhas lúnulas – canta – ostras desventradas um olor de magnólias e esta espira amarelo-marijuana novelando pensões

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baratas e transas de michê (está morrendo e canta) “hay . . .” (madres-de-mayo heroínas-carpidieras vazadas em prata negra lutuoso argento rioplatense plangem) “. . . cadáveres” e está morrendo e canta néstor agora em gozoso portunhol neste bar paulistano que desafoga a noite-lombo-de-fera úmido-espessa de um calor serôdio e onde (o Sacro Daime é uma – já então – unção quase extrema) canta seu ramerrão (amaríssimo) portenho: “hay (e está morrendo) cadáveres” (CAMPOS, 1998, p. 111) para um tombeau de severo sarduy 1. olhar achinesado aberto em tez canela lábios de rebordos barrocos dulcamaro sorriso entrebailante sarduy se refugia em sua mesa do flore: floresce entre cristais e café sardônico ou severo logo ameno enquanto limões cortados cintilam seda verde contra o anis: hécuba ciosa de sua prole cuba o reivindicafilho êxul que para celebrá-la travestiu-se de íncubo (más cubano soy yo que el ron merino! – costumava dizer-me visando com chancela autêntica – tatuagem ctônica – o passaporte ausente) 2. monge da religião lezâmica (cantantes cobra colibrí cocuyo) sarduy com um gesto faz nevar em la habana

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sol nevado topázio lunescente que desparze flocos de lírios e fios de açúcar-cândi sobre os arroubos dum préstito cristóforo: auxílio e socorro – náiades em anáguas disfarçadas em drag-queens – remiram-se no espelho da paciência e fosforecem : gêmeas ninfas ninfômanas no seu nimbo de nylon 3. sarduy – severo – persegue o buda neonato provedor do porvir : maitreya enquanto um polvo soropositivo o abraça com sugantes ventosas mas o reflexo laser do punhal de obsidiana o tutela e ele se incuba no ouro-tabaco de sua cuba matriz madriperúlea ouvindo o rumor gárgulo das madres: ele – herdeiro heráldico passeando pela mão regedora do senhor barroco seu voluntarioso principado de jovem crisóstomo criollo até sentar-se em posição de lótus no café de flore entre menta e limões cortados que lucilam feito cristais citrinos recolhendo no vôo o debrum amarelo-fogo de uma ouropêndula caligrafada por tu-fu 4. ei-lo agora jacente – buda em paranirvana (à imitação de um) – assim severo sarduy retorna às origens aos lares aos signos capitosos de nascença : camangüeyano fatigado de sua peripatéia ecumênica que dissimula em raízes aéreas ( mesmo enquanto dorme neste gálico tombeau de thiais) seu coração insular de terra desterrada e – colibri dançarino – embalsama-se num âmbito de mel transmigrado afinal para o âmbar incorrupto das palavras da tribo (Id., p. 112-114) Haveria certamente muitas maneiras distintas de iniciar a interpretação des74

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ses poemas. Opto, entretanto, por distanciar-me um pouco da leitura em si, da lecture du texte, para refletir sobre o sentido desse diálogo, ou se assim for mais adequado, sobre o sentido dessa homenagem em forma de “adeus” a amigos, a poetas com os quais Haroldo possuía afinidades eletivas. Por que render homenagem literária e pública pós-mortem? Por que a morte torna-se aí matéria do poético? Essas serão talvez as perguntas centrais da minha reflexão. Mas, ao lado delas, estão outras interrogações igualmente instigantes: os que nasceram a muitas milhas de distância – como é o caso de Perlongher, que naceu em Avellaneda, província de Buenos Aires, em 1949, e morreu em São Paulo, em 1992 – e os que nasceram, viveram e morreram muito distante – como Sarduy, nascido em Camagüey, Cuba, em 1937, e falecido em Paris, em 1993 – podem ser considerados “amigos”? Até que ponto o conceito comum de amizade serve à compreensão dos laços que unem escritores e intelectuais? Por que a eleição desse afeto dirige-se ao estrangeiro, por uma via xenófila? Leia-se uma frase de Goethe, citada por Haroldo, que pode fornecer alguma clareza a este questionamento: “toda literatura, fechada em si mesma, acaba por definhar no tédio, se não se deixa, renovadamente vivificar por meio da contribuição estrangeira” (apud CAMPOS, 2004, p. 255). Esse era, para os irmãos Campos, o sentido pleno do exercício da alteridade, “exercício de autocrítica” que eles praticaram via tradução, via assimilação: transcriação. Diálogo entre subdesenvolvidos? Octavio Paz não aceita esse dote e também duvida: “dudo que la relación entre prosperidad económica y excelencia artística sea la de causa y efecto” (apud Id., p. 234). A teleologia não é permitida dentro da “práxis intersemiótica” do concretismo. Nesse sentido, pode-se identificar no escritor cubano a fala eloqüente, a “boca de ouro” de um “crisóstomo criollo”. A antropofagia oswaldiana, recuperada pelos irmãos Campos nos anos 1960, serve assim como metáfora não de uma operação especificamente nacional, mas de toda uma linhagem de autores – iniciada, segundo Haroldo, com o barroco, seja ele luso ou hispânico (da “perla berrueca”) – que “devora” (e ressignifica, borgianamente, não podemos nos esquecer) empréstimos de outras literaturas.Gostaria de aprofundar aqui as raízes dessa questão através do ensaio haroldiano “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”. Encontraríamos ali a origem do problema? Essa é uma pergunta capciosa, visto que nesse ensaio, a partir da crítica de Jacques Derrida à noção platônica de essência e ao logocentrismo da cultura ocidental, Haroldo vai propor a problematização da origem da

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literatura brasileira, ao afirmar “a necessidade de se pensar a diferença, o nacionalismo como movimento dialógico da diferença (e não como unção acomodatícia do mesmo)” (Id., p. 237). Tal questionamento busca no barroco justamente o lugar problemático da não-origem, ou da não-infância: nossas literaturas teriam nascido enleadas aos volteios sintáticos barrocos; adoradoras metalistas de todo ouro, prata e pedras preciosas que se espalham estranha e anacronicamente (para o leitor atual) pelos textos de Sarduy, Perlongher e Haroldo. Esses arabescos da escrita – dos períodos sem fim que se proliferam por parênteses, travessões e dois pontos – formam imagens alegóricas, “um estilo em que, no limite, qualquer coisa poderia simbolizar qualquer outra” (Id., p. 240), e indiciam uma dinâmica barroca em que da alegoria resulta sempre a “diferença” (para usar ainda um termo derridiano). É interessante, ainda assim, notar, nesses poemas, a preocupação com o país natal, como se o intento de escrever “à beira do túmulo”, fosse um retomar a “partida de nacimiento”. O desaparecimento de Perlongher, em terra estrangeira, por exemplo, renova o choro ininterrupto das “Madres de Plaza de Mayo”. Hécuba – mulher de Príamo, mãe de dezenove filhos, quase todos mortos na Guerra de Tróia, transformada em cadela por maldição – converte-se na imagem paronomásica de Cuba, representando também a figura materna que deseja a volta do “filho êxul”, Sarduy. Em ambos os casos o retorno não ocorre, não só por não haver “passaporte”, mas sobretudo porque suas obras não se alinhavavam ao modo como o Peronismo e a Revolução Cubana, respectivamente, se desenvolveram e hegemonizaram. Não é preciso dizer que “náiades em anáguas/ disfarçadas em drag-queens”, apesar de ser sim uma imagem revolucionária, não integram os preceitos militantes do regime castrista. Seguindo essa questão através do poema para Sarduy, podemos associar o problema da não-origem que o resgate do barroco traz para o cenário da literatura brasileira à reivindicação da pátria (“más cubano soy yo que el ron merino!”), na configuração descritiva de um sujeito cindido entre a cultura tropical primitiva e o cosmopolitismo do café parisiense. Não à toa, nas cenas poéticas montadas por Haroldo, o retorno à origem significa um retorno à palavra neobarroca6 que instaura a literatura donde descendem tanto o autor de Parque Lezama quanto o de De donde son los cantantes: sinestesia de “amarelo-marijuana”, palavra “capitosa”, signo embriagante. Ou seja, tanto a origem natural quanto a literária só podem ser entendidas aí como uma forma de Refiro-me aqui à filiação, declarada por ambos os autores,à obra do escritor cubana José Lezama Lima, iniciador do neobarroco.

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vôo, ecoando a imagem do “colibri dançarino”, o que me leva a aproximá-las à noção de origem benjaminiana, explicada por Jeanne Marie Gagnebin como um “salto para fora da sucessão cronológica niveladora” (apud LOPES, 1999, p. 11). Mas se a procura da origem, no instante da morte, é também um salto para fora do tempo, como se apresenta o histórico da amizade literária entre os dois (ou melhor, entre os três) poetas nos textos em questão? Essa história é construída por meio das confidências e revelações que vão surgindo ao longo do tempo e da trajetória da amizade. A propósito disso, Derrida já havia apontado que não há amizade sem confidência, tampouco existe confidência que não se meça por algum tipo de cronologia7.Entretanto, o interessante é que, nos poemas, as referências temporais e espaciais dos dêiticos “agora[…]neste bar paulistano” (grifos meus), de “neobarroso: in memoriam”, e “ei-lo agora jacente […]neste gálico tombeau de thiais” (grifos meus), de “para um tombeau de severo sarduy”, representam ora um presente, em vida, imbricado à memória da morte, no primeiro caso, ora um “presente-morte”, leitmotiv para uma série de spotsdo passado, todos, contudo, em presente do indicativo, no segundo. É impossível regressar para a mesma Cuba, é impossível regressar o mesmo para a velha e lutuosa Argentina. Este seria talvez o dístico que vem à minha cabeça após a leitura dos poemas. Se pudesse encontrar uma analogia entre ele e os estudos benjaminianos, destacaria a impossibilidade da volta à origem, “perdida desde sempre” (GAGNEBIN, 1994, p. 62), bem como a impossibilidade da própria poesia nos tempos modernos, como questões fundamentais. Retomando ainda o papel da alegoria, em Benjamin, me dou conta de que a morte é o que permeia esse tipo de composição poética, motivada simultaneamente pelo óbito real (dos “amigos”) e pela transfiguração do real com que se lhes presta a melhor homenagem. Gagnebin chega a afirmar que A alegoria cava um túmulo tríplice: o do sujeito clássico que podia ainda afirmar uma identidade coerente de si mesmo, e que, agora, vacila e se desfaz; o dos objetos que não são mais os depositários de estabilidade, mas se decompõem em fragmentos; enfim, o do processo mesmo de significação, pois o sentido surge da corrosão dos laços vivos e materiais entre as coisas, transformando os seres “There is no friendship without confidence […], and no confidence which does not measure up to some chronology, to the trial of a sensible duration of time (…). The fidelity, faith, (…), credence, the credit of this engagement, could not possibly be a-chronic” (DERRIDA, 2005, p. 14). 7

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares vivos em cadáveres ou esqueletos, as coisas em escombros e os edifícios em ruínas. (Id., p. 46)

“Cadáveres” atravessam toda a poesia perlongheriana. Esse é o título inclusive do seu mais longo e conhecido poema. Exatamente, por isso, Haroldo retoma entre aspas o verso “Hay cadáveres” e o repete como um mantra,tal como o faz Perlongher no poema original. Os cadáveres que, para este, representavam os mortos da ditadura militar argentina tornam-se polissêmicos, para aquele, devido à imbricação entre autoria e referencialidade que inclui, agora, o próprio poeta que havia produzido a denúncia política entre os mortos e desaparecidos.Essa conversão do amigo – do ser amado, de certo modo – em objeto (“cadáver”) é um movimento característico da amizade cujo vínculo, ou philía segundo Derrida, vai além da morte: “This philía, […] between friends, sur-vives. It cannot survive itself as act, but it can survive its object, it can love the inanimate” (DERRIDA, op. cit., p. 13). Desse modo, é possível compreender também um procedimento dúplice que se verifica nos poemas de Haroldo aos amigos mortos: ao mesmo tempo em que o poeta brasileirolhes reconhece fragilidades íntimas, humanas, subjetivas, corporais, mortais…, embalsama-os e cristaliza-os, para a posteridade, em suas pinturas descritivas. Aliás, aprofundando um pouco mais essa questão, Haroldo chega a dizer que o embalsamamento é um modus operandi do próprio estilo sarduyano, que se embalsama “num âmbito de mel”. Sabe-se, ademais, que o corpo embalsamado (e profanado) de Eva Perón constitui a imagem obsessiva que percorre a obra de Perlongher. Gostaria de lembrar, a esse respeito, que nas análises da poesia do autor argentino, feitas pelo crítico Nicolás Rosa, a contradição entre o desvanecimento cadavérico e a rigidez do embalsamamento ocupa o lugar da própria tensão que norteia o fazer literário (cf. ROSA, 1987, p. 255-6). Se a morte, via alegoria, é um topos constante da lírica ocidental, desde Baudelaire, é porque ela é índice de um processo simultâneo de queda das ideologias e de perda da capacidade de reconhecer e experimentar o afeto do outro, antes do fim da vida. Muitos pensadores e escritores do século XX, como Derrida, Sarduy, Perlongher e Haroldo, foram testemunhas ou herdeiros do Holocausto, do gulag, de Hiroshima, da Guerra do Vietnã, da violência repressiva das ditaduras latino-americanas, do fim dos impérios coloniais, da revolta da juventude, do desmoronamento do comunismo…Enfim, eu poderia estender essa listagem de fatos históricos para os quais a imagem do “corpo morto”, do amigo ou do inimigo, se impõe como paradigmática. A experiência histórica, a priori exterior ao objeto 78

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artístico, não deixa nunca, é claro, de interferir no processo de criação e, por sua vez, no modo de composição poético. Sendo assim, o falecimento dos amigos, nos poemas de Haroldo, representaria o mesmo que a idéia de morte, para Blanchot, sugere em relação à obra, qual seja, a morte como aquilo diante do qual o escritor não pode perder o controle (cf. BLANCHOT, 1987, p. 87). Entretanto, o próprio ato de fé contido na amizade implica certa incalculabilidade, no sentido de que a escolha do amigo não pode ser um lance totalmente racional (cf. Derrida, op. cit., p. 21). Além disso, a morte do outro é também a morte do Eu: percepção do futuro e do presente. Por isso, a linguagem que tenta dar conta dessa experiência caminha pelas chicanas do vertiginoso e do incompreensível até alcançar um construto. Isso, por exemplo, é o que aponta também o próprio Severo Sarduy em um ensaio crítico, publicado muitos anos antes da sua morte, em relação ao processo organizador da poesia híbrida (concreta e neobarroca) de Haroldo de Campos: “O poema como sílaba-germe que rebenta, expande-se no volume da página e avança em direção à concretude” (SARDUY, 1979, p. 125). O labor da escritura poética que trata de dar forma concreta à idéia deslizante de morte corresponde a um gesto de exumação incomum que traz consigo não a memória da morte, gravada no cadáver, e sim a memória da vida. Esse é também um dos objetivos da escrita derridiana. De acordo com a análise que Elisabeth Roudinesco faz dos textos em que o filósofo francês se dedica a dizer adeus a seus amigos e, ao mesmo tempo, a refazer suas trajetórias intelectuais, seja qual for a idade daquele a quem dirige a saudação, Jacques Derrida constrói seu discurso como o palimpsesto do instante da morte, como o braço instantâneo desse momento único em que se produz a passagem da vida à morte. Assim, ele pode trazer para si toda a memória enterrada de uma existência fragmentada. (ROUDINESCO, op. cit., p. 223).

Em minha opinião, a figuração poética desse ato fúnebre que mantém, no entanto, ainda muito latente a lembrança do vivido reside, nos poemas de Haroldo, na focalização de uma ação em processo, através da repetição da perífrase “está morrendo”, em “neobarroso: in memoriam”, e da bela antítese gerada pela imobilidade do sujeito em posição de lótus enquanto a doença avança, em “para um tombeau de severo sarduy”. Isso poderia ser pensado, logicamente, como uma solução lírica para encenar a morte, em ambos os casos, em conseqüência

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de complicações da AIDS. Contudo, uma outra forma de ler esses procedimentos é pensar que tal estado melancólico – ou, de outro modo, que o trabalho incessante do luto (cf. GAGNEBIN, op. cit., p. 50) – representaria aí um modo de sentir a experiência histórica. Conhecendo um pouco o pensamento teórico haroldiano e sabendo que ele traz à baila e ratifica diversas questões assinaladas por Benjamin, acredito que essa seja uma interpretação possível. Mas ao pôr atenção redobrada às imagens que perfazem os textos, noto que há um elemento oposto à melancolia que dialeticamente dá forma a esses mistos de descrição e narração com que Haroldo recompõe os “instantes-morte” de Perlongher e Sarduy. Quero dizer que existe uma dose de alegria nessas lembranças de encontros entre amigos: a alegria do cantar gozoso e desafogado de Néstor à mesa do bar; a paz e o nirvana propiciado pelo encontro de Sarduy com o budismo. Ou seja, verifica-se em todos esses autores uma visão ao mesmo tempo trágica e festiva da vida e da morte. Em Haroldo, isso se percebe, por exemplo, no seu uso reiterado do poema in memoriam, do tributo aos amigos mortos, não no sentido de canonizá-los e lançá-los ao rol dos grandes “Autores”, mas com vistas a investigar as nuanças significativas da morte para a sua própria poesia, de demonstrar zonas lacunares8, espaços de fragilidade, da obra e da biografia dos seus homenageados. Junto a isso se observa a celebração carnavalizadora da rede dialógica produzida pelo seu paideuma poético, no melhor estilo poundiano, o que demonstra um entendimento de que a criação literária pode ser concebida não só pelo viés da negatividade, mas também através de uma estratégia, um tanto quanto bárbara e antropofágica, de fazer tudo “coexistir com tudo” (CAMPOS, 2004, p. 251): tradição ocidental com a oriental, literatura européia com a ibero-americana. Já em Perlongher, o leitor pode encontrar uma obra intensamente homoerótica e melancólica; uma mistura radical de humor, sarcasmo e experimentalismo lingüístico. Nele, também, o olhar desejante que flagra “la sordidez de cuerpos sudorosos que se pegan, quemantes” (PERLONGHER, 2003, p. 29), em seu primeiro livro, soma-se ao tom lúgubre dos versos do seu último trabalho, onde o próprio sujeito se vê morrendo – fórmula atualizada, como vimos, pelo poema haroldiano: Gostaria de remeter à leitura do ensaio “Arte pobre, tempo de pobreza, poesia menos” (In: CAMPOS, 2004), em que Haroldo de Campos explicita o fato de que o seu interesse crítico se direciona ao “procedimento menos” de escritores que reconhecem que o trabalho de criação nasce, na verdade, da fronteira com o discurso alheio, literário ou não-literário, e que a indecidibilidade pode ser muito mais produtiva em termos estéticos do que a grandiloqüência.

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Ahora que me estoy muriendo Ahora que me estoy muriendo Cansina esta letanía de arrabal Lejos de todo se toma el ómnibus de extramuros del que no baja, porque no para o para pronto, en realidad no se ha movido de la parada (Id., p. 367) E para demonstrar essa mescla delicada entre morte e alegria, a respeito de Sarduy, creio que bastaria citar um fragmento do texto “Sarduy, in memoriam”, escrito pelo seu amigo Juan Goytisolo: Nuestra anterior frecuentación se redujo desde entonces a una intermitente relación telefónica, a veces melancólica y con referencias oblicuas al mal que le destruía, y otras, animadas por esa euforia y afán de vivir que nunca le abandonaron. (GOYTISOLO, 1999, p. 1779).

Aí está o meu tributo a esses autores hispânicos e também a Haroldo, falecido em 2003. Desenvolvo, na minha pesquisa atual, uma forma de estudo “in memoriam”, seguindo assim um pouco a lição desses poemas. Penso que, no diálogo entre poetas de diferentes culturas, sobretudo, e nos gestos de despida aos amigos que “partem”, se dá a abertura de um testamento, a passagem de um legado que evidentemente será violado e diferido a cada nova tentativa de criar. Acredito, junto com Roudinesco – com ecos de Derrida (e Borges talvez, num “Encontro da Hispanidade”…) – que “apenas a aceitação crítica de uma herança permite pensar com independência e inventar um pensamento para o porvir, um pensamento para tempos melhores, um pensamento da insubmissão, necessariamente infiel” (ROUDINESCO, 2007, p. 12). Niterói, 20 de novembro de 2009.

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REFERÊNCIAS

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. CAMPOS, Haroldo. Crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 1998. ______. Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2004 GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin.São Paulo: Perspectiva, 1994. GOYTISOLO, Juan. “Sarduy, ‘in memoriam’”. In SARDUY, Severo. Obra completa. Vol. II. (Colección Archivos) Madri: ALLCA XX, 1999, p. 1778-1780. DERRIDA, Jacques. The politics of friendship. Londres: Verso, 2005. LOPES, Denilson. Nós os mortos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. PERLONGHER, Néstor. Poemas completos. Buenos Aires: Seix Barral, 2003. ROSA, Nicolás. Seis tratados y una ausencia. “Sobre los ‘Alambres’ y rituales de Néstor Perlongher”. In: ___. Los fulgores del simulacro. Rosario: UNL, 1987, p. 227-257. ROUDINESCO, Elisabeth. Jacques.“Derrida: o instante da morte”. In: ___. Filósofos na tormenta. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 218-234. SARDUY, Severo. “Rumo à concretude”. In: CAMPOS, Haroldo. Signantia: Quase Coelum. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 117-125.

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"CHAC MOOL": MEMÓRIA E DIÁ-LOGO NA OBRA DE CARLOS FUENTES

Bruno da Cruz Faber Oh memória, inimiga mortal do meu descanso! Miguel de Cervantes A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta! Fernando Pessoa

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o estudar o conto “Chac Mool” (1972)do escritor mexicano Carlos Fuentes, surgem diversas possibilidades de diálogo. No presente conto encontramos o relato de alguns eventos em vida contados a partir da morte do protagonista Filiberto. Em meio a esses eventos está o que podemos chamar de ressurreição do deus maia Chac Mool, que dá nome ao conto. A presentificação desse deus gera muitos conflitos, culminando em morte e o retorno ao início do conto, pois se trata de um conto cíclico. Optamos por começar pelo estudo do conto a partir da memória, segundo Walter Benjamin e Antonio Jardim, tema bem marcado neste conto. Esse aspecto da memória possibilita um extenso campo de abordagem, pois temos o conceito de memória coletiva, principalmente pré-colombiana, que até os dias de hoje influencia o México atual. Ao se investigar o conceito de memória, percebe-se que este se estende aos conceitos de verdade e realidade, identidade e unidade. No dicionário Aurélio online encontramos as seguintes acepções para o termo memória: s.f. faculdade de reter ideias, sensações, impressões adquiridas anteriormente. / Efeito da faculdade de lembrar; a própria lembrança. Ou seja, o aspecto temporal acaba por definir o conceito de memória. Esta noção de tempo que se tem hoje é caracterizada por ser linear, isto é, gradativo (da sucessão dos acontecimentos, um após o outro, relação de causa-efeito), e unidirecional, que é o movimento inequívoco do passado atravessando o presente em direção ao futuro. Pode-se, portanto, atentar ao fato de que este conceito de memória não abarca toda a sua complexidade, uma vez que tenta explicar um conceito “metafísico” 1 83

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(a memória) a partir de um conceito de invenção/convenção humana: o tempo linear/cronológico. Ademais, esquece-se que memória não é somente consciente, mas também inconsciente. E do inconsciente quem fala não somos nós, mas a memória enquanto linguagem (diá-logo). Nas reflexões sobre a memória, voltando-se ao pensamento grego, ela está associada à Mnemósine, que é a personificação da memória e a mãe das musas. Na mitologia grega, as musas surgiram por vontade de Zeus, para criar uma força/ entidade que iria “registrar a façanha [derrotar Cronos] na própria memória do tempo” (PESSANHA, apud JARDIM, 2005, 127). Aqui já encontramos uma diferença entre tempo e memória, em que esta passa a ser, no mínimo, a condição de possibilidade da constituição de um tempo que se confronta para além de tempo mais imediata. Ademais, podemos inferir que a memória é uma atualização do próprio ser. A memória, assim compreendida, passa a representar a possibilidade de estabelecimento da cultura, ela é, por excelência, um constituidor do mundo Existem diversas formas de se entender o tempo. O tempo cronológico é caracterizado por um início, meio e fim, uma vez que ele está comprometido com a duração material das coisas e da ordem sucessiva dos eventos, os limites seriam limites impostos pela duração. Um exemplo seria que o tempo cronológico de uma pessoa está pautado na sua duração de vida, ou dito de outra forma, ao morrer se cessa o tempo cronológico desta. Este aspecto é temporal, portanto, significa o transitório, o que passa no decurso do tempo (HEIDEGGER, 1979, 258). Outro conceito de temporalidade (que iremos mencionar somente para fazer uma relação posterior) é a eternidade, que não está relacionado com tempo (duratividade), pois ela não tem início, nem fim, e logicamente não tem um meio: a eternidade não dura, ela é. A memória, entretanto, não está relacionada com esses dois termos anteriores, pois a memória é transcendência do tempo material, entretanto ela tem um começo/início, portanto, a memória não pode relacionar-se nem com o tempo cronológico nem com o tempo eterno. Podemos assim inferir que a memória é um misto de duração material e eternidade. Esse tempo específico da memória se chama eviternidade (termo alcunhado do grego): “trata-se de uma duração que tem começo, tem sucessão, mas não tem fim” (KIRK & RAVEN, apud JARDIM, 2005, 135). O tempo eviterno se instaura nos interstícios,

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Metafísico aqui entendido como à parte de uma realização física, “além do físico/humano”.

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nos espaços, nos vãos deixados abertos da des-realidade do tempo material e da irrealidade da eternidade. Essa possibilidade da instauração de um sem-fim tem como condição a memória. Portanto, já não nos cabe dizer que o tempo sucede na ordem passado-presente-futuro, pois tanto futuro, passado, presente, subsistem simultaneamente (HEIDEGGER, 1979, 260). A memória poética, portanto, não é linear, um continuum¸ mas sim um permamente fundante, ou seja, funda o homem no mundo. Até agora refletimos sobre o conceito de memória e tempo. Entretanto, um outro conceito pode ser relacionado com ambos. Os gregos entendiam a verdade por meio da palavra “aletheia” (ἀλήθεια), cuja raiz do nome é “lete” (λήθε), que significa “esquecimento”. À esta raiz soma-se o “alfa privativo” (que existe até hoje no português, como em “moral” e “amoral”). Ou seja, a verdade é assim compreendida como o des-esquecimento / memória. A verdade, neste sentido, não é mais uma mera constatação das coisas materiais, mas sim um fruto desse processo fundante que é a memória. Neste perfil, se um mito está subscrito na cultura de um povo, ele faz parte da realidade pertencente àquele povo, àquela cultura. Torna-se necessário agora fazer uma distinção entre os conceitos de unidade e identidade. Esta se estabelece na mediação/comparação, ou seja, o ser se constitui pelo o que ele não é em relação a algo. Um exemplo que se pode dar é que se um homem tem como uma identidade a sua beleza é porque ele exclui-se da feiúra, isto é, ele é bonito por não ser feio. Quando se quer fazer uma identidade coletiva utiliza-se o parâmetro da semelhança. Um exemplo seria a da nacionalidade: se é brasileiro porque se nasce no Brasil e em relação aos demais povos não se é identificado. Além de se identificar como brasileiro, pode se identificar como carioca ou paulista ou gaúcho, a depender da relação que se faz com estes. A identidade, portanto, é a definição por meio da comparação excludente. Cabe ressaltar que a identidade está sempre relacionada com uma ideia abstrata (o que é beleza, feiúra, ser brasileiro, ser carioca ou paulista?). A unidade, por outro lado, significa no caso de duas ou mais coisas diferentes, nós passamos a ter uma unidade quando uma vez juntas essas unidades, se é incapaz de devolvê-las, por nenhum processo, a suas diferenças originais sem que com isso fique destruída a nova unidade composta por essas mesmas coisas. (JARDIM, 2005, 50).

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A memória, portanto, não é um recorte da realidade, ela é uma unidade dos invisíveis. A memória é o nexo do que é, do que já existe, ou ainda não existe. Ela é a realização do que é antes mesmo de existir. Do mesmo modo como ocorreu com a verdade, a memória passa a ser tomada como a razão do que foi, do que é, ou, em especial, do que será. Ou seja, a memória, em última instância, aciona a própria dinâmica da verdade quando entendida originalmente como des-velamento (des-esquecimento). O filósofo e ensaísta Emmanuel Carneiro Leão já havia atentado para esta perda nos dias de hoje da força dinamizadora que é a memória. No artigo O Esquecimento da Memória (LEÃO, 2003) há a denuncia de que a memória individual (fixa conteúdos perceptivos), a memória coletiva (experiência de participação) e a memória história (celebra a continuidade das transformações e as consagras para o futuro) são conceitos que se contentam com reter fatos, conservar dados e repetir padrões de combinação e derivação. Esquecem-se da memória criativa, que é articulada tanto pela memória do passado quanto da memória do futuro, que em conjunto propicia a gênese da participação do homem no mundo. Podemos então, a partir das considerações acima, chegar à conclusão que o tempo não é somente tripartição entre passado-presente-futuro, pois, partindo desta compreensão tripartida do tempo, este é entendido como o fluir da sucessão da sequência de “agoras” (HEIDEGGER, 1979, 266) – um tempo calculado/ cronológico. Entretanto, há um presentificar que une estas três dimensões, ou seja, presente, passado e futuro não são sucessivos, mas simultâneos. O que une, isto é, unifica (dá unidade) em presença e em ausência essas três dimensões é a memória, articulada pela dinâmica da memória do passado e da memória do futuro. Portanto, o tempo, assim concebido, é quadridimensional. Em que, verdadeiramente, a memória só é quarta dimensão quando se trata da enumeração aqui feita, pois está é a primeira, ou seja, o alcançar que a tudo determina (HEIDEGGER, 1979, 265) A partir de agora se fará considerações a respeito do diá-logo poético. A priori, todo ler é dialogar, pois envolve uma fala e uma escuta, isto é, um Eu e um Tu, e do escutar dessa fala nos vem o questionamento. Deste questionamento, de Tu (leitores - ouvinte) passamos a um Eu (falar/questionar), e a obra de arte de um Eu tona-se um Tu, e este diálogo nunca se esgota, pois na verdade / aletheia (ἀλήθεια), encontramos ao mesmo tempo o dese velamento, des e esquecimento. Percebe-se então que o viver é sempre um entre, isto é, uma travessia, pois es-

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tamos no entre vida e morte, entre esquecimento e memória, entre o que sou e o que eu não sou e o que ainda serei. Assim, o diálogo é uma conjuntura do entre. Este raciocínio é comprovável pela própria etimologia da palavra “diálogo” (dia-logos). A palavra logos em grego se forma do verbo legein, que apresenta três sentidos interligados e complementares: expor, reunir(dar unidade) e mundificar (constituidor do mundo). O logos, então, é o vigor do diá-logo como o entre de toda fala e escuta. O silêncio, o logos, a linguagem, é a mãe de todas as línguas. Dia- é um prefixogrego que congrega dois sentidos fundamentais: atravésde e entre. Se há um “entre” pressupõe-se que haja sempre dois, senão não haverá entre. A leitura como diálogo poético é assim compreendido como “entre duas reuniões”, isto é, o não-dito no dito. O diálogo poético (logos>legein > linguagem > diá-logo), assim como a memória é a realidade enquanto reunião (unidade) de sentido. A linguagem, assim como a memória, revela e funda o homem no mundo Passemos agora ao estudo do conto à luz dessas discussões sobre a memória. O conto começa a partir da morte de Filiberto, o protagonista. Entretanto, essa morte em princípio não é nada aterradora, não passa de um fato do nosso cotidiano, o narrador nem se preocupa em nos dizer quando morreu – “hace poco tiempo… sucedió en Semana Santa” (FUENTES, 2007, 09). O narrador se faz presente no texto quando este aparece para transportar o corpo do local do falecimento, Acapulco, até a casa do morto. Este narrador, que conforme se vê entendido adiante, é amigo do morto, e que ao revirar os pertences de Filiberto acaba encontrando uma passagem só de ida para Acapulco – “¿sólo de ida?” (Ibidem, p. 10) – o narrador questiona. Ademais, é encontrado um “cuaderno barato”, onde havia anotações do morto Filiberto. Neste momento encontramos a “memória” de dois integrantes do conto: a do atual narrador e a do Filiberto, presente no relato autobiográfico – o diário. SegundoBenjamin (2008), no seu estudo sobre Proust, a vida se constitui pelas lembranças, isto é, a vida lembrada. Ora, o diário é uma forma de representação da vida lembrada, pois só se escreve o que se lembra – como fragmentos da memória – não exatamente o que se viveu. E o narrador, no decorrer da história, irá questionar as “memórias” do diário a partir do seu conhecimento de mundo (ou seja, sua “memória”). Entretanto, cabe ressaltar que memória não só é o que se lembra, isto é, o consciente, mas também o inconsciente, como foi dito anteriormente. Tudo o que experenciamos nessa vida fica retido em nós, ainda que não percebamos.

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A partir do momento da descoberta do diário o atual narrador, o amigo de Filiberto, dará voz ao tal pertence de Filiberto. O protagonista, através do seu diário, nos conta que vai tomar um café e divaga um pouco – “desfilaron los años de las grandes ilusiones […]Sentí la angustia de no poder meter los dedos en el pasado […]” (FUENTES, 2007, 11-12). Neste momento surge na história, por um breve instante, Pepe, um amigo do protagonista, que elabora uma hipótese significativa “si yo no fuera mexicano, no adoraría a Cristo” (Ibid, p. 13). Ou seja, na concepção dele, Cristo e México tem laços profundos. Pepe ainda cita “Huitzilopochtli” (deus do sol na cultura asteca, a quem este povo oferecia o sangue dos guerreiros capturados em batalhas), como um deus do passado. Isto é, no México atual o deus é Cristo, e no México passado o deus era Huitzilopochtli. Aqui percebe-se a inferência de que a cultura ocidental europeia e americana, pelo viés da época da colonização, é fundamentada pelo conceito de identidade, isto é, sou adorador de Cristo, ainda que seja mexicano, pois vivo (identifico) no presente, sou presente por não ser passado (definição por meio da comparação excludente). Recordemos agora a divagação de Filiberto afirmandoque na memória dele desfilava um passado de ilusões. Pois vejamos, se o passado já era ilusório, como é que está o presente (se por ser mexicano adora a Cristo)? O que é passado e o que é presente? Há presente sem passado? Passado é igual a memória? Prossigamos com a história. Feliberto possuía um hobby, que consistia em “aflición, desde joven, por ciertas formas del arte indígena mexicano” (FUENTES, 2007, 13). E seu último desejo de aquisição era a compra de uma réplica do “Chac Mool”. Em um domingo, Filiberto o compra, “es una pieza preciosa, de tamaño natural” (Ibid, p. 14). O protagonista guarda a estátua do Chac Mool no porão, um lugar escuro, como o próprio Filiberto reconhece. E não poderia ser de outra forma, pois o nosso passado (figurativizado como Chac Mool) está jogado no fundo do porão, local este destinado às coisas velhas. A única coisa que lhe resta é pegar poeira e cada vez mais cair no esquecimento (BENJAMIN, 2008, 158). No dia seguinte, Filiberto se depara com um problema no encanamento, em que a água inunda a cozinha e vaza para o porão, provocando lama na base da estátua do Chac Mool. No mesmo dia, porém à noite, Filiberto acorda pensando ter ouvido um ruído, mas acredita ser sua imaginação. Entretanto, “los lamentos nocturnos han seguido” (FUENTES, 2007, 15) e a tubulação de água tornou a romper-se. E para “agravar” o quadro, começaram as chuvas, inundando ainda

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mais o porão. É a primeira vez, segundo declara o atual narrador, Filiberto, que o filtro não consegue conter a água da chuva que invade o porão. Por fim, o Chac Mool já estava todo coberto de lama. Após raspar o musgo da estátua, Filiberto percebeu que, apesar de não acreditar, o Chac Mool “era ya casi pasta” (Ibid, p. 16). Com o tempo, a estátua se endurece, porém não volta à consistência de pedra, é algo como “textura de la carne” (Ibid, p. 16). Filiberto declara: “siento que algo circula por esa figura recostada” (Ibid, p. 17). Cabe a essa altura do conto umas informações pertinentes sobre o deus maia Chac Mool. “Os Chacs ou Chaacs, deuses maias que simbolizam a chuva, recebem mais orações e oferendas, em um contexto pagão, que nenhum outro ser sobrenatural. […]Seu culto é muito antigo”. E ainda de acordo com THOMPSON (1987, 394), “Chacmol é representado por uma figura reclinada, de considerável tamanho, com os joelhos para cima, e em geral com uma placa no estômago, que se supõe que seja para oferendas”. Muito poderia se falar sobre esse deus, entretanto o foco desse estudo é a memória. O amigo de Filiberto volta a assumir a voz da narração somente para dizer-nos que a partir do dia 25 de agosto a letra de Filiberto havia mudado muito a tal ponto que “parecía escrita por otra persona” (FUENTES, 2007, 17). Quando voltamos a ler o diário de Filiberto percebemos o quão consternado ele se encontrava, fazendo reflexões a cerca da realidade. Ele comenta que algo por ser natural se passa por real. Filiberto declara: “mi realidad […] era movimiento reflejo, rutina, memória, cartapacio” e mais importante ainda Filiberto declara: “se presenta otra realidad que sabíamos que estaba allí, mostrenca, y que debe sacudirnos para hacerse viva e presente” (Ibid, p. 18). Na noite do dia anterior ocorreram “coisas inusitadas”: “(o Chac Mool) había cambiado de color en una noche”, “hay dos respiraciones en la noche”, “el cuarto olía a horror, a incienso y sangre” (Ibid, pp. 18-19). Quando Filiberto acende a luz do porão encontra o “Chac Mool, erguido, soriente” (Ibid, p. 19). Aqui temos o aparente embate (antagonismo): o passado ressurge no presente (passado versus presente). E começa a chover… O amigo de Filiberto retoma a narrativa ao dizer que se lembra de Filiberto ter sido despedido nessa época de final de agosto, que coincide com a do renascimento do deus maia “Chac Mool”. E inclusive salienta que havia rumores de loucura da parte do Filiberto. Ou seja, o atual narrador apresenta uma justificativa de que tudo que não é da ordem do real/realidade é loucura. Estamos condenados à eterna dicotomia: certo versus errado, real versus loucura, passado versus pre-

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sente. E para provocar e rechaçar essa dicotomia, Carlos Fuentes resolve fundir essas duas realidade no conto, ou melhor dito em meio aos questionamentos anteriores, Carlos Fuentes demonstra que não há esta dicotomia, o passado não anula o presente e nem vice-versa, o presente se funda no passado, o presente é presente por ser atualizado pela memória, pelo passado, somos hoje esta unidade que a memória construiu, e não tão somente uma mera identidade. Parte da memória do passado pré-colombiano do México ressurge nos dias atuais, o passado atualizando o presente, e no meio desse embate está o Filiberto. Voltando à narrativa do conto, Chac Mool e Filiberto, o “aparente passado” e o “aparente presente”, passam a morar juntos na mesma casa. Entretanto, as anotações dão um salto de quase um mês, pois Filiberto só voltou a escrever em final de setembro. Filiberto comenta a fúria do deus maia com o mercador que lhe vendeu, pois o havia untado com molho de keetchup para se passar por divindade asteca, enquanto em verdade ele era maia. Isto é, pegar o passado e molda-lo para ser útil ao presente, ainda que este passado forjado não seja verídico. Com o passar do tempo na narrativa, o “Chac Mool” passa a assumir controle total sobre a casa e sobre a vida de Filiberto. O deus maia passa a dormir na cama do protagonista e este a dormir na sala. Ademais, com a estiagem Filiberto tem que ficar molhando a casa, trabalhando para o deus. Filiberto confessa “soy su prisionero […] El Chac Mool está acostumbrado a que se le obedezca, desde siempre y para siempre; yo, que nunca he devido mandar, sólo puedo doblegarme ante él” (FUENTES, 2007, 21). Isto é, o passado ao “pseudo-ressurgir” no presente passa a controlá-lo, pois o presente (Filiberto) nunca dominou o passado, mas o passado (Chac Mool) domina e determina/atualiza o presente. Entretanto, ao desenrolar da narrativa, o “Chac Mool” passa a se interessar por coisas do presente ao ponto de obrigar, por exemplo, que Filiberto o ensine a usar sabão e loções. E algo curioso o protagonista nota nesse processo de modernização do passado: “hay algo viejo en su cara que parecía eterna” (Ibid, p. 23). O passado/a memória, é grandioso por não ser cronológico, isto nos leva a reflexão que o passado não pode se construir nem se modificar no presente, pois assim se desfigura da memória, ou seja, a Mnemosyne, a deusa da reminiscência (BENJAMIN, 2008, 211). Cansado dessa situação de serventia e cárcere com o Chac Mool, Filiberto decide partir de casa quando o deus maia faz uns passeios noturnos atrás de animais para saciar a sua fome. E ainda deixa escrito no diário um desafio ao deus: 90

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“a ver cuanto dura sin mis baldes de água” (FUENTES, 2007, 24). E neste ponto a narrativa se torna cíclica, pois retoma exatamente os acontecimentos do início do conto. E neste ponto termina o diário de Filiberto, e consequentemente, o amigo do protagonista volta a narrar. E perante tal história tão inacreditável, o amigo de Filiberto confessa: “pretendi dar coherencia al escrito” (Ibidem, p. 24). Entretanto, por mais razões que buscasse, como excesso de trabalho ou algum motivo psicológico, ele não consegue encontrar razões para explicar. Cabe ressaltar aqui o que foi dito inicialmente sobre a memória, sobre definir o “metafísico” através de uma convenção – tempo cronológico. O mesmo ocorre aqui: o amigo de Filiberto nunca conseguiria encontrar razões (explicações humanas) para o que ele leu, pois está muito mais além da mera compreensão racional do homem. A narrativa prossegue com a chegada do cadáver e do amigo de Filiberto à casa do mesmo. Antes que o amigo colocasse a chave na fechadura, a porta se abre e “apareció un índio amarillo” (FUENTES, 2007, 24). O atual narrador tenta explicar a situação, entretanto o “índio” corta a sua fala e declara “No importa, lo sé todo. Dígale a los hombres que lleven el cadáver al sótano” (Ibid, p. 24). E assim termina o conto, com um tom de dúvida no ar. Quem é o “índio” e como ele sabia de antemão a morte do Filiberto? Mas vejamos que ironia há nesse final, pois se antes era a estátua do “Chac Mool” que estava no porão, agora quem vai estar lá é o cadáver do próprio Filiberto, destinado a cair no esquecimento. Ao fim e ao cabo, o passado não foi morto na narrativa, ou melhor, sugere que ainda que “despercebido” ele está entre nós, é a nossa reminiscência e por mais que queiramos “deixa-lo para trás”, ele se faz presente no dia-a-dia, pois é este que nos atualiza, nos funda/dá raízes no mundo. Realizando uma síntese sobre como Carlos Fuentes recupera ao longo do conto a memória coletiva pré-colombiana do México, encontramos como primeiro referencial a conversa de Pepe com Filiberto e a alusão ao Huitzilopochtli. Depois quando o próprio Filiberto confessa sobre o seu hobby de colecionar peças de arte indígena do México. A terceira recuperação ocorre pelo ressurgimento do Chac Mool através da estátua comprada por Filiberto. Entretanto, o processo de “encarnação” é lento em que Carlos Fuentes permite que o leitor vá descobrindo pouco a pouco, através dos diversos sinais presentes no conto, como o problema no encanamento, as fortes chuvas, a inundação do porão; além de sinais mais incisivos como os gemidos noturnos que Filiberto ouvia. Outro sinal dessa “encarnação” é quando a letra de Filiberto muda drasticamente a partir do dia 25 de

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agosto. Outra referência a essa memória coletiva se dá quando cita-se o nome de Tláloc, o deus da chuva asteca. O retorno do deus maia Chac Mool surge aqui como forma de vingança paulatina e surpreendente. Carlos Fuentes introduz um ato ficcional no meio da narrativa que até aquele momento estava no âmbito no normal/cotidiano. A ideia do retorno permite a Carlos Fuentes resgatar a mitologia indígena do passado e situa-la no mundo contemporâneo. E quando isso se estabelece na narrativa, o protagonista Filiberto começa a refletir sobre e toda a vida parece revelar-se plena de sentido: “mi realidad lo era al grado de haberse borrado hoy” (FUENTES, 2007, 18). A verdadeira recuperação do passado e da história (neste conto referente ao México) ocorre quando ela transcende do papel (o relato autobiográfico de Filiberto) e passa a formar parte do que somos hoje, do que nos define e do que nos caracteriza (no caso do conto, o “tornar a ser mexicano”), ou seja, a nossa unicidade. O que resta é escolher, como Filiberto fez, é se a verdade pertence ao plano do “real” ou ao plano do ficcional, da imaginação.

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REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter.Obras Escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 2008 CASTRO, Manuel Antônio de. A leitura como diálogo poético. Rio de Janeiro (não publicado). FUENTES, Carlos. “Chac Mool”. In:______. Cuentos Sobrenaturales. Buenos Aires: Alfaguara, 2007. HEIDEGGER, Martin. “Tempo e Ser”. In: ______. Conferências e escritos filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979. JARDIM, Antonio.Música: Vigência do Pensar Poético. Rio de Janeiro:7Letras, 2005. LEÃO, Emmanuel Carneiro. “O Esquecimento da Memória”. In: Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 153: 143-147, abr.-jun, 2003.

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EUCLIDES DA CUNHA, PRÉ-MODERNO. DE QUE MODERNIDADE?

Célio Diniz CEFET/RJ É um homem, o moderno, a quem falta a segurança que lhe davam os mitos antigos. Gilberto Freyre

O

tema “modernidade” tem sido estudado por diversos teóricos dos mais variados campos do conhecimento e, certamente, trata-se de um assunto complexo e que envolve discordâncias tanto no que tange a sua delimitação temporal quanto a questões relativas ao seu próprio sentido. Parafraseando o antropólogo francês, Bruno Latour, a modernidade terá tantos conceitos quantos forem os que a ela se dedicarem. Nesta perspectiva, a modernidade é “… uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade.” (BERMANN, 1986, p.15). Diante disto, se tomarmos como marco do início da modernidade o século XVIII, por exemplo, mais especificamente o Iluminismo, destacaríamos a primazia da razão como fundamento para as ciências (em contraponto ao pensamento mítico e teológico) e, concomitantemente, a assunção de uma aura de poder pelo discurso científico, que passa por sua legitimação como verdade absoluta, influenciando a restruturação das sociedades ocidentais a partir de uma ideia de progresso civilizatório linear. Como disse Art Berman, […] midseventeeth century, modernity is founded on the assertion that the present inaugurates an unprecedented era: not simply a continuation or modification of the past, but an incomparable age. A new form of human self- consciousness is to interveue in history, not only as a mode of awarness, but as a mode of power. Human rationality will predominate… (BERMAN, 1994, p.3).

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Ora, levando-se em conta que nenhum movimento, pensamento, estilo ou período histórico é homogêneo em todos os lugares em que aconteça, a modernidade também apresenta, como uma de suas características fundamentais, a heterogeneidade. De fato, o moderno não é caracterizado unicamente por sua novidade, mas por sua heterogeneidade. Tradição heterogênea ou do heterogêneo, a modernidade está condenada à pluralidade: a antiga tradição era sempre a mesma, a modernidade é sempre diferente. (PAZ, 1984, p.18).

Portanto, há de se delimitar, a princípio, aquilo a que se propõe este ensaio: uma investigação sobre o sentido de modernidade presente em Euclides da Cunha. Por conseguinte, trata-se de objetivar aquela modernidade como se mostra na passagem do século XIX para o XX, no Brasil, que também se alimentou de mitos e mostrou faces de um horror inalienável, que surge da percepção de que as tecnologias, não raro, servem a interesses políticos-econômicos, e a razão também pode produzir a barbárie. No diário de expedição de Euclides, à guisa de exemplificação, podemos ler uma descrição expressiva do canhão Krupp 32, utilizado para bombardear o arraial de Canudos, em 1897: Como um animal fantástico e monstruoso, o canhão Trupp, a matadeira, assoma sobre o reparo resistente, voltada para Belo Monte, a boca truculenta e flamívora - ali - sobre a cidade sagrada, sobre as igrejas, prestes a rugir golfando as granadas formidáveis – silenciosa agora, isolada e imóvel – brilhante o dorso luzidio e escuro, onde os raios do sol caem, refletem, dispersam-se em cintilações ofuscantes. (CUNHA, 2006, p.52).

Ou ainda, quando o narrador descreve, sinopticamente, em 1° de outubro de 1897, um bombardeio sobre o vilarejo de Belo Monte, um dia antes da rendição dos conselheiristas: A artilharia fez estragos incalculáveis nas pequenas casas, repletas todas. Penetrando pelos tetos e pelas paredes as granadas explodiam nos quartos minúsculos despedaçando homens, mulheres e crianças sobre as quais descia, às vezes, o pesado teto de argila, pesadamente, como a laje de um túmulo, completando o estrago. (CUNHA, 2006, p.107). 95

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Complexidade, pluralidade e barbárie são, portanto, termos bem presentes quanto inalijáveis quando se pensa a modernidade. Simplesmente, os ideais revolucionários franceses do final do século XVIII - igualdade, liberdade e fraternidade - bem como a crença iluminista de que a razão científica higienizaria o mundo contra as mazelas sociais e extirparia de uma vez por todas as heranças mítico-religiosas dos séculos anteriores, não se deram a contento. Dentre os problemas sérios que se vivenciaram na modernidade, destaque-se que “a guerra, ou, mais precisamente, a luta armada, é assim o maior instrumento de desorganização social que existe.” (ROSA, 1966, p.207). Neste sentido, Euclides da Cunha não foi apenas um daqueles autores fundamentais para a formação de nossa intelligentsia, bem como para o entendimento de nossa história e cultura brasileiras. Em realidade, foi alguém que, no déclanchement do pensamento positivista no Brasil, se viu diante de um drama, durante sua expedição a Canudos, i.e., a desumanização sofrida pelos sertanejos conselheiristas e a incapacidade da República nascente, alicerçada nos fundamentos do Positivismo, propositalmente homogeneizador, de lidar com o plural. Em outras palavras, e lembrando Maurice Merleau-Ponty, o discurso científico é uma visão de sobrevoo, que concebe o ser como “ser em geral”. Em Os Sertões, ademais, verifica-se como um discurso com pretenções objetivistas engendra os dois primeiros capítulos (A Terra e o Homem), mas que reumaniza a figura do sertanejo na assunção de sua dramaticidade, catarsiada no vigor da obra artística, na terceira parte. E se a visão positivista de Euclides preconcebia aqueles homens, seguidores de Antônio Conselheiro, como “sub-raças sertanejas do Brasil” (CUNHA, 2002, p.9) ou como “povoação maldita” (CUNHA, 2006, p.39) e sonhava com o dia em que “A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável 'força motriz da História' que Gumplowics, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes.” (CUNHA, 2002, p.9), também reconheceu a investida da República sobre Canudos como algo que “… foi, na significação literal da palavra, um crime.” (idem, ibidem) Ou seja, a defesa de um ideário positivista e republicano choca-se, em Euclides, com a percepção do horror e do caótico. Sobretudo, se “[…] o subdesenvolvimento é um agente obstinado da desumanização” (PORTELLA, 1986, p.69), cumpriria, então, a literatura euclidiana um papel de reumanização, pari passu ao de denunciar uma de nossas catástrofes sociais? De qualquer modo, Euclides apostava em teorias recentes como a da antropogeografia, para a qual o ambiente influi diretamente na formação do indivíduo.

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão Além disto, as condições mesológicas nas quais devemos acreditar, excluídos os exageros de Montesquieu e Buckle, firmando um nexo inegável entre o temperamento moral dos homens e as condições físicas ambientes, deviam formar, profundamente obscura e bárbara, uma alma que num outro meio talvez vibrasse no lirismo. (CUNHA, 2006, p.64).

Ora, se Euclides é um intelectual que absorve o pensamento positivista, acreditando que este poderia lançar as bases para a reconstrução de uma sociedade moderna, livre dos vícios e mitos ultrapassados, como se lê numa página de seu diário de expedição, referente ao dia 15 de agosto de 1897, em que criticava aquilo que considerava como sendo: “ … os restos de uma sociedade velha de retardatários, tendo como capital a cidade de taipa dos jagunços.” (CUNHA, 2006, p.44), por outro lado, reconheceu, num episódio em que assistiu a uma menina, conselheirista, de apenas nove anos, declarando ter atirado com determinada arma naquele episódio bélico, que a experiência de Canudos tratava-se de um resultado de séculos de barbárie a que povos oprimidos estiveram relegados em nossa história. Aquela criança era, certo, um aleijão estupendo. Mas um ensinamento. Repontava, bandido feito, à tona da luta, tendo sobre os ombros pequeninos um legado formidável de erros. Nove anos de vida em que se adensavam três séculos de barbárie. (CUNHA, 2002, p.310).

Outrossim, em Os Sertões, verifica-se a mescla de um discurso positivista com aquele outro, metafórico, de bases conotativas, que engendra a literariedade da obra, aproveitando um termo dos formalistas russos, e que coloca o texto de Euclides da Cunha num lugar de indifinição, entre o histórico e o literário. Em certo sentido, “ … o próprio discurso literário não é a criação de uma linguagem nova, mas de uma nova ordem.” (SODRÉ, 1973, p.16). Formalmente, a linguagem científica apresenta-se, basicamente, nos dois primeiros capítulos de Os Sertões (A Terra e O Homem), e que perde seu pretensioso distanciamento objetivista para um transbordamento de um vigor que dramatiza a própria linguagem na terceira parte da obra (A Luta). Como já afirmei num outro ensaio, intitulado “Tecnologias da Linguagem: dialética e catarse em Os Sertões”, não há, portanto, como falar na obra euclidiana sem falar em drama, o que nos remete à ideia de uma tensão dialética entre o novo e o antigo, entrea tentativa de se engendrar uma modernidade

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construída de cima para baixo e uma pluralidade de vozes que não se fez calar, entre a ordem racional e o caos, entre o discurso científico e a linguagem poética. E se o Positivismo demonstrava uma postura iconoclastra em relação ao que chamava de ultrapassado nas sociedades de então - mitologia, religião e, em certo sentido, a filosofia - também criou seus mitos próprios, discursos que se pretendem verdades absolutas e que se exprimem como a pretensão de dar conta da realidade, explicando seus meandros, causalidades e tentando controlar seus efeitos. Como disse Gilberto Freyre: Pois não se pense do homem que facilmente pode viver sem os mitos; nem que os mitos facilmente se deixam extinguir pela racionalização da vida através da tecnologia: esperam quase sempre o momento de ressurgir sob novos aspectos. (FREYRE, 1987, p.49).

No campo, político, por exemplo, destaque-se que o Positivismo condenava a monarquia em nome do progresso, discussão que, aliás, inflamava os partidários da República desde o final do governo de D. Pedro II. Mas, a rigor, se a forma de governo mudava, não é menos verdade que permaneceriam as bases oligárquicas no campo econômico, e o quadro de injustiça social, no cotidiano brasileiro. Ora, basta pensar que na década de 20, por exemplo, […] metade dos trabalhadores tinha menos de 18 anos de idade e 8% tinham menos de 14 anos. O salário médio, de 4.000 réis, dava para comprar um cesta composta de meio quilo de arroz, de açúcar, de café, de macarrão e de banha. As fábricas eram mal iluminadas, mal ventiladas e várias não tinham instalações sanitárias. (Revista Exame, ed. 824, ano 38, n° 16, de 18 de agosto de 2004).

A CLT, ad esempli gratia, só foi promulgada em 10 de maio de 1943. De qualquer forma, a transformação política que implantou a República, de acordo com Sílvio Romero e Alberto Sales, sob determinado ângulo, fundava-se na percepção política da “… ausência entre os brasileiros do espírito de iniciativa, da consciência coletiva, a excessiva dependência do Estado…” (CARVALHO, 2004, p.30). Por isto mesmo, o que se desejou por modernidade, mais do que consequencia dos avanços tecnológicos da época, implantou-se como uma nova ordem imposta, numa relação em que o discurso científico era quem ditaria as regras a partir de então. 98

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E mesmo com a Reforma de Benjamin Constant, que estabelecia a liberdade, a laicidade e a gratuidade da escola primária, além de introduzir disciplinas científicas no currículo - e lembrando que já não havia também escravidão legitimada no país, o que permitia, ainda que de maneira muito insuficiente, que descendentes de ex-escravos frequentassem a escola -, estima-se que menos de 20% da população brasileira era alfabetizada. No campo literário, é interessante aduzir que a questão da concomitância entre linguagem científica, tecnológica, e a literária não se deu como exclusão pura ou complementação, mas sim como um encontro que traduz um conflito dialético diante do plural, do “inconcebível” e do horror. Certo está que “a concepção orgânico-naturalista da história, identificando a história a um organismo vivo, que nasce, cresce e morre, induziu os críticos e historiadores a adotarem essa mesma atitude diante da literatura. É positivista; rege-se pela lei biológica.” (PORTELLA, 1986, p.26). Em Euclides da Cunha, por sua vez, o discurso positivista, enquanto metanarrativa, mesclou-se com o discurso literário, que abre espaço para o sentido inaugural, produzindo-se como indefinição. Como pensava Heidegger, o logos confunde-se com o ser. Literário e histórico misturam-se numa trama que é própria da tessitura da obra Os Sertões, a trama da linguagem, assim como a própria biodiversidade do sertão. O drama da linguagem euclidiana emerge de uma poética que tateia no desconhecido que, por sua natureza de indifinibilidade analítica, produz o espanto. O ideal choca-se com o mundo fenomênico, concreto, plural, heterogêneo, caótico e que, numa perspectiva pós-estruturalista, nos remete ao reconhecimento de que “nada hay más vacilante, más empirico que la instauración de un orden de las cosas.” (FOUCAULT, 1991, p.5). A modernidade, assim, bambeia, ab initio, sobre seus próprios pilares, se levarmos em consideração os ideais iluministas, i.e., em nome de propostas “higienizadoras”, na procura pela construção de uma modernidade (ideal), não se deixava espaço para o diálogo nem se contemplavam as questões sociais, na medida em que, a exemplo de Canudos, preferiu-se “combater” a população composta, em sua maioria, por analfabetos e carentes de toda espécie, em vez de procurar sanar as causas daquela miséria a que Euclides assistiu e que sua obra, Os Sertões, afigura. A crença básica era a de que a extirpação do mal tornava-se tão urgente quanto necessária quando o que importava era o progresso. A modernidade inaugura-se, ademais, como conflito. A ciência, com sua nova visão de mundo, sonhava, então, com um status ideal nas relações que eliminaria, 99

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passo a passo, tudo que se colocasse como obstáculo à concepção de progresso da época. A 7 de agosto de 1897, Euclides escrevia: “Em breve pisaremos o solo onde a República vai dar com segurança o último embate aos que a perturbam.” (CUNHA, 2006, p.32). Ora, “O significado histórico específico da introdução de novas tecnologias é a criação de novas relações espaço-tempo.” (SALGADO, 1993, p.60). No entanto, parafraseando Habermas, nenhuma sociedade vive sem suas tradições, lente pela qual vê o mundo, subjetivando-o em sua linguagem e modus vivendi. É interessante, neste ponto, citar Roberto DaMatta, antropólogo que destaca a necessidade de se questionar a linearidade tradicional, essencializada em lógica e tida como natural, segundo a qual, o progresso inevitavelmente ordena; a razão produz controle e a união entre progresso e racionalidade acabaria com a dor do mundo. Fé difícil de abraçar hoje em dia, quando não são religiões ou ideologias anticapitalistas, mas um óbvio desastre ecológico que mostra como a ideia de progresso sem limites tem legalizado a destruição do planeta. (O Estado de São Paulo, 10 de junho de 2009, Caderno 2, p.16).

A verdade é que a crítica ao pensamento cientificista já despontava em Nietzsche, para quem o homem moderno acreditava “[…] na utilidade absoluta do conhecimento, sobretudo na união mais íntima entre a moral, a ciência e a felicidade[…]” (NIETZSCHE, 2006, p.67) e que a ciência seria “[…] uma coisa desinteressada, inofensiva, que se bastava a si própria e inteiramente inocente, na qual os maus instintos do homem não participavam de forma alguma[…]” (Ibidem). No fundo, “Uma vez subvertidas por interesses político-econômicos, a ciência e a técnica muitas vezes deixam de cumprir sua verdadeira tarefa.” (MORAIS, 1997, p.43). Talvez, o problema seja confundir modernidade com os discursos científicos e os avanços tecnológicos, esquecendo-se da fomentação da eticidade na práxis social. Se, por um lado, “… desde princípios do século passado (XIX) se fala da modernidade como de uma tradição e se pensa que a ruptura é a forma privilegiada da mudança.” (PAZ, 1984, p.18), por outro, não há como negar as formas simbólicas de violência, conceito bastante discutido por Pierre Bordieu, no quadro de injustiça social, bem como aquela deflagrada e “legalizada” pela guerra. Quanto a Euclides, o que diríamos finalmente, senão que “Quando o autor revela um mundo através da obra, é o mundo que se revela, pátria de toda verdade.” (DUFRENNE, 1998, p.56). 100

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REFERÊNCIAS

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ANÁLISE COMPARATIVA DAS OBRAS LA VOLUNTAD (1902) E TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA (1915): ESTUDO DO ANTI-HEROÍSMO E MELANCOLIA DOS PROTAGONISTAS

Cristina Bongestab UEPB

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tema central do nosso trabalho é o estudo do anti-heroísmo, que gera a melancolia de Antonio Azorín, personagem do romance La voluntad (1902), de José Martínez Ruiz1 (1902), e de Policarpo Quaresma, de Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), de Lima Barreto. Para realizarmos nossa análise, tomaremos como referência Don Quijote de La Mancha(1605-1615), obra considerada como primeiro autêntico romance universal, na qual Cervantes inaugura o anti-herói na literatura, ou seja, Dom Quixote representa o herói que já não é mais uma figura exemplar, mas sim aquele que tem o fracasso como destino. Tomamos o anti-herói de Cervantes como modelo, para mostrarmos que os protagonistas Antonio Azorín e Policarpo Quaresma também podem ser considerados como anti-heróis, pois os dois têm o fracasso como destino e acabam sofrendo de melancolia por não conseguirem realizar os planos traçados. Ao escrever Don Quijote de La Mancha (1605-1615), Cervantes rompe com o clássico herói épico, que sempre esperava um progresso de suas aventuras e que, no desenrolar delas, vai ganhando terreno em diversos planos (SAER, 2009). Diferentemente desse herói épico, Dom Quixote é um “herói problemático”, termo cunhado por George Luckács, que afirma estar Dom Quixote enquadrado num idealismo abstrato, caracterizado pela atividade do herói e por sua consciência demasiado estreita em relação à complexidade do mundo (GOLDMANN, 1976).

O autor José Martínez Ruiz assina o romance La voluntad (1902) com o pseudônimo de Antonio Azorín. Optamos por manter o seu pseudônimo nas referências das citações para evitar confusão, já que o nome do protagonista também é Antonio Azorín. Optamos também por manter o pseudônimo nas referências bibliográficas.

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Ítalo Calvino, em Por que ler os clássicos (1993), esclarece que Dom Quixote é o primeiro herói problemático da historia da literatura, por ter construído seu mundo através do universo dos livros e das leituras. “Dom Quixote será alguém que construiu a si mesmo e a seu próprio mundo exclusivamente por meio dos livros (CALVINO, 1993, p.63). Dessa forma, como afirma Juan José Saer em A moral do fracasso de Dom Quixote (2009), Cervantes liquidou a epopéia e abriu espaço aos personagens problemáticos de Dostoievski a Faulkner e Chandler. Segundo Saer (2009), essa moral do fracasso constitui o golpe de misericórdia que Cervantes desfecha nos valores da epopéia, delegando definitivamente assim o gênero ao passado: Aquilo que Adorno chama ‘ingenuidade épica’, ou seja, a irrefletida consciência com que o herói da epopéia se lança ao mar dos acontecimentos para realizar um determinado objetivo, perde toda vigência a partir do ‘Quixote’, em que não apenas os objetivos do Cavaleiro Andante são vagos ou irrealizáveis mas também os acontecimentos são de condição incerta, pois tem o herói um sentido diferente em relação aos demais personagens, ao autor e aos leitores (por exemplo, os moinhos de vento são gigantes somente para D. Quixote e continuam sendo vulgares moinhos para todos os outros. (SAER, 2009, p. 1).

O herói épico se desgastou com o tempo, dando lugar ao herói problemático, surgido a partir de Dom Quixote, de Cervantes. Segundo Batista de Lima, A narrativa (2009), Dom Quixote passou a apresentar a figura heróica do que não foi, do sedentário, daquele que ficou fora da guerra entre as nações, mas travou a grande guerra entre as pessoas, no cotidiano, entre os “eus” que cada um transporta e comporta a histórica guerra do homem diante das suas contradições, diante das suas indecisões. Sabe-se que a influência de Dom Quijote de la Mancha na narrativa mundial é grande, e que a “moral do fracasso de Dom Quixote” está presente em muitas obras da narrativa de uma maneira geral. Então, tomando Miguel de Cervantes como precursor do novo herói e de um novo tipo de personagem, examinaremos o personagem Antonio Azorín, do espanhol José Ruiz Martínez, autor da trilogia

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La voluntad (1902), Antonio Azorín (1903) e Confesiones de umpequeño filósofo (1904), obras em que o personagem Azorín2 se encontra como protagonista, e analisaremos também “Policarpo Quaresma”, de Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), do autor brasileiro Lima Barreto. La voluntad (1902), romance do espanhol José Martínez Ruiz, pode ser classificado como revolucionário em matéria estrutural, de conteúdo, de renovação de linguagem e na incorporação de rasgos autobiográficos. Trata-se de um romance impressionista no qual Martínez Ruiz expressa o pessimismo dos homens da geração de 98. Lírico e introspectivo, La voluntad (1902) é um romance em que o autor apresenta o tema da melancolia não somente através dos personagens, mas também através dos ambientes em que se encontram. Visto que o autor Martínez Ruiz mantinha uma postura anarquista, nos propomos a mostrar como esse anarquismo se reflete no personagem Azorín. O Modernismo como movimento literário se caracteriza pela expansão individual, a liberdade e o anarquismo na arte. Portanto, pode-se dizer que a anarquia da época do romance de Martínez Ruiz é mais literária que política. O mais importante para o artista anarquista era libertar-se de qualquer cânon, distinguindo-se assim da geração que o precedia. Assim como Dom Quixote, Azorín cria a si próprio e a seu ambiente, dando forma ao romance, diferenciando-se dos romances naturalistas em que o autor coloca o personagem dentro de um ambiente eleito por ele. No romance moderno, o escritor expressa o emotivo, o interior, e o que está em torno do personagem é equivalente ao estado de ânimo dele. Também, como Dom Quixote, Azorín é aficionado por leitura, e entre suas obras preferidas encontram-se livros de dois autores considerados melancólicos: Schopenhauer e Montaigne. A título de e xemplificar, o livro O mundo como vontade e como representação (1818) é a principal obra de Shopenhauer. Pessimista, o filósofo escreve: “[…] viver é um negócio que não cobre oscustos do investimento” (SHOPENHAUER, apud BARBOZA, 2003, p. 8). A filosofia schopenhauriana, segundo Barboza (2003), constitui-se numa exposição da condição finita do homem, isto é, da sua condição de ser transitório, que

A partir daqui, para simplificar, utilizaremos somente o segundo nome do personagem de La voluntad (1902). 2

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vai morrer. Daí então a morte ser a musa inspiradora da filosofia. Schopenhauer, assim como o protagonista de La voluntad (1902), era um homem solitário, característica dos melancólicos: “Em junho de 1833, já com 45 anos, fixa-se em Frankfurt, cidade onde passará o resto da vida. Ai vive como uma espécie de ‘cavaleiro solitário’ (alcunha de Nietzche), […]” (Ibidem, p.19). Já, Montaigne, define a morte como “um remédio para todos os males”. Ele lembra o dito de Platão, que diz que entre os melancólicos encontram-se grandes talentos, e que a loucura, que existe em germe dentro de cada um, coincidiria eventualmente com as manifestações vigorosas, ainda que estranhas, do psiquismo humano. “Manifestações que podem surgir dentro de uma torre de livros” (SCLIAR, 2003, p. 88). O templo da melancolia intelectual é a biblioteca. Explorar o mundo dos livros não é a mesma coisa que explorar o mundo real, como fizeram os cientistas e descobridores do Renascimento. Os livros levaram Dom Quixote à loucura, ao absurdo que é, diria Kafka depois, trocar a vida por palavras. O mundo natural é generoso, oferece seus frutos à mais maníaca demanda; o livro é limitado, é um universo codificado, que convida, mas como a Esfinge, desafia: ‘Decifra-me ou te devoro’. A Natureza é a Mãe, o livro é o Pai: o Antigo Testamento gira em torno da palavra do severo e intimidante Jeová. A linguagem falada, natural, é o domínio da espontaneidade, da liberdade; a linguagem escrita, artificial (no sentido de artifício, produzido por engenho ou a arte) de alguma maneira aprisiona a expressão (BENJAMIM, apud SCLIAR, 2003, p. 89).

Retomando o anarquismo literário de Martínez Ruiz, pode-se dizer que através dele Ruiz se preocupa em pintar certos tipos que representam fielmente a preocupação ou a angústia daqueles afetados pela situação político institucional do país. Ruiz representa esse tipo de desilusão através da trajetória de Azorín, que é pautada na melancolia do personagem. Cristián H. Ricci, em La voluntad: una novela estilísticamente anarquista (2001) menciona quea vida na sociedade capitalista é quase sempre representada como uma distorção (uma petrificação ou paralisia) da essência humana. Pode-se dizer que o estado de ânimo de Azorín se conjuga com essa petrificação. Devemos ter 106

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em conta que esse estado de ânimo distorcido é conseqüencia da estrutura fragmentária do romance. Por outro lado, Ricci (2001) nos lembra que na literatura modernista a desintegração do mundo do homem e a conseqüente desintegração da sua personalidade coincidem com a intenção ideológica do autor: a anarquia. É importante esclarecer, na nossa análise, que La voluntad (1902) é um romance moderno, e, portanto, inicia uma evolução com a eliminação do argumento, para seguir com a eliminação do herói. Não se produz mais uma fluência de acontecimentos, e sim um fluxo de idéias e associações; em vez de um herói individual, uma corrente de consciência e um monólogo interior. A partir do romance moderno se dará importância à falta de interrupção do movimento e à continuidade heterogênea de um mundo desintegrado. Como afirma Antonio Ramos Gascón,na introdução de La voluntad (1996), na primeira parte do romance existe a ausência da voz do protagonista. A presença de Azorín se circunscreve à recepção dos discursos de Yuste, ou ao mero registro dos avisos de Lasalde e Puche. Azorín somente escuta as idéias que vêm do exterior e não esboça nenhuma intenção de responder a elas. As idéias de Schopenhauer, Renan, Montaigne ou Tomás Moro são expostas pelos outros personagens e Azorín não se manifesta. O que acontece em La voluntad (1902) é a falta de protagonista nos primeiros capítulos. Isso quer dizer que Martínez Ruiz rompe com aquele perfil do personagem individualizado do naturalismo, dando lugar assim ao discurso. Na segunda parte da obra, Azorín sairá da vida provinciana da cidade de Yecla para viver em Madrid. onde passará dez anos atuando como jornalista revolucionário. A vontade de Azorín acabará por se desagregar e seu pessimismo intuitivo terminará por alcançar a consolidação. Inicialmente, quando chega a Madrid, mostra uma rebeldia que se transforma em resignação, mas suas aspirações em transformar o meio social e moral se tornarão um profundo desengano. Sozinho em Madrid, torna-se cada vez mais pessimista e melancólico e reflete sobre a falta de fé, de glória, de progreso. “Yosiento que me falta la fe; no la tengo tampoco la gloria literaria ni en elprogreso […]”(AZORÍN, 1996, p. 193). Angustiado, pensa na dor de viver: “Podrán llegar loshombres al más alto grado de bienestar, ser todos buenos, ser todos inteligentes…, pero noserán felices: porque el tiempo, que se lleva la juventud y la belleza, trae a nosotros laañoranza melancólica por las pasadas agradables sensaciones.” (Ibidem, p. 193). Triste, pensa que as recordações são sempre fontes de tristeza, amargura: “Yo de mí sé decir 107

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que nada hay que tanto me contriste como volver a un lugar – una casa, un paisaje – quefrecuentéen mi adolescencia […](Ibidem, 1996, p. 193). Melancolicamente, pensa na dança da morte: “Y pienso en una inmensa danza de la Muerte,frenética ciega, que juega con nosotros y nos lleva a la Nada… los hombres mueren, lascosasmueren” (Ibidem, p. 193). A terceira parte da obra nos mostra fragmentos soltos sobre Azorín, em que ele mostra, com rápidos traços, a intimidade de seu estado de consciência. Azorín volta a viver em Yecla, mas parece que aí cresce seu desconcerto e suas desorientações, e estas perplexidades e desconsolos se tornam mais graves. Gascón (1996) esclare que essa característica de Azorín poderia representar toda uma geração sem vontade, sem energia, uma geração indecisa e irresoluta. Ao voltar para Yecla, Azorín vai morar no mosteiro de Santa Ana, onde contempla a rotina dos frades. Depois de muita reflexão, perde o interesse pelos livros e passa a ter profundo tédio por sua função de escritor, demonstrando uma profunda melancolia. Decide-se, por fim, casar-se com Iluminada, depois do golpe das mortes de Justina, por quem era apaixonado e de Yuste, seu mestre. Aqui mostramos as reflexões de Azorín sobre sua falta de vontade, seu pessimismo e melancolia: ‘Qué importa! –piensa Azorín-; después de todo, si yo tengo voluntad, esta voluntad me llevaría a remolque,me haría con ello el inmenso servicio de vivir la mitad de mi vida, es decir de ayudarme avivir […]”(Ibidem, 1996, p.152). Azorín diz que há pessoas destinadas a viver a metade, a terceira parte da vida e há outras destinadas a viver duas, quatro, oito vidas. De acordo com as reflexões de Azorín, as pessoas que vivem mais tomam parte da vida das que vivem menos: “Yo soy uno de éstos;vivo media vida, y es problable que sea Iluminada quien vive una ymedia, es decir una suya y media que corresponde a mí.” (Ibidem, p. 153). Depois de casado, a esposa Iluminada, cujo nome carrega uma força e uma vitalidade que se contrapõem à falta de vontade e à melancolía de Azorín, parece de fato viver a vida dela e a outra metade da vida do marido. Azorín deixa-se dominar por Iluminada, que toma conta dos negócios da família, e passa a viver em função das vontades da esposa, entregando-se totalmente ao marasmo, pois deixa de dedicar-se às leituras e ao trabalho de escritor, o que acarreta e intensifica o seu estado melancólico. O caminho final de Azorín é um caminho até a aniquilação, depois do acúmulo de decepções e fracassos. Sua opção ideológica nos mostra um caminho sem saída. La voluntad (1902) parece representar o reflexo convulso de toda uma 108

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crise do pensamento europeu, e que hoje é entendida como um dos sintomas da modernidade. A melancolia brasileira é uma herança, em grande parte, do romantismo europeu, explica Scliar (2003). Porém, já não se trata mais da melancolia seca que retratou Dürer. Sobre a melancolia do século XVIII, a que se refere Scliar (2003), baseado em Anne Buffalt Vincent História das lágrimas (1988), diz-se que é uma melancolia lacrimosa: “No século XVIII a leitura provoca doces efusões. Aprecia-se chorar: mulheres na privacidade de seus aposentos elegantes, homens em seus gabinetes de trabalho, mas as lágrimas também são derramadas no momento de leituras feitas em comum (VINCENT, apud SCLIAR, 2003, p. 212). A tristeza é um tema recorrente na poesia, música e literatura brasileira. Triste fim de Policarpo Quaresma(1915), cujo título já denuncia tratar-se de uma história triste, apresenta também uma epígrafe retirada de uma obra de um pensador francês Ernest Renan (1823 – 92), que revela tratar-se de um texto de cunho melancólico e amargurado: “O grande inconveniente da vida real e o que a torna insuportável ao homem superior é que, se aplicados os princípios do ideal, as qualidades tornam-se defeitos, tanto que muitas vezes o homem íntegro consegue menos do que aquele que usa do egoísmo e da rotina vulgar” (BARRETO, apud SCLIAR, 2003, p. 221). Policarpo Quaresma, protagonista de Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), é um funcionário Arsenal de Guerra, que é chamado de major. Trata-se de um personagem que possui atitudes extremamente metódicas. Era tido como um homem respeitoso pelos vizinhos do bairro São Cristóvão, onde vivia. Sempre estudioso da pátria, Quaresma depois de 30 anos de meditação sobre sua pátria se torna nacionalista obcecado. E convencido de que o destino do Brasil era transformar-se na primeira potencia mundial, Quaresma se envolve em três grandes projetos: um cultural, um agrícola e um político. Porém, não tem êxito em nenhum deles. Esses fracassos desencadeiam a tristeza que intensifica a melancolia de Policarpo. Assim como Dom Quixote e como Azorín, o protagonista de Barreto também é aficionado por leitura e na primeira parte do livro Policarpo se encontra estudando sobre as riquezas naturais, a história, a geografia, a literatura e a política do Brasil. Com a intenção de resgatar as manifestações culturais verdadeiramente brasileiras, Quaresma compra um violão e passa a ter aulas com Ricardo Coração dos Outros. Ricardo era um compositor de modinhas que, para Quaresma, 109

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representavam a genuína alma nacional. A partir do momento em que o major compra o instrumento e começa a estudar com Ricardo, sua reputação cai diante dos moradores do seu bairro. Policarpo se entristece com a reação dos vizinhos e novamente seu estado melancólico se intensifica. Disposto, portanto, a seguir com a reforma do país, Quaresma envia um requerimento ao Congresso Nacional sugerindo que o tupi fosse adotado como língua oficial do Brasil. As conseqüências de sua atitude não tardam a surgir. Quaresma passa a ser objetivo de comentários jocosos na rua, e na própria repartição em que trabalhava. Outra vez melancólico, se entristece com a incompreensão das pessoas e com o fracasso do seu projeto. Obcecado pela idéia da adoção do tupi como língua nacional, Policarpo, distraído, escreve um documento de rotina na língua indígena, ato que custa-lhe a expulsão do Arsenal de Guerra, onde trabalhava, e a sátira da imprensa. Recolhido ao um manicômio, mantém suas concepções nacionalistas, mas agora de uma maneira mais branda. Permanece recluso por seis meses. Seu desejo vivo de preservar as tradições e os costumes sossega e dá lugar à vontade de fazer uma reforma na agricultura do país. A segunda parte da trajetória de Quaresma corresponde ao projeto agrícola. Policarpo sai do subúrbio do Rio de Janeiro e passa a viver em um sítio chamado Sossego. Com a meticulosidade e exatidão que a ele eram peculiares, planeja a vida rural avaliando as vantagens e desvantagens. Mas o que o mantém é a idéia de provar, mais uma vez, a superioridade do Brasil. Decidido a transformar o sítio em modelo de produtividade, o major compra vários aparelhos meteorológicos para ajudar nos trabalhos da lavoura. Seu empregado Anastácio assiste a tudo com assombro. Mas, apesar do todo empenho, seu esforço se revela inútil. Uma praga dizima a plantação e a criação de animais, e a comercialização do pouco que consegue colher rende-lhe um lucro muito pequeno. A tristeza por causa de mais um fracasso, novamente, faz que a melancolia de Policarpo se intensifique. Enquanto Policarpo está envolvido com seu projeto agrícola, estoura a Revolta da Armada contra o governo de Marechal Floriano. Policarpo já frustrado com a vocação agrícola do país, e sendo um defensor árduo do “Marechal de Ferro”, envia ao presidente um memorial em que expõe suas idéias de salvação nacional. Aí começa o seu terceiro projeto, o político. O major entende que deve atuar junto aos centros de decisão política. Então engaja-se na luta contra os rebeldes amotinados para defender a ordem republicana. 110

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Com o passar do tempo, porém, a visão do Marechal de Ferro vai desfazendo-se diante de Quaresma e dá lugar à figura de um ditador apático e desinteressado pelas coisas do país. E Quaresma, sem qualquer noção de prática de guerra, vai à frente da batalha, mas é punido por ser muito complacente com seus soldados. É chamado de visionário pelo Marechal. Denuncia as arbitrariedades ocorridas aos prisioneiros da revolta. Mas, considerado traidor, Quaresma acaba sendo preso. A Revolta termina e Quaresma se encontra preso pela mesma causa que ajudou a defender. Mais uma vez tem seu projeto frustrado. Agora se encontra muito decepcionado e muito amargurado e se põe a questionar sobre a causa a que se dedicou toda a vida. “Desde dezoito anos que o tal patriotismo lhe absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inutilidades” (BARRETO, 1999, p. 226). Moacyr Scliar, em Saturno nos trópicos: A melancolia européia chega ao Brasil (2003), chama a evolução do personagem Policarpo de cíclica. Quaresma apresenta ciclos de entusiasmo que se alternam com outros, de tristeza, de desânimo, e por fim de melancolia. A princípio, Policarpo enche-se de entusiasmo e julga-se capaz de salvar o Brasil através dos seus projetos. Porém, ao ver-se sem forças para continuar, melancólico, pensa no tempo que perdeu, deixando sua vida para trás para dedicar-se à pátria. Considerações finais Partimos do modelo de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha (1605-1615) para analisar as obras La voluntad (1902)e Triste fim de Policarpo Quaresma (1915). Através da obra que inaugura o romance moderno, estudamos o aparecimento do herói “problemático”. Enquanto o herói épico tinha progresso nas suas aventuras, Dom Quixote construía seu mundo através dos livros e das leituras, sendo por isso considerado como o primeiro herói problemático da história da literatura. A partir da análise de Dom Quixote, verficamos que Azorín, por possuir uma postura anarquista, também representa uma espécie de herói problemático. E assim como Dom Quixote, ele cria seu próprio mundo através da leitura, diferenciando-se assim dos heróis dos romances naturalistas. Da mesma forma, Policarpo Quaresma representa a idéia de um herói problemático, pois o mesmo também constrói seu mundo através de suas leituras, e tem todos os seus projetos fracassados: desde a tentativa de reforma da língua portuguesa para o tupi-guaraní, passando pela decepção com a agricultura no Brasil, e finaliza com a derrota

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no campo político, quando não consegue colocar suas idéias em prática para a salvação do Brasil. Tomando Cervantes como parâmetro, no sentido de que ele possuía um espírito crítico sobre a sociedade da sua época, verificamos que a obra de Ruiz faz uma sátira da sociedade espanhola e do sistema político. A tristeza do personagem Azorín funciona como um reflexo da decadência sócio-político da Espanha. A obra de Barreto também cumpre esse papel de fazer crítica à sociedade da época. Depois dos fracassos, Policarpo sente-se descrente de tudo, caindo na melancolia. Através dessa “linha melancólica”, termo cunhado por Moacyr Scliar, Lima Barreto faz uma sátira da situação social e política do Brasil, mostrando a modernidade que emerge de uma forma distorcida.

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MODERNIDADE OU MODERNIDADES LATINOAMERICANAS?

Diana Araujo Pereira UNILA

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presente trabalho procura estabelecer umdiálogo entre dois pensadoresfundamentais da modernidade latino-americana – o poeta mexicano Octavio Paz e o sociólogo peruano Aníbal Quijano – e dois artistas plásticos contemporâneos – o colombiano Nadín Ospina (1960) e o brasileiro Nelson Leirner (1932). Ambos os artistas, assim como o poetaperuano Antonio Cisneros (1942), através de suasobras, tocam o cerne da questão a quenos propomos: há, na América Latinacontemporânea, uma única modernidade? É possível pensarem seus processos histórico-sociais ouestéticosmaisatuaissob as mesmas luzes da modernidade (ou da pós-modernidade) vigente nosEstados Unidos ou na Europa? A intenção é procurar nestes três âmbitos da reflexão crítica: o ensaio, as artesplásticas e a poesia, elementos que nos ajudem a entre ver caminhos alternativospara uma racionalidade euro-norteamericana que, de fato, não dá conta dos nossos processos e idiosincrasias constitutivas e próprias, apesar do desejo de certaelite “criolla e oligárquica”, neoliberal e conservadora, cujos tentáculos espalham-se portodo o continente. É inevitável constatarmos, antes de seguir adiante, que a América Latina é fruto de uma trama de vozes e imagen súnica, e que os fios entretecidos nesta configuração formam nós, questões, enfim, preocupações identitárias que percorrem nossas reflexões sociais, históricas e artísticas. O percurso da modernidade ocidental, desde os seusprelúdios, é a história da eleição da crítica e da racionalidade como caminho sinteligíveis para a subjetividade humana, e para a sua versão pública e social. A crítica é a mola-mestra da modernidade, segundo Octavio Paz, sua base motriz, seu paradigma conceitual. Neste sentido, ela configura o modus operandi da modernidade, entendidacomométodo de pesquisa, criação e ação. Nesta mesma sintonia, veremos as concepções de Aníbal Quijano, emumtextoseminal, certamente lido e meditado pelo Octavio Paz de La otra voz. Poesía 114

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y fin de siglo (1990), e peloantropólogo argentino Néstor García CancliniemseuConsumidores y Ciudadanos (1995). Refiro-me ao texto “Modernidad, Identidad y Utopía en América Latina”1, incluído em uma excelente coletânea publicada por CLACSO (Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales), de Buenos Aires, em 1988, e cujotítulo é bastante significativo: Imágenes desconocidas. La modernidad en la encrucijada postmoderna. Se há umponto de convergência entre os atuais pensadores (inclusive no livro citado), ele diz respeito à necessidade de criarmos uma nova cartografia espaço-temporal, um novo locus a partir do qual pensar a identidade cultural latino-americana, cuja especificidade passa a ser, sobretudo, de ordem temporal; e cuja ação é a inclusão, a capacidade de gerar “atos sincréticos”. No entanto, pode parecer estranho voltarmos a pensar na modernidade, em uma época na qual os debates críticos acontecem em torno de outra nomenclatura (a pós-modernidade ou o neo-barroco); cabe elucidar, então, que acreditamos com Octavio Pazque todos estes termos, inclusive a própria modernidade, sãoigualmente abertos, abstratos e excessivamente imprecisos. Hoje vivemos uminterlúdio, um trânsito para outra época, que pouco a pouco vai esclarecendo seustermos e condições. De qualquer maneira, somos um produto desta modernidade que vem sendo gerada e instaurada ao longo dos últimos séculos, e pensar as suas possíveis consequências certamente nos ajuda a aprofunda rnossa reflexãosobre a contemporaneidade, chame-se ounão de pós-modernidade. Pensar a modernidade passa a ser, portanto, procurar perspectivas históricas quenos aclarem o caminho neste momento de encruzilhada. Em outras palavras, devemos enfrentar a modernidade com todas as suasquestões, a partir de outroreferente, o nosso; a partir da nossa específica situação histórica e social, comtodos os elementos que nos pertencem e condicionam culturalmente. Cabe-nos, ainda, umoutro esclarecimento, agora em torno do próprio termo América Latina, tão controverso, defendido ou rechaçado segundo interesses diferentes: O conceito de América Latina (que durante o século XIX era um equivalente de América Hispânica), a partir do século XX se amplia para a inclusão do Brasil, além de outras áreas como o Caribe francês. Neste trabalho pensamos a América Latina como sinônimo de Iberoamérica, termo recentemente desenvolviPosteriormente este texto foi ampliado e publicado sob o mesmo título na Coleção 4 Suyos, da editora equatoriana El Conejo, em 1990. 1

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do para dar conta apenas do bloco Hispânico e do Brasil. Apesar de reconhecer que o termo histórico-geográfico mais conveniente seria este último, ou seja, Ibero américa, prefiro continuar utilizando América Latina, pela concentração de significados que este termo vem ganhando ao longo do tempo, e pelacargasemântica e ideológica que lhe vem sendo associada desde Pedro Henríquez Ureña. Como esclarece o pensador Octavio Ianni (1993, 11-12), “é claro que há muitas diversidades. […] Mas também há semelhanças, convergências e ressonâncias. Daí emerge a idéia de América Latina, comohistória e imaginação.” Assim, ela é aqui reconhecida como “uma construção múltipla, plural, móvel e variável”, como afirma Eduardo Coutinho (2003, 42). Certamente, mover-se neste bloco geográfico e cultural não é tão simples nemtãoclaro, po risso coincidimos com a reflexão de Octavio Paz (1975, 153) sobre a necessidade de priorizar as reflexõessobre a nossa efetiva existência – ou independência – cultural, como algo mais importante que a mera necessidade de rotulá-la: “A América Latina: é uma ou várias ou nenhuma? Talvez não seja nada além de uma etique taque, mais que nomear, oculta uma realidade em ebulição – algo que ainda não tem nome próprio porque tampouco conquistou existência própria.”2 A modernidade e seusinícios É difícil e controverso determinar quando começa a modernidade. Paravárioscríticos e historiadores, a inclusão da América no mapa mundial, no século XV,associado ao Renascimento, estabeleceria a mudança epistemológica e de paradigmas determinantes para o início da Era Moderna. Aquinos interessa o fato de que, desde os primeiros momentos da conquista e colonização, importantessubstratos americanos foram incorporados ao imaginário europeu, possibilitando, por exemplo, a Utopia (1516) de Thomas More. As notícias que chegavam pelas cartas e pelos viajantes, e que encontravam profunda repercussão no imaginário deste momento (veja-se, por exemplo, a participação da realidade comunal andina), conferem alento para a formulação de um novo eixo para o exausto imaginário europeu. Se a descoberta da América por um lado foi uma necessidade histórica, geográfica e política do século XV, poroutro foi também uma necessidade do homem e do 2

Todas as citações foram traduzidas do espanhol para o português pela autora.

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imaginário europeus, que começavam a entrar na modernidade através do Renascimento. (Posteriormente, esta “América” inventada pelo olhar europeu será questionada era pensada pelos próprios latino-americanos, pois a sobrevivência deste imaginário na construção ontológica e identitária da América Latina é inegável). A “revolução” que significou a descoberta da América para a históriaocidental foimuitobem explicada pelo historiador mexicano Edmundo O’Gorman (1992, 184-185): […] a partir do momento em que se aceitou que o orbis terrarumera capaz de ultrapassar seus antigo slimite sinsulares, a arcaica noção do mundo como circunscrito a uma sóparcela do universo, bondosamente destinada por Deus ao homem, perdeu suarazão de ser e se abriu, em troca, à possibilidade de que o homem compreendesse que no seu mundo cabia toda a realidade universal de que fosse capaz de se apoderar, para transformá-la emcasa e habitação própria; que o mundo, consequentemente, não era algodado e feito, mal algoque o homem conquista e faz, que lhe pertence, portanto, a título de proprietário e amo.

Segundo Quijano (1988, 18), a grande mudança de paradigma – cuja base está nos descobrimentos – ocorre na “imagem social do tempo”: o passado é sobrepujado pelo futuro, e este passa a ser a sede das expectativas da humanidade. É, de fato, o despertar de “uma nova consciência histórica” (QUIJANO, 1988, 18): “A produção das utopias européias, desde o começo do século XVI, dá conta de que o labirinto vai ficando paratrás e a que a história começa a ser projetada, que pode ter, que pode ser carregada de futuro, isto é, de sentido.” Octavio Paz, por suavez, concorda que a mudança no eixo tem poralque direcionava os olhares e a esperança da Europa, transladando-os do passado para o futuro, foi fundamental para a deflagração da Era Moderna. Afirma Paz (1990, 34) queela “inicia-se com a crítica da Eternidade cristã e com a aparição de outro tempo. […] A perfeição se translada ao futuro, masnão no outromundo, neste.” A modernidade é, de fato, uma nova concepção da intersubjetividade humanaque, liberada do peso teocêntrico, ganhou a inusitada possibilidade de comando e construção, ou seja, de total intervençãosobre o orbis terrarum, agora definitivamente a cargo da técnica e da imaginação do homem. Nossa modernidade davaseusprimeirospassos. Aníbal Quijano defende a tese de que os novos e libertários conceitos e ideaisque estavam sendo criados pela intelectualidade européia encontram em solo 117

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americano uma profunda repercussão, já que também aqui sofríamos o peso do despotismo e do obscurantismo que governavam a vida pública das colônias, principalmente no que se refere ao século XVIII. Segundoesteautor, o que existe é uma “co-presença da América Latina na produção da modernidade”, e nãoapenasnosseusmomentos fundacionais, mas sobre tudo durante o seu período de consolidação, os séculos XVIII e começo do XIX (QUIJANO, 1988, 18): A primigênia modernidade constitui, na verdade, […] uma associação entrerazão e libertação. […] Emambos os lados do Atlântico formam-se, ao mesmo tempo, as tendências de pensamento e as agrupações intelectuais que […] se organizam paratais propósitos. Esses círculos intelectuais e políticos formulam as mesmas questões, trabalham emprojetos equivalentes, publicam e discutem materiais comuns. É istoque encontrará Humboldt em sua passagem pela América, sem poder ocultar a sua surpresa. Os frutos da Ilustração foram saboreados ao mesmo tempo na Europa e na América Latina.

No entanto, a colonização do “NovoMundo” é um paradoxo contido no próprio conceito de modernidade; e o tão elogiado pelas elites “criollas” processo de modernização torna-se, paralelamente, uma imposição, a única condição possível de existência geográfica e histórica. Mas a modernidade, como conceito e ideal libertário da razão e da crítica, não pode ser confundido com os rumosque tomou nas mãos nos mandatários políticos de ambos os lados do Atlântico. Esta é a “metamorfose” da modernidade na América Latina, como chama Aníbal Quijano a este processo de mutação, cuja distância entre a ideia inicial e a sua efetiva concretização histórica toma a forma de uma bismo inexpugnável. Tornamo-nos, enfim, passivos receptores (quasevítimas) de uma modernidade em cuja elaboração formal e conceitual participamos ativamente. No final do século XVIII, aquele abismojá se formulava nosse guintes termos: a Europa entrava na era do capitalismo industrial (incrementado pelas consequências do mercantilismo), e a América Latina sofria com a estagnação econômica (também devido às consequências de signo contrário do mesmo mercantilismo); a Europa começava as mudanças sociais necessárias ao capitalismo, e a América Latina via-se em um estranho retorno às condições sociais do feudalismo.

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Definitivamente, a modernidade na Europa vai sendo pouco a pouco integrada em novas relações subjetivas e sociais cotidianas, enquanto que na América Latina aquela mesma modernidade torna-se cada vez mais subjetiva, impossibilitada de ingressar na materialidade do dia a dia. Quijano (1988, 19) chega a afirmar que “os intelectuais, alguns, poderão pensar com a máxima modernidade, enquanto a sociedade torna-se cada vez menos moderna, menos…racional.” Quandolhe foi conveniente, a Europa (principalmente sob a hegemonia inglesa) instrumentalizou aquela mesma razão, antes defendida como ferramenta liberadora do pensamento e da ação humanas. A ambiguidade inerente ao recém inaugurado império da razão, como uma fonte de “verdade” e medida para toda e qualquer condição humana, começava a mostrar as suas garras à medida que passava a ser, paulatinamente, instrumento de poder e de dominação neo-colonial. A questão fulcral é que a modernidade, neste processo, acaba completamente identificada com a razão instrumentalizada pelo poder. E aqui caberia perguntar-se, então, pela natureza dessa razão ocidental, européia (atualmente euro-norte americana), que vem dominando a cena mundial desde os inícios da modernidade. A racionalidade européia construiu-se sobre as suas relações de poder com o resto do mundo, e nesse sentido, a formação dos ideais da racionalidade é paralela à reconfiguração geo-política do mundo a partir dos primeiros colonialismos do século XVI. Já na sua base, a modernidade dependia da razão e da crítica, e ambas das relações de poder eme scala cada vez mais global. Estequadronão sofrerá grandes mudanças até as primeiras décadas do século XX, sob o fluxo da rupturavanguardistaquechega da Europa. (Nãonos esqueçamos que a avalanchecríticaque invade todos os âmbitos do imaginárioeuropeu é fruto de uma profundacrise daquela mesmaracionalidadeque, depois da primeiraguerra mundial, jánão poderá maisnortear os rumos do pensamento e da arte). O desembarque das variadas e instigantes vertentes vanguardistas no “NovoMundo” gera frutos próprios no sololatino-americano, e possibilita que a ideia de modernidade vigente seja amplamente debatiba e antropofagicamente reassimilada. O que fazem os vanguardistas e seus herdeiros contemporâneos é voltar a encantar o mundo, parafugir dos estritos limites do racionalismo instrumentalizado pelo poder econômico e político, em busca de uma racionalidade que seja, finalmente, uma cosmovisão mais totalizante e inclusiva, e que abarque o homem e suas relações com a natureza e o mundo. 119

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Como afirmei emoutrolugar (PEREIRA, 2008): Com as vanguardas latino-americanas a modernidade é questionada, é vistacomo a possibilidade de rupturacom o status quo e, paradoxalmente, de configuração de uma continuidade cultural interrompida pela conquista ibérica. Um projeto europeuque se afanava por instaurar vazio sera a oportunidade perfeita, a fratura em uma ordem colonial já por demais estabelecida e confirmada pelas diversas (e sempre muito parecidas) oligarquias nacionais, herdeiras daquela sociedade aristocrática proveniente dos processos de conquista e colonização. Daí que os intelectuais da época tomem esta oportunidade de formatão apaixonada, e o projeto vanguardista tenha um fundo tão estético quanto social, sem que nenhum dos dois termos signifique uma contradição irreconciliável. E procurando unir, definitivamente, arte e vida.

As artes tornam-se, portanto, um meio importante para tais reflexões que, em última instância, visam libertar a América Latina de seus condicionamentos históricos, paraque ela possa “reconstruir-se”, dando seus primeiros passo sem busca de caminhos mais próprios de inserção mundial ou de modernização. Imagem e memória: Antonio Cisneros, Nadín Ospina e Nelson Leirner O poeta Antonio Cisneros une-se facilmente aos dois artistas Nadín Ospina e Nelson Leirner por vários motivos, e um deles é o fato de que sua obra poética é altamente plástica. Cisneros constrói imagens em forma de verso, trabalha com a linguagem no limite de sua autonomia, possibilitando às palavras uma materialidade que confere total independência às construções da linguagem. A imagem, em sua poesia, não explica nem interpreta, apenas aproxima o leitor de uma visão plasticamente elaborada. De fato, Cisneros afirmou, em alguma entrevista, que queria ter sido pintorantes que poeta. Há em sua obra plasticidade e ênfase em recursos tanto imagísticos quanto formais. Enfim, suas imagens configuram-se como mosaicos de palavras que sonham dar uma maior materialidade à escrita.

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Nadín Ospina e Nelson Leirner trabalham, principalmente, comcomposições objetuais. São artistas que seguindo a vereda conceitual abertapor Duchamp (da primazia da ideia na obra de arte) procuram descobrir na cotidianidade dos objetos, vozes dissonantes e provocações para a problematização de questões estéticasou histórico-sociais. Em outras palavras, retiram os objetos do seu uso funcional e cotidiano, para ampliar a sua potência simbólica ou alegórica; o quenão está muito distante do que fazem os poetas com as palavras. E ambos se relacionam com Cisneros através do diálogocom a memória pelavia do humor e da ironia, e pela capacidade de circular por outras temporalidades. Estestrês artistas-poetas (e aqui retomo o sentido etimológico, originário do vocábulo poiesisque significa “ação”; portanto poeta é aqueleque “age” sobresi e sobre o mundo, através da ação sobre a linguagem, seja elaqual for) digerem antropofagicamente a realidade que os circunda, absorvendo seus elementosmais cotidianos, da mesma formaque absorvem a subjetivadade que alimenta o imaginário coletivo e os símbolos que remetem à memória histórica. Seu olhar funciona como tentáculos que captam e reelaboram o mundo visível tomando elementos da sua contraparte “invisível”, subjetiva, imaginária, escatológica ougrotesca. Comisso ampliam as possibilidades expressivas da linguagemcom a qual trabalham, criando novas associações semânticas (não isentas, em muitos casos, de uma forte carga ideológica), e permitindo à realidade mostrar as suas dobras, criando para esta mesma realidade, através de suas ferramentas formais, todo um dinamismo que desdobra e redobra seus sentidos. Imersão na realidade cotidiana e nos diversos e complementares fragmentos temporais que configuram a tramasocial e histórica latino-americana, e que estabelecem nossos limites identitários. Como afirma um crítico de Nelson Leirner, mas que bem poderia servir para comentar, igualmente, o resultado final da obra de Ospina e de Cisneros, trata-se de uma “confrontação e experimentação ético-estéticas” (MONTEJO N., 2003, 46). Confrontação ou enfrentamento temporal e imaginário; experimentação de formas e linguagens, e de sentidos e ideologias; enfim, todo um trabalho de base éstética que se confunde com a visão ética que procuram estabelecer sobre a realidade: relação de mãodupla, na qual o criador é influenciado pelo contexto coletivo ao mesmo tempo que também exerce uma influência sobre ele, através da sua arte e da abertura queela provoca. Trabalho artístico e trabalho crítico, que se submerge na memória e no imaginário coletivos para depois imergir no cotidiano, renovando-o através da ironia. 121

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Esta é, aliás, a ferramenta que lhes permite uma reelaboração que foge da solenidade, e que procura escapar do seu dramatismo inerente pela via humorística. A mesma ironia que se dirige parafora, para as suas reflexões sobre o mundo, dirige-se também para dentro, instaurando a auto-crítica que lhes leva a questionar o seu lugar como artistas neste mundo sobre o qual refletem: Qual o papel da arte, que alcance ela tem, efetivamente, para instaurar mudanças sociais ou históricas? Qual a função ética do artista? Qual é a importância da originalidade da obra artística, já que eles trabalham com elementos pré-existentes, muitas vezes apenas remanejados, recriados? Estas são questões com a qual todo artista contemporâneo, em maior ou menor grau, tem que lidar, mas que no caso de Cisneros, Leirner e Ospina, torna-se um eixo fundamental, já que não é possível pensar o lugar da arte e o papel do artista no mundo, sem enfrentar o risco éticoinerente a tais questões. Vejamos, para começar, um poema de Antonio Cisneros bastante emblemático de tudo o que foi dito anteriormente. Trata-se de “ArtePoética 1”: 1 Um porco infla seus pulmões sob um grande limoeiro mete seu focinho na Realidade come uma bola de Cocô arrota pluacc um prêmio 2 Um porco infla seus pulmões sob um grande limoeiro mete seu focinho na Realidade –que é mutável – come uma bola de Cocô – dialeticamente é um Cocô novo– arrota –outra instrumentação – pluacc outro prêmio 3 Um porco etc.

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A mescla de léxicos tão diferentes, como o escatológico (Cocô, arrota, pluacc) e o filosófico (Realidade, dialeticamente, instrumentação), presentes nesta primeira “Arte Poética”, esclarecem o tomirônico e irreverente da composição. O intencional uso das maiúsculas também é muito significativo, já que projetam ainda mais a ironia e igualam os representantes destes dois níveis conceituais tão diferentes entre si, mas submetidos a um estranho e obrigatório diálogo imposto pela palavra poética e, por outro lado, pela realidade. A estranheza talvez aumente ao interpretarmos que a figura do porcoé o próprio poeta. E como se trata de uma artepoética, pode-se deduzir que é o poeta quem mete seu focinho na Realidade, e através de sua digestão produz um prêmio – o poema.Como observei em outro texto (PEREIRA, 2004). Antonio Cisneros chega ao limite de uma irreverência grotesca e, ao desmontar a figura clássica do poeta – este poeta descrito por movimentos anteriores como sendo capaz de transmutar e transcender a Realidade –, põe em xeque um pilar fundamental da escritura contemporânea na América Latina: opapelsocial e ontológico do poeta. Mas, por outro lado, confirma sua ação no plano da realidade tanto literária e filosófica quanto humana, já que não chega a destruir a imagem do poeta transmutador da realidade, pois ao tentar ridicularizála, a inverte e, em um sentido oposto, a reafirma. O poeta é um porco que se alimenta de uma Realidade escatológica e, mesmo assim, produz seus prêmios. Se a realidade mudou, o escritor também tem que mudar sua relação com ela. A ironia é direcionada para a Realidade e para os diferentes e diversos discursos que se fazem sobreela. O poeta é, claramente, sua vítima e ao mesmo tempo o inquisidor de tantos discursos.

O poeta-porco do poema de Cisneros guarda profunda relaçãocom o poeta-portavoz da parte submersa da realidade dos primeiros românticos anglo-saxões. Octavio Paz também vê na modernidade uma profunda relaçãocom o romantismo. Mais do que uma descendência, uma continuidade que se manifestaria pela presença de dois elementos paradigmáticos do romantismo, e que continuam absolutamente vigentes na contemporaneidade, embora tomados muitas vezes em signo contrário: a analogia e a ironia.

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Paz (1990, 35) define a analogiacomo “a visão do universo como um sistema de correspondências e a visão da linguagem como um duplo do universo”. Ou seja, a visão analógica do mundo estabelece que todas as coisas se correspondem e interagem. Sobre a ironia, contrapondo-a a esse sentido da analogia, afirma que “é a dissonânciaque rompe o concerto das correspondências e o transforma e malgaravia. […] A ironia tem vários nomes: é a exceção, o irregular, o bizarrocomo dizia Baudelaire e, em uma palavra, é o grande acidente: a morte.” (PAZ, 1990, 36). Ainda segundo Octavio Paz, é esta relaçãoambígua, contraditória, mas complementar entre a analogia e a ironia, que gera a grande revolução da arte e do pensamento que foi o romantismo anglo-saxão. Na contemporaneidade, a ironia e a analogia continuam o seu diálogo de séculos, mas agora estestermos não são mais tomados como antitéticos, já não formam uma contradição ou dicotomia. A partir das Vanguardas, eles foram aproximados e enlaçados por uma visão do mundo e da arte mais integradora, mais totalizante, capaz de colocarem diálogo os extremos mais aparentemente irreconciliáveis. Leirner, Cisneros e Ospina mostram que a analogiasó é possível se ela for baseada na ironia. A nova analogiafomenta, nestes artistas e em muitos outros, todo um modo de ver, um olhar que desconstrói as anteriores e já obsoletas tentativas de analogias estabelecedoras de simetrias lineares. As vanguardas e a antropofagia derrubaram, definitivamente, aquela visão dicotômicaque opunha irremediavelmente termos hoje entendidos como complementares: passado-presente; vida-morte; razão-magia, porexemplo. E é justamente a ironia quem conjura o malefício dos anteriores parâmetros, tão estabelecidos e endurecidos. A ironia derruba os tijolos da casa para então podermos reerguê-la, mudando e alterando a sua estruturainterna, transformando-a em um espaço mais conveniente e confortável. Essa casa é a América Latina, o corpo-continente que precisamos reerguer sob novas condiçõ eséticas e culturais. A analogia romântica mostrava, como dizia Paz, as semelhanças entre o “isto” e o “aquilo”. Agora, trata-se de mostrar as desemelhanças e as dissonâncias entre os termos da realidade, já claramente vista como algo complexo e nadamaniqueísta. Vivemos, portanto, uma mudança profunda e irremediável de parâmetros: já não buscamos a identidade no semelhante, mas em uma nova possibilidade de harmonia conflitiva (e me permito o oxímoro), entre as diferenças. 124

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Até mesmo a ironia sofreu uma mudança de perspectiva. Se antes ela era associada ao grande acidente, enfim, à morte, hoje a ironia nos fala de vida, de construção, de superação de limites; ela continua sendo o grande acidente, masque transforma, que cria, que reinaugura. E a cumplicidade que ela requer entre o leitorou o espectador da obra de arte e o seu criador ajuda neste projeto de construção participativa e dialógica de uma nova ética e de uma novaestética. Em oposição ao tempo cíclico da cosmovisão indígena e ao tempo sucessivo do pensamento ocidental, a nossa versão latino-americana da modernidade instaura um tempo-mosaico, um tempo emcamadas, onde nenhuma de suas manifestações se opõem ou rivalizam, mas ao contrário, se justapõem e acontecem de forma simultânea. Estamos aprendendo a lidar, na arte e na vida, com esta temporalidade fragmentada pelas incurssões estrangeiras e suas influências desde a época da conquista. Tempo não linear, ubíquo e relativo; tempo, enfim, da terceiramargem do rio, aquela quenos constitui e que determina o nosso ir e vircotidiano e artístico pelas esferas do passado, do presente e do futuro. Nelson Leiner, por exemplo, usa os mapas, a cartografia, para remeter-nos às primeiras inclusões da América Latina no mapa mundi, ao mesmo tem poque se serve deste suporte para questionar nossa localização no cenário geo-político atual. Seus mapas funcionam como pontes que ligam o passado e o presente, permitindo uma circulação de perspectivas e movimentando a memória. Por outrolado, o artista reconhe e denuncia a estreita relação que a modernidade mantém com o poder, seja ele econômico – mapas configurados com dólares – ou simbólico e imaginário – mapas configurados com ícones da indústria cultural norte-americana.

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Essa re-colocação do olhar, essa relativização histórica é a mesma trabalhada por Nadín Ospina através das suas estatuetas pré-hispânicas, que igualmente religam o passado ao presente, ao juntarem uma mesma escultura a forma dos ídolos pré-hispânicos à personagens da indústria cultural norte-americana, símbolos massificantes da globalização no seu pior sentido. Ambos elaboram, conscientemente, um programa artístico e crítico de subversão cultural que é, ao mesmotempo, uma subversão narrativa, ou seja, temporal, uma subervesão linguística.

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A criação, nestes casos, vem reforçar toda uma vertente do pensamento artístico, ético e político latino-americano, cujo objetivo é trabalhar na elaboração de propostas de racionalidade alternativas, que sejam, em última instância, novas possibilidades de interação entre o homem, a natureza e a realidade. A América Latina, como entehistórico e cultural, ainda é um espaço em construção que, pouco a pouco, avança sobre os seuslimites. O excesso de peso histórico e a descentralização da identidade dos povos originários geraram umprocesso ontológico e social que não pode omitir, de forma alguma, a sua tensã oinerente. É justamente na relação tensional, embora não conflitiva, entre interior e exterior, entre vida pública e privada, entrepassado, presente e futuro, enfim, entre as antigas oposições, que reside a nossas obrevivência cultural. E a arte, em grande medida, atua como o espaço ideal e propício para essa reconciliação de tempos e de imaginários.

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REFERÊNCIAS

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CONTRAVIDA: MEMÓRIA COLETIVA E MEMÓRIA INDIVIDUAL NA OBRA DE ROA BASTOS

Elaine de Almeida

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obra do escritor paraguaio Augusto Roa Bastos está repleta de mitos e histórias que permeiam os universos de seu país e o da América Latina. Dada sua consciência política e espírito crítico, que observamos tanto em sua literatura quanto em suas declarações públicas, Roa Bastos procura registrar em sua trajetória literária também a trajetória do Paraguai e da realidade latino-americana. O romance Contravida (2001) conta a história de um preso político fugitivo, único sobrevivente de um assassinato no cativeiro; ao despertar, em meio aos ferimentos e aos delírios febris, começa a recordar acontecimentos fundidos entre sonho e realidade, não deixando claro o que seria verdade e o que poderia ser apenas fruto de sua imaginação. Ao longo de seu relato, não só recorda fatos para ele, recentes, como também rememoriza seu passado, no povoado de Iturbe (posteriormente chamado Manorá); momentos de sua infância e pessoas com quem convivera: seus pais, parentes, amigos de infância, seu enigmático professor da escola etc. Tudo isso nos remete não só ao passado do narrador-personagem, como também à parte da história paraguaia e de suas lutas políticas e sociais. Num misto de relato de viagem e literatura fantástica, Roa Bastos nos convida a essa viagem imaginária, a esse caminho em torno da memória. Neste relato, vemos personagens comuns, como policiais e delatores e, ao mesmo tempo, deparamos com o misterioso professor nonato, que afirmava morrer e renascer todos os dias do ventre de sua mãe; além do enigmático portão verde da casa onde o narrador-personagem vivia em sua infância e que ganhava vida a cada encontro com o menino. Nesta obra, Roa Bastos traduz a memória coletiva de todo um povo através do relato individual do narrador, que recria a realidade num passeio por sua memória em um processo de construção e desconstrução de imagens, assim reconstruindo a própria história paraguaia.

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Contravida se constitui em um relato de viagens; esse tipo de narrativa geralmente está associado às noções de conhecimento e identidade por estabelecer vínculos entre uma cultura e outra – a do viajante e a do lugar onde se vai, formando um contraponto entre origem e destino. Através desse contato, um relato de viagem é mais que um encontro entre culturas; esse tipo de narrativa, quase sempre autobiográfica, também trata de confrontos entre ideologias, visões de mundo, posturas políticas. Não apenas descreve lugares e paisagens, mas sobretudo, é uma reflexão sobre o que éramos ao partir e no que nos tornamos ao voltar. Consiste num percorrer de caminhos interiores, onde público e privado estão sempre em diálogo, passado e presente se mesclam e, principalmente, onde o conceito de identidade passa por uma série de questionamentos e renovações. Assim sendo, Contravida é uma jornada pela memória, onde o narrador nos conduz, perpassando sentimentos que vão desde o medo ao humor sarcástico, numa narrativa que desenha imagens e confunde sonho e realidade, dialoga com a verdade e com a ficção. Roa Bastos aprendeu de Barret um programa moral, mas não estilístico; emprega constantemente o contraponto, o ‘flashback’, o monólogo interior, o labirinto, a mudança de ponto de vista […] onde a verossimilhança se confunde com a fantasia, ainda que esta adquira os ouriçados perfis de um pesadelo.” (MARCOS, 1983, p. 16-17, tradução nossa).

Deste modo, o leitor percebe-se testemunha desta memória que se desdobra, de uma história que vai surgindo diante de seus olhos, uma realidade que está sendo recriada, ultrapassando as barreiras do tempo. Percebemos assim, o conceito unamuniano de “intrahistoria” – ou seja, através das imagens simbólicas criadas pelo autor, o leitor se vê presenciando, sob olhar ficcional, a própria história do Paraguai. Como afirma Bella Jozef: “o romance de Roa Bastos não é representação direta da realidade: esta é submetida a um processo de recriação em profundidade, sintetizando o documento e a invenção estética. A literatura é um instrumento de descoberta de uma realidade.” (JOZEF, 1986, p. 174). Neste romance, não existe a mimesis do real, se não a (re) criação da realidade a partir do relato do narrador-personagem, que não segue uma linearidade. Assim como o pensamento, seu relato vai a lugares que marcaram, resgata imagens e recorta o que mais lhe parece importante. Em Contravida, conhecemos

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a história de um sobrevivente que, após despertar de um sono de quase-morte, começa e relembrar várias partes de sua vida, desde sua infância, até o momento da prisão. Neste ínterim, voltam à sua mente, cenas divertidas da meninice (“O que dona Rufina sabia contar eram as histórias d’As mil e uma noites, em guarani. Dizia Chezenarda, em vez de Sherazade. Resta saber como e quando aprendera árabe” – ROA BASTOS, 2001, p.54); outras imagens tristes: Durante mais de três anos, quase todas as mulheres do povoado foram contratadas por salários miseráveis […]. Trabalhavam em três turnos durante as vinte e quatro horas […]. Muitas mulheres e crianças morriam de cansaço, desidratação, de maus-tratos(ROA BASTOS, 2001, p. 62),

misturadas às cenas inventadas pelo narrador, já que a personagem é também escritor: “Fiz Cristóbal Jara morrer metralhado no caminhão que levava água ao batalhão sitiado numa baixada de Yujra. - ROA BASTOS, 2001, p. 15). O fato de o narrador-personagem ser também um escritor nos faz questionar o quanto de autobiográfico pode haver nesse relato e até que ponto autor e narrador podem aqui ser a mesma figura. Toda a narrativa de Contravida é uma autobiografia da personagem central; além disso, vários componentes dessa história nos remetem ao próprio Roa Bastos: ambos são escritores paraguaios, naturais do povoado de Manorá, existem diversas reflexões pessoais em torno das lutas políticas e do próprio ato de escrever, assim como na seguinte passagem, onde o narrador revela que escreve desde menino: Achava belo e terrível descolar as angústias alheias na letra escrita até que elas se transformassem nas desgraças que a gente mesmo sofre. Expressar o sofrimento no próprio momento de produzir. A dor dolorosa da memória. (ROA BASTOS, 2001, p. 72).

Neste trecho, o narrador afirma que escrever sobre um passado doloroso, ainda que não vivenciado, é também sofrer um pouco daquela dor. O leitor que, no jogo narrativo, participa dessas memórias, também entra em contato com essa “dor da memória” e, através da ficção, pode refletir sobre sua própria realidade. “É um adentrar-se a fundo nas entranhas espirituais de sua pátria […] de tal modo que o leitor se sente como presenciando, através do fluir de ficções simbólicas, as

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peripécias de um drama cujo protagonista é todo um povo” (MARCOS, 1983, ps. 21-22, tradução nossa). Todos os exemplos anteriores são imagens que, misturando verdade e fantasia, são um novo olhar sobre a própria realidade, uma vez que a literatura, assim como as lembranças, é recriação do real. Segundo Leila Gómez : “Ao assumir-se em uma tensão autobiográfica, o relato de viagens fundamenta questões à construção do conhecimento como as da prova e da verdade. (GÓMEZ, , p. 2, tradução nossa). Um relato de viagens autobiográfico define-se pelo resgate da memória individual; serão destacados acontecimentos e paisagens que mais marcas deixaram no indivíduo e, no caso, de Contravida, esta memória individual dialogará com a memória coletiva, através do resgate de imagens que fazem parte do cenário histórico paraguaio. “A obra narrativa de Roa Bastos recolhe e reinterpreta de vários modos os elementos do ‘trauma’ histórico que se tem depositado nas camadas profundas da memória oral paraguaia” (LIENHARD, 1989, p. 270, tradução nossa). Roa Bastos, por meio da literatura, investiga sobre a história e o quadro político-social paraguaio, como numa tentativa de reordenamento social, numa obra de ficção que não pretende fazer mímesis do real, mas reinventá-lo, através da sintonia entre elementos reais e fantásticos. Um dos grandes elementos de Contravida é a ambigüidade; como trata-se de uma narrativa que permite que sonho e realidade se misturem, vemos que a dúvida é um dos fatores principais e, paradoxalmente, a dúvida está presente no texto para corroborar com a verossimilhança: “Fui recuperando lentamente os movimentos. A memória também começou a emergir da obscuridade em que minha mente lançara âncora. Imagens, acontecimentos confusos, figuras disformes que transcorriam num só dia de inumeráveis dias.” (ROA BASTOS, 2001, p. 12). Neste emergir de lembranças e sensações, surgem figuras que podem ser tanto reais, como inventadas pela imaginação do narrador. Surgem personagens de seus livros, misturados aos que conhecera ao longo da vida e personagens que existiram em sua imaginação quando criança. Desta ambigüidade e do constante paralelo entre real e ficção, nasce o fantástico, gênero que se manifesta na dúvida, oscila na hesitação entre natural e sobrenatural: O fantástico ocorre na incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão vizinho, o estranho ou maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente natural. (TODOROV, 2004, p. 31).

Essa hesitação permanece até o fim da história, sem que haja indagações do narrador em torno delas, que as comenta com a naturalidade de quem relata algo real, como suas ‘conversas’ com o portão verde da casa de seu pai. O portão verde era o amigo imaginário do narrador-personagem, muitas vezes lembrado com carinho e é o próprio portão, elemento fantástico, quem cita almas penadas que circulam o rio – chamado pelas crianças do povoado de “rio dos mortos”, que na verdade, são os cadáveres dos presos políticos. Todo este imaginário infantil percorre a narrativa e faz um contraste em meio a todo o drama do relato político: “Com o portão não se podia conversar muito tempo. Ele logo ficava maçante. Era muito xereta e queria dar conselhos. Os de papai já me eram suficientes” (ROA BASTOS, 2001, p. 53). A narrativa fantástica quase sempre se apresenta num meio que, para nós leitores, parece prosaico. O fantástico se realiza quando determinado elemento rompe a estrutura pré estabelecida, é a subversão da ordem, o quebrar de regras. Portanto, num romance que, a princípio pode parecer ao leitor um relato de viagem comum, a presença do fantástico vem funcionar como uma ruptura do convencional, além de provocar o encantamento; revigora o discurso que não pretende ser somente político, mas também literário, onde a maneira de narrar é mais importante que a trama; como diz Blanca Lópes Mariscal: O relato é concebido como imagem. Neste tipo de relatos se dá primazia à descrição e as ações se apresentam como parte de um espetáculo destinado à observação. Nestes textos, as cenas que se vão configurando são mais importantes que o desenlace. (LÓPEZ MARISCAL, , tradução nossa). Outros elementos que são parte da narrativa fantástica são: o cavalo, que segundo os habitantes da região, galopava à procura de seu dono morto e, para alguns, o fantasma do homem o acompanhava; o professor Cristaldo, o nonato (não nascido), figura marcante da infância da personagem, um homenzinho que nasce e renasce todos os dias: “Eu não passo de um nonato adulto […] porque, senhor – replicou o professor Cristaldo -, como todo mundo eu nasço e renasço todos os dias e ao anoitecer eu morro”(ROA BASTOS, 2001, p. 134). Todos esses componentes formam o cenário fantástico das lembranças do narrador, de acordo com 133

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que a memória permite, tornando sua atual realidade mais suportável. Imanentes a esse relato fantástico sempre estão as indagações pessoais que refletirão em questionamentos sociais e políticos sobre seu povo e seu país. As lembranças lhe são tão reais e contundentes, que em um dado momento o narrador comenta: “Quando a gente começa a cismar nessas lembranças, elas se tornam reflexivas e nos pensam” (ROA BASTOS, 2001, p. 120). Ou seja, a memória é sua identidade e de tão latente, praticamente ganha vida própria. Contravida é um relato de viagem que transcende o prosaico ato de narrar uma viagem física; sobretudo, é um ir e voltar pela memória. Como sugere o título, o narrador faz um movimento contrário, parte da morte ao nascimento, está na contravida, na contramão e assim, assistimos à reconstrução de sua vida. Como Sherazade, renasce através da palavra, e seu testemunho é o único elemento que possuiremos na reconstrução da história paraguaia; seu olhar é o nosso olhar, sua memória falha, confusa vai se remodelando aos poucos e, deste modo, também participamos da reconstrução da história e da realidade. A escrita, nesta obra, parece acompanhar o pensamento, por isso, não se prende a esquemas e não obedece a uma organização formal; a narrativa acontece à medida em que o pensamento vai ganhando forma, num movimento de “flashback”. Segundo Maurice Halbwachs, para recordamos algo, precisamos: primeiramente, do testemunho de outros, ou seja, recorremos à fala e à memória do outro para dar veracidade ao que dizemos – por isso sempre memória individual e memória coletiva interagem e dialogam entre si. Sobretudo, o olhar ao passado contribui na reconstrução do presente, pois como afirma o narrador de Contravida, “A memória do presente é a mais enganosa” (ROA BASTOS, 2001, p. 120). Outro meio é o recorte de imagens: para que nossa memória seja reativada, recorremos a traços e contornos, símbolos e cores que nos devolvem imagens do passado – recurso utilizado em filmes e campanhas publicitárias; porém, por vezes, essas imagens podem reproduzir mal o passado; por isso pode ser que, ao reativarmos a memória individual em busca do passado, podemos acrescentar a ela boa carga de ficção, de invenção. Ao mesclar histórias reais - como as lutas políticas paraguaias – ao relato fantástico, observamos que Roa Bastos, em Contravida, usa o próprio mecanismo do pensar: “Para algumas lembranças reais junta-se assim, uma compacta massa de lembranças fictícias.” (HALBWACHS, 1990, p. 28). E, no espaço da enunciação, ocorre o mesmo com o narrador, que relata sensações que lhe são reais – tortura, 134

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medo, dor – e, ao mesmo tempo, intercala visões que mais parecem fruto de delírios febris: “Eu via – ou lia na memória de um livro – os leprosos dançando nos festejos do santo padroeiro do lugar, em Sapucai, para servir de escudo aos guerrilheiros escondidos no salão da prefeitura”. (ROA BASTOS, 2001, p. 19). Esta mesma passagem é desmentida mais adiante: “Isso também não era verdade. Os guerrilheiros foram capturados por tropas do exército e os lazarentos fugiram para o leprosário” (ROA BASTOS, 2001, p.19). A narrativa - em primeira pessoa, em sua maior parte - envolve o leitor a participar desse jogo narrativo, como se assistisse a um filme; a linguagem direta e a descrição detalhista, nas cenas de agonia e morte, beiram o grotesco e inserem o leitor diretamente na trama; são imagens fortes e sensoriais, onde quase se pode vivenciar tais sensações. O narrador nos fornece imagens praticamente cinematográficas: Através das bolsas sanguinolentas das pálpebras, via confusamente meu corpo, preto de moscas, de vespinhas picadoras, das temíveis formigas tahyi-rë que me subiam em fila indiana pelos membros. O bafo salobro do vento soprava da baía crestava, mais do que os insetos, as gretas purulentas de meus ferimentos. O calor e a morte se moviam no próprio vento. (ROA BASTOS, Augusto, 2001, p. 7)

Como afirma Bella Jozef, “seu Realismo vai além dos limites sensoriais” (JOZEF, 1986, p. 172); ao percorrermos o relato do narrador, que nos transmite imagens fabricadas por sua mente, podemos percorrer junto a ele, todos os sentidos, trabalho naturalmente feito pela memória, ao recordarmos algo. Segundo Jean Davallon, em o Papel daMemória, ao utilizarmo-nos da imagem e do som para guardar, registrar um fato, teremos a restituição desse saber registrado quase tão bem quanto o próprio acontecimento. Ou seja, a imagem e o som nos aproximam muito mais do fato ocorrido e mais facilmente o reconstruiremos através da memória: “o registro do acontecimento deve constituir memória, quer dizer: abrir a dimensão, entre o passado e o futuro” (DAVALLON, 1999, p. 24). Logo, as fortes imagens descritas ao longo do texto contribuirão para a ativação da memória do leitor, que participa do jogo narrativo como um observador, uma testemunha do fato descrito. Além disso, a riqueza de detalhes e de imagens corrobora para a existência da verossimilhança:

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares Não me sentia totalmente morto, mas foi o que desejei, estar morto como os outros. Levei com muito esforço a mão até o peito. Senti os latejos de sangue que se alastrava por meu corpo como areia. O coração de um morto não bate, pensei, na vertigem ondulante do pesadelo. (ROA BASTOS, 2001, p. 7).

Esta característica permeia a narrativa roabastiana desde suas mais consagradas obras, como Hijo de Hombre (1960) e Yo el Supremo (1974); a respeito do primeiro, Juan Manuel Marcos observa: “Quadro tétrico e arrepiante; parece arrancado do expressionismo mais terrível das ‘pinturas negras’ de Goya e tem servido de argumento para a hipótese formulada pela crítica sobre a presença de ‘certo romantismo’ do espantoso na obra de Roa Bastos” (MARCOS, 1983, p. 16, tradução nossa). Percebemos que também em Contravida, Roa Bastos segue no intento de chocar e provocar o leitor à reflexão, através do grotesco e das imagens que causam espanto e repulsa: Torturava-me a sensação contínua de que um rato, dos muitos que zanzavam pela vala, mordiscava minhas ataduras como se quisesse livrar-me dessa mortalha. Suas presas agudas e nacaradas deslizavam bem perto de meus olhos […]. Começou a roer-me o lábio rachado, a ponta do nariz. Não sentia nenhuma dor. Só um nojo insuportável. (ROA BASTOS, 2001, p. 13).

A imagem opera a favor da memória social; está no campo semântico, o das significações e contribuirá para a perpetuação de um fato relevante na história e na sociedade. Ao mesmo tempo que representa a realidade, a imagem conserva a força das relações sociais; retira do passado um importante acontecimento e o faz permanecer na memória coletiva, lhe permite um lugar no espaço; assim, a imagem é fundamental na conservação do passado. A imagem, responsável por manter tradições e fatos relevantes a uma dada comunidade, cria um acordo entre os membros dessa comunidade, pontos de vista compartilhados e de noções que lhe são comuns. Em Contravida, vemos a tentativa de conservar – e talvez despertar - a memória coletiva, através da memória individual. “O relato de viagens faz sua parte na re-textualização dos mitos e ficções fundadores da nação” (GÓMEZ, , p. 8, tradução nossa). Podemos supor que as visões de horror pela tortura, pela dor dos ferimentos, pelo medo da morte presentes na

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memória do narrador-personagem podem ser comuns ao indivíduo que já tenha vivido a experiência de fugir da tortura e da morte; sendo assim, o relato parte da memória individual à memória coletiva na busca de conservar o passado, para lembrar o horror da guerra e do exílio para que não morra no tempo toda a tentativa do ser humano de sobrepor suas barreiras e das relações de poder que podam a expressão de seu pensamento. Como afirma Maurice Halbwachs: Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios. (HALBWACHS, 1990, p. 51).

Ou seja, memória coletiva e memória individual estarão em nossa vidas num eterno contraste, ambas são interdependentes e complementares. Ocorre, em Contravida, esse contraste entre uma e outra, relacionando com o que Halbwachs chama de memória autobiográfica e memória histórica. Visto que toda nossa história de vida está inserida numa história geral, a primeira – autobiográfica, pessoal, interna - apoia-se na segunda – histórica, geral, externa – e ambas dialogam e se completam. É este diálogo entre memória autobiográfica e memória histórica que nos insere em determinado lugar no mundo, que nos relaciona com algum grupo social, não sendo essas relações algo permanente e taxativo, mas sim, algo mutável e coerente às mudanças que viveremos ao longo da vida. Vale lembrar, que ao nos referirmos à memória histórica, nos remetemos ao conceito de história mencionado em A Memória Coletiva, de Maurice Halbwachs: “é a compilação dos fatos que ocuparam o maior espaço na memória dos homens” (HALBWACHS, 1990, p. 80). Logo, não nos referimos somente ao que se aprende na escola, de maneira esquematizada e submetida a uma série de fatores determinados por aqueles que detêm o poder de escolher o que informar, mas sobretudo, o termo “história” aqui trata-se da história vivida, “não uma sucessão cronológica de acontecimentos e datas, mas tudo aquilo que faz com que um período se distinga do outros.” (HALBWACHS, 1990, p. 60). De todos os modos, esse intercâmbio entre ambas memórias é o que nos define e o que nos identifica. Este confronto permite a construção da nossa iden-

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tidade, a partir do olhar sobre o outro, o contato entre uma cultura e outra (onde haverá sempre o paralelo entre ideologias, crenças e pontos-de-vista), o que podemos observar nos relato de viagem. Esse elo entre memória autobiográfica e memória histórica é um dos pontos chave num relato de viagem e, no romance de Roa Bastos, se dá de maneira lúdica e dinâmica, onde verdade e ficção se misturam para criar uma nova realidade. Não se trata de uma intenção de captar a consciência popular mediante a recopilação etnográfica de testemunhos individuais, se não de um trabalho metódico que tende a dar forma, nome e corpo ao não dito ou o indizível. (LIENHARD, 1989, p. 254, tradução nossa).

Neste romance, a arte reconstroi a vida, num jogo narrativo onde a memória é a chave de várias questões e, muitas vezes, determinante para comprovar ou recriar um determinado acontecimento. A memória é um caminho a se seguir e nesse caminho, encontram-se dores e alegrias, sofrimento e saudade, vida, morte e renascimento. A obra de Roa Bastos está constantemente atenta à realidade histórico-social do Paraguai. Toda sua narrativa é uma expressão lírica da ideia de nacionalidade. No romance Contravida, vemos a mescla de relato de viagem e literatura fantástica, onde o humor e o grotesco passeiam entre memórias da infância e reflexões sociais. Em Contravida, parte-se do fim para o (re)começo; na contramão do tempo e da realidade, assistimos à reconstrução da identidade de um homem, no âmbito ficcional, no entanto, trata-se da reconstrução da identidade – e dignidade – paraguaia. Roa Bastos traça um contraponto entre memória individual e memória coletiva, indo da parte para o todo, buscando, assim, a identidade do povo paraguaio no cenário latino-americano e mundial.

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REFERÊNCIAS

DAVALLON, Jean & outros. “A Imagem, uma arte da memória”. In: Papel da Memória. Campinas, SP. Pontes: 1999. GÓMEZ, Leila. Colorado, EEUU, The Colorado Review of Hispanic Studies, . HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo, SP. Ed. Vértice, 1990. JOZEF, Bella. Romance Hispano-americano, São Paulo, SP. Ed. Ática: 1986. LIENHARD, Martin. La voz y su Huella. La Habana, Casa de las Américas, 1989. LÓPEZ MARISCAL, Blanca. “Para una tipología del relato de viaje”. In . MARCOS, Juan Manuel. Roa Bastos, precursor del Post-boom. México, Ed. Katún, 1983. ROA BASTOS, Augusto. Contravida. Rio de Janeiro, Ed. Ediouro: 2001. ______. “Paraguai: transição à dignidade”, carta aberta ao povo paraguaio de seu exílio em Tolouse, França. ______. “El texto cautivo”. Hispanoamerica (SU), Gaithersburg, USA, 1981. TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo, Ed. Perspectiva, série Debates: 2004.

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EXCLUSIVIDADE E SOCIEDADE DO MEDO PRODUZINDO REFUGOS HUMANOS NO FILME LA ZONA

Elen Fernandes dos Santos

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artindo da concepção de que a configuração do espaço público possui implicações diretas na dinâmica das relações sociais, o objetivo do presente estudo é refletir, com base no filme mexicano La zona (México/Espanha, 2007, 97’)1, como a cidade enquanto espaço público onde se dá a convivência democrática com o diferente começa a ser abandonada pelos que investem na utopia dos “bairros fechados”, espécie de micronações que se configuram no contraponto com um espaço público fraturado. Tomando por base teórica os conceitos de fragmentação sócio-espacial, do geógrafo Marcelo Lopes de Souza, e da imagem dos resíduos humanos forjada pelo sociólogo Zygmunt Bauman, nosso estudo buscou pensar como este novo modelo de cidade, originado do fenômeno da segregação e da auto-segregação, se constrói no contrapondo com o espaço público falido, de modo a proporcionar aos seus moradores tudo aquilo que a cidade já não pode mais oferecer. Sob tal ótica, buscamos discutir esta problemática a partir de duas cenas do filme mexicano La zona. A primeira é a cena em que os moradores do condomínio se reúnem em uma assembleia na tentativa de solucionar internamente e de forma privada o problema que lhes surge. Em uma noite de forte chuva e aproveitando-se de uma queda de energia, três jovens moradores dos arredores do condomínio decidem invadi-lo para roubar. Como consequência, dois deles são mortos após o assassinato de uma moradora, porém um dos invasores, um adolescente de aproximadamente 15 anos, foge e é então incansavelmente buscado no condomínio conhecido como La zona. A assembleia feita pelos moradores do condomínio se desenvolve no interior de uma escola pertencente a este PLÁ, R., La zona. [Filme-vídeo]. Direção de Rodrigo Plá. Espanha/México: Dreamland, 2007. DVD, NTSC, 97 min. color. son. 1

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bairro fechado. O espaço da escola é significativo na cena, visto que nos deixa entrever como este bairro fechado conta com estruturas que replicam a cidade, tais como um sistema próprio de geração de energia, a limpeza e a segurança. Na assembleia que analisamos, os moradores discutem o que fazer com o acidente que tomam por estúpido: levar o problema para a esfera pública ou resolver internamente por meio de suas próprias armas? Através do discurso de um dos moradores do condomínio, a alteridade surge como “una basura”, como lixo. Ao final da assembleia, percebemos que o diálogo como elemento que caracteriza a civilização, é abdicado. Os moradores deste bairro fechado votam entre si e decidem por perseguir o invasor, ou seja, abdicam da civilização em prol da barbárie. A imagem do condomínio (ou “gueto voluntário” na nomenclatura de Bauman) se apresenta como um novo espaço de leis próprias e regras pactadas por moradores que tentam não cometer os mesmo erros da velha pólis. Por certo, a imagem do condomínio surge como lugar de diferenciação, que permite a auto-afirmação dos que ali vivem em oposição aos que não pertencem a seu mundo exclusivo, mas se inserem no espaço de caos e insegurança da cidade. A imagem do condomínio construída por seus moradores nos vem, em última instância, como uma espécie de anticidade, caracterizada pelo apagamento de tudo aquilo que possa remeter ao mundo exterior ao condomínio. Em sua análise da atuação do Estado social, Bauman (2005) explica que a alternativa encontrada pelo Estado contemporâneo na garantia de sua legitimidade está na vulnerabilidade que se alça da problemática da segurança pessoal. No entanto, quando a pretensão de proteção pessoal pelo Estado contemporâneo não atende as necessidades de uma determinada parcela da população, outros métodos são postos em voga de modo a alcançar a segurança estimada. Em oposição à falência da cidade, estes novos enclaves originados do fenômeno da fragmentação urbana possibilitam a apreciação da construção de um modelo de sociedade através do qual se tenta resgatar a utopia da cidade sob um viés da privatização das instituições, concepção restritiva e excludente de cidadania. Marcelo Lopes de Souza (2006) é quem nos explica que a “desordem” da cidade nada mais é que o resultado de problemas criados pela própria “ordem” capitalista dominante. Por outro lado, é esta mesma “desordem” do espaço público que dá lugar à formação de “novas ordens”. Como consequência, nota-se que:

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares […]a grande cidade contemporânea, em muitos lugares, se vai transformando em algo, sob alguns aspectos, mais e mais amedrontador. O elemento emancipatório – tão bem simbolizado pela ágora da pólis democrática da Antiguidade, depois pelos burgos livres medievais, depois pelos espaços públicos das cidades européias… é, contudo, crescentemente erodido e ameaçado, acuado e sabotado. (SOUZA, 2006, p. 24).

Assim, Souza parte de duas imagens para sua reflexão das relações sociais na cidade contemporânea: a metáfora da prisão e a metáfora da ágora. O conceito de ágora, como explica o autor, diz respeito à praça principal da pólis, a cidade grega da Antiguidade clássica. A ágora era o espaço público por excelência, de exercício de cidadania, que servia de lugar para a realização das assembléias que traziam as discussões políticas. Os tribunais populares, abertos ao público, faziam da ágora uma expressão máxima da esfera pública e do espaço urbano. Como nos explica Marcelo Lopes de Sousa, “a despeito da execrável instituição da escravidão, para os cidadãos tratou-se, efetivamente, de uma cidadania plena, de uma liberdade efetiva e sem aspas, garantida pelas instituições da democracia direta” (SOUZA, 2006, 25). Longe de idealizar a antiga pólis, o autor não exclui o fato de que somente aqueles considerados cidadãos tivessem direito à voz e a voto na ágora. No entanto, Souza chama a atenção para o fato de que a ágora surge em sua análise como o símbolo de um ideal de autonomia, de onde extrairíamos um espírito de coletividade que se faz expressar em discussões essencialmente públicas. Neste novo “bairro fechado”, aqui refletido através do condomínio La zona, visa-se o resgate da noção de ágora como lugar de exercício da democracia. No entanto, esta “nova ágora” interna e restrita, como visto na cena em que os moradores se reúnem para solucionar o “problema” do jovem refugiado dentro do condomínio, se apresenta como espaço em que só uns poucos podem ser cidadãos e, reunidos, legislam sobre a vida coletiva neste recinto fechado, cuja dimensão de espaço do privado fundamenta a contestação das ações legítimas das instituições estatais. No que concerne a esta “nova ágora”, as decisões são tomadas sem a interferência de leis externas, de forma sigilosa e em benefício exclusivo dos interesses dos “favorecidos” em viver no espaço do condomínio. As discussões não se fazem aos olhos de toda sociedade, ainda que o assunto em questão, o problema da morte dos jovens invasores de La zona, seja de interesse da esfera pública e devesse ser tratado em coletividade.

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A partir do anteriormente exposto, abre-se espaço para a discussão da segunda cena do filme La zona aqui destacada. A cena em questão foi extraída de uma seqüência no final do filme e diz respeito ao momento em que Alejandro, um dos jovens moradores do condomínio, busca o corpo de Miguel até encontrar o “invasor” jogado aolixo após ser morto de forma brutal pelos que vivem neste bairro fechado. Na tentativa de proporcionar a seu duplo um enterro digno, o jovem Alejandro passa pelo forte sistema de segurança de La zonae conduz o corpo do invasor ao cemitério. É importante notar que no caminho observa-se o contraste deste mundo exclusivo protegido por alambrados e as inúmeras casas que o rodeiam, reveladoras do espaço de caos da cidade. Em verdade, a cena significativa em que o corpo do personagem Miguel é encontrado ao lixo por Alejandro nos possibilita a reflexão de como uma “ágora”seletiva que se organiza com suas próprias regras e busca fugir a interferência das leis que regem toda a sociedade, ao levar à anulação da interação, reafirma a fronteira entre o Eu e o Outro, abrindo espaço para a exclusão e potencial eliminação de todo “refugo humano”. Zygmunt Bauman (2005), em Vidas desperdiçadas, reflete sobre a atual ausência de espaços vazios que possam servir de depósito à remoção do refugo fruto da globalização. Bauman explica que “quando se trata de projetar as formas do convívio humano, o refugo são seres humanos” (BAUMAN, 2005, p. 42). Ao visar-se a construção da ordem, o lixo se apresenta como destino para os que não se ajustam à nova forma projetada, aquela que se quer mais uniforme e segura com a ausência dos “indesejados”. De fato, o processo de modernização se faz acompanhar do processo de segregação quando o que se tem em vista é a eliminação dos que não se adéquam a esta nova ordem. Com a falência da indústria de remoção de refugo humano, Bauman chama a atenção para as pessoas redundantes destinadas a ficar do lado de “dentro” devido à impossibilidade de sua exclusão territorial. Tendo em vista que a remoção do lixo humano se torna inviável, observa-se assim que a fuga em busca de exclusividade se mostra a melhor saída para se evitar uma convivência indesejável com ele. Buscando desvincular-se deste problema colateral da modernidade, uma parcela da sociedade encontra na distância o caminho para o esquecimento daquilo que se visa excluir. Bauman assinala a preocupação que temos em centrar o foco do problema “neles” e nunca em “nós”. Para o autor, “o grande projeto que separa o «refugo» do «produto útil» não assinala um «estado de coisas objetivo», mas as preferências dos projetistas.” (BAUMAN, 2005, p. 59).Sob tal ótica, a leitura das cenas do

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filme nos permitiu observar que a concepção daquilo que é ou não aceitável se dá em prol da sustentação de um estilo de vida cada vez mais sedento que requer esforços que o sustentem e garantam sua estabilidade. Os “outros”, nesta medida, são os despendem uma energia que poderia ser investida em “nosso” estilo de vida. Como sinaliza o autor, “é sempre o excesso deles que nos preocupa.” (BAUMAN, 2005, p. 60) Desta forma, a cena simbólica em que o corpo do menino é jogado ao lixo pela população do condomínio nos remete a busca incansável pela eliminação dos que são considerados refugo desnecessário. No mais, a decisão quase que unânime de dar o fato da morte por encerrado confirma o que nos diz Bauman quando explica que a produção massiva de refugo humano se configura como uma falha técnica a que se tenta encobrir ou negar. O tema também é analisado em Fobópole (2008) na leitura que faz Marcelo Lopes de Sousa, quem pensa o fenômeno da auto-segregação das classes mais abastadas rumo aos condomínios exclusivos como um sintoma decorrente da “fragmentação do tecido sociopolítico-espacial da cidade” (SOUZA, 2008, p. 69). Segundo Sousa, a crescente difusão de condomínios exclusivos concorre para o apagamento da imagem da cidade como uma unidade, agora tão “extensamente afetada por uma pletora de fronteiras impostas pela violência ou pelo medo da violência” (SOUZA, 2008, 72). A auto-segregação, desta sorte, se apresenta como solução escapista, uma fuga do enfrentamento que não minimiza as causas da violência. Nesta medida, a difusão dos condomínios fechados implica “um empobrecimento adicional da vivência da cidade e da experiência do contato com o Outro…” (SOUZA, 2008, p. 74). Marcelo Lopes de Souza (2006) também nos conduz a pensar a “cidade-prisão”, quando nos explica que o abandono do espaço público tem por consequência a intensa tendência à conformação de fortalezas no espaço da cidade. No entanto, como aponta o autor, “toda fortaleza é, de algum modo, também uma prisão.” (SOUZA, 2006, p. 18). Cada vez mais… formas outras de proteção – de grades adicionais a cercas eletrificadas em casas ou prédios não situados em “condomínios”, passando por câmeras de TV e logradouros públicos graduados por vigilantes particulares e “fechados” por cancelas – também podem servir de ilustração para a sensação de prisão/presídio. (SOUZA, 2006, p. 18).

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O autor chama a atenção tanto para as prisões em seu sentido metafórico, com a superposição de territórios ilegais ao espaço formalmente controlado pelo Estado, como para as prisões em seu sentido literal, saída encontrada por nossa sociedade na tentativa de livrar-se do problema da “superpopulação”. Nesta linha de leitura, nota-se que o medo impõe restrições à liberdade, problematizada no filme por suas rígidas fronteiras e pela “caça” incansável ao “intruso”. Em verdade, o conhecimento do mundo existente para além das fronteiras do bairro fechado é sugerido aos seus moradores tão só pelos meios de comunicação de massa. Como nos coloca Mike Davis (1993), “a imaginação de classe média branca, desprovida de todo e qualquer conhecimento de primeira mão sobre as condições do gueto, aumenta a ameaça percebida através de lentes demonológicas” (DAVIS, 1993, 207). Por certo, uma perspectiva fechada dos que vivem em La zona contribui para a formação de relações pautadas no medo e na exclusão do desconhecido. O isolamento e o conhecimento do Outro tão só por meio de discursos midiáticos discriminatórios tem implicações diretas na construção das representações. É o que também nos confirma Beatriz Sarlo (2004),quem explica que o espaço público como espaço de interação com o Outro foi suplantado pela individual experiência audiovisual: O bairro deixa de ser o território de uso e pertencimento porque seus habitantes seguiram o contraditório processo duplo de transpor todas as fronteiras, tornando-se público audiovisual, e ao mesmo tempo ficar cada vez mais encerrados dentro de suas casas. (SARLO, 2004, p. 106).

A obsessão pela segurança é um dos aspectos mais fortes desta sociedade que se encarcera, na terminologia de Mike Davis (1993). Como vimos, a imagem do condomínio La zona foi concebida sob a máxima de manter os que são “indesejáveis” distante de seus alambrados. A exceção dos que ali trabalham como empregadas, parquistas, babás ou seguranças, La zona, a rigor, se fundamenta em uma atitude defensiva contra os que são alheios ao condomínio. Bauman parece apontar uma luz à problemática em questão. De acordo ao autor, “a intenção desses espaços vetados é claramente dividir, segregar, excluir, e não de criar pontes, convivências agradáveis e locais de encontro, facilitar as comunicações e reunir os habitantes da cidade.” (BAUMAN, 2009, p. 42). O autor explica que estes novos “espaços proibidos” ou “espaços vedados” dão lugar ao

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sentimento da mixofobia (medo de misturar-se), manifestado neste impulso de fuga caminho a verdadeiras “ilhas de identidade e de semelhança espalhadas no grande mar da variedade e da diferença” (BAUMAN, 2009, p. 44). A busca por “comunidades de semelhantes” ou “comunidades de iguais”, nas terminologias de Bauman, implica a exclusão da alteridade, deste desnecessário e tão incômodo “refugo humano”. Como visto nas cenas analisadas em nosso trabalho, este impulso que leva um setor da sociedade a buscar um ambiente de “iguais”, espacialmente isolado da desorientadora multiplicidade do espaço urbano, não faz mais que nutrir este sentimento de terror para com o diferente. Bauman encontra uma solução na experiência compartilhada, e chama a nossa atenção para o fato de que “não se pode pensar em compartilhar uma experiência sem partilhar um espaço.” (BAUMAN, 2009, p. 51). Souza também chama a atenção para o fato de que a fragmentação do tecido sociopolítico-espacial da cidade traz em si pontos em comum aos campos de concentração, metáfora que tão bem se ajusta ao ocorrido no filme. O fato cruel de um adolescente que é espancado até morrer denuncia a banalização da morte num ambiente em que valores mínimos, como o respeito à vida do outro, são ignorados. Ainda que o fato da morte nos venha a expor o problema da sociedade do medo em suas conseqüências mais drásticas, o filme parece apontar para uma possível esperança através do personagem Alejandro. A casa do jovem morador do condomínio serviu de abrigo a Miguel até o momento de sua morte, uma cena que transcorreu em aproximadamente 24 horas no filme. O contato com seu duplo permitiu a Alejandro a descoberta de um mundo para além dos alambrados que o protegem. Como visto nas cenas do filme aqui refletidas, nas pautas deste novo projeto de cidade, o outro se configura como “lixo humano”. O bairro fechado, nesta medida, tem por maior exigência justamente a eliminação de tudo o que é ou venha a configurar-se refugo. Alejandro é quem acompanha o processo de “caça” a Miguel, sem querer que o encontrem, e é também quem se questiona se o que lhe foi dito a respeito do mundo de fora é realmente verdade ou não. Uma última menção a Souza se faz necessária: Embora as “bolhas de segurança” dos “condomínios exclusivos” estejam começando a produzir efeitos contrários e perversos, em matéria de socialização… econquanto tantas outras coisas (a começar pelo medo, quase onipresente) conspirem contra isso, a cidade ainda é, e pode ser cada vez mais, uma “escola de democracia”. (SOUZA, 2006, p. 26).

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Eis o impasse das novas fronteiras urbanas: aprender a viver isolado e permanecer na redoma do condomínio, ou arriscar-se no espaço democrático da cidade, convivendo com o diferente? A desvalorização e renúncia do espaço público implicam o abandono de um espaço de convívio social com o Outro e, em uma perspectiva mais ampla, nos afetam com limitações ao exercício de cidadania. De certo, a imagem desta nova ágora apresentada em La zona traz em si uma cidadania restritiva e excludente que atesta a falência do Estado e o enfraquecimento da vida pública. O Outro, desta sorte, configura-se como um intruso e potencial refugo humano. Através de seu “bairro fechado”, o filme nos apresenta um déficit de cidade e de humanidade que é problematizado criticamente por Alejandro, quem se identifica com o seu duplo Miguel, o jovem assassinado. Com base nesta problemática, conclui-se assim que o resgate do espaço público como espaço de interação ainda pode ser a chave para impedir o recuo das relações humanas, trazendo a luz a heterogeneidade e a diversidade contidas no contato direto do Outro com o Eu.

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REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. ______. Confiança e medo na cidade. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. DAVIS, Mike. Cidade de Quartzo: Escavando o futuro em Los Angeles. Trad. Renata Aguiar. 1º Ed. São Paulo: Editorial Página Aberta, 1993. PLÁ, Rodrigo. La zona. [Filme-vídeo]. Direção de Rodrigo Plá. Espanha/México: Dreamland, 2007. DVD, NTSC, 97 min. SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e videocultura na Argentina. Trad Sérgio Alcides. 3º Ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. SOUZA, Marcelo Lopes de. A prisão e a ágora: reflexões em torno da democratização do planejamento e da gestão das cidades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. ______.Fobópole: o medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

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MONTEVIDEANOS DE PAPEL EM UMA MONTEVIDÉU LÍQUIDA: REPENSANDO AS RELAÇÕES DE BENEDETTI A METRÓPOLE DE LA “OTRA ORILLA”

Gabriel Macedo Poeys

S

e a morte de Mario Benedetti é algo recente, não se pode dizer o mesmo sobre sua importância para a literatura hispano-americana. Nascido em Passo del Toro, no Uruguai, o autor se dedicou à produção das mais diversas manifestações literárias, o que faz de sua obra um amplíssimo campo de estudo sobre a qual lanço um olhar em um dos seus primeiros livros de contos: Montevideanos (1961) mais especificamente o conto “El presupuesto”. A obra teve a maior parte de sua escritura na década de cinquenta, o que faz com que nos atentemos mais sobre esse período da história, sobretudo na crença uruguaia de que lá se vivia num país próspero e socialmente justo, tal qual afirma Leslie Bethell: A mediados del decenio de 1960 aún había uruguayos que estaban convencidos de ser ciudadanos de un país excepcional que (a diferencia de sus vecinos) disfrutaba de la bendición de ser capaz de alcanzar la estabilidad política, así como la prosperidad y la justicia social. (BETHELL, 2002, p. 156).

O Uruguai é um país pequeno em relação aos outros países da América Latina e mantém cerca de metade de sua população na capital, Montevidéu. Ela aglutina desde serviços e intercâmbio comercial à vida cultural intensa.O inchaço populacional comprova a massiva quantidade de capital acumulado em apenas uma cidade. O que não é um fenômeno predominantemente uruguaio, como percebeu José Romero, em seu livro A cidade e as idéias no qual o autor tece uma concisa análise sobre a formação das cidades latino-americanas no século XX e afirma que este é um fenômeno comum que perpassa as cidades da periferia do capitalismo. O país se caracteriza por ser a exceção num continente dividido por problemas sociais e políticos e, durante muito tempo, foi conhecido como “Suíça da América” devido ao capital transnacional que o sustentou. Por conta disso,

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acreditou-se na permanência desta situação e não houve investimento em criar as bases de sua própria riqueza. Este trabalho propõe uma leitura que perpasse a obra de Benedetti e a questão da modernidade de Bauman (2002) e Berman (2008), o surgimento de uma classe média composta por oficinistas e como ela se relaciona com a cidade massificada pelas relações cada vez mais líquidas e burocráticas, as quais estão sujeitas especialmente na margem do capitalismo. Montevideanos é uma obra cujo cerne permeia a liquidez, tal qual proposta por Bauman. Nela, Benedetti descreve o montevideano típico, funcionário público, jogador de futebol, uma pessoa que trabalha o dia todo e tem horários fixos para o lazer, além de jovens que aos poucos perdem a inocência. Ele descreve o lugar comum do típico uruguaio de classe média num país que passa por um período em que o hiato econômico diminui e a diferença entre classes se estreita. Há ainda o surgimento de um novo tipo de funcionário público. Logo, um novo locus: a repartição pública, onde se ambienta o primeiro conto de seu livro, que receberá maior atenção neste trabalho. Benedetti reporta ao problema da modernização das cidades periféricas por meio do surgimento desta massiva classe média, que, no conto, se identifica por meio dos personagens, inseridos num contexto altamente complexo e burocrático pelo qual têm que se adaptar para sobreviver ao novo ambiente em que o montevideano está inserido. Essa classe média, o oficinista público é quem alimentará o consumo e ditará o ritmo do crescimento uruguaio, bem como o do Cone Sul. Tende-se à permanência de todo tipo de relação, cria-se no conto, uma relação dividida por postos de trabalho. A mediocridade, usada não no seu sentido de senso comum, mas no de relativo à média que se perpetua por meio das relações líquidas, as quais a modernidade expõe através dos personagens. As relações líquidas propostas por Bauman são descritas no livro e trazidas para a realidade moderna de um país periférico onde os sólidos se desmancham no ar a cada conto, a cada página do livro, a cada caminhar pelas ruas da cidade. A burocracia é, agora, a lei que impera na modernidade, é ela que dá crédito às relações modernas bem como as sustenta. Dessa forma torna-se impensável um mundo sem a ferramenta burocrática, que de maneira inerente permeia todo o conto em questão. Berman define a modernidade como uma: “[…] experiência vital de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida.” (BERMAN, 2007,p. 24).

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Neste novo estado nacional cada vez mais poderoso, “burocraticamente estruturado e gerido”, proposto por Berman, a explosão demográfica característica dos países latino-americanos, desde as primeiras décadas do século XX, logo se transferiu do campo para a cidade, fato que se apresentou como um problema para as gerações posteriores. As pessoas, arrancadas do seu habitat ancestral são empurradas para sua nova vida, por vezes catastróficas e mergulhadas na burocracia de uma cidade que vive um inchaço populacional de que estava num processo de crescimento constante. Nas primeiras décadas do século XX, ocorreu em quase todos os países latino-americanos com diferente intensidade uma explosão demográfica e social cujos efeitos não demoraram a ser observados. […] Houve, notoriamente, um crescimento da população com clara tendência a aumentar. (ROMERO, 2004, p. 356). No que concerne aos aspectos formais do texto, Cortázar sustenta em “Alguns aspectos do conto” (1974) que um conto se assemelha a uma fotografia, captando um exato momento. Um conto revela nuances que só são percebidas numa representação estática, onde nada sobra. Neste, por ser uma obra mais sintética que um romance, não há lugar para espaços vazios. Um fragmento da realidade, limitado esteticamente pela lente da câmera, nos revela um panorama que permite uma leitura historiográfica do texto. Partirei deste paradigma de leitura, a fim de pormenorizar alguns aspectos do texto relevantes para o conceito da modernidade na “otra orilla”. Um presupuesto novo é o que mais se aspira numa repartição pública. É com essa assertiva que se inicia o conto. O texto gira em torno deste argumento e é o que movimentará a vida de seus personagens. Este pequeno escritório, com o qual ninguém se preocupa, não tem aumentado seu orçamento há muito tempo. Benedetti marca esse longo período sem aumento através de uma hipérbole quando diz que os personagens do conto estão nesta situação desde a época em que se lutava contra a geografia. A relação com a cultura também é tratada com interesse pelo autor. Nenhum dos funcionários quer se ausentar da vida cultural, afinal em uma sociedade moderna costuma-se participar ativamente de tais manifestações, como por exemplo, ir ao cinema. Eles encontram uma maneira pela qual todos se atualizam em relação aos filmes em cartaz:

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares Íbamos al cine una vez por mes, teniendo buen cuidado de ver todos diferentes películas, de modo que relatándolas luego en la oficina, estuviéramos al tanto de lo que se estrenaba. (BENEDETTI: 1997, p. 10).

A atitude demonstra a limitação financeira imposta a essa nova classe média e o desejo de participar da vida cultural a qualquer custo. Uma característica da sociedade moderna é a existência de uma forte burocracia da qual necessitam os personagens do texto para conseguir o presupuesto. Esta [repetir] foi a mesma que modificou o processo eleitoral uruguaio da década de 50. De acordo com as normas constitucionais Luis Battle, considerado por muitos como um populista, não podia concorrer às eleições de 1950, no entanto o fez, embora sem sucesso. Isso não impediria que se tornasse uma figura influente e que voltasse a se candidatar quatro anos depois. Como nos mostra o seguinte fragmento: Aunque según las normas constitucionales Luis Battle no podía concurrir a las elecciones presidenciales de 1950, el resultado, a pesar de ello, pareció muy satisfactorio para su causa. […] Era obvio que Luis Battle seguiría siendo una figura influyente y que volvería a aspirar a la presidencia en 1954. (BETHELL, 2002, p. 165).

A burocracia moderna foi a que permitiu Battle concorrer à presidência, da mesma forma que permitiu aos empregados do escritório do conto a aspirar ao presupuesto. Ambos não atingiram seus objetivos, mas lhes foi permitido ter esperança, que logo se desmanchou no ar. A ferramenta burocrática dá esperança aos homens, posterga a realidade, lhe dá o que outrora fora arrancado deles, no caso do escritório, o aumento. O narrador se apresenta em primeira pessoa. É um ‘oficinista’ e fala desde o escritório em questão. Aquele que nos conta a estória não é isento de opinião, embora quando se trate de tomar voz ativa ele é dependente dos seus superiores e da burocracia que os cercam. O oficinista apenas ouve as notícias trazidas por seus superiores. Estas, dada suas origens e a maneira como são tratadas, levadas de “Oficial” a “Oficial” são deveras duvidosas: Esa paz […] casi definitiva […] se vio un día alterada por la noticia que trajo el oficial segundo. Era sobrino de un Oficial

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão Primero del Ministerio y resulta que ese tío […] había sabido que allí se hablara de un presupuesto nuevo para nuestra Oficina. (BENEDETTI, 1997, p. 11).

Cabe também ressaltar que todos os funcionários do conto são anônimos. Conhecidos apenas pelas funções exercidas o que permite perceber uma relação interpessoal na qual todos enfrentam a situação que se apresenta da mesma forma: a falta do presupuesto, seus cargos e os nomes aos quais se atribuem: Primeiro Oficial, Segundo, Datilógrafa, e Primeiro Auxiliar, por exemplo, podem denotar a hierarquia entre os que dividem o mesmo desejo. Vale ressaltar também que, embora os funcionários não tenham nomes, seus postos de trabalho são grafados com letra maiúscula. Na seqüência do enredo do conto, depois de uma comemoração com bizcochos novas notícias contradizem as primeiras de que o presupuesto estava por chegar. Diferente do que se pensava, o aumento estava na contadoria e não na secretaria do ministério. Acontece que o responsável por este departamento estava doente e sua opinião era necessária para aprovação do aumento. Com isso há um misterioso interesse pela saúde e uma torcida pela melhora do novo desconhecido. En realidad nos pusimos egoístamente alegres, porque esto significaba la posibilidad de que llenaran la vacante y nombraran otro jefe que estudiara al fin nuestro presupuesto. (BENEDETTI, 1997, p. 12).

Depois de sua morte tardou quatro meses para nomearem outro em seu lugar. A demora só serviu para que soubessem que seu esperado presupuesto nunca estivera em estudo, que tudo não passou de um equívoco. Apesar da limitação financeira há, de uma maneira geral, uma sociedade capitalista que se caracteriza pelo consumo, muitas vezes inexplicável do ponto de vista individual. Este está enraizado nos personagens, bem como nos cidadãos da periferia do capitalismo: […] lo primero que se me ocurrió pensar y decir fue lapicera fuente. Hasta el momento yo no sabía que quería comprar una lapicera fuente […] Sabe dios en que tiempos se había enraizado en mi. (BENEDETTI, 1997, p. 11).

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Com a possibilidade de conseguirem o presupuesto eles passam a adquirir objetos dos quais aparentemente não precisariam. Transformam seu desejo em necessidade e ainda que o aumento não passara de especulação “tiraram a espera da vontade”. O que Bauman afirma é que não é preciso efetivamente ter o dinheiro para que se compre algo, então o narrador adquire sua lapicera fuente ainda que não saiba o porquê. Não só ele, mas também os demais funcionários adquirem seus respectivos bens de consumo. Ví y oí además cómo el Auxiliar primero hablaba de una bicicleta y el Jefe contemplaba distraídamente el taco desviado de sus zapatos y una de las dactilógrafas cariñosamente su cartera del último lustro. (BENEDETTI, 1997, p. 11).

Assim é o capitalismo uruguaio, transnacional, tão frágil que no caso do país e dos personagens se desmanchou no ar, no entanto eles têm confiança de que vão receber o aumento. “A autoconfiança moderna deu um brilho inteiramente novo à eterna curiosidade humana sobre o futuro.” (BAUMAN, 2001; 151) Oito meses depois da primeira notícia a lapicera fuente já havia quebrado, assim como a costela do Primeiro Oficial graças a sua bicicleta nova, os livros de um dos funcionários já estavam vendidos e o relógio de outro já atrasava, roupas novas compradas não serviam mais dado o avanço do tempo. Como se percebe, antes do efetivo recebimento do dinheiro, ele já tinha direção. A posse ou não do valor não impediu que este fosse transformado em bens de consumo. O dinheiro ganha uma nova significação na modernidade. A vida em torno do consumo […] deve se bastar sem normas: ela é orientada pela sedução, por desejos sempre crescentes e sempre voláteis – não mais pela regulação normativa. (BAUMAN, 2001, p. 90).

O Uruguai, assim como os oficinistas, não é o efetivo dono do capital transnacional o que interfere na crença de exclusividade do povo uruguaio. Sustentado por uma economia circunstancialmente propícia, sem que se planejassem reformas nas bases de produção de riquezas, conseguiram sobreviver, transitoriamente, pelas boas comercializações de produtos agropecuários durante a segunda guerra Mundial e a Guerra da Coréia. Mas, por trás

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão desse aparente bem-estar, não havia pilares de sustentação e por volta de fins dos anos 50, surgiram problemas de todas as ordens. (VOLPE, 2002, p. 61).

Um tópico importante para a leitura do texto é a mediocridade. “En realidad, la vida que pasábamos allí no era mala.” (BENEDETTI, 1995, p. 10). Percebe-se que o narrador afirma que a realidade no estabelecimento não é ruim nem boa, o que denota uma acomodação com a média. Neste sentido afirma-se que a vida na repartição é medíocre. Esta leitura estende-se para os demais contos do texto e para a realidade uruguaia no presente da narração. Um exemplo de mediocridade é a divisão dos postos de trabalho no escritório: o narrador possui uma função mediana na repartição. Ele não é o chefe, também não é o primeiro oficial ou um datilógrafo ou porteiro. Embora não fique claro, pode-se deduzir que ele exerce uma função intermediária na repartição. Esta característica está presente em outros contos do livro, como por exemplo, “Puntero izquierdo” que narra uma parte da trajetória de um jogador de futebol. Na partida que marca uma das partes centrais da narração, o clímax, o placar é de uma a zero, a mais mediana das vitórias, que também é conhecida como vitória simples. A simplicidade com que é tratado o presupuesto pode ser vista como subserviência, muito embora esta conclusão não passe de uma impressão primária, visto que, no texto, essa pequenez dos personagens ou incapacidade de interferir ativamente no futuro implica uma adaptação ao meio medíocre e burocrático. O narrador se sente como Robinson Crusoé, que, sozinho numa ilha, vê as naves que passam e o quão inútil é a sua agitação a fim de ter o seu presupuesto, no caso de Robinson, a salvação. Y las mirábamos desde nuestra pequeña isla administrativa con la misma desesperada resignación que con que Robinson veía desfilar los barcos por el horizonte, sabiendo que era tan inútil hacer señales como sentir envidia. (BENEDETTI, 1995, p. 11).

A ilha para o narrador é seu pequeno espaço administrativo e as naves que passam são as outras repartições que ganham seus respectivos presupuestos.

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REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt . Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad. Carlos Felipe Moisés; Ana Maria L Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. BENEDETTI, Mario. Cuentos. Madrid: Alianza Editorial, 1997. BETTHEL, Leslie, Historia de América Latina. Traducción castellana de Jordi Beltrán Barcelona (2002 de la traducción castellana para España y América), Editorial Crítica, 2002. CORTÁZAR, Julio. “Alguns aspectos do conto”. In: Valise de cronópio. Trad. Davi Arriguci Júnior. São Paulo, Perspectiva, 1974. GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática. (Série Princípios) 1985. ROMERO, José Luis. América Latina: as cidades e as idéias. Trad. Bella Jozef. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. VOLPE, Miriam Lidia. “A transgressão do discurso latino-americano em Mario Benedetti”. In: Ipotesi: revista de estudos literários, Juiz de Fora, UFJF, v. 6. nº. 2, pp. 59-73, jul./dez. 2002.

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A PELEJA SILENCIADA:O LUGAR DA CULTURA POPULAR NO CABRA MARCADO PRÁ MORRER DE FERREIRA GULLAR

Heleine Fernandes de Souz Afinal de contas, a ideologização impediu que se interrogasse qualquer outra coisa nos processos além dos rastros do dominador. Nunca os do dominado, e muito menos os do conflito. Jesús Martín-Barbero

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utopia de igualdade social e superação das mazelas do subdesenvolvimento, impulsionou, na década de 60, a organização das chamadas Vanguardas Políticas, compostas por intelectuais e artistas brasileiros de esquerda, partidários da idéia de arte como instrumento de politização e elevação do nível de consciência das massas. Assim, responsáveis por produzir modelos de conduta e pôr aquelas no caminho da iluminação e da verdade, num “elitismo heróico dos intelectuais modernos à moda antiga.” (SARLO, 2006, p.166), nas palavras de Beatriz Sarlo, essas idealizadas frentes revolucionárias da Cultura (com letra maiúscula), conservaram a histórica postura paternalista de uma elite que dispensa a fala do povo. Para a classe média engajada, que pretendeu representar uma maioria analfabeta, criando uma nova síntese da identidade nacional, o campo, a favela ou o subúrbio eram tão distantes quanto o Oriente do Orientalismo, no estudo de Edward Said, um negativo do Ocidente. Neste sentido, o Orientalismo constitui a invenção de um Oriente moldado segundo o olhar e os interesses do mundo ocidental. A orientalização se faz tributária da práxis contrastiva que inferioriza o Outro, objeto de representação, subordinando-o à vontade do Eu, sujeito enunciador. Mediação nas relações Ocidente-Oriente, o Orientalismo será lido por Said como discurso de poder, que não remete ao sentido de realidade do Outro, mas se sustenta como discurso autônomo do Eu, que garante a manutenção de determinada hierarquia de vozes.

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Por este viés, o autor propõe a leitura da superficialidade das representações contidas nos textos orientalistas, caracterizados pela exterioridade ao que representam “sempre pautada por alguma versão de truísmo segundo a qual se o Oriente pudesse representar a si mesmo, ele o faria” (SAID, 1990, p.33).Seguindo esta abordagem na leitura da produção do nacional-popular dos anos 60, selecionamos elementos formais do romance de cordel JOÃO BOA-MORTE (cabra marcado prá morrer) encomendado pelo Centro Popular de Cultura carioca (CPC da UNE) a Ferreira Gullar, poeta e crítico de arte caro a este contexto. Apesar de ser privilegiada a mensagem política em prejuízo da elaboração e pesquisa estéticas - de uma visão que antagoniza as duas instâncias da linguagem - a forma programática da literatura cepecista de maneira alguma é despropositada ou neutra, pois o artista da arte popular revolucionária, aquele que opta por ser povo, executa, segundo Carlos Estevam no manifesto do CPC de 62: “o laborioso esforço de adestrar seus poderes formais a ponto de exprimir correntemente na sintaxe das massas os conteúdos originais” (HOLLANDA, 1980, P.19). Essa tentativa de síntese, que já parte de uma diferenciação valorativa entre o que é das massas e o que fosse original, nos permite ler de maneira mais ampla a construção da imagem “daquele que não fala por si”, e, conseqüentemente, a auto-imagem do artista engajado. Após o impasse acerca do que fosse a poesia, decorrido das experiências concreta e neo-concreta, Ferreira Gullar, envolvido com as idéias marxistas e com a participação política, une-se ao CPC, centro de difusão cultural criado por Oduvaldo Viana Filho, Carlos Estevam e Leon Hirszman, respectivamente intelectuais vinculados ao teatro, às ciências sociais e ao cinema. A idéia motriz do CPC era congregar diversas linguagens artísticas no sentido de que elas servissem diretamente à luta política e à transformação imediata da realidade brasileira. Isso implicou em uma mudança na seleção dos temas, da linguagem e do público a que era destinada esta produção. Com gérmen na atividade teatral do Arena e do Teatro Paulista de Estudantes, a idéia deste núcleo de artistas era unir espetáculo e conteúdo social, criando um novo estilo de mise-en-scène alternativo às grandes produções do TBC,que representasse a vida das classes populares, tendo-as como motivação e platéia. Heloísa Buarque de Hollanda, ao tratar da relação arte-sociedade nos anos 60, fala da “concepção de arte como serviço” (idem, P.17), o que no caso do CPC será a fórmula de um discurso artístico bem intencionado, porém bastante ingênuo.

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Seguindo a orientação de que fosse feito um poema no estilo dos cantadores de feira sobre a reforma agrária para servir de base a um espetáculo teatral, Ferreira Gullar em seu romance de cordel opta por uma linguagem linear, narrativa e literariamente despretensiosa, misturando elementos da literatura oral e da canônica, segundo preceitos da polêmica Cultura Popular (cultura feita não pelo mas para o povo), de que também foi teórico. A simplicidade característica dos textos de conscientização e propaganda ideológica, que visa um entendimento facilitado da mensagem revolucionária, aponta especialmente para as concepções acerca do público a que eram teoricamente dirigidos. A diminuição da qualidade artística não só não garantiu uma maior comunicabilidade com operários e camponeses como conservou a distância entre classes médias e classes mais baixas. Os espetáculos do CPC funcionaram muito mais como veículo de conscientização de uma platéia universitária de esquerda, veiculando uma imagem de povo sobressalente a sua existência autônoma. Ainda no Manifesto CPC de 62, Carlos Estevam se refere ao “atraso cultural do povo” e “às condições primárias da sensibilidade popular” (idem, P.133) que obrigariam o artista engajado à limitação de suas habilidades. A obra de arte não é vista como um fim em si mas como meio de estabelecer uma relação didática com o público. A literatura popular, aquela feita pelo e para o povo, é tida como defeituosa, sendo necessário o conteúdo revolucionário-paternalista do intelectual para corrigi-la. A apropriação de elementos dos “romances de barbante” [como Cabral os chama no poema Descoberta da Literatura (NETO, 1980, P.74)] confere a estes um novo sentido devido ao novo contexto em que são inseridas estas formas. A mudança na intenção do uso aponta para uma mediação outra que “numa dupla operação de desconexão e recomposição” (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 265) desloca os sentidos de uma configuração anterior. Assim, rimas em –ÃO, o heptassílabo, repetições e inversões sintáticas – elementos aliás presentes em toda a tradição da literatura ocidental, oral e escrita –, somados a vocábulos regionais como “sucedeu” ou “cabra da peste”, não coincidem em função e significação nos romances dos poetas populares e no romance de cordel engajado. Porque a intenção do poeta da arte popular revolucionária é corrigir o guenzo dos folhetos, principalmente no sentido de incutir-lhes a mensagem esclarecida e conscientizante. Trazemos para ilustrar a discussão 4 estrofes que iniciam o cordel de Ferreira Gullar:

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JOÃO BOA-MORTE (cabra marcado prá morrer) Vou contar PARA vocês Um caso quesucedeu Na Paraíba do Norte Com um homem que se chamava Pedro João Boa-Morte, Lavrador de Chapadinha: Talvez tenha morte boa Porque vida ele não tinha. Sucedeu na Paraíba Mas é uma história banal Em todo aquele Nordeste. Podia ser em Sergipe, Pernambuco ou Maranhão, Que todo cabra da peste Ali se chama João Boa-Morte,vida não. […] Trabalhava noite e dia Nas terras do fazendeiro. Mal dormia, mal comia, Mal recebia dinheiro; Se recebia não dava Pra acender o candeeiro. João não sabia como Fugir desse cativeiro. Olhava pras seis crianças De olhos cavados de fome, Já consumindo a infância Na dura faina da roça. Sentia um nó na garganta. Quando uma delas almoça, As outras não; a que janta, No outro dia não almoça. (GULLAR, 1962, p. 22-23)

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As rimas em –ão são bastante comuns na literatura oral brasileira. Na apropriação feita por Ferreira Gullar, estas aparecem em rimas internas e externas, reiterando, ao longo do poema, a palavra NÃO. Por isso –ão ganha uma significação negativa na construção da trama e dos personagens de João “Boa-Morte,vida não”. O heptassílabo e as repetições de vocábulos são recursos que conferem ritmo e musicalidade ao texto e que, para os cantadores de viola, servia à memorização e criação dos mesmos na ausência do suporte da escrita. Já no cordel de Ferreira Gullar, estes elementos, mimetizados, parecem funcionar em favor de um didatismo que preza pela clareza na transmissão das informações. O efeito de confusão provocado por jogos de palavras e inversões, muito presentes nos enigmas, trava-línguas e outras formas usadas nos desafios entre poetas populares, não é aproveitado pelo poeta do CPC que valoriza a clareza da mensagem em detrimento do artesanato da forma, um impedimento à conscientização política. Cego Aderaldo em peleja faz o seu “quadrão”: Eu canto o quadro quadrado, Quadrado bem quadrejado, Meu quadro é quadriculado Por causa da quadração, Porque minhas quadras são De maneira bem quadrada, Por isso meus versos enquadra Quadrado, quadra e quadrão. (BATISTA, 1982, p. 31) Uma possível eficiência formal do poeta popular era associada ao “conceito tradicionalista” que, segundo Sebastião Uchoa Leite, em texto cepecista de 1965, “…reconhece no povo a sua alta capacidade de transposição estética, mesmo sendo esta capacidade limitada pela ignorância ou pela ingenuidade. Ora, esses fatores justamente são os que impedem que o horizonte cultural […] do homem do povo se amplie.” (LEITE, 1986, p.188) Quanto à escolha vocabular, já desde o início do poema percebe-se a alternância entre as grafias da preposição prá, pautada na oralidade, e para, com referência à formação letrada. Esta oscilação percorre todo o texto, denunciando a presença de um narrador que cria ficcionalmente uma identificação com o povo ao mesmo tempo que quer diferenciar-se dele. Por isso, pra, outros vocábulos

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da oralidade como ‘sucedeu” e “cabra-da-peste”, aparecem marcados por uma artificialidade que lhes dá nova significação. O povo e suas concepções artístico-culturais e de mundo são vistos como inferiores às do intelectual, que tem por missão civilizá-lo, sem consciência da barbárie que promove (a qual, no entanto, Walter Benjamin sublinha severamente). Segundo o Ferreira Gullar teórico do ensaio Cultura Posta em Questão (1965),“A cultura popular é, em suma, a tomada de consciência da realidade brasileira”(BRAIT, 1981, P. 85) realizada avant gard pelos intelectuais e artistas engajados (fazendo-se a ressalva da não-homogeneidade acerca do sentido desta idéia dentro do CPC). Postula-se uma espécie de monopólio simbólico sobre essa realidade, forjada una, que encontra justificação em um discurso de inconsciência e alienação da população que emperrariam a arrancada política, econômica e social do país. A obra engajada então é o espelho da ficcionalização do povo feita pelo intelectual que vê a arte não como abertura de sentido, mas como instrumento doutrinário, que privilegia uma versão sobre a totalidade do real. O panfleto de cordel se interpõe à auto-representação realizada pelos poetas populares, porta-vozes da “letra analfabeta”(NETO, 1980, P.74). Patativa do Assaré, poeta que viveu a chegada da modernização sob a perspectiva do homem do campo, foi um dos muitos que cantou este momento de intensas trocas e conflitos culturais. Sou um poeta do mato Vivo afastado dos meios Minha rude lira canta Casos bonitos e feios Canto os meus sentimentos E os sentimentos alheios. (ASSARÉ, 2007, P. 73) Na estrofe de abertura do folheto “O Padre Henrique e o Dragão da Maldade” (1969), em que o cantador apresenta suas qualidades poéticas ao público, leitor ou ouvinte, o “poeta do mato” não detém poder (ainda) sobre os novos meios e códigos de comunicação. Canta através da re-significada lira clássica que, apesar do feitio rude – ou graças ao mesmo – não constrange os mais diversos sentimentos, bonitos e feios. Os reiterados nãos ao canto/fazer poético, tomado o paradigma urbano - do mato, afastado, rude, casos feios – convertem-se em sim, 162

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irreverente, no sentido de afirmação da potência e autonomia da inteligência popular em face das adversidades e convencionalismos do meio social. Aquele que realiza esta reviravolta, a negação da negação, é que se mostra apto a realizar a auto-representação dos silenciados, que não se pretende definitiva. A ineficácia da diminuição da qualidade estética em prol de uma maior comunicabilidade e transformação social torna-se mais evidente a partir do golpe de 64. A atividade cepecista não foi empecilho ao golpe de direita, sobrevivendo em parte integrada ao sistema até 68. Lembrando Maiakovski, quando ele se referia à indissociável relação entre forma e revolução, é inevitável entender como populista o “…revolucionar a sociedade é passar o poder ao povo” (HOLLANDA, 1980, P.131) presente no Manifesto do CPC de 62. Pouco há de revolucionário em reiterar os códigos da cultura letrada e sua visão sobre a iletrada. Desta maneira, a aliança intelectual-povo não se realiza no CABRA MARCADO PRÁ MORRER de Ferreira Gullar pelos elementos da poesia feita pelos artistas do povo se encontrarem subordinados à leitura do intelectual engajado. A forma literária cepecista não subverte as hierarquias sociais estabelecidas, antes as reproduz. Não se modificam os lugares de fala e de escuta (os lugares do saber e da Cultura). Dá-se assim não um diálogo, mas o monólogo do artista letrado que, através de um conceito limitador de arte, feita instrumento ideológico e veículo de uma verdade única, fracassa em romper com as barreiras de classe.

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REFERÊNCIAS

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DO ACESSO RESTRITO À ESCRITA FEMININA NO SÉC. XIX: AS CORRESPONDÊNCIAS DE MANUELA SÁENZ

Isabela Roque Loureiro CEFET/RJ, UFRJ

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conquista e a colonização espanhola deixaram marcas indeléveis no povo americano. Esse, após a Independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa, o enfraquecimento da monarquia na Espanha ea ida da família real portuguesa para o Brasil, se viu inegavelmente motivado com as diversas transformações sociais, econômicas, culturais, educacionais e, sobretudo, políticas, ocorridas na América do Norte enas grandes potências europeias. Essas mudanças repercutiram poderosamente no processo de emancipação americana, e o apoio dos liberais espanhóis foi essencial nas numerosas lutas de independência na América, determinadas principalmente pelopensamento ilustrado que enfatizava a liberdade, a igualdade, os direitos civis, o governo das leis, a representação constitucional e o laissez-faire econômico. No início do século XIX, muitas foram as vozes que, através de jornais, revistas e textos literários, se manifestaram a favor de uma sociedade mais livre, independente. A literatura, que, até então, pouco se preocupava com as expressões políticas e sociais, transformou-se num importante veículo de discussão e difusão de ideias, uma vez que questões relacionadas à realidade americana passam a ser incluídas nos textos literários, sob uma perspectiva mais crítica. Com a massiva expansão do texto impresso, um dos públicos favorecidos foio feminino. Motivadas com a formação de um novo panorama político, social, cultural e educacional na América Hispânica, as mulherespassaram a ingressar, com muito prazer, no mundo das letras, tornando-se, indiscutivelmente, expressivas consumidoras da literatura popular, em especial do romance, entendido como um relatório completo e autêntico da experiência humana (WATT, 1984).Esse gêneropassou rapidamente a fazer parte da esfera privada a qual estavam submetidas

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as mulheres hispano-americanas do séc. XIX; logo, não foi difícil compreender o porquê de o romance ter se tornado uma das mais acessíveis e preferíveis fontes de entretenimento feminino, sobretudo, se levamos em consideração o fato de a leitora se identificar plenamente com as experiências das personagens retratadas pelos romancistas, decifrando, em muitos casos,sua própria vida através das ficções (CAVALLO & CHARTIER, 2002). Imbuídas por um espírito leitor, muitas são as mulheres que passam a dedicar o seu tempo para ler, desejar e sonhar com os mundos imaginários ou concretos que lhes chegavam por meio da leitura, compensando-as das frustrações e do isolamento vivido, devido ao grande tempo de permanência na privacidade doméstica, cuidando da família e do lar. No entanto, esse consumo cada vez mais expressivo de textos literários por parte das mulheres hispano-americanas chamou a atenção de muitas autoridades do Estado e da Igreja quanto à questão do conteúdo presente nas publicações. Apesar de muitas obras terem sido concebidas com o intuito moralizante e pedagógico, a figura da heroína romântica que tudo fazia para encontrar a felicidade, o amor verdadeiro, representava um grande risco a uma série de princípios edificados por valores morais e religiosos, pois deturpavam os conceitos de pureza e inocência que todas as mulheres deveriam aceitar e manter. Durante muitos séculos, a leitura feminina foi submetida a um severo controle que justificava a mediação necessária do clero e de poderes absolutos, por temor às interpretações selvagens e grotescas que podiam levá-las ao caminho da perdição. Satirizando essa intervenção, Voltaire no panfleto satírico “Sobre o terrível perigo da leitura” escreveu ironicamente que os livros “dissipam a ignorância, a custódia e a salvaguarda dos estados bem policiados”1, no intuito de evidenciar a existência da censura como uma prática utilizada pelas autoridades para assegurar o poder público. “Projetadas no imaginário social pelas identificações e identidades de dóceis, respeitosas, virgens, anjos do lar,” (MAGNABOSCO, 2003), a mulher deveria aceitar a domesticação dos seus anseios, pois qualquer desvio na recepção das tradições seria interpretado negativamente como uma forma de subverter a ordem

Ver Voltaire, “De l’horrible danger de la lecture”, em Mémoires, suivis de mélanges divers et precédés de “Voltaire Démiurge”par Paul Souday (Paris, 1927).

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e a moral vigentes.Assim sendo, a natureza feminina precisaria ser domada pela sociedade e, sobretudo, pela educação para que as mulheres pudessem cumprir o destino que estariam naturalmente designadas (KEHL, 1998, p.58). A educação feminina no século XIX priorizava a conservação do pudor, da vergonha, a moderação dos sentimentos e o controle da carne, principalmente se consideramos o fato de o ato sexual não se destinar ao prazer, mas sim à procriação. A maternidade era vista como a verdadeira essência da mulher, e somente através dela é que as mulheres poderiam se livrar dos desejos manifestados pela sexualidade e censurados pela sociedade predominantemente masculina da época. A educação recebida pelas mulheres oitocentistas na América Hispânica era moralizante e limitada, divergindo-se, em muitos aspectos, da educação masculina, muito mais ampla e menos repressiva. O saber em demasia era contrário à feminilidade, podendo desencadear a ruptura do juízo e a contaminação da alma: “[…] os conhecimentos avançados que tivesse uma mulher podiam por em perigo sua reputação, além de desmerecer suas qualidades de esposa e mãe” (GUIÑAZÚ & MARTIN, 2001, p.19. Tradução nossa)2. O conteúdo destinado ao público feminino deveria, portanto, ser cuidadosamente selecionado para que este não pudesse ocasionar sérios danos à natureza feminina. No entanto, as frequentes intervenções e censuras feitas pela Igreja, pelo Estado e, muitas vezes, pela própria família, não inibiram, nem tampouco impediram que muitas mulheres hispano-americanas passassem a desempenhar um novo papel na sociedade, além daquele destinado à família e ao casamento: o de sujeito criador. As mulheres, então, passaram a produzir textos. Para Alain Girard (1996), “entre todos os textos escritos, nenhum pode informar melhor sobre a imagem do que os escritos em primeira pessoa” (Ibidem, p.38. Tradução nossa)3. Por intermédio de textos como esses, as mulheresregistraram acontecimentos próximos ao momento da escrita que as motivaram a tomar a palavra para si, revelando-nosos seus interesses individuais, familiares e políticos, ao mesmo tempo em que davam testemunho dos costumes e das “[…] los conocimientos avanzados que tuviera una mujer podían poner en peligro su reputación, además de desmerecer sus cualidades de esposa y madre”. 3 “entre todos los textos escritos, ninguno puede informar mejor sobre la imagen del yo que los escritos en primera persona”. 2

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opiniões. Isso contribuiu expressivamente para o surgimento uma visão muito particular da época e do ambiente em que elas viveram. A escrita consolidou uma das maiores preocupações femininas naquele período: o direito de a mulher escrever epublicar os seus textos literários. Submetidas ao rigor vigilante de uma sociedade que, de forma bem lenta e gradativa, se atreve ao questionamento próprio, muitas foram as mulheres hispano-americanasque recorreram à escritura pessoal para dar asas às imaginações proibidas, e dentre elas, merece destaque pela intensidade e paixão, assim como pelo engajamento político, a escritora equatoriana Manuela Sáenz (1795-1856), uma das figuras femininas mais significativas dentro da história da libertação da América Hispânica. Manuela Sáenz, contra a vontade de seu pai e de seu marido, tornou-se partidária da Independência, abraçando a grandiosaempresa bolivariana. Considerada uma das mulheres mais ativas no ambiente social e políticoda América Hispânica no séc. XIX, Manuela ficou conhecida como a “Caballeresca del Sol”, por seus valiosos serviços prestados à rebelião no Peru, e também como a “Libertadora del Libertador”, por ter protegido o general Simón Bolívar, o seu grande amor, de vários atentados políticos organizados pela oposição em Bogotá. Com um tom bastante desafiadorpara uma época em que a mulher ainda se encontrava submetida às rédeas de uma sociedade predominantemente masculina e, em muitos aspectos, machista, Sáenz questionou as regras sociais vigentes e escandalizou a sociedade equatoriana ao declarar explicitamente a ruína de seu casamento. Inúmeras são as cartas em que podemos vislumbrar o descontentamento da escritora com a vida que levava ao lado de seu legítimo esposo, o comerciante inglês James Thorne. Vejamos um fragmento de uma das epístolas de Manuela a Simón Bolívar, datada em 18 de maio de 1825, em que ela confessa ao revolucionário não suportar mais o “desatinado matrimonio” que, ao invés de fazê-la feliz a envelhecia: Muy Señor mío, Yo sólo sé que usted hace más difícil en cuanto se entretiene en homenajes muy justamente rendidos en honor a la Gloria de usted; cosa que en cierto modo me resarce de su ausencia y me alimenta en lo que en mí refleja su sombra de Gloria. Sí, porque sólo la sombra de usted, mi Glorioso Libertador, es la que me cubre en el absurdo de mi conveniencia en este 168

Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão hogar que aborrezco con todo mi corazón. Mi mortificación va en el sentido de la ausencia de usted, aunque no me entristece todavía, pues guardo su imagen constante como aliciente de este desatinado matrimonio que lejos de enriquecerme me envilece, por el desagrado con el que atiendo las cosas de la casa como matrona. Contésteme usted aunque sea sólo una línea, ¿sí? Dele vida a esta pobre mujer que amargurada por las circunstancias desea solo estar a su lado y no apartada de usted. Suya, Manuela.4.

A idolatria por Simón Bolívar fez com que a “Caballeresca del Sol” abandonasse o marido para viver livremente o romanceproibido com o libertador. O posicionamento transgressor de Manuela suscitou uma série de críticas por parte da sociedade equatoriana da época. No entanto, apesar de ver seu nome consequentemente caluniado pelos adversários, Sáenz, em suas cartas, declarava indiferença a essa sociedade corrompida que cruelmente a condenava, demonstrando não se importar, de forma alguma, com os convencionalismos existentes. Para Manuela, o amor de Bolívar era a única matéria que lhe importava. Citamos: Mi amor idolatrado: En la anterior comenté a usted de mi decisión de seguir amándole, aún a costa de cualquier impedimento o convencionalismos, que en mí no dan preocupación alguna por seguirlos. ¡Sé qué es lo que debo hacer y punto!5 E também: […] me sobra mucho ¡demasiado amor para dárselo ¡Lo único que me importa es su amor, sentirme segura en sus brazos!

Todas as citações referentes às correspondências de Manuela Sáenz foram extraídas da obra La mujeres toman la palabra- escritura feminina del siglo XIX en Hispanoamérica. Vol. II, de María Cristina Arambel Guiñazú & Claire Emilie Martin. Madrid: Iberoamericana, 2001. p.35. 5 Ibidem, p.33. 4

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares Ahora dirá usted que soy libidinosa por todo lo que voy a decir: que me bese toda, como me dejó enseñada, ¿no lo ve? ¿Cómo me las arreglaré sin la presencia de usted? Pregunto ¿por qué me ha dejado enamorada? ¡Con el alma en pedazos! Usted dice que el amor nos libera. Sí pero juntos.6

Após a separação, Sáenz passa a posicionar-se radicalmente contra o casamento convencional, ou seja, contra o relacionamento sem amor, geralmente orquestrado entre as famílias dos noivos. Não obstante, esse posicionamento teve um preço dispendioso. A resposta dada pela conservadora sociedade patriarcal do séc. XIX à Manuela Sáenz foi o repúdio. Indiferente a esse desprezo, ela não desvanecia, condição que se deve, especialmente, pelo fato de Manuela não viver em função das preocupações sociais, tal como afirmou em uma de suas cartas a Bolívar. Demonstrava sempre muita confiança e segurança em si mesma, não temendo qualquer tipo de represaria por parte do marido e da sociedade equatoriana, que muito criticou o seu posicionamento transgressor. Em suas cartas amorosas, Manuela, por meio de uma linguagem erótica, anuncia abertamente o seu desejo por Bolívar. O prazer explícito da sexualidade é, por sua vez, uma das principais características dos textos amorosos de Sáenz. Suas correspondências chamam a atenção para as marcantes referências do corpo e para o erotismo explícito, diferenciando-se, neste aspecto, do estilo das cartas das escritoras Condessa de Merlin e Gómez de Avellaneda que, segundo Guiñazú & Martin (2001, p.33. Tradução nossa), “ocultam o corpo sob sugestões veladas”7. Segundo Consuelo Navarro: “Manuela justifica sua escrita como uma tarefa em meio à solidão. Disse que escreve para se distrair e que o faz com sinceridade, pois escreve para si mesma”8, o que corrobora a existência de uma escrita despretensiosa e desprovida de aspirações literárias. A equatoriana é indiscutivelmente uma das primeiras mulheres hispano-americanas, no séc. XIX, que, através de seus textos, afirma a integridade do seu “eu”, o que muito contribui para o nascimento de uma escrita feminina que expressa livremente a riqueza e a variedade do erotismo da mulher. E é através dessa linguagem, completamente inovadora e Ibidem, p.34. “ocultan el cuerpo bajo sugerencias veladas”. 8 “Manuela justifica su escritura como quehacer en medio de la soledad. Dice que escribe para distraerse y que lo hace con sinceridad pues escribe para sí misma”. 6 7

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transformadora, que as mulheres oitocentistas passam a ter consciência do poder de sua voz, antes condenada e oprimida pelo conservadorismo exacerbado. Autora de um discurso incontestavelmente feminino e antipatriarcal por excelência, Manuela Sáenz escrevia desde sua perspectiva de mulher e estendia a ideia de liberdade ao âmbito doméstico, opondo-se severamente à autoridade masculina, posto que defendia não só o direito da mulher separar-se do marido como também o livre acesso dela aos domínios público, de maneira a incentivar a participação feminina no cenário político. Dessa forma, notamos que a concepção de liberdade que predicava Manuela encontrava-se exprimida em vários níveis: no pessoal, no social e, fundamentalmente, no político, o que nos evidencia a presença de um caráter essencialmente liberal. Movida pelo entusiasmo patriótico, em 1823, a escritora tentou convencer o general Simón Bolívar a deixá-la participar do processo de Independência. O pedido confirma não só a devoção e o incondicional amor de Manuela pelo revolucionário como também o seu destemor, uma vez que afirmou não se importar com sua condição de mulher, posicionamento que destaca ainda mais a altivez de seu caráter. Vejamos a carta de 16 de junho de 1824: Mi querido Simón Mi amado: Las condiciones adversas que se presentan en el camino de la campaña en que usted piensa realizar, no intimidan mi condición de mujer. Por el contrario, yo las reto, ¡Qué piensa usted de mí! Usted siempre me ha dicho que tengo más pantalones que cualquier de sus oficiales, ¿no? De corazón le digo: no tendrá usted más fiel compañera que yo y no saldrá de mis labios queja alguna que lo haga arrepentirse de la decisión de aceptarme. ¿Me lleva usted? Pues allá voy. Que nos es condición temeraria ésta, sino de valor y de amor a la independencia (no se sienta usted celoso). Suya siempre, Manuela (GUIÑAZÚ & MARTIN, 2001, p.33).

Após o consentimento de Bolívar, Manuela Sáenz prontamente se alista ao exército libertador, participando ativamente das batalhas de Junín, em 06 de agosto de 1824, e de Ayacucho, em 09 de dezembro de 1824. Nelas, destacou-se pela valentia e pela bravura, comportamento um tanto atípico para a maioria das

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mulheres educadas em função do modelo de feminilidade, que defendia o recato, a contenção e o pudor. No entanto, a vida da apaixonada libertadora não esteve consagrada apenas por momentos gloriosos. Em razão do caráter revolucionário deManuela, grande parte dosseus textos foi condenada à censura com o argumento de promover a distorção da imagem exemplar da mulher e também de conduzi-la a buscar uma realização individual, ainda que para isso fosse necessário seguir uma conduta avessa aos princípios cristãos. Após a morte de Simón Bolívar, a perseguição e o exílio foram algumas das principais dificuldades que Manuela teve de enfrentar por expressar, conscientemente, suas experiências e por criar um espaço discursivo que permitia um importante intercambio de ideias, sejam elas políticas, econômicas ou sociais. Proibida de voltar para o Equador, Manuela dirige-se a Pueblo de Paita, onde vivera até os últimos dias de sua vida. No Peru, deparou-se com uma vida extremamente desafortunada, marcada pela pobreza e por intensas limitações, especialmente após a queda que a deixara paralítica e confinada em uma velha cadeira, morrendo em 23 de novembro de 1856. Sáenz foi uma mulher à frente de seu tempo, e seus escritos se destacaram não só pelos pensamentos e conceitos transgressores, capazes de questionar os costumes mais tradicionais da sociedade oitocentista, mas possivelmente por terem antecipado o que fora defendido, com muita ênfase, pelas mulheres que encabeçaram os principais movimentos feministas na América Latina no século XX: a emancipação da mulher. Manuela Sáenz é, sem dúvida, uma figura emblemática. Defendeu energicamente a construção de uma voz feminina ativa, remetendo-nos, a todo instante, à ideia de direitos iguais, de paixão e de liberdade, e foi justamente por isso que decidimos, neste breve ensaio, homenageá-la, na esperança de manter sua presença cada vez mais viva dentro do círculo de estudos literários hispânicos.

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REFERÊNCIAS

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SANTOS, Ana Maria Pessoa. Cartas do sobrado. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2008. SOCORRO, Milagros. Manuela Sáenz. Caracas, noviembre de 2000. Disponível em: http://www.analitica.com/bitblioteca/msocorro/manuela.asp. Acesso em nov.2009. WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO INTANGÍVEL NA CIDADE DE NOVA FRIBURGO/RJ

Jonathan da Rocha Silva (CEFET/RJ) Rodrigo De Benedictis Delphino (IFSP)

Introdução – A fundação de Nova Friburgo

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cidade de Nova Friburgo, localizada na região serrana do estado do Rio de Janeiro na sua história, que data do século XIX, teve colonização européia, com destaque para a colônia de suíços. Em 6 de maio de 1818, Monsenhor Miranda é nomeado Inspetor e Administrador Geral da colônia pelo rei D. João VI que lhe atribui importante missão: comprar a fazenda de Morro Queimado, localizada ao norte da Baía de Guanabara, a uma altitude de 847 m acima do nível do mar, na vertente norte da cadeia da Serra do Mar. Local este considerado ideal para fixar a colônia suíça. (Pro memória) A história da colonização suíça no Brasil, mais especificamente da fundação de Nova Friburgo, surgiu do que os jornais suíços chamavam de uma "atitude generosa" de um compatriota Sébastien-Nicolas Gachet que propôs a d. João VI formar, não muito longe da capital Rio de Janeiro, uma colônia de suíços que ajudaria a socorrer os 'pobres' habitantes do cantão de Fribourg. (SANGLARD, 2003). Em 1818, um grupo de mais de dois mil suíços saiu, com a intenção de se fixar na terra, fugindo da fome que assolara seu país e, também,atraídos pelas promessas do Governo de D. João de doar lotes de terras, onde poderiam viver com suas famílias. Depois de uma longa e sofrida travessia do Atlântico, apenas 1631 suíços chegaram e foram fixados em terras em Morro Queimado, na província do Rio de Janeiro, fundando a vila de Nova Friburgo. (www.multirio.rj.gov.br). Impulsionada pelo desenvolvimento das fazendas de café em Cantagalo, a colônia de Nova Friburgo prospera como importante núcleo urbano. Esse desenvolvimento induz ao decreto nº 1637, de 1871, que torna Nova Friburgo em Vila,

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares independente da Comarca de Cantagalo, sendo elevada à categoria de cidade em 1890, 70 anos após a chegada dos primeiros colonos. .

Nova Friburgo está localizada a 136km da cidade do Rio de Janeiro e o município tem uma das maiores áreas preservadas de Mata Atlântica do Brasil. O clima é um dos mais frios do estado. Sua economia atualmente baseia-se na indústria de moda íntima que transformou a cidade num pólo de compras com turistas de todas as partes do país. Nova Friburgo por ter tido colonização européia e também ter sido a única cidade criada por Dom João VI tem várias edificações históricas além de um vasto repertório de patrimônio cultural intangível como festas, artesanato e gastronomia típica. O patrimônio cultural O conceito de patrimônio subdivide-se de acordo com a UNESCO em duas categorias: patrimônio natural relacionado ao meio ambiente são os recursos naturais como florestas, rios, cachoeiras e a segunda refere-se ao patrimônio cultural que se subdivide em intangível, que corresponde ao conhecimento, às técnicas, o saber fazer e ao tangível, que se refere aos bens culturais que englobam objetos, artefatos e bens edificados obtidos a partir do meio ambiente. Em 1972 foi realizada uma convenção pela UNESCO com o objetivo de proteger o patrimônio cultural e natural. Foi elaborado um inventário dos bens mundiais que se encontravam ameaçados de destruição devido ao desgaste natural e à expansão econômica e social (UNESCO, 1972). Segundo esta convenção, o conceito de patrimônio cultural tangível se aplica aos monumentos, obras arquitetônicas; os conjuntos através de construções isoladas ou reunidas que pelo seu estilo arquitetônico apresentam valor histórico; assim como sítios arqueológicos com inestimável valor histórico ou antropológico. Em setembro de 1977 o Brasil aderiu a esta convenção com a intenção de incluir alguns bens na relação de patrimônio mundial. Tratava-se de uma iniciativa que buscava conseguir o registro e preservar uma parte da história do país, tentando impedir que a urbanização e modernização dos municípios destruíssem boa parte desse patrimônio (DELPHINO, 2009, p. 33).

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Embora exista essa proteção, os exemplares de Nova Friburgo sofreram e ainda sofrem forte pressão que muitas vezes tem levado a sua destruição por inteiro. Segundo um dos entrevistados, na cidade alguns casarões históricos foram derrubados para a construção de shoppings e de estacionamentos, levando a perda da identidade e memória local. Esse problema pode resultar da distância existente entre o patrimônio histórico-cultural e a maioria da população. Muitos não reconhecem seu valor significativo como representante de uma época, ou de um povo. Uma das hipóteses em voga é de que o que é preservado remete as elites e não ao povo. Para Canclini (1999, p. 18): […] O patrimônio cultural serve como recurso para reproduzir diferenças entre os grupos sociais e a hegemonia dos grupos dominantes que impõe um acesso preferencial à produção e distribuição dos bens. Esses grupos é que definem quais bens são superiores e devem ser conservados.

O município de Nova Friburgo foi ricoemexemplaresde patrimônio cultural tangível e intangível, mas muitos turistas e até mesmo moradores desconhecem tais exemplares pois muitos já foram destruídos ou descaracterizados. O progresso é inevitável, a cidade tem de crescer, ainda mais uma cidade que não depende economicamente apenas do Turismo. Mas esse legado que está sendo menosprezado representa a história da comunidade da região, representa um passado de toda uma nação. Para Gonçalves (2002, p. 89) a proteção do patrimônio se justifica pela identificação de uma situação de desaparecimento e destruição de bens móveis e imóveis, porém não basta apenas catalogar e esperar que isso seja respeitado. Os entrevistados para esta pesquisa foram unânimes com relação a qualidade da preservação do patrimônio cultural. Todos citaram como exemplo as danças típicas que se perderam no tempo, por falta de interesse da população jovem, que deveria ser estimulada pela prefeitura que também nada faz, mas muitas vezes se apropria da nomenclatura histórica para promover um evento atual, descaracterizando totalmente uma tradição. De acordo com Gonçalves (2002) durante anos vários objetos de valor foram comercializados por colecionadores do Rio de Janeiro e São Paulo e até mesmo do exterior, ao que classifica como morte de uma nação, de uma comunidade. 177

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São pedaços da história de um povo que estão adornando uma sala de estar, um escritório com pouca ou nenhuma visibilidade, apenas para agradar as elites. Gonçalves (2002) chama isso de retórica da perda, ou seja, a dilapidação do patrimônio cultural nacional, muitas vezes, com a benevolência das autoridades. No município de Nova Friburgo ainda existem exemplares que podem ser recuperados e preservados, porém é preciso transpor a indiferença da população mais jovem que só pensa no futuro e esquece que existiu um passado. Para Meneses (1992, p. 189): Falar de patrimônio cultural é falar de valores. […] Neste processo, as coisas materiais e seus atributos têm uma enorme importância para a comunidade local.

Um dos grandes problemas motivadores dessa indiferença está ligado à educação, visto que o programa de educação patrimonial é modesto no país, bem como os precários incentivos públicos permanentes visando a preservação, valorização e aproximação do cidadão com o patrimônio histórico cultural. De acordo com Gutiérrez (1992, p. 124): Na noção de bem comum que está implícita em toda política de defesa do patrimônio cultural, os valores de identidade e referência estão articulados à importância que tenham estes bens na vida da comunidade.

De acordo com a Constituição Federal Brasileira de 1988, no seu artigo 216, parágrafo primeiro, o poder público, juntamente com a colaboração da comunidade tem a responsabilidade de promover e proteger o patrimônio cultural. Na teoria é bastante interessante, mas de acordo com Meneses (1992) nossa sociedade preferiu transferir suas culpas e utopias para a Carta Magna. Para Delphino (2009, p. 52) embora a constituição tenha tal artigo, no centro do município, analisando as entrevistas e observando o patrimônio foi possível perceber que nem sempre a prefeitura local está disposta a investir na preservação, pois a cidade tem que crescer, mesmo que para isso seja necessário abrir mão de parte da história local. Para Meneses (1992) as políticas culturais oficiais serão sempre insatisfatórias. Segundo Magalhães (1984 apud GONÇALVES, 2002, p. 98) essa herança cultural européia, implementada no Brasil a partir dos anos de 1930 com uma exclusiva valorização dos bens culturais das elites, é uma das responsáveis pela

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indiferença da população, que não vê necessidade de preservar, por exemplo, um imóvel que pertenceu a uma marquesa, pois ele não se reconhece nele. Conforme Engels (apud SEGRE, 1992) há uma separação radical entre burguesia e proletariado no uso e percepção do espaço urbano. Portanto em espaços que a população acredita terem pertencido às elites, o cidadão simplesmente ignora, não se interessa com seu destino (DELPHINO, 2009). A memória local Conforme relatado anteriormente essa pressão no patrimônio cultural favorece a perda da memória da comunidade local. Para Decca (1992, p. 133): A história vivida atualmente vem sofrendo rupturas sem precedentes com relação ao passado, e o equilíbrio instável do presente atesta essa perda da continuidade histórica, além de deixar em suspenso o próprio devir das sociedades contemporâneas.

A imagem do centro histórico original está restrita a poucos moradores que ainda guardam em suas memórias como a cidade era e todas as festividades que aconteciam e que foram perdidas com o passar dos anos. O poder público local deveria ter elaborado e implementado políticas públicas visando à manutenção desse legado, mas o que se vê é a perda do patrimônio cultural, com a população jovem com pouco interesse na preservação desse patrimônio. De acordo com Lombardi (1992) é preciso considerar a cidade como um série de monumentos por meios dos quais nós podemos reconhecer as transformações ocorridas no tempo, é possível identificar toda a história local, como a cidade se desenvolveu ao longo do tempo, demonstrando a vital importância da preservação de tais bens. A urbanização do município não pode afetar a história, a memória da localidade, simplesmente em prol do progresso. Para Gutiérrez (1992, p. 124): Existe uma problemática do entorno e a integração da obra no conjunto em cidades históricas, […], onde urgências sociais e carências de recursos impedem que esse patrimônio seja tratado como deveria.

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O patrimônio não pode ser tombado e preservado e ficar fechado, é preciso dar um uso, uma destinação e para que isso aconteça é muito importante atrair a comunidade local para tais espaços, seja como moradia, seja como espaço de sociabilidade. Aliado a isso é primordial que a memória local não desapareça ou fique restrita a população mais velha, mas todos os entrevistados acima de quarenta anos lembraram-se de festas e receitas gastronômicas que a população jovem, na casa dos vinte anos nem sabe de sua existência. Segundo Mattos (1992, p.153): O enraizamento numa tradição significa nosso pertencimento a pontos de origem, porque só podemos saber quem somos hoje se reconhecermos nosso ponto de partida.

Ou seja, a valorização da cidadania encontra-se associada a valorização do passado, da identidade e da memória. De acordo com Benjamin (apud MATTOS, 1992, p. 153): Existem duas formas de memória, o Monumento que faz parte da memória oficial, que é feito para durar e ter um significado, e o Documento que fica aos pedaços, sem sintaxe absolutamente clara para nós. […] A questão do desenraizamento deve ser vista como perda da tradição, como perda da memória.

Uma cidade sem memória e sem história faz com que a população local não tenha referências. De acordo com Reis Filho (1992) a memória é a base para a construção da identidade, da consciência do indivíduo e dos grupos sociais. “É a memória que vai registrar todo o processo de identificação dos sujeitos e suas relações com o espaço em que se inserem” (REIS FILHO, 1992, p. 167). Segundo Gonçalves (1988, p. 266): A nação, enquanto coleção de indivíduos, através da posse de seu patrimônio cultural ou sua cultura, define sua identidade. […] a cultura é pensada como coisa a ser possuída, preservada, restaurada. A prefeitura tem interesse em ver a cidade crescer visando arrecadar mais impostos, mas também tem que evitar a perda dessa memória, dessa história, principalmente porque a partir dela a comunidade local se desenvolve. 180

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Nova Friburgo precisa de uma administração pública capaz de reinventar o município, com a preservação do patrimônio cultural e natural, desenvolver o Turismo aliando o desenvolvimento e o progresso da cidade. Patrimônio Intangível A categoria de patrimônio cultural intangível compreende as expressões de vida e tradições da comunidade, grupos e indivíduos que recebem de seus ancestrais e passam seus conhecimentos a seus descendentes (http://www.brasilia. unesco.org). Pode ser chamada também de patrimônio cultural imaterial, mas nesta pesquisa o termo adotado foi patrimônio cultural intangível por ser o termo mais usual atualmente. O Governo Federal regulamentou o artigo 216 da constituição de 1988, através do Decreto 3.551/2000, criando o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial – PNPI e instituindo formas de protegê-lo através do inventário e do registro em livros temáticos no IPHAN, a saber: Registro dos Saberes, Registro das Celebrações, Registro das Formas de Expressão e o Registro de Lugares de Sociabilidade. Dentre o que é considerado patrimônio intangível, pode-se citar como exemplo as lendas, a culinária de uma localidade, o artesanato, as festas e celebrações e os lugares de sociabilidade. Ao que se refere ao patrimônio cultural intangível do município tema dessa pesquisa, os lugares de sociabilidade, as festas tradicionais e a gastronomiasão as categorias mais afetadas. Dentre algumas histórias do município, a que mais foi repetida pelos entrevistados é a festa do Mineiro-pau que segundo alguns entrevistados ainda resiste em Salinas, alguns também se lembraram das Broas da Roça, um exemplar gastronômico que não consta em nos restaurantes locais. É importante valorizar as festas e a gastronomia de forma de preservar a cultura local, ou seja, a identidade e a memória de uma parcela da população. Lovisolo (1989, p. 16) afirma “que as organizações promovem ações para nutrir e valorizar a memória, sobretudo aquela que espelha o caráter coletivo. A memória valorizada é a que de praxe reconhecemos como histórica e coletiva e sua perda é negativa.” Lovisolo (1989, p. 16) também aponta que “a memória coletiva é fundamental para o sentimento nacional, para a consciência de classe, das minorias, sendo constitutiva das lutas contra a opressão ou a dominação. É valorizada por sua participação na construção da identidade e da comunidade.”

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Bastos (2004) diz que é preciso evitar o desenraizamento, é preciso envolver os moradores com o patrimônio, ou seja, com a permanência de suas memórias, de suas técnicas e que embora a comunidade tenha dificuldade em reconhecê-la como patrimônio local, cabe a ela fazer sua indicação do que é importante, que tem um significado histórico e lutar pela sua preservação. A memória da cidade está se esvaindo, já que apenas alguns poucos moradores, geralmente a população mais idosa, ainda lembra-se de acontecimentos passados que não despertam a atenção e curiosidade dos mais jovens, tanto em preservar quanto em aprender para repassar para seus descendentes. Para Gonçalves (1988, p. 266) “a nação é identificada com indivíduos reais, sendo portadora de atributos como autonomia, vontade e memória” justamente o que está sendo negada à comunidade local, que está assistindo sua memória se esvair e ainda tem de dividir ou simplesmente é excluída dos espaços sociais que ainda não foram apropriados pelo desenvolvimento econômico. As festas tradicionais se perderam ou foram desfiguradas com o passar do tempo, afetando duramente a cultura friburguense, um exemplo disso é a festa da cerveja, que embora esteja na memória até da população mais jovem, foi simplesmente descaracterizada pelo poder público Dentre as várias festas importantes do município muitas deixaram de existir, principalmente as religiosas. Segundo Melo Neto (2005, p.55), “a arte é banalizada porque subjugada e submetida às leis de mercado e de consumo fácil, […] o show é mais pirotecnia do que produção cultural”. Isso significa que não importa que os eventos destoem de suas características originais. O importante é atrair público e com isso gerar receita para a cidade, com isso a cultura local vai se restringindo cada vez mais a memória de poucos habitantes. A prefeitura tem responsabilidade na manutenção da história e sua valorização, ao atrair turistas e gerar receitas, deve cuidar para não esvaziar e promover o desaparecimento dos eventos tradicionais, ou até mesmo diminuir o interesse da comunidade por se sentir desprestigiada. O patrimônio cultural pode ser convertido em atrativo turístico e incrementar a visitação local, proporcionando investimentos importantes para a economia, resultando, até mesmo, em programas de inclusão da população previstos no programa de desenvolvimento turístico de uma localidade, ou seja, no seu planejamento do Turismo.

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São tradições locais, que a comunidade seguia, mas que aos poucos foram sendo relegadas ao esquecimento pela falta de interesse tanto do poder público que deveria zelar pela manutenção dessa memória, quanto da Igreja que via nesses eventos perturbações na fé católica e com isso aos poucos forçaram a população a deixar de lado esse patrimônio cultural. Segundo Melo Neto (2005) “a cultura requer circulação, produção e assimilação”, mas para que isso se torne realidade, é preciso investir em eventos culturais, que realmente valorizem o patrimônio cultural da localidade. Para Gonçalves (1988) “é preciso que haja autenticidade do seu patrimônio, para impedir que tais reproduções culturais sejam “pensadas como construções ficcionais sem nenhum fundamento necessário na história.” A cidade de Paraty e as cidades históricas de Minas Gerais são um exemplo de valorização dessa herança histórica e o Turismo. Segundo informações do sítio do Ministério do Turismo, Paraty foi eleita um dos dez municípios de maior importância estratégica ao turismo no Brasil. Para justificar tal escolha, foi ressaltada a importância de sua localização estratégica. Segundo Silveira (2008, p. 6): O Ministério do Ministério do Turismo incentiva o turismo em cidades históricas de todo o País. Especificamente em Minas Gerais, o projeto integra 25 destinos com vocação turística e relevância cultural, desenvolvido em parceria com a Associação de Cidades Históricas de Minas Gerais. Foram investidos mais de R$ 4 milhões no projeto iniciado em dezembro de 2005 e com execução até 2008.

Para tanto, o patrimônio não pode ser perdido, ele tem que ser valorizado e atualizado. Para Scocuglia (2004) é preciso revitalizar o centro sem expulsar a população mais pobre, incentivando a participação popular e a busca das raízes culturais e históricas. São necessárias medidas que podem motivar a população em redescobrir técnicas ou manifestações culturais que possam estar esquecidas. Scocuglia (2004), também lembra que espaço o público é local de interação social, ou seja, no centro histórico é preciso investir em ações destinadas a despertar o interesse da população em voltar a usufruir desse espaço. Bastos (2004, p. 79) afirma que “as expressões e os fazeres populares são vivenciados e atualizados socialmente, desaparecendo quando perdem funcionalidade e significado.” É preciso criar espaços de sociabilidade que proporcionem a interação da comu-

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nidade com os turistas, mas de uma maneira que o morador não seja diminuído, não seja coadjuvante e sim um dos atores principais. Podemos citar a cidade de Paraty, localizada no litoral do Estado do Rio de Janeiro, tem suas edificações históricas tombadas pelo IPHAN desde 1974 e solicitou junto aUNESCO o título de Patrimônio Mundial. Para viabilizá-lo, segundo informações da prefeitura local, está aterrando a fiação dos postes de iluminação que descaracterizavam o centro histórico. Essa iniciativa baseia-se na tentativa de deixar o centro histórico o mais fiel possível as suas características originais. Tal proposta visa o reconhecimento da UNESCO, mas também contribui para alavancar o Turismo cultural na localidade. Segundo informações do site da Prefeitura de Paraty, o centro histórico dessa cidade carioca não foi influenciado por seu centro comercial, que é localizado em outro lugar, dificultando a descaracterização do patrimônio em virtude do incremento das atividades econômicas na região. A preservação desse patrimônio desperta a visitação e a cidade recebe turistas interessados no patrimônio histórico, nas festas, principalmente as religiosas que segundo a prefeitura ainda persistem e despertam grande interesse. No início da década de 1980, o IPHAN, junto com a prefeitura de Paraty, estabeleceu critérios objetivos para uso e ocupação do solo e definiu parâmetros que constituem as normas federais de proteção do patrimônio tombado, medidas destinadas à preservação da moldura paisagística local (http://noticias.pgr. mpf.gov.br/noticias-do-site/meio-ambiente-e-patrimônio-cultural/mpf-rj). Paraty tem um fluxo turístico intenso o ano inteiro graças a essa preocupação tanto do poder público quanto da população, fazendo com que a economia da cidade cresça e problemas sociais, como desemprego, sejam minimizados. O município de Nova Friburgo tem vocação turística, mas não soube preservar seu legado histórico e hoje concentra grande parcela de sua economia nas indústrias e comércio embora grande parte de seu territórios seja área de preservação, o que pode comprometer uma expansão futura. A cidade poderia atrair turistas de vários segmentos, ou seja, vários tipos de turistas se tivesse preservado melhor sua história, pois o que resta hoje em dia não é suficiente para despertar curiosidade nos turistas que vem à cidade. Conclusão As manifestações culturais tradicionais correm o risco de se perder através do tempo, em virtude da influência dos migrantes e da falta de interesse de gerações 184

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mais jovens na cultura de seus antepassados, ou seja, é mais um fator que contribui para a perda desse legado. É preciso aliar o crescimento do município com a preservação, onde um contribui com o outro, por exemplo, um festival típico pode atrair milhares de turistas interessados na cultura local, na culinária, na dança e ao mesmo tempo gerar receita que pode contribuir para a permanência desse patrimônio cultural. A cidade está deixando a história de um povo, de uma nação se esvair em prol do progresso, do crescimento local, causando um risco eminente de perda de identidade, onde a população não se reconhece em alguns locais. Para classificar a cultura como patrimônio, é preciso que ela seja considerada como propriedade pertencente a alguém, seja uma pessoa, seja uma comunidade. O importante não é considerar quem é o dono, se uma ou várias pessoas, o importante é que aja consciência da necessidade de preservação, da manutenção adequada (GONÇALVES, 2002). Talvez uma forma de envolver a população com a preservação, com a manutenção desse legado, seja trazer as pessoas de todas as idades e status social para esse problema. A cidade tem de crescer e desenvolver-se, mas não precisa esquecer seu passado, sua história, suas raízes. Ao incluir o patrimônio como local de sociabilidade, a própria população passará a enxergar a importância desse resgate da memória, que de acordo com Rodrigues (2005) “a memória social será muito mais significativa quanto mais representar o que foi vivido pelos diversos segmentos sociais e mobilizar as lembranças particulares.” Esse resgate da memória busca reatar a ligação entre a comunidade e sua história, resgatando valores e tradições que se perderam no tempo. Além disso, é preciso que o desrespeito ao patrimônio cultural seja combatido e punido quando necessário. Nova Friburgo é conhecida como a cidade da Trova, porém apenas os moradores mais antigos sabem disso, o poder público poderia fazer um trabalho de resgate dessa memória junto com a população mais jovem evitando assim que tal patrimônio seja perdido ainda mais porque tem forte apelo turístico. Provavelmente daqui a alguns anos, essa parte da cultura só estará disponível através de documentos arquivados no Departamento de Patrimônio Histórico local, sem nenhuma testemunha viva desse passado, para retratar como era a cidade e sua cultura.

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A CONSTRUÇÃO LITERÁRIA NO BRASIL REPÚBLICA E A FORMAÇÃO DO CARÁTER NACIONAL A PARTIR DA OBRA DE LIMA BARRETO

Juliana P. Rosa Maria Cândida F. A. Neves

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geração que lutou pelo fim do Império e da escravidão, norteada por ideias republicanas e liberais, e influenciada por ideias vindas da Europa, acreditava na necessidade de mudanças para o país, libertando-o de um passado imperial e transformando-o em uma nação moderna, democrática, progressista. Para estes intelectuais, dentre os quais podem destacar-se nomes como Tobias Barreto, Aluísio Azevedo, Castro Alves e José do Patrocínio, o engajamento era “a condição ética do homem de letras” (SEVCENKO, 1999, p. 79). No interior dessa concepção, viam-se como responsáveis pela concretização de mudanças no cenário político, econômico e social brasileiro, tendo na sua produção um instrumento capaz de contribuir para tais mudanças, concebendo o papel do intelectual como sendo o do agente dessa transformação, capaz de motivar a sociedade e transformá-la: Essa predisposição política já era um testemunho eficiente por si só da postura social assumida em conjunto pelo grupo. Revelava a sua afinidade profunda com a irradiação insólita das energias econômicas e culturais que precediam da Europa […], bem como sua adesão à luta política pela redefinição, em função de uma perspectiva urbana, das estruturas fundamentais do país, com a decorrente abertura à plena integração e participação de grupos sociais adventícios. (SEVCENKO, 1999, p. 80).

Esses intelectuais solidificam, assim, a consciência de que pertenciam a um determinado grupo, o qual tinha um importante papel social, o de participar ativamente na instauração de um novo Brasil, um Brasil moderno, tendo como referência o modelo europeu. Essa tomada de consciência de sua realidade como grupo, por parte dos intelectuais, se dá pela primeira vez, segundo Antônio Cândido, no

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decorrer do processo de Independência, quando, diante do reconhecimento do papel desempenhado por eles, estabelecem estreita relação entre o papel social do escritor e o nacionalismo. A partir de então, “vão procurar, como tarefa patriótica, definir conscientemente uma literatura mais ajustada às aspirações patrióticas da jovem pátria”. (CÂNDIDO, 2000, p. 73). A literatura brasileira adquire, assim, uma dimensão patriótica, sendo encarada como algo criado para que fosse viabilizada a expressão de um sentimento nacional. O comprometimento social dos homens de letras, os quais tinham a convicção da importância de uma participação efetiva na esfera política, se dava na concreta intervenção social destes, mas, também, no âmbito das ideias, no sentido de contribuir para a formação de uma consciência nacional, na construção de uma ideia de nação. De acordo com Antônio Cândido, a literatura teve, neste sentido, um papel mais importante do que a filosofia ou as ciências sociais. Foi através dela que foram expostas as primeiras análises, pesquisas e discussões sobre a vida, as particularidades e os problemas brasileiros. É importante lembrar, porém, que, se entre os intelectuais instaurou-se uma perspectiva comum (no sentido de utilizar sua produção para um nacionalismo e para a formação de uma consciência nacional), isto não significa que não houvesse diversidades e variações, mesmo dentro de um determinado estilo literário e de uma determinada época. Assim, no momento da Independência, por exemplo, embora o Romantismo fosse o estilo em voga, tendo como ideologia comum a ênfase na autonomia do país e no amor à pátria, havia diferentes grupos com algumas variações entre si, ainda que dentro deste quadro comum. Se a questão central que preocupava o pensamento dos literatos brasileiros era o problema da nacionalidade, da busca de uma literatura brasileira, com características próprias, independente da portuguesa, existiam, ao mesmo tempo, diferentes concepções de como deveria ser esta literatura. Um exemplo disto foi a polêmica entre dois importantes escritores do período, José de Alencar e Gonçalves de Magalhães. Embora os dois partilhassem, de modo geral, de um mesmo conjunto de ideias, que eram próprias do Romantismo, como a defesa da necessidade de uma literatura própria, que não se limitasse à imitação de estrangeiros, a valorização da natureza e da cultura indígena como elemento diferenciador nacional, discordavam quanto à forma de expressar e afirmar tais ideias. José de Alencar não poupou críticas ao poema A confederação dos tamoios, escrito por Magalhães a pedido de D. Pedro II, que, para ele, não simbolizava o que 189

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o Brasil devia ter. Suas críticas tinham, segundo Antônio Edmilson, a “intenção de despertar a atenção dos estudiosos para a especificidade do Brasil” (RODRIGUES, 2001, p. 30), O que, na visão de Alencar, não havia sido alcançado com o poema de Magalhães, pois este conservava “uma moldagem clássica, não se ocupando daquilo que era nacional na forma; não captando o ritmo que impregna a vida brasileira” (RODRIGUES, 2001, p. 30). Para o escritor, o poema não conseguiu exaltar as peculiaridades brasileiras, o tom e as palavras usadas não estavam à altura do que era descrito; faltava nele “uma riqueza de imagens” que fosse capaz de transmitir toda a beleza e exuberância da natureza brasileira, faltava um “raio de inspiração” que mostrasse o aspecto selvagem e original da natureza e da vida indígena, que explorasse e engrandecesse seus costumes e crenças, diferenciando-os, marcando sua particularidade. Ao contrário disto, estes aspectos passaram despercebidos, pois o poeta não soube dar ao seu poema “o sentimento, a energia e expressão necessárias”. Nas descrições da vida, dos costumes e da valentia dos índios guerreiros, Alencar considerava que Magalhães tinha se descuidado da forma, perdendo a suavidade e a cadência próprias da língua nacional. Como fica claro, o que José de Alencar questionava não era propriamente o tema do poema, mas a forma como este foi representado, além de criticar a sua causa, que, para ele, foi reduzida a uma vingança dos índios contra os ataques dos Lusos, que se inicia a partir de um pequeno acontecimento, quando o que deveria ser enfatizado eram os grandes sentimentos como o amor à pátria e à liberdade. O que é importante ressaltar é que, conforme observou Antônio Edmilson, as críticas de José de Alencar que resultaram na polêmica em torno do poema de Gonçalves de Magalhães colocavam em discussão questões que ultrapassavam o âmbito exclusivamente literário, alcançando a esfera política, já que diziam respeito a uma ideia de Brasil, às especificidades brasileiras: Na verdade, para além dos envolvidos e suas diferenças, o importante foi que a polêmica fundou um procedimento novo, que foi o de pensar o Brasil; a polêmica inaugurou a reflexão sobre as idéias no Brasil, além de configurar a primeira experiência de tensão com o imperador, que pessoalmente participara da polêmica. (RODRIGUES, 2001, p. 133).

Ao se posicionar de forma crítica em relação ao poema que havia sido escrito a pedido do imperador, José de Alencar deixou transparecer também o choque

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entre a “sua forma de pensar o Brasil e aquela que vai sendo articulada pelo mecenato imperial”, denunciando a tensão entre a sua ideia de construção da nação e o projeto civilizatório da Corte: A complexidade da polêmica foi a que ela colocou em questão algo mais importante do que uma discussão literária: abriu a crítica ao projeto civilizacional e ao comportamento político do imperador na segunda metade do século XIX. Enquanto para o monarca era fundamental manter o controle sobre as idéias, associando-as ao seu projeto de unidade através do mecenato, reforçando o seu poder e tomando a direção do processo de consolidação da estabilidade, para Alencar era necessário denunciar, através, as mazelas que eram mantidas a título da estabilidade. (RODRIGUES, 2001, p. 135).

Deste modo, a polêmica contribui para que fossem pensados e discutidos temas como a formação da pátria e a construção da nação, buscando a afirmação de uma identidade brasileira e fundando as discussões que seriam realizadas pela geração de 1870 e estariam presentes até a Semana de Arte Moderna, em 1922. Ainda que tenham ocorrido mudanças em relação à ideia do que deveria ser o Brasil, as atitudes, pensamentos e aspirações em relação ao país, expressos através da literatura, acompanhavam estas mudanças e o momento histórico, refletindo-se nos estilos literários. Assim, voltando àquela geração que escreveu na década de 70 do século XIX, regidos pelo entusiasmo abolicionista e republicano e pelas ideias liberais, pode-se constatar que o surgimento de um novo estilo literário, o Realismo, estava relacionado com uma postura mais crítica assumida por esta geração: Os anos 70 trouxeram a viragem anti-romântica que se definiu em todos os níveis. Chamou-se realista e depois naturalista na ficção, parnasiana na poesia, positivista e materialista em filosofia. Com Tobias Barreto e a Escola de Recife, toma forma um ideário que sobreviveria até os princípios do século XX. É toda uma geração que começa a escrever por volta de 1875-80 e a afirmar o novo espírito crítico, aplicando-o às várias faces da nossa realidade. (BOSI, s/d, p.275).

Como o próprio nome diz, os escritores do período realista pretendiam descrever a realidade social da forma mais real possível, sem falseá-la nem ideali191

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zá-la, criticando os mitos idealizantes do Romantismo, como a natureza-mãe, a mulher-diva, o amor ideal. No lugar do herói romântico, queria mostrar o que era o homem comum; no lugar do predomínio da subjetividade e da fantasia romântica, defendiam uma objetividade que estava em sintonia com o cientificismo e as ideias deterministas predominantes no período, valorizando o supremo cuidado estilístico, a perfeição técnica. Além disso, embora a questão da nacionalidade literária e a construção de uma literatura de caráter nacional fossem ainda pontos fundamentais, era reconhecida também a influência da cultura ocidental europeia e o tema do mundo urbano como objeto de atenção. Machado de Assis, ao escrever sobre a literatura brasileira em 1873, afirma que havia nela um “instinto de nacionalismo”, existente em todas as formas literárias de pensamento, e se, por um lado, o escritor considera de grande importância e valor a busca de uma diferenciação relativa às especificidades brasileiras e de uma produção literária independente, por outro, embora reconheça que a cultura indígena constitui um fundamental aspecto da cultura brasileira, acredita que seja um erro reconhecer o espírito nacional exclusivamente nas obras que tratam dos povos indígenas, e que os escritores não devem se limitar apenas a esta fonte de inspiração, já que “os costumes civilizados, ou já no tempo colonial, ou já no tempo de hoje, igualmente oferecem à imaginação boa e larga matéria de estudo” (ASSIS, apud COUTINHO, Afrânio, 1980, p. 357). Para ele, “o que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento de íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país”. (ASSIS, apud COUTINHO, 1980, P. 357). Ao mesmo tempo, ainda se vivia a influência do Romantismo em fins do século XIX, que não se extinguiu completamente, coexistindo com o novo estilo, e o aspecto revolucionário do Romantismo animava o espírito daqueles homens que se dedicavam aos ideais. Segundo Nicolau Sevcenko, na visão deles o Brasil não possuía propriamente uma nação e tinha um Estado “‘reduzido ao servilismo público’, necessitando, portanto, de uma ação reformadora nestes dois sentidos: construir a nação e remodelar o Estado, ou seja, modernizar a estrutura social e política do país” (SEVCENKO, 1999, p. 83). Toda a produção intelectual voltada para as mudanças nacionais de acordo com o exemplo europeu foi guiada, então, por estes dois parâmetros básicos. A expectativa dos que defendiam o movimento republicano era que a mudança de regime possibilitasse uma renovação política, capaz de redefinir os papéis políticos, permitindo uma maior participação política de toda a população e am-

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pliando as condições de exercício da cidadania. Embora o movimento republicano abrangesse diferentes setores da sociedade e diversos interesses, o discurso patriótico unia-se no objetivo comum de intervir politicamente para definir os rumos do progresso do país. Após a Proclamação da República, no entanto, nem todos os interesses e setores seriam vitoriosos: Se a mudança de regime político despertava em vários setores da população a expectativa de expansão dos direitos políticos, de redefinição de seu papel na sociedade política, razões ideológicas e as próprias condições sociais do país fizeram com que as expectativas se orientassem em direções distintas e afinal se frustrassem. (CARVALHO, 1987, p. 64).

A nova ordem não trouxe a ampliação da participação política para a população, mostrando-se autoritária e intransigente com aqueles que eram divergentes e frustrando muitos que defenderam o ideal republicano inspirado nos princípios democráticos. A República vitoriosa era aquela que exaltava o progresso, espalhando-se nos grandes centros europeus como a França, transformando a capital nacional em um símbolo deste progresso modernizador, através de reformas urbanas e, ao mesmo tempo, mantendo o poder político das oligarquias rurais e muitos barões do Império na sua administração, articulando os interesses dos cafeicultores e as finanças internacionais. Toda a modernização urbana tinha por trás a poderosa ordem dos coronéis, que garantia ao presidente o apoio necessário. Não pretendemos aqui enquadrar Lima Barreto em um determinado estilo literário, já que podem ser identificados em sua literatura tanto aspectos do Romantismo, como do Modernismo e do Realismo. Em relação a este último, a influência aparece claramente na composição de seus personagens caracterizados como homens comuns, distantes do herói idealizado do Romantismo, muitas vezes fracos, incoerentes e impotentes diante de um sombrio destino. O próprio Lima se recusava a ficar preso a um único estilo literário. Para ele, o importante era que a literatura cumprisse sua missão de possibilitar a compreensão entre os homens, contribuindo para reforçar o sentimento de solidariedade, ligando os homens uns aos outros. Em suas palavras: Mais do que qualquer outra atividade espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a que me dediquei e com que me casei; mais do que ela nenhum outro qualquer

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares meio de comunicação entre os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio, teve, tem e terá um grande destino na nossa triste Humanidade. (BARRETO, 1998, p. 393).

O grande destino da literatura era, para ele, “tornar sensível, assimilável, vulgar esse ideal de poucos a todos, para que ela cumpra ainda uma vez a sua missão quase divina.” (BARRETO, 1998, p. 394). Fica, assim, claro que o autor acreditava, antes de tudo, na palavra como forma de comunicação humana e na capacidade de os seres humanos se compreenderem uns aos outros na sua dor, tornando-se solidários independentemente das possíveis diferenças. A literatura era, então, um veículo capaz de ligar a humanidade em função de sentimentos universais, como justiça e solidariedade: Ela (a literatura) sempre fez baixar das altas regiões das abstrações da Filosofia a das inacessíveis revelações da Fé, para torná-las sensíveis a todos, as verdades que interessavam e interessam à perfeição da nossa sociedade […]. Ela faz compreender, uns aos outros, as almas dos homens dos mais desencontrados nascimentos, das mais diversas épocas, das mais divergentes raças; ela se apieda tanto do criminoso, do vagabundo, quanto de Napoleão prisioneiro ou de Maria Antonieta subindo à guilhotina […]. Ela nos faz compreender o Universo, a Terra, Deus e o Mistério que nos cerca, para o qual abre perspectivas infinitas de sonhos e de altos desejos. (BARRETO, 1998, p. 394).

Lima Barreto partia, dessa forma, de pressupostos universais em relação à literatura, e os usava para produzir uma literatura que transmitisse estes princípios universais e que estava, ao mesmo tempo, intrinsecamente ligada à realidade social na qual vivia, privilegiando, desta forma, questões humanas de modo geral e as sociais em particular. Ele acreditava que através da sua literatura, que deveria ter uma função utilitária, poderia transmitir valores que considerava éticos em uma sociedade na qual os valores estavam, segundo ele, distorcidos. Ele entendia que seu papel de escritor era produzir uma literatura de crítica social, e de combate às distorções do regime republicano, contribuindo para a construção de uma sociedade melhor, sem desigualdade e não excludente. Defendia uma literatura militante em oposição à literatura plástica e contemplativa.

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Para ele, os escritores deveriam, ao invés de escrever sobre cavalheiros e damas pertencentes à aristocracia e residentes em Botafogo ou Laranjeiras, mostrar em suas obras que “um negro, um índio, um português ou um italiano se podem entender e se podem amar, no interesse comum de todos nós.” (BARRETO, 1956a, p. 73). Além disso, a linguagem usada por Lima Barreto mantinha uma coerência com a sua forma de conceber o papel da literatura, ajustando-se perfeitamente à intenção de fazer com que seus escritos comunicassem aos leitores suas críticas e reflexões. O escritor desde cedo recusou os artifícios retóricos característicos dos literatos de sua época, optando por uma linguagem usual, comum, não se submetendo a regras e estilos literários dominantes no período, hostilizando o formalismo e a pompa presentes na obra de escritores como Coelho Neto, um dos principais representantes da literatura oficial e uma das personalidades mais eminentes do período, e Afrânio Peixoto. A concepção de literatura militante defendida pelo autor de Policarpo Quaresma distanciava-se da literatura predominante do período, e isto aparecia não só no conteúdo de sua obra, nos temas abordados, como também na própria linguagem, que estava de acordo com a sua ideia de literatura. Para ele, os escritores deveriam se preocupar menos com as exigências formais de linguagem e estilo, e ater-se mais ao que é “predominante de sua arte: a alma humana e os costumes.” (BARRETO, 1956a, p. 128). Em seu livro Impressões de Leitura, ao tecer comentários a respeito de livros que leu, Lima Barreto mais de uma vez deixou registrada a sua admiração por aqueles escritores que optavam por um estilo simples e direto, capazes de comunicar um sentimento de vida, de realidade. Em um pequeno artigo que escreveu sobre um livro de contos chamado Tabaréus e Tabaroas, ele tece elogios ao autor, Mário Hora, por este ter conseguido descrever os costumes e crenças da população nordestina, fazendo com que fossem melhor entendidos por aqueles que vivem em outras regiões do país, como o Rio de Janeiro. A literatura, então, cumpria o papel que lhe cabia na visão de Lima Barreto: de comunicar vivências e experiências diversas, tornando-as próximas e compreensíveis mesmo para quem não as viveu, colocando em comunicação as várias partes da sociedade. Assim, são seus elogios ao autor:

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares A língua, a paisagem, tudo enfim, sem esquecer a própria indumentária são de uma propriedade, de uma cor local que atrai e encara. As almas também são aquelas rudes e agrestes daquelas regiões adustas e calcinadas, em que a vida ameiga o clima ingrato e a faca está sempre a sair da bainha para ensangüentar as caatingas. […] Aspectos desses de tão chocante contraste só podem ser colhidos por um artista de raça em que preocupações gramaticais e estilísticas não deturpem a naturalidade da linguagem dos personagens nem transformem a paisagem rala daquelas paragens em floresta da Índia. O autor de Tabaréus e Tabaroas conseguiu isto e realizou com rara felicidade uma obra honesta, simples e sincera. (BARRETO, 1956a, p. 168). Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens. (BARRETO, 2000, p. 17).

Desta forma, quando usava processos do jornalismo, por exemplo, em suas produções literárias, era porque acreditava que estes contribuíam para comunicar suas ideias, colaborando para “diminuir os motivos de desinteligência entre os homens que me cercam”. (BARRETO, 1956b, p. 18). Para Alfredo Bosi, é possível identificar uma modernidade estilística nas obras de Lima Barreto que era rara em sua época. O fato de existir em seus romances muito de crônica, permitindo a descrição de cenas cotidianas, da vida burocrática, de ambientes do subúrbio carioca, temas que não eram comuns na época, em uma linguagem fluente e desambiciosa é, ao seu ver, um aspecto inovador. Segundo Bosi, ao contrário do estilo contra o qual se insurge o autor de Policarpo Quaresma, simbolizado por Coelho Neto, no qual “a palavra servia de anteparo entre o homem e as coisas e fatos”, o estilo adotado por Lima Barreto narra as cenas “com uma animação tão simples e discreta, que as frases jamais brilham por si mesmas, isoladas e insólitas, mas deixam transparecer naturalmente a paisagem, os objetos e as figuras humanas.” (BOSI, s/d, p. 359).

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Em relação a Coelho Neto, Lima Barreto escreveu um artigo na Revista Contemporânea, publicado em Impressões de Leitura, no qual se propõe a protestar “contra a deturpação que o Senhor Coelho Neto tem querido impor à consciência do Brasil a respeito do que seja literatura.” (BARRETO, 1956a, p. 190). Ele criticava Coelho Neto por este passar para o público a ideia de que a literatura é apenas escrever bonito, preocupando-se apenas com o estilo, o vocabulário, a paisagem, deixando de lado todas as importantes questões sociais, políticas e morais de seu tempo, sem fazer da literatura um instrumento de intervenção social, de divulgação de ideias que poderiam constituir mudanças na sociedade. Em outro artigo, também de Impressões de Leitura, que foi publicado originalmente em A Lanterna, Lima Barreto escreveu: Em um século de crítica social, de renovação latente das bases das nossas instituições; em um século que levou a sua análise até os fundamentos da geometria […]. Em um século deste, o Senhor Coelho Neto ficou sendo unicamente um plástico, um contemplativo, magnetizado pelo Flaubert da Mme Bovary, com as suas Chinesices de estilo, querendo como os Goncourts, pintar com a palavra escrita […] mas que não fez de seu instrumento artístico um veículo de difusão das idéias de seu tempo, em quem não repercutiram as Ânsias de infinita justiça dos seus dias; em quem não encontrou eco nem revolta o clamor das vítimas da nossa brutalidade burguesa. (BARRETO, 1956a, p. 76).

Pode-se perceber, então, que ao escritor Coelho Neto, o autor de Policarpo Quaresma estava questionando toda uma postura relacionada à produção literária e ao papel do escritor na sociedade. O que ele criticava era a produção de uma literatura contemplativa, que se preocupava apenas com as formalidades estilísticas, que valorizava a perfeição plástica em detrimento da ação sobre ideias e costumes, e se distanciava de questões fundamentais da sociedade. Uma literatura que, ao contrário da defendida por ele, não tinha como objetivo final a comunicação e o entendimento entre os homens. Além disso, Lima Barreto criticava aqueles literatos que viam na literatura um caminho para o prestígio social e para arranjar empregos rendosos ou posições de destaque social. Para ele, o ideal militante deveria vir antes da perspectiva de lucro, e ele sempre se recusou a escrever em prol de algo que não fosse condizente com seus princípios e ideais,

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apenas visando o lucro. Em artigo publicado no ABC, em 1919, ele reafirma esta sua posição: Nunca, na minha vida, tentei coisa mais desinteressada do que o escrever as minhas confusas emoções e pobres julgamentos; e nunca esperei desse meu ato senão aquilo que, entre nós, a literatura pode dar dignamente, limpamente. A fortuna, eu a deixei para os outros. Não foi jamais minha esperança obter com as letras dinheiro, posição ou quer que fosse fora do que é o objetivo delas, normalmente […]. Uma vez ainda declaro que, fazendo literatura, não espero fortuna. (BARRETO, 1998, p. 354).

A determinação dos problemas ideológicos e históricos vividos por Lima Barreto é tarefa inerente à análise de sua obra literária. Em sua obra, ele não se limita a apontar algumas mazelas sociais, capazes de correção por meio de reformas no interior do sistema, como frequentemente ocorre no naturalismo brasileiro. A sua denúncia profunda à imprensa, à burocracia, às formas políticas da época republicana, inclusive do militarismo florianista, são momentos desta crítica feita em nome de um novo caminho para a evolução brasileira. É possível que ele tenha, algumas vezes, tratado com demasiado rigor certas manifestações culturais ou políticas que, vistas à luz das tarefas imediatas do período, desempenham um papel relativamente positivo. Essa aparente injustiça, que poderia ser problemática para um dirigente político, não o prejudica absolutamente enquanto romancista: ao contrário, faz dele não apenas um interessante cronista da época ou da cidade, não apenas um panfletário de valor relativo e transitório, mas faz dele um dos maiores representantes da linha humanista e democrático-popular da literatura brasileira.

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REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Instinto de Nacionalidade. In: COUTINHO, Afrânio (Org.). Caminhos do Pensamento Crítico. Rio de Janeiro: Pallas S.A Editora, 1980. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Cultrix, 3ª ed, s/d. CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T.A. Queiroz, 2000; Publifolha, 2000. CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. BARRETO, Lima. Impressões de Leitura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956a. ______. Histórias e Sonhos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956b. ______. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Ática, 1993. ______. Um longo sonho de futuro: diários, cartas, entrevistas e confissões dispersas. Rio de Janeiro: Graphia, 1998. ______. Contos - Lima Barreto: seleção, cronologia e introdução de José Emílio Neto. São Paulo: Landy, 2000. RODRIGUES, Antonio Edimilson Martins. José de Alencar: o poeta armado do século XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1999.

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LITERATURA E CINEMA MUDO: ARTES QUE SE ENTRECRUZAM NOS ESCRITOS DE HORACIO QUIROGA

Karina Magno Brazorotto Agradeço a Miriam Gárate pela discussão do tema.

Introdução

A

s crônicas sobre o cinema de Horacio Quiroga, escritas no início do século XX, mostram um escritor de contos que começa a conhecer e a se entusiasmar por esse novo modo de conhecer o mundo. Quiroga começa, assim, a ser um espectador assíduo dos cinematógrafos e, por meio dessas experiências, tece críticas sobre a produção e a magia que ali acontece. Disso resultam algumas crônicas que são muito próximas da ficção como, “Aquella Noche” (1918) e “Las cintas de ultratumba” (1920). Tais escritos, mais tarde, serviram como esboço para a elaboração de alguns contos de Quiroga, como “El espectro” (1921), “Miss Dorothy Phillips, mi esposa” (1919) e “El vampiro” (1927), cujo personagem principal é Guillermo Grant. Há outro conto de Quiroga em que a temática do cinema é discutida, “El puritano”, mas este não apresenta Grant como personagem nem narrador. Os textos publicados por Quiroga em revista de arte são, em grande parte, sobre o cinema mudo. Suas crônicas são concisas e claras, como deve ser um texto jornalístico de opinião, no entanto, a ironia peculiar de Quiroga estava presente também neles. Ele também lança mão da ficção, mas este é geralmente utilizada quando precisa se resumir o enredo de um filme ou para explicar melhor uma ideia que lhe ocorreu. Mas, vale lembrar que Quiroga não só escreveu sobre o cinema mudo como também escreveu sobre o cinema sonoro. Foram somente duas notas, já no final de sua carreira, nas quais ele condena a inovação sonora, visualizando a morte da arte cinematográfica.

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Uma dessas notas é “Espectros que hablan” (1929), na qual é contraposta a arte realista e muda do cinema a uma arte espectral e falada, pois para ele é da natureza do espectro o silencio, portanto, não poderia ser proferida a palavra. A palavra estaria no âmbito do teatro e a expressão no do cinema, diferença que os norte-americanos teriam conseguido chegar à excelência ao rodar filmes não falados, pois as poucas palavras que eram necessárias para expressar os estados da alma viriam escritas em pequenas legendas, não mais que isto. A segunda nota é “Una escuela Normal de Cinematógrafo” (1931), que, com o tom de humor, o autor insinua a fundação de uma escola para se fazer cinema. Essa diferença entre o teatro e o cinema foi bastante discutida por Quiroga e explica e exemplifica a visão que o escritor tinha sobre a elaboração e a montagem de um filme, como teria que ser a apresentação deste e a possibilidade de fundir a realidade em que vive com a simulada nas histórias que assistia nos vários cinematógrafos de Buenos Aires. Por meio dessa visão, foi possível o desenvolvimento de contos em que a atmosfera que os envolvia não era muito clara, trazendo o onírico, a loucura, o amor para a sua temática. As linhas que separa a realidade da arte realista não são delineadas em seus escrito, tanto nos contos quanto nas crônicas, criando uma áurea etérea em volta da figura de Horacio Quiroga. Contos de temática cinematográfica: breves análises “Miss Dorothy Phillips, mi esposa” Um dos primeiros escritos que apresenta a temática cinematográfica é “Miss Dorothy Phillips, mi esposa”, o qual traz, pela primeira vez, o narrador-personagem Guillermo Grant, grande entusiasta do cinema e que se autodenomina “pobre diabo”, pois sempre está nos cinematógrafos assistindo os filmes e sempre se apaixona por uma atriz diferente a cada dia. A princípio, parece que há uma impossibilidade de se alcançar a mulher desejada nesse conto, já que as estrelas estão sempre na projeção do filme, dando a impressão de que não há como escapar dessa condição. Elas são estrelas e norte-americanas e ele é um “pobre diabo” sul-americano. Os personagens envolvidos no conto são de mundos completamente distintos e antagônicos, a única coisa que parece conectar o espectador Grant a suas musas é a expressão do olhar.

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O olhar feminino de lindas mulheres é a força motriz do conto, pois será através dele que a história se tornará possível. Nesse conto, o olhar será a motivação de tudo: o de quebrar barreiras espaciais e temporais e será através de sua expressão que será possível criar uma atmosfera de incertezas. Como aun en el cinematógrafo hay mujeres feas, las pestañas de una mísera, vistas a tal distancia, parecen varas de mimbre. Pero cuando una hermosa estrella detiene y abre el paraíso de sus ojos, de toda la vasta sala, y la guerra europea, y el éter sideral , no queda nada más que el profundo edén de melancolía que desfallece en los ojos de Miriam Cooper. (QUIROGA, 1996, p. 438).

A impressão que se tem é que o olhar de uma diva do cinema é o condensador de todos os fatos importantes que aconteceram na história da humanidade, mas, ao mesmo tempo, esse mesmo olhar é mais importante que tudo isso, é como se ele fosse a expressão única da vida. Nesse conto há um desfile de atrizes que fazem, por meio do olhar, Grant sonhar, mas sem que este saiba muito bem com quem sonha ou se sonha, já que o personagem admite que leva duas vidas diferentes: uma durante o dia, sendo um cidadão cumpridor deseus direitos e deveres e uma durante a noite, na qual se perde nos olhares das belas atrizes, e vive sonhando ou vivendo o que acabou de assistir, pois admite que já se retirou do cinematógrafos “noites seguidas enjoado e pálido, porque deixou seu coração e sua pulsações nas telas do cinema.”. Portanto, com essa confissão de Grant, percebe-se que começa a embaçar a noção de realidade no conto, não deixando claro o que pode ter realmente acontecido – se o que Grant conta é um relato passível de veracidade ou engodo ou delírios de um louco ou apenas um sonho. A partir do momento em que não se pode mais comprovar a veracidade dos fatos, fazendo uma ponte entre eles e a realidade, a impossibilidade de se conversar ou tocar em uma atriz é desfeita. Grant vai para os Estados Unidos para conhecer um estúdio cinematográfico e escolher e conhecer a mulher que vai desposar. O conto passa a ser um relato fantástico, no qual a imagem vale mais que a descrição, a fala ou mesmo a intenção dos personagens. Grant se transforma em um estereótipo do homem sul-americano: rico, latino e sedutor, dono de fazenda e que não se importa em gastar dinheiro. Tanto que

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cruza o continente para chegar até a mulher de seus sonhos. Grant, dessa forma, torna-se se um personagem de cinema que pode viver histórias românticas com a mulher desejada. Ele passa a viver aquilo que assiste a noite nas salas dos cinematógrafos. Outro texto que também trata da expressão do olhar no cinema é “Aquella noche”. Apesar de apresentar alguns traços ficcionais, esse escrito pertence às crônicas sobre o cinema que Quiroga escreveu para a revista El hogar. Essa nota é considerada um esboço para a elaboração do conto “Miss Dorothy Phillips, mi esposa”, já que trata de homens que saem apaixonados das salas dos cinematógrafos pelas belas atrizes e imaginam-se casando com elas, tudo por causa de um olhar. Se va, pues, y busca a la Vermon, cuyos ojos son sin par en el mundo desde que éste existe. Obtiene sus confidencias, se enamora mucho, logra hacerse querer poco. ¡Los ojos de la Vermon! Por mucho menos puede uno volverse idiota, y por menos aún muchos se han casado. ¿Casado con la Vernon?… (QUIROGA, 1997, p.175).

O encantamento pelo cinema e pelas atrizes não ocorre somente com o narrador-personagemGuillermo Grant no conto em questão, mas também acontece com o narrador-crítico Horacio Quiroga na crônica discutida, que admite a fascinação que um belo olhar pode causar em uma pessoa comum (em um “pobre diabo”). Com isso, podem se emparelhar essas duas figuras, trazendo mais uma incerteza para o conto: Guillermo Grant seria uma espécie de pseudônimo de Horacio Quiroga? Sabe-se que o escritor muitas vezes utilizou como assinatura de algumas de suas crônicas “El esposo de Dorothy Phillips”, nutrindo e enriquecendo a atmosfera difusa de seu conto. Portanto, pode-se dizer que nesses dois textos de Quiroga a expressividade do olhar de uma bela mulher pode fazer com que um homem se apaixone e perca a noção espaço-temporal em que vive, podendo, dentro desse universo, viver várias histórias com as mulheres que conhece tão bem, mas que nunca pode tocá-las.

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“El vampiro” e “El espectro” Os contos “El vampiro” e “El espectro” podem ser relacionados com a crônica quiroguiana “Las cintas de ultratumba”, a qual discute qual o efeito da morte de um ator posterior ao seu filme, como a imagem imortalizada no cinema se comportaria com essa morte. Segundo Quiroga, os dois atores protagonistas, Locwood e Stonell, já estavam mortos quando ele foi rever El indultado, mas nas telas ainda demonstravam ter a vivacidade de outrora. Para ele, o filme era quase todo espectral, já que a atriz principal ainda não havia morrido, mas, se isso acontecesse, o filme seria todo fantasmagórico. Portanto, dava a impressão de que o cinema era capaz de dar uma sobrevida a esses atores, já que seus espectros sempre estariam ali, representando e se movimentando, mostrando que ali havia vida, que era mostrada através de gestos e olhares dirigidos aos espectadores. No cinema, as imagens desses atores nunca envelhecem, nunca se acabam, dando a ilusão de que esses atores são eternos, imortais. Essa idéia de prolongamento da vida por meio da imagem é o ponto de partida para a elaboração dos contos “El vampiro” e “El espectro” de Horacio Quiroga. Nos contos, esse prolongamento é convertido em algo real, possível de acontecer, isto é, o espectro de um ator poderia continuar a existir como se estivesse vivendo, se o ator tivesse um registro fílmico de sua imagem quando ele ainda estivesse vivo. Esse elemento, por sua vez, dentro do conto é transformado em fantástico, pois os dois mundos, o real e o do cinema, coexistem e se complementam. Outro ponto em comum é o narrador-personagem, Guillermo Grant, ser o espectador dos fenômenos que ocorrem nesses contos. Em “El espectro” Guillermo Grant freqüenta assiduamente a sala de um cinematógrafo, junto com sua amante Enid, para assistir filmes. Com o passar do tempo, eles começam a perceber que são observados pelos atores dos filmes e começam a ser assediados por um “espectro cinematográfico”, que era o ex-marido de Enid, o astro do filme, que se desprende da tela para chegar até onde está o casal. Já, em “El vampiro”, Grant age mais como um espectador, uma testemunha ocular do fato. O tema mais evidente é o de ficção científica, pois se trata de uma experiência científica. Nesse conto, uma bela atriz abandona o filme e, como se fosse um fantasma, apaixona-se pelo espectador que realizava algumas experiências com raios N1. Essa imagem que vive graças à invenção técnica do amigo de Grant faz com que essa atriz desenvolva uma espécie de vampirismo para que possa continuar a existir.

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Nos dois contos há uma tentativa de fuga da imagem do meio em que está condenada a viver confinada, essa imagem tenta ter liberdade para expressar o que sente e que tem vontade de fazer. Também a expressividade é colocada em destaque, não só pelo olhar, mas pela postura e por pequenos gestos. 1) Como en la noche anterior, nadie notaba en la pantalla algo anormal, y es evidente que Wyoming continuaba jadeante adherido al diván. Pero Enid […] tenía la cara vuelto a la luz, pronta para gritar… ¡Cuando Wyoming se incorporó por fin! Yo lo vi adelantarse, crecer, llegar al borde mismo de la pantalla, sin apartar la mirada de la mía. Lo vi desprenderse, venir hacia nosotros en el haz de luz… (QUIROGA, “El espectro”, 1996, p. 550). 2) Una noche, mientras yo con el cigarro pendiente de la mano hacía esfuerzos para arrancar mi mirada del vacío, y ella vagaba muda con la mejilla en la mano, se detuvo de pronto y dijo: – Está en Santa Mónica… Vagó un instante aún, y siempre con la cara apoyada en la mano subió las gradas y se tendió en el diván. Yo lo sentí sin mover los ojos, pues los muros del salón cedían llevándose adherida mi vista, huían con extrema velocidad en líneas que convergían sin juntarse nunca. Una interminable avenida de cicas surgió en la remota perspectiva. (QUIROGA, “El vampiro”, 1996, p. 727).

É interessante observar que os dois trechos apresentam três elementos iguais: os espectros, por assim dizer, estão apoiados em divãs, talvez para indicar que eles são realmente e só fruto de uma consciência, não possuem matéria; outro é a expressividade do olhar e; o último é a presença de luz, a qual indica que os personagens são fechos de luz, imagens constituídas pelo contraste entre luz e sombra. A expressividade do olhar, no primeiro trecho, é o que conecta Grant a Wyoming, e faz com que ele consiga sair da tela indo ao encontro dele. Isso faz com que a cena se concentre somente nos dois personagens, como se fosse um feixe de luz direcionada a uma única pessoa. Nesse instante é como se o cenário ao redor deixasse de existir para mostrar que matéria e espectro cinematográfico formam uma coisa só, tanto que logo depois, Grant, ao tentar eliminar Wyoming, desfere um tiro contra ele e a bala o atinge, matando-o. 205

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No conto “El vampiro”, no segundo trecho, o olhar é vago. Grant tenta “tirar seu olhar do vazio”, o olhar dele tenta não manter uma conectividade com o espectro da atriz, como se fosse capaz de fazer algo de ruim com o personagem se este mantivesse com ela uma ligação olho no olho, mas, mesmo não fazendo isso, Grant consegue ver através dela. Ela diz onde seu corpo está e consegue mostrar, por meio de uma luz intensa, o que seu corpo está vendo. Deste modo, a sala em que estão se transforma em um cinematógrafo. O espectro, ao apresentar aspectos de sua vida corpórea em Santa Mônica, consegue transgredir as noções de tempo e espaço. Portanto, pode-se dizer que a expressividade do olhar, mais uma vez, é um elemento importante para a constituição do conto e de sua temática, porque também fica evidente que para Quiroga as poucas palavras proferidas pelos espectros cinematográficos e sua força de expressão pelo olhar são constitutivos da arte cinematográfica. “El puritano” No conto “El puritano”, a temática do cinema ainda está presente, os espectros cinematográficos, assim como a sua existência pós-morte também. Nesse texto é contada a história de atores e atrizes que, depois de suas mortes, ficam em um estúdio de Hollywood, esperando que seus filmes sejam projetados para o público. Essa seria a oportunidade desses espectros poderem ver como está o mundo, já que quando estão em cena, podem se ligar novamente, de alguma forma, à vida. A história também tem o foco em uma atriz que sofre de amor e que quita sua vida em um ato de desespero. Percebe-se que a temática maior de Quiroga se mantém nesse conto: Amor, loucura e morte. Observa-se que nesse conto o prolongamento da vida por meio de projeções cinematográficas é visto como cansativo, pois arranca a possibilidade desses atores e atrizes descansarem depois da morte. Eles sãoobrigados a estar em alerta, vivemuma vida estrita dentro da tela. O narrador diz que“El film y la proyección que nos han privado del sueño eterno, nos cierran el mundo, fuera de la pantalla, a cualquier otro interés.” No entanto, “Ella” vai contrariar as expectativas de pós-morte que os atores e atrizes possuem, pois ela vai continuar ligada à vida fora das telas, porque é uma suicida e deixou para trás um amor que vai às salas de projeção para que possa 206

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vê-la. Quando isso acontecia, “Ella”, ao contrário, dos outros, permanecia onde estava, em companhia dos outros espectros que estavam em Tertúlia, mas sentia todos os efeitos de sua interpretação e conseguia ver seu amando na platéia. Permanecía recostada allí mismo, arropada de frío, con la expresión ansiosa y jadeante. Simulábamos no notar su presencia en tales casos; pero cuando apenas concluída la proyección se incorporaba en el diván, ella misma nos expresaba entonces su quebranto. […] –¡Si al menos… Si al menos pudiera no verlo!(QUIROGA, 1996, p. 764).

Outra vez, o espectro cinematográfico, para se expressar, precisa se apoiar em um divã, reforçando a idéia de que eles são consciências. Essa precisa usar a palavra em demasia para conseguir continuar vivendo, pois ela não morreu por completo. Além de ser uma suicida, ela permanece viva em seus filmes, já que ela continua interpretando, involuntariamente, sua personagem quando projetada em uma tela. Com isso, pode-se dizer que aqui o importante é toda a expressividade corporal da atriz, pois o olhar não é a fonte de conexão com o mundo, mas todos os movimentos. A visão é o complemento para averiguar que o amado continua a visitá-la e para que ela continue vivendo. Considerações finais Os contos de Horacio Quiroga, cuja temática é o cinema, mantém, de certa forma, a diferença entre o teatro e o cinema discutida por ele, já que os espectros se expressam mais por gestos e olhares do que a própria palavra. Mostra também que Quiroga soube fundir a “realidade” do espectador e seus sonhos e devaneios com a “realidade” simulada nos enredos cinematográficos. Também foi trabalhada magistralmente pelo escritor a atmosfera que envolvia as histórias dos contos, mantendo o ar de suspense e mistério, agregando o onírico, a loucura e o amor na temática. E, por fim, outro elemento fortemente trabalhado por Quiroga foi a expressividade das personagens que estavam envolvidas com o cinema, enriquecendo ainda mais a construção dos contos.

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REFERÊNCIAS

GALLO, Gastón (Org). Horacio Quiroga: Arte y lenguaje del cine. Losada, BsAs, 1997. QUIROGA, Horacio. Todos los cuentos. (Edición Critica, coord. Napoleón Baccino Ponce de León yJorge Laforgue. Col.Archivos, vol 26). Allca XX/ Edusp, 1996.

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ENGAJAMENTO E LITERATURA: TENSÃO E INTERLOCUÇÃO NA OBRA DE EDUARDO GALEANO

Lindinei Rocha Silva UNIG

O

modo como a literatura foi concebida e produzida no decorrer dos séculos tem sofrido transformações devido às mudanças sociais e históricas por que têm passado as sociedades. A relação entre literatura e engajamento, em maior ou menor grau, tem se mostrado complementar e, às vezes, antagônica. A literatura, em seu sentido mais difundido, como manifestação artísticaque emprega a palavra como instrumento, comumente associado à idéia de estética e a sensação de prazer e emoção, tem buscando tornar a realidade menos árdua, além de desvendar e apresentar outros mundos, possibilitando ao ser humano evadir-se da condição limitada em que se encontra. O engajamento, por sua vez, estreita os laços entre a ficcionalidade e o mundo biossocial factível. A literatura engajada, conforme define Benoit Denis, é a “prática literária estreitamente associada à política, aos debates gerados por ela e aos combates que ela implica”. (DENIS, 2002. p. 9.) Ou seja, que vincula a literatura ao compromisso social, conseqüentemente, à transformação da sociedade. A literatura, como expressão idiossincrática, reflete uma visão peculiar, emana de uma época e de seu contexto político e social, sua conjuntura histórica, ainda que não esteja intrinsecamente atrelado a eles. À literatura engajada, que ganhou destaque na França do século passado, coube expressar as aspirações desta mesma sociedade frente à realidade a que é submetida. Literatura e engajamento, paralelamente, suscitam uma discussão que remonta a gênese da humanidade, a função da linguagem, o status que ela confere a quem a domina. Desde que o ser humano adotou a postura bípede e adquiriu a linguagem como meio de comunicação, essa habilidade ímpar foi usada como meio de dominação. Como nos demais seres vivos, a seleção natural darwiniana encarregou-se de premiar os mais fortes, o que não se confunde, no caso huma-

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no, apenas com a força física, mas também a inteligência e a astúcia. Entre as espécies, foi o domínio da linguagem que distinguiu o homo sapiens dos chamado irracionais, assim como segregou e escravizou arbitrariamente os da própria raça. Por isso, desde que o mundo é mundo, o logus é o divisor de águas entre as castas dominantes e as dominadas. Em pleno século XXI, ainda existem subhumanos. Não porque o sejam deveras, mas porque a ideologia dominante fez crer que a localização geográfica, a condição sócio-econômica, o nível de melanina são parâmetros “racionais”, capazes de distinguir os que podem pleitear viver e os que devem ser deixados à deriva, à própria sorte. Também a cultura, aqui entendida como expressão autêntica de um povo, é usada como o principal veículo da discriminação, o que afasta a cultura diametralmente de seu sentido original, que não permite qualquer nuance etnocêntrica ou possibilidade de comparação ou valoração. Desafortunadamente, somente no dicionário é possível encontrar essa acepção, visto que hoje existe uma só cultura, a dominante, via de regra a ditada pela mídia, e as demais, as discriminadas. Esta idéia de cultura dominante é acentuada a seu máximo grau no século XX, quando o capitalismo estende seus tentáculos sobre toda forma de pensamento. Talvez por isso não se tenha ainda encontrado outro adjetivo tão simétrico ao conceito de capitalismo quanto selvagem. O poder e a dominação exercidos por meio da força militar e da influência massiva dos meios de produção e comunicação se estendem a todas as esferas da sociedade. É obvio que a apropriação da linguagem como estratégia de exclusão não passaria despercebida pela elite, assim como não passou pelos escritores e intelectuais neste mesmo século. Daí a mordaça, a censura e a repressão a quem tentasse usar o mesmo artifício, a saber, a própria linguagem como resposta ao tolhimento do senso crítico. A argumentação precedente poderia sugerir que foi extraída de uma das obras engajadas do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Poder-se-ia alegar que parecem anacrônicas, pois soam ao discurso esquerdista da segunda metade do século passado. Entretanto, é inquestionável que expressam uma verdade: vivemos na era do capitalismo global, em que a dominação das massas pelo poder da propaganda midiática é irreversível. A literatura, como expressão íntima do ser humano, não esteve ausente e isenta destas transformações. Também se tornou produto desta lógica, assim como contestou o curso da história.

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Como aludido anteriormente, não é novo o uso da linguagem para disseminar uma ideologia. Mais acentuadamente, no último século, ao redor do mundo e, quase epidemicamente, nas nações da América Latina, as ditaduras vicejaram, encarregando-se de retroceder a condição humana à dos primatas. Também nesta época se configurou a resistência do movimento intelectual, em escala global, contra os abusos de autoridade. Essa reação mobilizou diversas formas de expressão cultural, e a literatura não ficou alheia ao assoreamento da liberdade de pensamento provocado pelos regimes autoritários. Alguns escritores fizeram de suas obras monumentos de resistência, vincularam sua arte a um fim específico. Entretanto, a idéia de tornar a literatura um instrumento de reivindicação, de compromisso social, o que poderíamos chamar de um viés da literatura, não foi tacitamente aceito pela crítica literária formalista e estruturalista. Essa recusa se deveu em grande medida ao descompasso desta com a definição clássica de literatura, a estética da escritura, como afirma Roland Barthes: A literatura não é um corpus de obras, nem tampouco uma categoria intelectual, mas uma prática de escrever. Como escritura ou como texto, a literatura se encontra fora do poder porque se realiza nele um trabalho de deslocamento da língua.” (BARTHES, 1996, p. 120, grifo nosso).

Ressaltamos que estar fora do poder não denota uma atitude de alienação. Assim como o fato de a literatura estar inserida na realidade, não enseja que esteja impregnada dela. Apesar de contraditório, assim é a literatura. Nela cabem muitas definições. Como é uma soma de saberes, não existe limitação para o que se queira expressar, pois cada saber tem um lugar indireto que possibilita um diálogo com sua época. E é justamente esse diálogo, ou como empiricamente utilizava Borges, essa intertextualidade, que permite que nos reconheçamos como seres humanos. Assim, o conceito de literatura vai além do que durante muitos séculos se considerou literatura, se em um dado momento buscava-se definir o que é literatura, hoje há uma tendência que propõe agrupar outros tipos de textos que, a priori, não se classificavam como tal. O escritor uruguaio Eduardo Galeano defende que el valor de un texto bien podría medirse por lo que desencadena en quien lo lee. Los libros mejores, los mejores ensayos y

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares artículos, los más eficaces poemas y canciones no pueden ser leídos o escuchados impunemente. (GALEANO, 1982, p. 62).

Obviamente, não é o conceito que um autor tenha de sua obra que faz dela literatura. Ainda assim, não se pode menosprezar numa análise textual a motivação de seu escritor. E, no caso do uruguaio, fica patente que seu desejo era que o valor literário de uma obra fosse medido por sua relevância no contexto atual da sociedade e pelo impacto causado no leitor. No entender de Galeano, não apenas a qualidade estética deveria ser levada em consideração na classificação da literariedade de um texto. Também se pode inferir da declaração do autor, levando-se em consideração seu engajamento explícito, que os melhores textos são os que desempenham uma função social. Essas declarações vão de encontro à critica literária que defende a arte pela arte, e acendem ainda mais a fogueira das vaidades que envolve a já controversa definição de cânone literário, e ainda aproveitam essa mesma fogueira para banir não só as obras classificadas como pseudo-literárias, assim como inquisitorialmente queimar o próprio Galeano. Uma idéia muito difundida é a que vincula a importância de um texto a sua atemporalidade, ou seja, sua independência estrita às suas condições de produção, sob o risco de perder sua transcendência, desaparecidas estas mesmas condições que a produziram. Assim, as obras engajadas, por seu caráter factual, estariam relegadas aos denominados textos datados, como se perdessem sua importância com o passar do tempo. Ao tratarmos de um autor assumidamente engajado, como é o caso de Galeano, é impossível ignorar o questionamento sobre a isenção política do escritor ou a falta dela. Uma outra questão inexoravelmente ligada ao binômio literatura/ engajamento é se a politização da literatura não a relega ao empobrecimento estético e a sua redução à forma panfletária. Em caso afirmativo, há uma disputa entre a arte e o pragmatismo, visto que o engajamento é fruto de um posicionamento político definido, logo, redunda num discurso de um determinado grupo, como afirma o jornalista e escritor George Orwell, as “lealdades de grupos são necessárias, e, no entanto, são um veneno para literatura, uma vez que a literatura é o produto das individualidades”. (ORWELL, 2005. p. 161). Não se pode negar que a vinculação a uma ideologia política remete o escritor a um compromisso de divulgação ou propaganda desta doutrina, limitando,

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ainda que implicitamente sua liberdade de expressão, subordinando seu campo temático e até, talvez, sua criatividade. Para resolver este dilema, o próprio Orwell propõe: Quando se envolve em política, um escritor deveria fazê-lo como cidadão, como ser humano, e não como escritor. Não penso que ele tenha o direito, apenas por causa de suas sensibilidades, de se esquivar do trabalho sujo e corriqueiro da política”. (ORWELL, 2005. p. 162).

George Orwell concebe a figura do escritor aparte do cidadão comum, como um ofício que não se confunde com a personalidade e a responsabilidade inerentes a todo ser humano. Cada um tem seu campo de atuação delimitado e não necessariamente compartilhado. Entretanto, o autor de A revolução dos bichos deixa claro que não é possível evadir-se das conjecturas políticas do mundo real a que todos são submetidos, escritores ou não. Nesse sentido, não é possível abster-se da política, se a própria noção de sociedade está baseada na definição do homem como um ser político. Sem nenhum juízo de valor, pode-se verificar que dentre os autores contemporâneos que defendiam as causas políticas, poucos se têm mantido fiéis a seu discurso engajado. Eduardo Galeano tem mostrado em sua literatura das últimas duas décadas que compartilha desta idéia de bipartição entre autor e obra, visto que o ingrediente político já não é o tema central de sua escritura, como acontecia no começo de sua carreira. Entretanto, o cidadão uruguaio Eduardo continua ativamente a defender seus ideais políticos. Para tratar da polêmica relação entre engajamento e literatura na América Latina não se pode ignorar o papel desencadeador das ditaduras militares. No início da década de 1980, alguns críticos tomaram a iniciativa de avaliar a literatura produzida durante esse período. Um dos trabalhos mais destacados pela profundidade da pesquisa é a obra Repressão e censura no campo das artes da década de 70, de Silviano Santiago, no qual debruça-se sobre o papel da literatura na época de repressão ostensiva no continente. O resultado desse estudo indicou que nos anos que se seguiram ao golpe militar, a literatura foi um dos meios mais importantes de denúncia aos abusos cometidos pelo regime, assim como uma forma evitar o silenciamento da sociedade organizada.

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Como se podia suspeitar, os discursos engajados, cuja paixão é um elemento inerente, contavam com uma boa dose de contra-propaganda, caindo muitas vezes no maniqueísmo, um traço também característico da literatura comprometida. É importante frisar que as críticas mais contumazes às obras iniciais de Galeano é justamente o caráter categórico de suas assertivas, a saber, o anti-imperialismo e a defesa incondicional da revolução como modelo. Não obstante, passados os anos de chumbo, Galeano se afasta paulatinamente, a partir da década de 1980, do que muitos definem como discurso panfletário que tem na obra Las venas abiertas de América Latina seu principal exemplo. Contudo, o autor não abandona seu tom crítico cultivado desde a juventude. Tanto na trilogia Memoria del fuego como em El libro de los abrazos, pode-se observar uma compilação de histórias curtas, muitas vezes líricas, apresentando as visões de Galeano em relação a temas diversos como emoções, arte, política e valores. Ainda assim, as obras também apresentam uma crítica mordaz à sociedade capitalista moderna, e a defesa de um modelo do que deveria ser uma mentalidade ideal à sociedade contemporânea. A literatura, como se sabe, é muito mais que um contexto histórico. É material capaz de emocionar, de demonstrar a imaterialidade, a transcendência da criação humana em qualquer época. Talvez por isso os conceitos de literatura tenham se flexibilizado, e as mudanças de paradigmas atestem que o viés científico da literatura incorpora novos questionamentos sobre os já estabelecidos. Até o século XVIII, a literatura foi vista como educativa, ou pedagógica. Basta pensarmos que as literaturas eclesiástica e filosófica tinham um objetivo bem definido. As escrituras sagradas de todas as religiões, da civilização ocidental ou oriental, fazem da estética literária uma aliada da pedagogia sacerdotal. Foi a partir da Renascença que a literatura perdeu o cunho comunitário e passou a ter caráter particular e íntimo. O Romantismo foi o responsável por essa mudança de paradigma: A curiosa idéia de que a arte não está a serviço de nada a não ser de si mesma é relativamente recente. Data do romantismo europeu do século XIX, … momento em que o artista se torna um desempregado crônico. Arte e artesanato. A indústria veio para substituí-lo. Sem função social mas ainda cheia de sua própria importância, a arte entre horrorizada e fascinada, volta-se contra o mundo utilitário que a cerca, negando-o,

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão criticando-o, como um não-objeto feito de antimatéria.O mundo burguês é anti-artístico. A arte não precisa mais dele. Já pode nascer a "arte pela arte". (LEMINSKY, 1986, p. 91).

Contrariando o que “o mundo burguês” passou a determinar também na literatura, e diferentemente de outros escritores que fazem questão de que suas obras não estejam vinculadas a uma função específica, que fogem veementemente da classificação de artista utilitário, Galeano assume-se como engajado, está de acordo com a idéia de escrita defendida por Paulo Leminsky: Uma arte, uma literatura in-útil: nenhuma idéia poderia ser mais estranha à Idade Média católica, herdeira das concepções greco-latinas sobre o duplo papel da arte: "delectare", "agradar", e "docere", "instruir"… A obra literária tem deveres morais. Não há lugar para umas obras blasfemas, sacrílegas, iconoclastas, dissolventes, corruptoras. A obra de arte é a expressão de uma norma …A desmesurada liberdade da literatura ocidental moderna pareceria aos medievais o triunfo de Satanás na terra. O pecado da literatura moderna, aliás, é o mesmo de Lúcifer, a soberba, o orgulho de se declarar autônoma, além do bem e do mal. (LEMINSKY, 1986, p. 92).

A idéia de uma literatura in-útil, ou seja, um instrumento para um fim pedagógico é o que predomina nos textos jornalísticos e até em obras mais extensas de Galeano, em que revela suas posições ideológicas e suas aspirações artísticas. Em Patas arriba: la escuela del mundo al revés, combina um conjunto de elementos, retirado de uma extensa bibliografia de referência, que comunica uma mensagem e exorta em um determinado sentido: ¿Qué destino tienen los nadies, los dueños de nada, en paises donde el derecho de propiedad se está convirtiendo en el único derecho? ¿Y los hijos de los nadies? […] según la organización Human Rights Wacht, en 1993 los esquadrones parapoliciales asesinaron a seis niños por día en Colombia y a cuatro por día en Brasil. (GALEANO, 1996. p. 18-9).

A visão de mundo do autor, seu discurso, técnica e escolha da linguagem, seja prosa ou poesia, constituem um todo, destinado a criar e transferir uma versão que se some à realidade. 215

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Em consonância com o teórico alemão Theodor Adorno, expoente da chamada Escola de Frankfurt, Galeano tem uma visão marxista da arte, uma síntese dialética entre a arte pela arte e o compromisso ético e político de viver revolucionariamente uma dada circunstância histórica. Ao mesclar gêneros e tipologias textuais, sincretiza sua idéia de arte em que não há contradição entre o belo e o útil, as entende como complementares. Para que compreendamos o sentido que Galeano pretende imprimir em suas obras, há dois ensaios em que o escritor faz uma auto-análise de sua escrita e de sua visão do que é literatura, ambos escritos como uma espécie de autocrítica sobre os caminho literários trilhados por ele. Defensa de la palabra (1976) e Diez errores o mentiras frecuentes sobre literatura y cultura en América Latina (1980) são textos que representam um tipo de manifesto literário em que o autor explica a índole que rege sua escrita. O título do texto de 1980, assim como sua estrutura, parecem seguir o modelo utilizado por Ángel Rama em Diez problemas para el novelista latinoamericano (1972), na qual o crítico divide a obra em dez tópicos centrais para discutir temas como o contexto econômico e cultural, a relação entre o escritor e seus leitores, além de examinar a questão do gênero no romance e a narrativa testemunhal, autobiográfica e documental. Os dois ensaios de Galeano foram escritos no período em que estava exilado devido à ditadura militar instaurada no Uruguai. A estrutura de ambos é bem similar e até chegam a discutir os mesmos assuntos formulados sob outro enfoque. Percebe-se claramente a reflexão sobre a relação entre o contexto político conturbado da época e as manifestações culturais que emanaram ou foram provocadas por essa tensão. O tom melancólico e existencialista que predomina nos ensaios reflete as contradições que o autor vivenciou no regime de exceção por que passou em sua terra natal e na Argentina, e pelo próprio exílio a que foi submetido. Esse contexto pessoal transparece nos relatos contundentes contra a memória histórica da América Latina, construída e difundida por órgãos oficiais, e contra o imperialismo norte-americano. Neste rol inclui-se a defesa dos direitos humanos, aludindo à opressão da ditadura. Por esse histórico pessoal e literário de Galeano, é contraditório constatar que o uruguaio encontra-se entre últimos intelectuais a reconhecer o caráter repressor do governo castrista em Cuba. Até mesmo porque os ideais da Revolução Cubana durante muito tempo inspiraram seus discursos engajados e de muitos 216

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outros escritores latino-americanos, forjados no cadinho revolucionário e na cartilha marxista. Referindo-se à ditadura, Galeano reflete: “En tiempos tan tormentosos, el oficio de escribir es un peligro. En circunstancias así, uno recupera el orgullo y la alegría de la palabra o le pierde respeto para siempre.” (GALEANO, 1981, p.8). Fica patente que acreditava que a palavra era a arma contra a opressão, e, principalmente, uma forma de recuperação da própria identidade e auto-estima. Diana Palaversich, em sua extensa pesquisa sobre a obra de Galeano, divide o estudo dos dois ensaios supracitados em quatro temas norteadores: 1) a relação entre o escritor e a realidade nacional ou continental; 2) a relação entre o escritor e o leitor; 3) o conflito entre a cultura dominante e a cultura alternativa; e 4) a subversão dos cânones literários e da ideologia dominante. Todos esses temas, em maior ou menor grau, serão partes constituintes de suas obras desde o exílio até as mais recentes, como observaremos mais adiante. No que diz respeito ao papel do escritor frente à realidade social, não só da América Hispânica, mas de todo continente americano, Galeano defende a denúncia da injustiça e suas conseqüências políticas. Assim, sua literatura funciona como instrumento de conscientização para que a realidade seja transformada. É obvio que essa posição do escritor como sacerdote, um iluminado em defesa dos oprimidos, com uma obrigação social, soa como uma atitude paternalista, um discurso voltado para sua autopromoção retórica, ainda mais quando se leva em consideração que o continente é constituído por nações formadas e conformadas por uma sociedade pós-colonial, achacada por discursos políticos e religiosos utilizados como pano de fundo para exploração. Um traço que se percebe com facilidade na obra de Galeano é a busca de uma comunhão entre o escritor e seus leitores. O escritor percebe a literatura como um instrumento essencial de cognição e reflexão, atribuindo-lhe o poder de atuar sobre as consciências dos que a lêem. Como afirma Palaversich, Por lo tanto, la particular complicidad del lector con la cual cuenta Galeano no es aquella del ‘lector cómplice’cortazariano, sino, más bien, se trata de uma complicidad ideológica, un punto de vista compartido. (PALAVERSICH, 1995. p. 15).

Galeano crê sinceramente que ao escrever está cumprindo uma missão, pois acredita que é possível mudar a realidade com a sensibilização e a cons217

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cientização coletiva: “…lo que uno escribe puede ser historicamente útil sólo cuando de alguna manera coincide con la necesidad colectiva de conquista de identidad.”(GALEANO, 1989, p.11) Pode-se entrever nesta afirmação a justificativa para o tema central de sua obra mais célebre As veias abertas de América Latina, o germe de sua obra engajada. Entretanto, não é somente em Veias abertas que o escritor retoma elementos documentais da cultura hispano-americana para configurar uma nova identidade para o continente. Em boa parte de seus ensaios e obras mais extensas, como a trilogia Memória do fogo, o autor declara que um de seus objetivos é o resgate da memória histórica e a reafirmação da identidade latino-americana autóctone, suplantada por culturas de conquistas. Nestas obras a história documental é o arcabouço das narrativas, seja em referências bibliográficas eruditas, contos populares, notícias de jornal, poesia, crônica ou depoimento. Como afirma no prólogo de O século do vento, terceiro tomo da trilogia, trata-se de uma obra em que o autor conta o que ocorreu, a história da América e sobretudo da América Latina, e gostaria de fazê-lo de tal maneira, que o leitor sinta que o acontecido torna a acontecer enquanto o autor conta. (GALEANO, 2002, p.19.)

Ao re-contar a história latino-americana, Galeano descreve de forma passional a exploração do continente desde a conquista da América, pela colonização espanhola no século XV até o hodierno imperialismo norte-americano, e propõe uma cultura de libertação: Esa cultura de la liberación se alimenta del pasado pero no termina en él. Vienen de muy lejos algunos de los símbolos de identidad colectiva capaces de abrir, a los latinoamericanos de nuestro tiempo, nuevos espacios de libertación… ¿Qué es la genuína cultura popular sino un complejo sistema de símbolos de identidad que el pueblo preserva y crea? (GALEANO, 1972,p. 34-3).

Esse afã de resgate da identidade cultural e histórica latino-americanas se faz presente também em obras breves como Dias y noches de amor y de guerra, El libro de los abrazos e Las palabras andantes.Em todas, grande parte das fontes de consulta são a cultura popular, os mitos e as canções dos povos latino-

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-americanos. Foi a opção Galeano para transmitir de forma alternativa a realidade retratada há séculos pela visão ortodoxa dos vencedores. O que propõe Galeano é uma contra-história, uma outra versão que sirva de opção e, principalmente, de reflexão sobre o discurso oficial. Seu discurso engajado, em síntese, busca fazer da literatura um instrumento de fruição estética, mas também de reflexão, capaz de tornar o continente latino-americano não apenas mais belo, mas, sobretudo, mais justo.

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BIBLIOGRAFIA

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QUESTÕES CONCEITUAIS SOBRE AS LITERATURAS NACIONAIS NA AMÉRICA LATINA

Lindinei Rocha Silva UNIG

N

o mundo acadêmico, a necessidade de classificação obedece à própria epistemologia da ciência. Entretanto, muitas vezes, na tentativa de compor um quadro homogêneo da produção literária de um país ou uma época, corre-se o risco de uma leitura reducionista, característica inerente à historiografia da literatura, fundada quase exclusivamente na ótica dos estilos de época. Não são poucos os manuais de literatura hispano-americana que tentam abarcar uma gama de obras e autores, tentando alocá-los sob uma escola literária ou uma periodização arbitrária. Por esse viés, não é incomum incorrer no perigoso caminho de estudar obras mestras isoladas entre si ou dar ênfase ao estudo das circunstâncias históricas que permearam sua escrita. Quando se observam as conceituações da ciência literária, dificilmente se encontra uma literatura que possa abrigar a alcunha de continental. No caso particular da literatura hispano-americana não é diferente. Ainda que se use o termo como uma generalização, destacando as similaridades, sobretudo, a língua, as peculiaridades históricas e culturais de cada país, ainda assim, são maiores que as semelhanças entre eles. Por isso, quando se faz uma reflexão sobre a literatura produzida na América hispânica, de imediato, pode-se estabelecer esta dupla característica aparentemente contraditória: a unidade na diversidade.A unidade nas letras hispanas derivada da força do idioma comum que, se não desfaz, atenua inexoravelmente essa contradição. A diversidade, consequência da tradição local na formação das nacionalidades da América, confunde-se com as semelhanças do passado histórico e origem cultural comum aos povos latino-americanos. Assim, é possível encontrar nesta literatura um amálgama histórico-lingüístico, visto que no contexto latino-americano existe mais que uma similiradade, há uma afinidade entre movimentos, uma confluência de estilos e, ainda que não seja unânime, está permeada por uma preocupação temática comum às ex-colônias espanholas. 221

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Essa unidade, obviamente, é relativa, e pode ser percebida em maior grau na segunda metade do século XX, quando se observa uma quase homogeneização político-cultural, conseqüentemente, literária, em quase todo continente. O crítico uruguaio Ángel Rama formulou algumas teorias literárias integradoras nas quais deu ênfase aos momentos da história da América Latina em que ocorreram intervenções estrangeiras, esse período “fue un útil instrumento de afirmación independiente y soberana, y de lucha contra las intromisiones foráneas y de resguardo de la especificidad cultural larinoamericano”. (RAMA, 1980, p.73).Pensar nas afinidades culturais, construídas historicamente pelos países latino-americanos, era o que o crítico defendia e procurava cumprir através da literatura. Para o autor, a literatura é um elemento integrante da cultura e não um mero objeto artístico, independente do sistema cultural das civilizações. Pode-se notar no discurso de Rama um viés ideológico ou até mesmo engajado, uma característica quase indelével dos escritores latino-americanos. As causas dessa reação são devidas às marcas da opressão sofrida pelos povos latinoamericanos, desde a colonização até a culminação das ditaduras militares. No imaginário coletivo, é comum atribuir aos escritores do continente o título de engajado. Obviamente, está presente nesse juízo uma generalização. Entretanto, nesta afirmação está embutida a idéia de que a conversão do escritor em guardião da herança cultural e intérprete da situação política é produto de uma particular conjuntura latino-americana, na qual o compromisso político é parte da alcunha de seus intelectuais, ou seja, faz parte da tradição latino-americana, até por uma demanda, uma expectativa, de um público que exige que o escritor seja um orientador, mais ainda quando o povo está sendo submetido a situações que o priva, ainda que metaforicamente, de sua cultura. Conforma atesta mais uma vez Rama: Tambien así entendió el pueblo de la diáspora, esperando de los escritores un mensaje que recogiera la tradición más rica y la actualizara en las nuevas circunstancias, lo que habría de traducirse en una intensificación ideológica que es propia de los mensajes literarios. Más que simples creaciones artísticas, el escritor y ese médio afín sintieron la necesidad de una producción que al tiempo de restaurar los valores de la cultura originaria, destacara sus problemas más urgentes, sus reclamaciones, sus protestas … Es ese el momento en que irrumpe la literatura a modo de descarga y de intento de reflexión. Y esta irrupción no responde caprichosa y oportunistamente a un proyecto del escritor, sino a un gran reclamo por parte del público […]. (RAMA, 1978,p. 13).

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Por isso os estudos de Rama sobre as narrativas latino-americanas transcendem a obra literária, avaliando-a como parte de um processo histórico-cultural, ou seja, um instrumento ativo, construído conscientemente. Observando sob esse ponto de vista, os escritores não são apenas sujeitos históricos, mas também grupos de intelectuais engajados na promoção da cultura interna das sociedades. Por essa razão, Rama trabalha sob a perspectiva de “cultura militante,” que seria uma atitude consciente e também política dos escritores de elaborar projetos culturais que orientassem um caminho a percorrer. Compartilha desta opinião Antonio Cornejo Polar, que reconhece na própria natureza discursiva da obra literária os questionamentos humanos e culturais que estão presentes na literatura: “[…] Trata-se de afirmar o que não deveria ter deixado de ser evidente: as obras literárias e seus sistemas de pluralidade são signos e remetem sem exceção possível a categorias supra-estéticas; o homem, a sociedade, a história.” (CORNEJO POLAR, 2000, p. 16). Sendo assim, a literatura como expressão artística que emana do homem, não pode abster-se de refleti-lo e seu entorno, seu contexto histórico. Neste mesmo sentido, Octavio Paz, no ensaio Alrededores de la literatura hispanoamericana,apresenta uma reflexão sobre a nacionalidade das literaturas que têm sua gênese atrelada ao processo histórico-cultural: La literatura es un conjunto de obras, autores y lectores: una sociedad dentro de la sociedad. Hay excelentes poetas y novelistas colombianos, nicaragüenses y venezolanos pero, no hay una literatura colombiana, nicaragüense o venezolana. Todas esas literaturas son inteligibles solamente como partes de la literatura hispanoamericana. (PAZ, 1981. p. 25).

Sob esse ponto de vista, há a necessidade de relacionar às noções de literatura nacional, regional e continental para que se compreenda o alcance da literatura hispano–americana. Esse entendimento está relacionado à noção de que o processo de formação da América está imbricado com a construção de sua literatura, conforme ressalta Ana Pizarro, há “la necesidad de observar el proceso de la literatura latinoamericana como parte integrante del proceso social en América Latina.” (PIZARRO, 1987, p. 192). Como foi ressaltado, essa relação entre literatura e contexto histórico-social reflete-se em sua articulação, na medida em que a literatura do continente apre-

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senta um viés de engajamento sartreano, que acredita que “a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele.” (SARTRE, 1993, p. 21). Para citar um exemplo de escritor que faz questão de apagar as fronteiras entre o nacional e o continental, podemos observar a literatura do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Suas obras nos remetem além das fronteiras nacionais de seu país, sua temática é explicitamente latino-americana. O autor comunga a idéia de Ana Pizarro sobre a literatura, “Su función histórica consiste que ha sido aquí, entre otras cosas un instrumento de dominación y simultáneamente un medio de reacionar contra esa dominación.”(PIZARRO, 1987, p. 194)Galeano fez dessa crença a razão para escreversua obra mais comnhecida, As veias abertas da América Latina, e outras de suas criações literárias. Na busca de novas formas de delimitar o referente literário hispano-americano, muitas disciplinas propuseram abordagens diferentes. Um bom exemplo são os estudos literários coloniais, como os do crítico literário argentino Walter Mignolo, que discute esse problema em seu artigo A língua, a letra, o territorio (ou a crise dos estudos literários coloniais) e afirma que boa parte da problemática de se configurar um corpus de obras de estudo, assim como de definir os parâmetros para tal seleção está na perspectiva de críticos anteriores, como Enrique Anderson Imbert, que afirmava que a literatura na América só está composta por textos que façam uso expresivo da língua espanhola na América, sem levar em consideração, por exemplo, as produções em línguas indígenas, ou de escritores hispano-americanos que escreveram em outras línguas. Esta discussão leva-nos a um questionamento ainda mais discutível, o da própria noção de hispano-americano. Analisando cronologicamente o conceito de América Latina, Jorge Schwartz explica que tal conceito aplicado a questões tanto políticas como literárias, surge pela primeira vez em 1836, em artigo de Michel Chevalier, e que foi retomado com vigor pelo escritor e diplomata colombiano José Maria Torres Caicedo (1827-1889).Essa conceituação não é pacífica, devido às caudalosas questões que envolvem um tema tão heterogêneo. Entretanto, mais que mera especulação, busca-se um referencial teórico que possa subsidiar a análise desta profícua literatura continental. Na obra América Latina en su literatura, seu organizador, César Fernández Moreno, encontrou dificuldades para conceituar o termo, segundo ele, América Latina, entidad todavía no definida, pero que presenta a la simple vista la consis224

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tencia de lo real.(FERNÁNDEZ MORENO,1972, p. 9). Também o conceito de real e realidade são bastante subjetivos, mas se nos apegamos à definição mais difundida, a histórica, chegamos à conclusão de que o contexto histórico da América Latina é quase sempre um dos personagens, quando não desempenha o papel de protagonista. É sob essa perspectiva que Bella Jozef denomina efeito de real a representação pura e simples do real (a resistência ao sentido) provocaria um esvaziamento do signo literário, trabalharia unicamente ao nível do significante. Assim sendo, consciente das limitações geradas pelas resistências ao real (“referência essencial do discurso narrativo”) a ficção salva-se na instituição do detalhe que é analógico, somatório, e não se justifica por nenhuma finalidade de ação ou de comunicação frente à estrutura geral do discurso narrativo que é significativo ainda que sua significação esteja na ausência de significado. (JOZEF, 2006, p. 174-5).

Esta simbiose, por assim dizer, reflete-se numa unidade temática onipresente nessas literaturas, especificamente na segunda metade do século XX, a saber, o questionamento do descobrimento ou invasão do novo continente; assim como a afirmação de uma identidade autóctone baseada na revisão da memória histórica. Concomitantemente, como sublinhamos anteriormente, é parte visceral desta bibliografia do continente latino-americano o discurso engajado, que vincula a literatura à transformação da sociedade, que vê nesta arte, não um fim em si mesma, mas um meio a serviço de uma causa maior. Esse desejo de auto-afirmação do continente latino-americano que se nota na literatura também teve conseqüências no contexto sócio-político da região. Um dos traços mais marcantes do final do século passado foi a unificação em blocos econômicos de países que comungam da mesma ideologia, visando fortalecer-se econômica e até militarmente. A União Européia, a ALCA e o Mercosul são exemplos da mobilização entre países que se juntaram para se tornarem competitivos no mercado global e reafirmarem suas identidades. Posição diametralmente oposta ao que ocorreu na Europa nos séculos XVIII e XIX, em que a burguesia, no processo dialético da História, lutava contra a nobreza pelo domínio político da sociedade, e, posteriormente, a derrocada do absolutismo, para dar lugar aos Estados Nacionais. Se antes era necessário isolar-se para reconhecer-se, hoje, é pela pujança econômica e bélica que se impõe uma cultura. 225

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O que se deu na configuração da identidade hispano-americana e, conseqüentemente, de sua literatura está intimamente ligado às condições históricas e econômicas de suas nações constituintes. O anseio pela construção de uma identidade comum independente do local de origem, conforme postula Erik Erikson, no que tange à formação do indivíduo, a elaboração da identidade é um mecanismo através do qual o homem procura integrar-se à sociedade, fazer parte de um todo constitutivo, reconhecer-se como parte integrante. Assim, seja na formação das nações independentes ou na contemporaneidade, pela configuração de mega blocos econômicos, as características comuns e os laços culturais ensejaram sua unidade nacional ou regional. De modo similar, as peculiaridades históricas das nações latino-americanas também serviram como justificativa para a conformação de uma identidade literária.

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BIBLIOGRAFIA

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REPRESENTAÇÕES ANIMALIZADAS DA ALTERIDADE EM AS VIÚVAS DAS QUINTAS-FEIRAS:O MEDO DO DIFERENTE NA EXPERIÊNCIA DE ANTI-CIDADE DO “BARRIO CERRADO”

Michele de Campos Viegas

A

proposta do trabalho pressupõe um diálogo com uma disciplina velha conhecida da área de Letras – a Filosofia – e com outra área com a qual a Letras não costuma trabalhar - a Geografia. Dentro deste contexto, para dialogar com o romance As viúvas das quintas-feiras de Claudia Piñeiro, convocamos o conceitoda coisificação do homem, já bastante difundido no ambiente dos estudos literários, e também as análises do geógrafo Marcelo Lopes de Souza que se destacam, em especial, no que se refere às transformações e reconfigurações do espaço urbano. Com base nestes estudos, pudemos pensar a obra literária ao entender que afragmentação do tecido sócio-espacial da cidade e a reconfiguração do espaço urbano provocam a proliferação dos “condomínios exclusivos” e dos “bairros fechados” ao mesmo tempo em que alimentam as representações animalizadas que a alteridade assume dentrodestes microcosmos sociais em face aos padrões de vida estabelecidos pelo “eu” condômino. Em seu livro intitulado Fobópole, Marcelo Lopes de Souza considera que sob a influência do medo e do sentimento de insegurança generalizados, a organização espacial da cidade está se modificando, na medida em que as classes médias e altas optam por isolar-se numa espécie de “enclave territorial”, no qual o capital privado pode mobilizar toda uma rede de serviços e direitos que a cidade deixou de oferecer. É este o cenário em que se desenvolve o romance As viúvas das quintas-feiras,da autora argentina Claudia Piñeiro. Ao decidir se transferir para o bairro fechado com toda a família, a protagonista da narrativa estava certa de que morar em Altos de la Cascada iria mudar as suas vidas, e por isso, nas suas próprias palavras, precisavam “romper com a cidade”. Desta sorte, o trabalho procura demonstrar como o romance de Piñeiro confirma a tese de Marcelo Lopes de Souza de que ao tentar replicar a cidade, o bairro fechado acaba reproduzindo também uma experiência de anti-cidade, uma vez que perpetua a convivência problemática com a alteridade já 228

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verificada no espaço urbano. Para tanto, apóia-se também na noção da coisificação do homem consagrada pelo pensamento filosófico que prevê a representação deste Outro a partir do ponto de vista exclusivo do sujeito do discurso, no caso do romance argentino, o morador do bairro fechado. Na qualidade de réplica da cidade, o bairro fechado procura reproduzir no espaço micro os direitos do cidadão, tais como: o direito de ir e vir, o direito à privacidade, o direito à segurança e o direito à reunião, todas estas prerrogativas que passam a ser administradas consoante o regulamento do bairro. Assim, o bairro fechado tal como apresentado no romance argentino simula um espaço de democracia representativa nos moldes da ágora grega, onde o condômino adquire o status de legislador, normatizando aspectos relativos à convivência intramuros, a exemplo das regras apresentadas na narrativa de Claudia Piñeiro que ora regem o aspecto das caixas d’água, que devem estar totalmente camufladas sob pena de multa ora regulam o consumo de drogas a partir do estabelecimento de sanções. Desta forma, as reuniões de condomínio mimetizam as assembléias da pólis grega, pois o condômino/cidadão tem o direito de legislar sobre todas as matérias relativas à vida cotidiana dentro do bairro fechado. Direitos ordinariamente garantidos pelo Estado deixam então a esfera do público e se transferem para a do privado e, numa perspectiva mais alarmante, tornam-se direitos “exclusivos”. Segundo Marcelo Lopes de Souza, é como se os bairros fechados replicassem a cidade a sua imagem e semelhança, porém acima de tudo conforme a conveniência do condômino/cidadão. De um ponto de vista político-pedagógico, pode-se afirmar que os “condomínios exclusivos” ameaçam o fortalecimento de valores de civilidade e solidariedade cidadã, uma vez que são ambientes de socialização que, a um só tempo, pressupõe e reforçam um descompromisso para com a cidade como um todo. Reforçam porque, implicando um empobrecimento adicional da vivência da cidade e da experiência do contato com o Outro (entendido esse Outro como o favelado, o morador de rua, o suburbano…), o enclausuramento voluntário só pode terminar por reforçar preconceitos, na esteira da ignorância e do medo. O espaço urbano também educa – ou “deseduca”. No caso dos condomínios, educa não para a liberdade, para o diálogo, para o respeito à diferença, para a solidariedade, mas

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares sim para o ódio de classe (não raro amalgamado com o ódio racial), para o elitismo arrogante, para o temor e o desinteresse (e o desrespeito) em face dos diferentes. (SOUZA, 2008, p. 74).

Para avançar na leitura proposta pelo trabalho, trazemos as reflexões do teórico T. Todorov em A conquista da América – a Questão do Outro, em especial, o tratamento do autor acerca das maneiras de o eu reconhecer e representar o outro que lhe é diferente. Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim. Ou então como um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos. Este grupo, por sua vez, pode estar contido numa sociedade: as mulheres para os homens, os ricos para os pobres, os loucos para os “normais”. Ou pode ser exterior a ela, uma outra sociedade que, dependendo do caso, será próxima ou longínqua: seres que em tudo se aproximam de nós no plano cultural, moral e histórico ou desconhecidos, estrangeiros cuja linguagem e costume não compreendo, tão estrangeiros que chego hesitar em reconhecer que pertencemos a uma mesma espécie. (TODOROV, 1993, p. 3).

E é a perspectiva do Outro como “desconhecido” e “estrangeiro”, “tão estrangeiro” que o sujeito do discurso chega a desconfiar que pertençam a “uma mesma espécie”, que procuraremos desenvolver ao longo trabalho, analisando as representações animalizadas da alteridade no romance As viúvas das quintas-feiras e reafirmando a tese sartriana de que a existência do Outro é medida pura e simplesmente pelo conhecimento limitado que dela tem o sujeito do discurso. Em As viúvas das quintas-feiras, a alteridade encarna diferentes formas e feições: ora um imigrante judeu, ora um cão intruso que procura comida no lixo, outras vezes uma imigrante paraguaia ou um morador da comunidade popular vizinha conhecida como Santa María de los Tigrecitos: todos eles perturbando a ordem estabelecida na medida em que como intrusos negam o direito de exclusividade do “eu” condômino. A título de exemplo, uma das personagens, “sócia de toda a vida”, como ela mesma se autointitula, reclama a necessidade de “algum tipo de mecanismo de seleção” que evite “um Isaac ou uma Judith” a mais nos registros do bairro, pois diznão gostar de sentir-se obrigada a integrar-se com 230

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registros do bairro, pois diznão gostar de sentir-se obrigada a integrar-se com “gente de quem não seria naturalmente amiga” e que, portanto, “seria bom poder escolher um pouco as pessoas”. Desta forma, o preconceito e o desrespeito em face dos diferentes se apresentam como discursos naturalizados na boca da personagem.Do mesmomodo, outros personagens recém-chegados da cidade se assustam ao topar com algum animal exótico sem terem sido previamente advertidos ― um morcego ou uma doninha “que não se detêm diante de nenhuma das três barreiras, nem dos alambrados perimetrais” ―, o que denotaa visão animalizadora da alteridade construída no âmbito do imaginário do morador das grandes cidades do século XXI que, sob o impacto do medo, pretendem migrar em direção aos condomínios exclusivos e aos bairros fechados. A propósito, Jean Paul Sartre aponta em seu livro O ser e o nada que o olhar realista (naturalista) tende a ver o corpo do Outro como “um objeto real” que atua sobre a substância pensante e que só fará sentido quando inserto dentro de uma totalidade funcional. […] O realismo não deixa lugar algum à intuição do próximo: de nada serviria dizer que, pelo menos, nos é dado o corpo do próximo, e que este corpo é certa presença do outro ou de uma parte dele. É verdade que o corpo pertence à totalidade que chamamos “realidade humana”, como uma de suas estruturas, mas, precisamente, não é corpo do homem senão enquanto existência na unidade indissolúvel desta totalidade, como o órgão não é órgão vivente senão como totalidade do organismo. A posição do realista, ao nos entregar o corpo não como implicado na totalidade humana, e sim à parte, como uma pedra, uma árvore ou um pedaço de cera, matou o corpo com a mesma habilidade que o escalpelo do fisiologista ao separar um pedaço de carne da totalidade do ser vivo. O que está presente à intuição realista não é tomar o corpo do próximo, senão um corpo. 1

Neste sentido, conforme descreve Claudia Piñeiro em seu romance, apesar do “primeiro impacto forte, como uma desilusão”, “depois você se acostuma, até os

Tradução nossa do fragmento retirado do texto originalEl ser y la nada de J. P. Sartre indicado nas referências bibliográficas. 1

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“gente de quem não seria naturalmente amiga” e que, portanto, “seria bom poder escolher um pouco as pessoas”. Desta forma, o preconceito e o desrespeito em face dos diferentes se apresentam como discursos naturalizados na boca da personagem.Do mesmomodo, outros personagens recém-chegados da cidade se assustam ao topar com algum animal exótico sem terem sido previamente advertidos ― um morcego ou uma doninha “que não se detêm diante de nenhuma das três barreiras, nem dos alambrados perimetrais” ―, o que denotaa visão animalizadora da alteridade construída no âmbito do imaginário do morador das grandes cidades do século XXI que, sob o impacto do medo, pretendem migrar em direção aos condomínios exclusivos e aos bairros fechados. A propósito, Jean Paul Sartre aponta em seu livro O ser e o nada que o olhar realista (naturalista) tende a ver o corpo do Outro como “um objeto real” que atua sobre a substância pensante e que só fará sentido quando inserto dentro de uma totalidade funcional. […] O realismo não deixa lugar algum à intuição do próximo: de nada serviria dizer que, pelo menos, nos é dado o corpo do próximo, e que este corpo é certa presença do outro ou de uma parte dele. É verdade que o corpo pertence à totalidade que chamamos “realidade humana”, como uma de suas estruturas, mas, precisamente, não é corpo do homem senão enquanto existência na unidade indissolúvel desta totalidade, como o órgão não é órgão vivente senão como totalidade do organismo. A posição do realista, ao nos entregar o corpo não como implicado na totalidade humana, e sim à parte, como uma pedra, uma árvore ou um pedaço de cera, matou o corpo com a mesma habilidade que o escalpelo do fisiologista ao separar um pedaço de carne da totalidade do ser vivo. O que está presente à intuição realista não é tomar o corpo do próximo, senão um corpo. 1

Neste sentido, conforme descreve Claudia Piñeiro em seu romance, apesar do “primeiro impacto forte, como uma desilusão”, “depois você se acostuma, até os vê com simpatia”. Ou seja, a despeito do desejo de exclusividade, o “eu” condômino acaba constatando que aquele corpo estranho atende, antes de tudo, a uma demanda do próprio bairro, uma vez que se trata de entregadores, empregadas domésticas, jardineiros, pintores, enfim, todo tipo de trabalhador imprescindível para o bom funcionamento do bairro fechado. E o olhar aparentemente simpático

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em relação à alteridade reproduz, na realidade, a velha perspectiva “orientalista” do Outro. Como exemplo, podemos citar o relacionamento da empregada paraguaia Gabina com a patroa, pois ainda que se torne sua amiga e, em certa medida, pertencente ao universo interno do bairro fechado, continua figurando como uma espécie de contaminação ao universo puro e imaculado do “eu” condômino. Tendo em vista a proposta o trabalho, devemos destacar, sobretudo, a representação do Outro sob a forma de cães ― “cães sem dono, criados à deriva, que entravam no bairro para procurar comida”, “selvagens”, não os cães que passeiam no interior do bairro fechado “com coleira e placa identificatória com nome e telefone para o caso de extravio”. A mesma metáfora, dos cães como estratégia discursiva de representação animalizada da alteridade, observamos no seguinte fragmento da narrativa: Ainda não foi possível determinar como se introduzem no terreno do bairro. Já que não se encontrou nenhuma toca nem alambrado avariado ao longo do perímetro, estima-se que os cães entraram pela porta de acesso ao público geral, por baixo das barreiras. Embora só procurem comida e ainda não tenham atacado nenhum morador, é recomendável mantê-los à distância. Por enquanto, a única solução para o problema é proteger adequadamente o lixo, que é o motivo da vinda deles. Entram para procurar a comida que já não encontram em seu habitat natural fora de Los Altos. Por isso, pedimos a todos os moradores que não deixem sacos com resíduos domiciliares ao alcance desses animais. (2007, p. 178).

Se iluminarmos alguns trechos do fragmento, podemos observar que a alteridade se apresenta aí como um “problema” a ser solucionado a qualquer custo, seja protegendo o lixo refugado pelos moradores do bairro fechado que atraem “esses animais”, seja reforçando as fronteiras que isolam essa utopia de cidade do inimigo externo. Deste modo, a iminência de um ataque justificaria toda a sorte de muros, grades, cancelas, alambrados ― visíveis e invisíveis ―, todo um aparato de segurança privada mobilizado para salvaguardar o “eu” condômino da presença indesejada do Outro “diferente” e, portanto, “ameaçador”. Não é à toa que a protagonista da narrativa afirma que “nós que viemos da cidade trazemos muitas fantasias, mas também muitos medos”. E se uma sociedade do medo não combina com uma cidade dos sonhos, até quando a Comissão de Segurança de 233

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Altos de La Cascadapode proteger seus moradores dos riscos e perigos latentes do outro lado das barreiras? Para responder a pergunta, retomemos, em primeiro lugar, a proposta do teórico argentino José Pablo Feinmann que, em ensaio intitulado A metáfora da casa tomada, esclarece que, ao longo da história da Argentina, a alteridade encarnou diferentes feições – os gauchos, os índios, os “insolentes” imigrantes, os cabecitas negras e agora os “novos” imigrantes: bolivianos, chilenos, peruanos e paraguaios. Em segundo lugar, consideremos a problemática levantada por Claudia Piñeiro em seu romance, pois além de reeditar algumas destas máscaras que a alteridade assumiu no imaginário argentino, a autora problematiza a nova feição que o Outro vem assumindo em conformidade com a previsão de Marcelo Lopes de Souza a respeito da configuração de novas fronteiras urbanas e da consequente expansão da “geografia do medo”. Sob esta óptica, as representações animalizadas da alteridade não podem mais dar conta de reconhecer o entorno do bairro fechado, uma vez que esboçar as expressões do “exótico” e o comportamento do “suspeito” não sustenta a imagem de uma alteridade que já não é tão certa e definida como grupo social concreto. Desta maneira, a conclusão do romance As viúvas das quintas-feiras sugere que a alteridade não pode ser mais tão somente representada sob a forma de um conjunto de indivíduos, cuja presença constante fere o direito de exclusividade do morador do bairro fechado. Observamos que a alteridade assume então uma dimensão abstrata, visto que se manifesta à maneira de um coletivo invisível que ameaça para além do universo conhecido e controlado pelo condômino/cidadão. Agora, o Outro não aparece apenas de modo concreto, invadindo o mundo utópico do bairro fechado. Na conclusão da narrativa, estar “do outro lado da barreira” pode significar estar para além do horizonte pensado, calculado e projetado pela engenharia do condomínio e, sobretudo, pela representação imagética dos moradores do bairro fechado. No fragmento selecionado, embora o vigia aponte a figura dos favelados, esta não é mais do que a “suposta” identidade do “inimigo”. “Peguem direto a rodovia, sem passar por Santa Maria de los Tigrecitos; não convém tomar esse caminho, há um informe da segurança.” “O que está acontecendo?”, perguntei. “O clima está feio.” “Interromperam a passagem?” “Eu não saberia dizer, mas até o pessoal de los Tigrecitos está fazendo barricadas com medo de que eles venham.” “Eles, quem?”, perguntei. “Os

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão favelados, suponho. Dizem que estão saqueando do outro lado da rodovia”. (2007: 252)

Neste sentido, notemos que a seleção vocabular do fragmento evidencia uma mudança nas estratégias discursivas de representação da alteridade que de objeto animalizado passa a sujeito indeterminado. “Eu não saberia dizer, mas até o pessoal de los Tigrecitos está fazendo barricadas com medo de que eles venham” (grifos nossos). Aqui, também se verifica uma espécie de deslocamento do ponto de vista do sujeito que antes identificava o “inimigo” como los Tigrecitos e agora, haja vista a dimensão abstrata que este Outro assumiu, só pode identificá-los como “eles”. Partindo desta observação, podemos dizer que a autora dramatiza ao longo do seu romance uma mudança da perspectiva realista/naturalista do sujeito do discurso para um novo prisma que não consegue reconhecer a feição do Outro. Agora, diria Sartre que não há mais um “objeto real” para realizar-se no imaginário do indivíduo ou do coletivo, pois a alteridade se trata de um perigo latente “do outro lado rodovia”, uma ausência que se faz presente, pois ainda que não se veja concretamente, contribui para o aumento da sensação de medo. Segundo Marcelo Lopes de Souza, a geografia do medo enfim se superpôs à geografia da violência e, nos marcos de uma fobópole, torna-se cada vez mais complicado identificar e precisar quem é esse Outro “ameçador”. De acordo com Marcelo Lopes de Souza, esta “poderosa fronteira invisível”, que é o medo em relação aos outros, está se infiltrando cada vez mais rápido pelas brechas do tecido sócio-espacial da cidade e, por conseqüência, sendo incorporadas pelos condomínios, espaços que, na sua concepção, pretendem ser exclusivos e homogêneos. Deste modo, a dinâmica interna do bairro fechado, regida conforme a pólis grega, reproduz a convivência problemática com a alteridade experimentada na cidade. O diferente, por si só, se converte em suspeito e rapidamente passa a ser o “perigoso”. Além do mais, como defendido pelo sociólogo, nos marcos da “sociedade do medo”, aquela utopia de cidade não consegue resistir ao espectro da ameaça do Outro, pois o “diferente” e o “inimigo” podem penetrar pelas mínimas frestas encontradas no seu muro de proteção. E ao permitir o contato com o diferente, essa utopia de cidade fracassa, pois rompe com a promessa de um espaço de convivência restrito a um seleto grupo de “iguais” e a ilusão de uma comunidade homogênea e exclusiva.

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REFERÊNCIAS

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MÚSICA E SOCIEDADE: UM OLHAR SOBRE CARTOLA

Nanímia Conde Ferreira de Moraes Góes Viegas

Introdução

N

os últimos anos da década de 501, a sociedade brasileira passou a sentir os reflexos da presença do sentimento de prosperidade, otimismo e esperança que a ideologia norte-americana pregava aos consumidores – no Brasil, principalmente, a classe média – dos produtos de sua cultura industrializada e voltada para um mercado em frequente expansão de maneira a ampliar sua área de influência durante o período histórico denominado Guerra Fria. A estruturação da sociedade de massa favoreceu a proliferação dos meios de comunicação como forma de entretenimento e informação. As produções artísticas, direcionadas para um público alvo estimulado a consumir, apresentaram obras tanto de caráter popular quanto sofisticada. O modo de vida americano gerou a esperança de tornar o Brasil um país desenvolvido, nacionalmente forte e independente. Os campos artísticos da música, do cinema, do teatro, da literatura e das artes plásticas, iniciaram uma revisão de momentos históricos brasileiros em que um determinado grupo fomentou o desejo de enaltecer o que era próprio da cultura nacional. Os “anos dourados” do governo de Juscelino Kubitschek estimularam um conjunto de manifestações artísticas e culturais sob a ideologia do nacional-desenvolvimentismo, favorecendo debates em torno do que seriam identidade nacional, cultura popular e arte brasileira como bases para a reconstrução nacional. Neste momento, começa a formação de movimentos ligados ao processo de renovações estéticas da arte e que marcariam o início da década de 602, sob a

KORNIS, Mônica Almeida. Sociedade e Cultura nos anos 1950.Disponível em: . Acesso em: 07 de abril de 2009. 2 KORNIS, Mônica Almeida. A Cultura Engajada.Disponível em . Acesso em: 15 de agosto de 2009. 1

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crença da formulação de uma nova sociedade, originários, principalmente, das camadas médias urbanas, como os universitários, artistas e intelectuais. Durante esta década, a radicalização política favoreceu o processo crescente da politização da cultura. O projeto nacional-popular ganhava força com o governo do presidente João Goulart. As manifestações estéticas se associavam à uma consciência crítica e ao desejo de transformação da ordem vigente do sistema capitalista. Em 1962, como exemplo máximo do debate da esquerda em torno da arte, da identidade nacional e da cultura brasileira foi criado o Centro Popular de Cultura (CPC)3, representante dos intelectuais da esquerda e da União Nacional dos Estudantes (UNE). A fusão estudantes-intelectuais-artistas4 gerou frutos para a arte brasileira e para os debates travados sobre o tema cultura popular. Outros artistas, como o Hélio Oiticica5, os representantes da Bossa-Nova e do Cinema Novo, passaram a buscar a cultura que consideravam inegavelmente brasileira, formando uma forte ligação com os sambistas dos morros cariocas. A construção da nacionalidade era a principal proposta contida nas obras artísticas da época. Apesar do golpe militar de 1964 e da intensificação da ditadura e da repressão com a decretação do AI-5, em dezembro de 1968, a resistência cultural de esquerda se manteve. Os projetos de aproximação do povo e das produções estéticas e intelectuais da época foram prejudicados. Todavia, os frutos do período marcaram a histórica da cultura, das artes e da intelectualidade do país.

3 GARCIA, Miliandre. A Questão da Cultura Popular: As políticas Culturais do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 24, n 47, 2004. Disponível em: . Acesso em: 20 de maio de 2009. 4 GONZALES, Jefferson Aníbal. Cultura e Educação Popular como Instrumentos de Formação Política das Camadas Populares: Os Centros Populares de Cultura (1961-1964).Disponível em: . Acesso em: 03 de junho de 2009. 5 NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira – Utopia e Massificação (1950-1980). 3ª ed. – São Paulo: Contexto, 2006. SOUZA, Gabriel Girnos Elias de. A Transgressão do “Popular” na Década de 60: Os Parangolés e a Tropicália de Hélio Oiticica. RISCO – Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (EESC-USP), 2006, p. 83103. Disponível em: . Acesso em: 01 de abril de 2009.

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Tendo em vista este contexto histórico, este artigo apresentará a análise de dois elementos constitutivos da obra de Angenor de Oliveira – Cartola – a malandragem e a religiosidade. Será uma forma de se compreender as décadas de 60 e 70 sob a perspectiva de um compositor do morro, produtor de uma manifestação cultural típica das classes populares. Cartola: a arte da malandragem Para trabalhar a obra de Cartola foram escolhidos dois elementos presentes em suas composições, que se evidenciaram vee mentemente ao longo de sua carreira, e que podem demonstrar as transformações positivas pelas quais podem passar os significantes das culturas das classes populares, sem que percam os valores e as subjetividades dos sujeitos que os produzem. Desta forma, nos parágrafos que se seguem serão levantados dados, apontamentos teóricos, análises sobre a malandragem e a religiosidade de Cartola, e o resultado das influências que o compositor recebeu ao longo de sua existência musical, atingindo seu ápice com as gravações de seus discos individuais nas décadas de 1960 e 1970. A obra do mestre Angenor de Oliveira, apesar de não ser conceituada como típica do discurso da malandragem, apresenta os mais variados elementos desse grupo, característicos das rodas de samba cariocas. A época mais evidente de seu comportamento malandro foi, quando já morador do morro da Mangueira, formou o bloco dos Arengueiros6 - “pra brigar, pra ser preso, pra apanhar, pra bater” (OLIVEIRA FILHO E SILVA, 1997, p.39). Quando da formação da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, chegou a compor Chega de Demanda, o que pode simbolizar uma preferência pela característica que mais interessava aos integrantes do bloco – o samba. Chega de demanda, Chega! Com este time temos que ganhar Somos a Estação Primeira Salve o morro da Mangueira!7 6 Os integrantes do bloco dos Arengueiros eram Zè Espinguela, Saturnino, Arthurzinho, Antonico, Carlos Cachaça, Chico Porrão, Homem Bom, Cartola, entre tantos outros. 7 In: OLIVEIRA FILHO, Arthur L.; SILVA, Marília T. Barboza da. Cartola: Os Tempos Idos. Rio de Janeiro: Funarte, 1997, p. 39.

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Durante o século XX, os malandros foram os pilares sustentadores do samba, no que tange ao consumo e à produção. Segundo a historiadora Cláudia Matos, em Acertei no Milhar (1982, p.67), “o malandro antes de ser uma figura social ou histórica, é uma figura de linguagem, a encarnação de um comportamento estético, de um estilo. Ele é a expressão, em figura humana, de ginga, maleabilidade e dinâmica do próprio samba”. Para Cartola, malandro “é quem gosta de briga, farra, mulher e bebida. Isso é natural. Ladrão, maconheiro ou jogador é bandido” (OLIVEIRA FILHO E SILVA, 1997, p. 84). Tal concepção se aproxima do estereotipo do ‘bom malandro’, apregoado, principalmente, no Estado Novo. O malandro, desta época, deixava de invocar a imagem de vagabundo para a de trabalhador honesto. Cartola, mesmo não se empolgando com o trabalho, conseguiu sustentar, com dificuldades, a família. Porém, como um bom artista, se empenhou de fato à sua arte. E o fez com maestria. Corra e Olhe o Céu8 (Cartola/Dalmo Castello) Linda Te sinto mais bela Te fico na espera Me sinto tão só Mas o tempo que passa Em dor maior, bem maior Linda No que se apresenta O triste se ausenta Fez-se a alegria Corra e olhe o céu Que o sol vem trazer Bom dia Ai, corra e olhe o céu Que o sol vem trazer Bom dia.

Letra da composição Corra e Olhe o Céu, retirada do site do Centro Cultural Cartola: . Acesso em: 03 de maio de 2009.

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Rachel Soihet, em A Subversão Pelo Riso: Estudos sobre o Carnaval Carioca da Belle Époque ao Tempo de Vargas (1998), define os malandros como “pessoas que não se vinculam formalmente ao mercado de trabalho. Boa parte dedicava-se à música, à composição, o que, na época, não era considerado trabalho, além de atrair a desconfiança policial” (SOIHET, 1998, p.123). Dentre os elementos presentes nas composições de Cartola, como a malandragem, a religiosidade se destaca. O poeta constantemente falava sobre o amor, as mulheres, as flores, o cotidiano da comunidade mangueirense e de Deus. Dizia-se católico, porém com práticas próprias. Por exemplo, não era frequentador assíduo das missas. Expressava, segundo ele, sua religião por outros meios: “Deus está em toda parte, não está só na Igreja. Se estiver numa aflição, estiver no meio da mata e se ajoelhar defronte a um tronco de árvore e rezar com fé, ela representa Deus pra você, porque a árvore é da natureza” (OLIVEIRA FILHO E SILVA, 1997, p. 148). Cartola considerava Deus uma presença muito importante em sua vida. Toda a pluralidade religiosa que teve contato na Mangueira – a umbanda, resultado do intenso tráfico de negros bantos; a religião de origem iorubá, cultuada pelos negros nagôs que chegavam ao Rio de Janeiro pelo tráfico interno no sentido Bahia-Rio, entre outras – não se tornou tão impactante para que se tornasse adepto de qualquer delas. O catolicismo continuou como referência de sua identidade religiosa familiar. Angenor de Oliveira nasceu em outubro de 1908, no bairro do Catete, na cidade do Rio de Janeiro – ainda capital do Brasil. Seu avô, Luís Cipriano Gomes, era cozinheiro do político Dr. Nilo Peçanha (Presidente da República durante os anos de 1909-1910), seu pai, Sebastião Joaquim de Oliveira, carpinteiro e sua mãe, Aída Gomes de Oliveira, dona de casa. Tal fato se torna relevante por aproximar Cartola de uma vida pequeno-burguesa. O menino teve boa formação educacional, circulou pelos bairros na zona sul (até a morte de seu avô, Cartola e família moravam no bairro de Laranjeiras, numa vila operária da Fábrica Aliança)9, o que influenciou consideravelmente sua maneira de se vestir e o comportamento refinado, típico das classes mais abastadas. “Antes do meu avô morrer, não havia pretinho mais bem vestido do que eu 9

Fábrica de tecidos localizada no bairro de Laranjeiras. Ver Oliveira Filho e Silva, 1997, p. 27.

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em todo bairro de Laranjeiras. Depois que ele morreu é que as coisas pioraram muito pra mim” (OLIVEIRA FILHO E SILVA, 1997, p.27).10 Cartola e a família frequentavam os ranchos da zona sul durante o carnaval, principalmente os Arrepiados – bloco que reunia os operários da Fábrica Aliança. Este contato com a música popular e com a música erudita despertou o interesse do menino pela arte do samba. Cartola teve contato com dois ranchos mais próximos de sua residência, o União da Aliança e os Arrepiados, demonstrando sua preferência pelo Arrepiados, cujo símbolo era uma bruxa arrepiada e as cores verde e rosa. A participação de Angenor nestas manifestações deixou influências decisivas em sua formação, ele manteve contato íntimo com os ‘cobras’ dos Arrepiados, iniciou seu aprendizado autodidata nas artes do cavaquinho e manteve o catolicismo como centro referencial de sua identidade religiosa. É interessante observar este dado, uma vez que a relação entre samba e religião afro-descendente é extremamente íntima. Segundo Rachel Soihet (1998), “o samba e a religiosidade popular de raiz africana […] a crença na proteção dada ao samba por esse culto, e o fato de ambos serem vítimas da repressão policial” (p.124), fez com que os laços identitários se fortalecessem. De acordo com a entrevista de Ronaldo Vainfas com João José Reis, na revista Tempo (2001), existe uma diferença entre pluralidade religiosa e sincretismo religioso. O sincretismo se faz presente quando se institucionaliza simbolicamente as aproximações de diversas religiões, formando algo novo. Cartola apresentou, portanto, a pluralidade religiosa presente no Rio de Janeiro, circulando entre as mais variadas expressões. O samba de Cartola teve como principais elementos discursivos a malandragem, a favela, as dificuldades da vida, as ironias sociais e sua crença religiosa. Todos elementos construtivos de sua identidade individual e coletiva carioca. Em sua concepção de malandragem, numa mistura de ‘homem refinado’, Cartola não permitiu que sua obra fosse engessada à imagem idealizada e muito menos tida como inferior. Segundo Beatriz Kushnir na resenha A Lapa e os Filhos da Revolução (2002), o encontro de universos culturais fisicamente, intelectualmente ou até artistica10 Relato de Cartola, já septuagenário, ao falar com saudades de quando seu avô era vivo. Ver Oliveira Filho e Silva, 1997, p. 27.

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mente isolados, é o momento de fertilidade criativa, é o “reencontro das duas cidades que convivem no Rio, a dos pobres e a daqueles que acham que não são pobres. Sempre que elas se separam, a cidade se degrada” (p. 179). Para Roberto Da Matta, […] discutir as peculiaridades de nossa sociedade é estudar também essas zonas de encontro e mediação, essas praças e adros dados pelos carnavais, pelas procissões e pelas malandragens, zonas onde o tempo fica suspenso e uma nova rotina deve ser repetida ou inovada, onde os problemas são esquecidos ou enfrentados; pois aqui – suspensos entre a rotina automática e a festa que reconstrói o mundo – tocamos o reino da liberdade e do essencialmente humano. É nessas regiões que renasce o poder do sistema, mas é também aqui que se pode forjar a esperança de ver o mundo de cabeça para baixo. Ver o Brasil em sua especificidade é também procurar interpretá-lo pelo eixo dos seus modelos de ação, paradigmas pelos quais podemos pautar nosso comportamento e marcar nossa identidade como brasileiros. É buscar entender nossas irmandades e associações populares, sempre voltadas para o alto e para fora do sistema, onde, com certeza, encontram seu lugar ao sol (DAMATTA, 1997, p. 18).

A casa de Cartola e Zica, na Rua dos Andradas e o bar ‘Zicartola’ foram espaços férteis para muitos artistas da bossa-nova, do samba, do cinema novo e da tropicália. Cartola soube se valer destes momentos para se enriquecer culturalmente, mas não para perder as características próprias do grupo social, cultural e econômico a que estava inserido. Fez-se visível pela qualidade, inventividade musical e poética que expressava e, por este motivo, sobreviveu à era do simulacro e da dessubstancialização. É provável, que Cartola seja um dos poucos artistas que possuíram uma estética própria, desvinculada das vanguardas nacionais, que conseguiram afirmar sua obra sem se moldarem às necessidades mercadológicas, e que fizeram arte brasileira para os brasileiros. Foi o compositor que desenvolveu algo próprio e desatrelado do debate que estava em torno da arte oficial do período, não por desconhecer o que se passava, mas porque era crítico, procurando, assim, tocar o que via e ouvia e não o que seria legitimado e/ou vendável. 243

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Todavia, uma explicação possível para sua ascensão no cenário da indústria fonográfica, é a evidência em que se encontravam as culturas das classes populares. Segundo Roger Chartier, as culturas das classes populares passam por alguns momentos de ascensão e outros de declínio. Na pesquisa histórica, para o autor, a cultura popular tende sempre a ser arrasada, para, em seguida, “renascer das cinzas” (1995, p. 181). Porém, o fator primordial não é saber exatamente a periodização dos momentos de repressão e renascimento, mas conhecer as relações complexas entre as formas imperativas e as identidades afirmadas e reprimidas. Usualmente, em um regime político rígido ou em um tempo histórico em que o modelo cultural não permite evidências às produções de determinadas comunidades e/ou grupos, elas não deixam de existir, se mantêm e, em um dado momento, ascendem aos olhos de uma maioria. No caso moderno, a indústria fonográfica foi favorável para disseminação do samba carioca, por exemplo; bem como, a ideologia do nacional-desenvolvimentismo, nas décadas de 50, 60 e 70, no Brasil. O que, de fato, se modifica no tempo são as formas como as culturas populares se enunciam e se afirmam socialmente. Conclusão Ao abordar um estudo sobre a estética da obra de Cartola, houve a tentativa de apreender como um agente de um setor da comunidade urbana do Rio de Janeiro respondeu aos acontecimentos das décadas de 1960 e 1970 e, como esta comunidade se beneficiou ou não com os avanços da industrialização, do acesso aos meios de comunicação, da inserção ou rejeição do negro e do pobre à sociedade brasileira. Existem estudos que esclarecem o desejo de se entender o notório, o singular da cultura da população brasileira, mas neste trabalho o objetivo foi compreender o que foi alterado pelo olhar de Cartola e quais foram suas perspectivas diante dos acontecimentos. Existiu uma necessidade de analisar a sociedade sobre o prisma de um agente que sentiu as consequências imediatas e a longo prazo das ações oriundas das classes mais abastadas, dos intelectuais, dos estudantes e dos políticos. No desenvolvimento do trabalho pode-se constatar que as influências da infância de Cartola e a sua formação educacional familiar foram seus centros 244

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referenciais ao longo da vida. O artista teve contato com algumas manifestações religiosas afro-descendentes no morro da Mangueira, com grandes nomes do samba carioca, com a arte erudita, com produtores da indústria fonográfica, com estudantes, artistas da Bossa-Nova e do Cinema Novo. Usufruiu de todas as possibilidades de conhecimento oferecidas nesses ricos momentos de troca e de efervescência cultural. Ofereceu a genialidade e a criatividade do samba urbano e carioca, sem regras institucionais ou mercadológicas. Pode se mostrar inteiro e genuíno ao público com uma estética própria de arte produzida na sua comunidade.

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REFERÊNCIAS

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MATOS, Cláudia. Acertei no Milhar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira – Utopia e Massificação (1950-1980). 3ª ed. – São Paulo: Contexto, 2006. OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de; SILVA, Marília T. Barboza da. Cartola – Os Tempos Idos. 3ª ed. – Rio de Janeiro: Funarte, 1997. SOIHET, Rachel. A Subversão Pelo Riso: Estudos sobre o Carnaval Carioca da Belle Époque ao Tempo de Vargas. 1ª ed. – Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. SOUZA, Gabriel Girnos Elias de. A Transgressão do “Popular” na Década de 60: Os Parangolés e a Tropicália de Hélio Oiticica. RISCO – Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (EESC-USP), 2006, p. 83-103. Disponível em: . Acesso em: 01 de abril de 2009.

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OS DESDOBRAMENTOS DO PODER NOS DOMÍNIOS INDIVIDUAL E SOCIAL EXPRESSOS NA POESIA LATINOAMERICANA Roberta Silva Barreira

O

presente trabalho tem por objetivo traçar um paralelo que parta do conceito fisiológico de antropofagia, “canibalismo”, a fim de chegar à possível concepção de antropofagia sócio-cultural, em que “mecanismos de poder” reprimem os hábitos individuais de vestimenta, através da moda, assim como reprimem o direito de liberdade humana, por meio do domínio civil. Entendendo-se que o homem é o centro do processo cultural, é a partir de sua expressão poética que serão extraídos dados para a compreensão da idéia de canibalismo sócio-cultural. Para tal serão abordados dois poemas e as respectivas sugestões de deglutição que se podem subtrair de ambos: “Eu, etiqueta”, de Carlos Drummond de Andrade(1987), em que o texto revela criticamente a assimilação de um padrão imposto pelo capitalismo “ a moda “ e o poema “Anclao enParis”, de Juan Gelman(1962), no qual ,através de uma linguagem ricamente figurativa, o texto dialoga, entre outras questões, com a memória traumática do autor que sofreu a perda de familiares durante a ditadura militar argentina, demonstrando assim inclusive o caráter continuo da aplicação do poder que antes mesmo de ser experimentado pelo autor argentino já era denunciado em suas obra. Antropofagia, segundo o conceito fisiológico, é o ato de devoração entre animais de uma mesma espécie. Embora os termos antropofagia e canibalismo possuam uma relação de sinonímia, o fato é que existem alguns aspectos distintivos entre as funções das duas práticas. Nas palavras de Oswald de Andrade: Antropofagia ritual é assinalada entre os gregos e segundo a documentação do escritor argentino Blanco Villata, foi encontrada na América entre os povos que haviam atingido uma elevada cultura- Asteca, Maias, Incas. Na expressão de Colombo “comían los hombres”. Não o faziam porém por gula ou fome. Tratava-se de um rito que, encontrado também 248

Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão nas outras partes do globo, dá a idéia de exprimir um modo de pensar, uma visão do mundo, que caracterizou certa fase primitiva de toda a humanidade.(ANDRADE, 1970, p. 77).

Tal ritual dava-se quando um inimigo vencido na batalha se destacava por suas virtudes, tais como a coragem. Este era deglutido pelos guerreiros vencedores, que compreendiam o simbolismo deste rito como um modo de assimilar as suas virtudes, além de afirmar a supremacia do vencedor. Tal prática não era aplicável a qualquer inimigo, mas apenas àqueles que demonstravam bravura e resistência até a morte sem pedir clemência. A concepção de antropofagia sócio-cultural aqui mencionada é formulada sob o conceito de antropofagia ritual. Neste sentido defende-se que há entre as culturas um processo de deglutição em que uma cultura se utiliza de “mecanismos de poder” para subordinar outra. A cultura é parte principal na formação da identidade das sociedades, uma vez abalada perde-se a noção da própria identidade.. A identidade coletiva é gerada segundo as experiências que compõem cada História; como por exemplo: em um encarte turístico, as características apontadas e as vantagens inerentes a cada região geográfica atestam que a identificação se dá a partir do reconhecimento atual de uma identidade construída com o tempo. Sob a perspectiva proposta por Foucault, este trabalho pretende, nas palavras do filósofo francês: […] fazer uma análise ascendente do poder: partir dos mecanismos infinitesimais que têm uma história, um caminho, técnicas e táticas e depois examinar como estes mecanismos de poder foram e ainda são investigados, subjugados, transformados, deslocados, desdobrados, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global.(FOUCAULT, 1985, p. 184).

O homem apresenta-se como a menor unidade representante do conceito de construção cultural ou identitária. Suas experiências pessoais, situadas em um espaço e tempo, embasadas por conceitos de uma cultura distinta dirão que tipo de homem é este. Quais seus princípios, seus conceitos, suas preferências, seu modo de interagir com o meio. Ao preencher um currículo ou qualquer ficha de identificação nota-se que, bem como no encarte turístico, as características de identificação são pertinentes ao histórico: o nome, a data de nascimento, nome 249

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dos pais, nacionalidade, estado em que nasceu, escola em que se formou, cursos pelos quais optou, etc. Tais perguntas procuram compor um retrato biográfico do indivíduo em questão. E embora uma pessoa não possa ser identificada por um resumo de sua formação e dados pessoais, não se pode negar que a trajetória traçada por esta remete às escolhas que a compõem, formando sua cultura individual. Entendendo-se que o homem é o microcosmo no qual ocorre tal processo, observamos o poema “EU, ETIQUETA” de Carlos Drumommd de Andrade que expressa a relação de poder entre a moda e os hábitos peculiares a cada um. Já desde o título a voz poética evidencia a capacidade da moda de intervir na identidade do sujeito. No espaço em que se nomeia o referente ao “eu”, antecedente, é colocado o termo “etiqueta”, ou seja, o sujeito denomina-se “etiqueta”. Termo este que talvez seja o maior símbolo dos modismos, por relacionar o design do produto à proposta da marca registrada. Deste modo conferindo legitimidade ao uso do produto. Produto este que comunica circunstâncias a respeito daquele que o usa, bem como Barthes o afirma: […] é claro que, através do vestuário, trocamos informações bastante elementares, não só sobre a nossa situação social ou profissional, sobre a nossa classe de idade, como dizem os etnólogos, mas igualmente sobre determinado hábito social, determinada cerimônia, determinada ocupação[…]. (BARTES,1995, p. 53).

Todo o texto é construído sobre duas idéias, a de propriedade e a de identidade, a antiga dicotomia “ter” versus “ser”. Observa-se um processo de gradação em que o proprietário torna-se propriedade. A princípio, são elencados produtos de uso pessoal, rotulados por marcas desconhecidas do sujeito que as possui, denunciando o sentimento de estranheza na relação de identificação entre o “provador” e as ”coisas” anunciadas. O corpo reclama o seu domínio, no entanto, a seguir, há um processo de personificação dos objetos úteis à rotina do dia a dia, outorgando-lhes assim, o poder de dominar sobre a vontade dos que o usam. Gera-se uma relação de obediência do homem ”escravo” à moda “matéria anunciada”, que transforma o agente “provador” em “homem-anúncio”. O sujeito poético expõe: “Ordens de uso, abuso, reincidência,/ costume, hábito, premência,/indispensabilidade” (DRUMMOND DE ANDRADE, 1987, p. 86). O que se explica nas

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palavras de Foucault: “[…] Como resposta á revolta do corpo, encontramos um novo investimento sobre o corpo que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle- estimulação[…]”. (FOUCAULT, 1985, p. 147). O estado desejado foi alcançado “Estou, estou na moda”(Drummond de Andrade, idem). A partir deste verso desdobram-se algumas reflexões sobre quais atitudes foram necessárias para tal estado ser alcançado, “negar”, “trocar”a própria essência assumir um padrão outro, alheio a si, assenhorar-se de tudo que o mercado oferece “[…] açambarcando/ todas as marcas registradas […]”. (Ibidem). Sob a perspectiva do domínio de si mesmo está a consciência daquilo que se é e do que se representa em relação à sociedade , consciência da singularidade inerente a cada ser. Como ratifica a afirmação de Roberto Machado em “Por uma genealogia do poder”: “[…] todo o saber assegura o exercício de um poder.” (MACHADO, em Michel Foucault,1985, XXII). Mas, se para ser autêntico e dono de si é preciso conhecer-se, o contrário também é verdadeiro. Para assumir qualquer outra identidade é preciso ignorar a ciência sobre si mesmo. Isto é o que o eu lírico faz ao assumir: “com que inocência demito- me de ser/ eu que antes era e me sabia”(Drumond de Andrade, 1987, 86). A assimilação do produto pelo usuário alcança uma etapa mais profunda em que o próprio sujeito admite “[…] sou anúncio…” (idem) e denuncia ainda, de forma flagrante, apreferência pela língua estrangeira como veículo de desapropriação da identidade “[…] em qualquer língua[…] principalmente…” (Ibidem).É possível observar, neste momento, como interagem os mecanismos de poder desde os mais cotidianos como a moda aos mais globais como a preferência à língua estrangeira em lugar da própria. Ironicamente o eu lírico expõe a incoerência que há no ato de pagar para tornar-se manequim, anunciante, não de qualquer etiqueta, mas da “etiqueta global”, esta que assim se adjetiva porque é descaracterizada de qualquer origem, é padronizadora impõe-se como possibilidade única. Nas palavras do próprio sujeito lírico é expresso que a identidade estética é construída através das opções do sujeito agente: Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam, 251

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e cada gesto, cada olhar, cada vinco da roupa resumia uma estética? (DRUMMOND DE ANDRADE, 1987, p. 87). Quando este mesmo sujeito não é senhor de suas escolhas, logo se torna paciente da ação alheia. Tal percepção é reiterada inclusive pela organização sintática das estruturas que compõem os versos seguintes. Construções em voz passiva na qual o sujeito assume o papel e nomeia-se como ”objeto”. Objeto este que é manipulado de acordo com a oferta e a tarifa. Enfim, nas últimas palavras do poema o processo de metamorfose se completa, expresso na troca daquele que talvez seja o símbolo maior da identidade individual, o nome. Negar o próprio nome equivale a negar sua origem, sua história, produzir uma identidade artificial, “Meu nome novo é coisa ./Eu sou a coisa coisante”(idem) No caso do novo nome, há ainda um agravante que reside no esvaziamento semântico da palavra ”coisa”. Termo de uso plural, exatamente por não possuir um referente específico. Apenas serve como referência a uma espécie de existência desconhecida ou não nomeada. A frase final do texto abriga em sua interpretação o resumo de todo o desdobramento do poema. Pois se a natureza humana é caracterizada pela célebre afirmação de que “o homem é um ser pensante” , ou seja capaz de fazer escolhas, o ser que despe-se desta principal característica torna-se a “coisa, coisante”, pois sua principal característica é não ter referência própria, ser “coisante”. Quanto ao texto de Gelman, pode-se dizer que o poema trabalha com várias questões relativas à relação entre o homem e os conflitos sociais, tais como o desterro, o exílio e o conseqüente sentimento de nostalgia inerente a todo aquele que sofre tais experiências. A presença destes é grafada pelo termo “falta”, repetido varias vezes ao longo do poema para fazer referencia ao sentimento do poeta pelo “Leão da Rodésia”. Uma vez que o interesse em jogo é dialogar com a idéia de distancia das origens, o sujeito lírico evoca a voz de Carlinhos Gardel, desde o título poético “Ancorado em París”, título também da música que levou o cantor ao auge de sua fama na cidade de Paris em 1931. A letra da música é de autoria de Enrique Cádimo e Guillermo Barbieri, e aborda do mesmo modo o saudosismo daquele

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que é estrangeiro em Paris. Já no inicio do poema é possível depreender temas intimamente relacionados ao assunto geral aqui abordado, tais como o sentimento de falta, o questionamento sobre a real origem e sua conseqüentemente identidade nacional. Do que sinto falta é do velho leão do jardim zoológico, Sempre tomávamos café no Bois de Boulogne, Contava-me suas aventuras na Rodésia do Sul Mas mentia, era evidente que nunca havia Saído do Saara (Juan Geman em Bella Josef, 1990, p. 163). A figura do leão mencionada no texto pode ser entendida como referência à raça canina nomeada“Leão da Rodésia”, que é conhecida como representante do Zimbábue, território nomeado como Rodésia do Sul em 1888. É relacionada ao leão por possuir um biotipo parecido com o felino, é grande, pode apresentar um pêlo mais crescido ao redor do pescoço, possui um andar felino, além de suportar circunstâncias severas de sobrevivência, tais como grandes diferenças de temperaturas, a restrição de comida e água, além de ser um animal de muita utilidade para a proteção nas atividades de caça. O cão é o resultado do cruzamento entre duas raças, uma não registrada que vivia na região e outra trazida pelo colonizador europeu.Embora haja uma mistura de raças, as características relativas a resistência física do cão são herança do seu ascendente africano. Foramestas características que atraíram o interesse do conquistador britânico que registrou a raça após o cruzamento com outras européias, realizando o processo conhecido como “aprimoramento da raça”. Quanto ao título,”Ancorado em París”, como se não bastasse a própria conotação que Paris traz em si, por ser conhecida como a cidade que exporta os hábitos e costumes a serem adotados, o título contém ainda toda a conotação advinda da palavra “âncora”. Termo este que pode assumir variadas interpretações semânticas. Sob a perspectiva da utilidade literal, a âncora é instrumento que mantém o barco parado em segurança, por prendê-lo a um certo ponto em função do seu peso. Em uma perspectiva mais figurativa pode-se compreender o ato de ancorar como o de fundamentar- se em algo, ou seja, embasar alguma intenção própria sobre a credibilidade alheia. Do mesmo modo que o reconhecimento da raça canina deu-se a partir do seu cruzamento com outras raças já devidamente reco253

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nhecidas, ancorado nestas, embasadas pelo colonizador.Tal processo camufla a intenção do colonizador de legitimar as qualidades do colonizado via sua tutela, recebendo o mérito por qualquer fator positivo relacionado ao colonizado. Este mecanismo também é observado por Said em “Cultura e Imperialismo”ao analisar a literatura de Kipling: Assim de um lado temos a literatura de Kipling colocando o indiano como uma criatura com evidente necessidade da tutela inglesa, “[…] visto que, sem a Inglaterra a Índia desapareceria em sua própria corrupção e subdesenvolvimento. (SAID, 1999, p. 218).

Há algumas vertentes que procuram explicar a real origem do cão, no entanto , a questão de interesse deste trabalho não é esta, mas, antes, verificar como funciona tal discussão na relação de poder estabelecida entre o colonizador e os colonizados. Embora pareça simples, o questionamento tomou maiores proporções desde que a raça tornou-se símbolo nacional da África do Sul. Logo, pode-se depreender desta disputa um problema que ultrapassa os meros interesses veterinários e chega ao contexto político como representação da necessidade de afirmação e defesa de determinada cultura. Se o animal usado para a proteção e a caça destaca-se por sua força e ousadia, a raça resultante da manipulação do colonizador adquire semelhanças com o seu dono. O cão descendente de um caçador, segundo o texto demonstra, possui “elegância” , “seu jeito de dar de ombros ante as mesquinharias da vida” além de possuir um estômago sensível, bem como os supostos mentores de sua raça, os ingleses. Afinal a elegância britânica e seu delicado paladar são desde há muito reconhecidos internacionalmente. Do mesmo modo que a raça representa uma origem e uma história, o eu lírico menciona Gardel, que é também um dos símbolos da latinidade, bem como o próprio autor do poema, Juan Gelman. Este recebeu em 2007 o Prêmio Cervantes, é um dos grandes representantes da literatura latino-americana além de ser reconhecido pelo papel político que cumpre: expressando o olhar do artista sobre os conflitos políticos, sem que sua arte se restrinja a tal assunto, mas antes evidenciando, assim, sua atualidade e interação com a História . A biografia de Gelman revela uma trajetória de lutas políticas, nas quais o poeta se envolveu não apenas a partir de sua contribuição artística , mas também fisicamente. O que lhe acarretou o seqüestro e morte de familiares durante a Ditadura na Argentina em 1976.

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Na época em que Gotán, livro que contém o poema aqui abordado, foi publicado, tal tragédia ainda não havia ocorrido. No entanto o sentimento de falta e temor já eram denunciados na voz do sujeito lírico: Despediámo-nos no começo do crepúsculo […] não sem antes advertir-me com uma pata em meu ombro

(Juan Gelman em Bella Josef,1990, p. 165).

O crepúsculo, final do dia e chegada da noite, se apresenta como uma possível metáfora das trevas, símbolo recorrente como representação da opressão civil vivida no meado do século XX em todo o mundo. O gesto de tocar o ombro como menção ao sentimento fraternal entre irmãos de uma mesma luta é reiterado pelo verso “ mas sabia calar como um irmão” evidenciando o respeito e o reconhecimento de igual para igual, de irmão para irmão. Ainda que este outro seja pertencente a uma cultura diversa. A partir de tais interpretações é importante esclarecer que a proposta veiculada neste trabalho não é criticar a representação da moda, ou denunciar questões políticas, mas , antes, apresentar de forma sucinta como funcionam os “mecanismos de poder”empregados em ambos os casos.Enfim restam duas palavras a serem ditas, as quais são tomadas das vozes de Said e Foucault, respectivamente e transmitem o pensamento aqui presente. A primeira, em que Said afirma: “[…] a história de todas as culturas é a história dos empréstimos culturais. As culturas não são impermeáveis”( Said, 1999, 225). A segunda palavra, a respeito da engenharia do poder resume a importância do cotidiano na construção de uma sociedade mais solidária: […] me parece que, entre todas as condições que se deve reunir para não recomeçar a experiência soviética, para que o progresso revolucionário não seja interrompido, uma das primeiras coisas a compreender é que o poder não está localizado no aparelho de Estado e que nada mudará na sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito elementar, quotidiano, não forem modificados. (FOUCAULT, 1985, p. 149-150).

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REFERÊNCIAS

ANDRADE, Oswald. Obras Completas VI Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1970. BARTHES, Roland. O grão da voz. Ed. Francisco Alves, 1995. DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. “EU, ETIQUETA” em Corpo, Novos Poemas. Ed. Record, 10ª edição, 1987. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder,( organização e tradução de Roberto Machado). Ed. Graal, Rio de Janeiro, 5ª edição, 1985. SAID, Eduard W. Cultura e Imperialismo, (Traduzido por Denise Hottman). Ed. Compahia das Letras, São Paulo, 1995.

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NOSSO BARROCO: OBJEÇÕES TEÓRICAS À VINCULAÇÃO HEGEMONICA DA LITERATURA COM A HISTORIOGRAFIA NACIONALISTA

Rodrigo Labriola UFF

A

s relações entre ficção e política, tanto na historiografia como na narrativa literária, batem no passado com a parede da era moderna, nadam no pântano da modernidade e ficam isoladas na ilha do modernismo. No âmbito da América Latina, porém, essa consideração torna-se por vezes dramáticas. A construção de uma continuidade temporal entre o mundo pré-colombiano e o mundo colonial é vedada pela própria nomeação do território implicado, desde que considerado como continente, pois dizer América Latina remete, por uma parte, a uma certa organização política resultante da Conquista (“Índias Ocidentais”), e, por outra, a um certo projeto político idealizado uns trezentos anos depois para conseguir-se a Emancipação (“Nuestra América”). Noutras palavras, os relatos sobre a América Latina a partir da segunda metade do século xvi evidenciam certamente uma mistura cultural (a crônica “mestiça”), mas enquadrados no modelo discursivo de uma retórica que é européia e que, ao mesmo tempo, apresenta todos os sintomas da mudança epistêmica da era moderna, como no caso das crônicas das Índias, e em especial dos textos do Inca Garcilaso de la Vega e de Felipe Guamán Poma de Ayala, por citar apenas dois dos exemplos mais evidentes. Já no começo do século xix, os relatos sobre a América Latina experimentaram uma ruptura drástica com a retórica colonial, mas que igualmente se ancorava no modelo discursivo europeu da Ilustração e das escritas da história e da geografia “científicas”, com forte influência dos trabalhos de Alexander Von Humboldt, como no caso especial de Domingo Faustino Sarmiento — citando, de novo, apenas um dos exemplos mais óbvios. Porém, entre estes dois extremos temporais remanesce um período no qual a América Latina pode ser considerada do ponto de vista europeu como uma espécie de “Próximo Ocidente”, parafraseando a expressão de Alain Rouquié (1991). Trata-se do período histórico que no início do século 257

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vai ser identificado com o nome (altamente polêmico) de Barroco Colonial. A reflexão sobre ele, porém, de novo havia chegado tarde à América Latina, e no esteio daquela espécie de autocrítica da modernidade científica do século xix, cujas raízes epistêmicas remontavam até o século xvi. A Arte Barroca do período colonial, neste sentido e de uma perspectiva estritamente historicista, nunca teria pertencido ao mesmo quadro teórico que mais recentemente criara a categoria “América Latina”, mas a um período difuso na formação do imaginário ocidental, vinculando-se muito estreitamente, aliás, à construção de uma unidade (política, cultural, continental) da Europa, enquanto conjunto de nações colonizadoras. De fato, mesmo já bem avançado o século passado, este “Próximo Ocidente” seguia representando naquele imaginário o lugar da Utopia social e econômica, espaço privilegiado da liberdade e da abundância, e isto tanto lá quanto aqui (cf. FOLLAIN, 1994). Por outro lado, se o barroco for considerado um período cultural cuja unidade manifesta foi enxergada apenas no século xx, é verdade que ele seria inseparável da categoria da América Latina, pois um e outra pertencem a uma já longa tradição de estudos históricos, políticos e sociais que focalizam as diversas nações latino-americanas e a própria noção de continente. Os conceitos de Barroco e de América Latina teriam, em conseqüência, algo a mais em comum: ambos se debruçamproblematicamente sobre as relações entre as periodizações da historiografia e a formação das identidades nacionais. xx

Assim, mencionar o barroco (seja ele o que for) implica um incômodo que atinge diretamente o quadro amplo da história, da crítica e da teoria literárias. Isso ocorre não somente por existirem inumeráveis interpretações do que seria ou não barroco, mas porque tentar definir a palavra “barroco” é impossível se desconsideramos como ela foi e é usada, desde o início do século xx, dentro da academia e nos cenáculos literários latino-americanos, para propósitos que muitas vezes excedem os que poderiam ser seus objetos de estudo. Com efeito, nada que envolva a palavra “barroco” pode ser extirpado ingenuamente de suas condições de gerar significados, localizadas primordialmente no século passado, independentemente de quais sejam os alvos artísticos ou culturais, antigos ou recentes, que se queiram atingir com ela. Portanto, na diversidade das postulações sobre o (neo?) barroco latino-americano ensaiadas ao longo de século xx, é possível verificarapenas uma constante igualmente presente em todas elas, para além de qualquer detalhe particular que as diferencie:i.e. a politização sempre sobre-impressa na recepção de cada uma das teorias européias sobreo barroco;

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politização veiculada principalmente nos debates sobre a historiografia literária, eque traz à tona, uma e outra vez, a preocupação local pela latino-americanidade. Um dos casos mais curiosos ao respeito disso está vinculado a uma carta de José Lezama Lima, publicada tardiamente em 1988, mas datada no dia 3 de agosto de 1975.Lezama escreveu: Creo que cometemos un error, usar viejas calificaciones para nuevas formas de expresión. La hybris, lo híbrido me parece la actual manifestación del lenguaje. Pero todas las literaturas son un poco híbridas, España, por ejemplo, quema como siete civilizaciones. Creo que ya lo de barroco va resultando un término apestoso, apoyado en la costumbre y el cansancio. Con el calificativo de barroco se trata de apresar maneras que en su fondo tienen diferencias radicales. García Márquez no es barroco, tampoco lo son Cortázar y Fuentes, Carpentier parece más bien un neoclásico, Borges mucho menos. La sorpresa con que nuestra literatura llegó a Europa hizo echarle mano a esta vieja manera, por otra parte en extremo brillante y que tuvo momentos de gran esplendor. La palabra barroco se emplea inadecuadamente y tiene su raíz en el resentimiento. (LEZAMA, 1988,apud VITIER, 1994, p. XXV).

Essa carta é especialmente interessante, porque com ela Lezamaparece abalar a pertinência do barroco como conceito, modo de expressão, época vital, categoria da crítica ou identidade cultural. Aqui começa, então, o incômodo, pois apenas um ano antes de sua morte e quase que em segredo,Lezama formulou um princípio de contestação feroz para qualquer uso da palavra “barroco”, tanto no contexto das idéias coetâneas do barroco latino-americano que eram o caballito de batalla de Alejo Carpentier na década de 1970, quanto (mais radical ainda) para as suas próprias idéias acerca do barrocona América Latina, expressas em textos anteriores (ainda que as dele fossem divergentes daquelas de Carpentier). Este desabafo de Lezama, porém, seria previsível em especial no que diz respeito a Carpentier, precisamente por suas divergências políticas no contexto da Revolução Cubana de 1959. No entanto, acontece que o mais curioso é que quase não existam, contemporaneamente, citações dessa carta. A desconsideração dela por parte da crítica literária afiliada à sedução do neo-barroco é (atrevo-me a dizer) completa e, aliás, mais do que inquietante, poistalvez essas palavras de Lezama

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fossem dirigidas indiretamente contra as teorizações pós-modernas do barroco, que já estavam prontas para vir nos anos de 1980.1 Daí que, se consideramos a tradicional importância de Lezama no debate sobre este tema, a carta referidaseja extremamente problemática, não somente em face à mera palavra “barroco” (sozinha ou com os seus prefixos e sufixos), mas também em relação àquilo que costuma ser chamado de neo-barroco. Quiçá seja imprescindível esclarecer que, na atualidade, as posições netamente acadêmicas sobre o barroco oscilam entre os extremos de negar-lhe qualquer rigor como categoria de estudo, ou de inflacionar seu sentido (aliás, nunca bem delimitado) ao ponto de abranger aquilo que, ainda mais difusamente, costuma ser chamado de pós-modernidade. Este debate teve seu clímax na década de 1980, contemporaneamente ao momento de maior interesse nas pesquisas de teoria literária nas universidades. Os expoentes paradigmáticos e mais citados dessas duas posições antagônicas, talvez sejam, respectivamente, João Adolfo Hansen por um lado, e Omar Calabrese e Catherine Buci-Glusksmann por outro. O brasileiro já tem uma trajetória extensa no estudo das letras coloniais e também no questionamento total à pertinência desse polêmico termo, em especial para as produções artísticas e literárias do dilatado período convencionalmente chamado barroco segundo a historiografia tradicional, caudatária do idealismo romântico alemão — e que incluiria as categorias apriorísticas do maneirismo, do barroco e do rococó, indo de finais do século xvi até meados do século xviii. Em entrevista recente, Hansen insiste em que usar esse termo para as letras (ibéricas ou coloniais) é um anacronismo, pois a compreensão do mundo que as letras hoje simplificadas como “barroco” tinham em seu tempo é descontinua ou heterogênea em relação à compreensão que a história nacional da literatura possa fazer delas. […] O romantismo subjetiva radicalmente a 1 A carta foi dirigida a Carlos Meneses e está datada em 3 de agosto de 1975. Foi publicada postumamente na Revista de la Biblioteca Nacional José Martí / Número especial dedicado a José Lezama Lima (textos inéditos); La Habana, ano 79, nro. 2, maio-agosto de 1988, p.91. Em 1991, Cintio Vitier menciona e cita alguns fragmentos dela no prólogo à publicação do romance Paradiso pela Editora Letras Cubanas, de Havana (vide VITIER, 1994). Mais recentemente, em 2006, Iván González Cruz menciona a mesma carta em uma nota de rodapé, no seu Diccionario Vida y Obra de José Lezama Lima [2da. Parte / Tomo 1]; Valencia: Universidad Politécnica de Valencia, 2006. p.VIII. Mas, sintomaticamente, González Cruz cita exatamente o mesmo fragmento antes citado por Vitier.

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão expressão poética, eliminando como artificialismo a mímesis como imitatiosistematizada pelas retóricas antigas. As obras dessas letras são, como já sabemos, rigidamente regradas segundo gêneros, verossímeis e decoros específicos. […] Prefiro não usar esse termo [o barroco], a não ser descritivamente, com certa facilidade, para classificar um corpus. Mesmo assim, com cautela, pois o uso do termo carrega consigo todo o campo neokantiano da sua definição e produz anacronismos. […] A crítica que aplica dedutivamente a noção de “barroco” elimina justamente os preceitos retóricos. (HANSEN, 2005, p.17, 22).

Quanto à segunda posição extrema perante o assunto do barroco, o esclarecimento não é tão simples, devido a que nela operam diversas questões contemporâneas. Grosso modo, o italiano se concentra na formulação de oposições binárias que, sob um olhar semiótico, caracterizariam não um período específico da história da cultura, mas uma atitude geral ante os fenômenos culturais próprios da pós-modernidade, ao ponto de propor a substituição deste último termo de época pela formulação de certa “idade neo-barroca” (cf. CALABRESE, 1988). Por sua vez, a francesa passa em revista uma “razão barroca” enquanto “razão do Outro”, que atravessaria a modernidade e, sobrevivendo ao racionalismo instrumental, proporia uma modernidade radicalmente diferente da idéia de progresso ou, noutras palavras, constituiria uma espécie de alteridade barroca capaz de emergir nos momentos de crise da razão dialética (cf. BUCI-GLUCKSMANN, 1984). Em 1994, Irlemar Chiampi comentou o estado da questão da seguinte forma: Las interpretaciones que hoy reivindican el Barroco en el ámbito europeo pueden, sucintamente, remitirnos a dos posturas ante la modernidad/postmodernidad. La primera consiste en reciclar el Barroco —vale decir: sus rasgos formales— para retomar el potencial de renovación y experimentación de las formas artísticas, una vez decretado el ocaso de las vanguardias. El neo-barroco sería, así, una prolongación del arte y la literatura modernas; sería una etapa crítica de la modernidad estética, es cierto, pero tal vez un nuevo avatar en la tradición de la ruptura. Ya para los que ven el espectáculo lúdicro de las formas barrocas como signo de una alteridad (re)emergente ante el colapso de los pensamientos del progreso y los finalismos de

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares la Historia, esos reciclajes son nada más y nada menos que el síntoma de cierto pesimismo (¿un nuevo «desengaño»?) que caracteriza la era del «fin de las utopías» en este fin de siglo y de milenio. (CHIAMPI, 1994, p.173).

Em resumo, haveria dois blocos gerais em que se dividiriam as controvérsias sobre o barroco nos últimos cem anos: a) os historiadores, que se negam a ver o barroco fora do seu tempo, seja enfatizando as vinculações com a monarquia absoluta e a igreja católica, seja valorizando a miscigenação colonial e a produção de obras segundo os modelos retóricos da época (p.e. MARAVALL, 1975); e b) os formalistas, que vêem no barroco uma categoria atemporal, forma trans-migratória que renasce e ocorre em muitas épocas sem vínculos a feitos históricos determinados pela política ou pela geografia. Estes dois blocos teriam se misturado nos últimos anos, levando-nos por fim às posturas melhor sucedidas no fim do século xx, que estavam ligadas ao debate modernidade/pós-modernidade no mundo ocidental: a) o barroco como modelo de reciclagem de determinadas marcas formais, para retomar o potencial de experimentação das formas artísticas, sendo o neo-barroco uma prolongação da arte e da literatura modernas; e b) o barroco como espetáculo ou símbolo que emerge diante do colapso do pensamento moderno orientado pela razão e pelo progresso, sendo ante de tudo um sintoma de certo pessimismo que caracteriza o fim das utopias no fim do milênio. É fácil ver que, nestas últimas posturas, as considerações histórias teriam permeado a categoria formal do barroco, reingressando como um historicismo relativo que transformaria a noção de barroco do a-temporal para o trans-histórico (cf. SARDUY, 1975 e CAMPOS, 2004); neste sentido, as elaborações sobre o tema na América Latina foram imprescindíveis para re-localizar os aspectos sociais, políticos e culturais no contexto geral da modernidade. Além disso, restaria, na verdade, uma espécie de anti-postura sobre o barroco, uma radicalização da vertente histórica em “historicismo estrito”, capaz de negar ao termo “barroco” qualquer validade como categoria teórica, como no caso antes referido do professor Hansen. Embora desde então tenham aparecido diversas contribuições em torno do barroco ou do neo-barroco, pouco foi modificado nesse patamar atingido no final dos anos de 1980. Porém, a importância culturaldo tema do barroco em geral para esta parte do planetacontinua sendo hoje inegável, para além das palpáveis diferenças de cada concepção autoral ou vernácula, ao longo da história latino-americana. Seja com um gesto repressivo e teatralizado de negação por parte da

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razão moderna; seja por meio do invento de uma pseudo-mitologia instauradora da nação e simultaneamente modernizadora de uma tradição inexistente; seja, em último, aproveitando simplesmente o jeito modernoso de uma antropologia da inadimplência e do politicamente correto; aqui a reivindicação do barroco reside em ele ter sido (e ainda ser) capaz de referir lato sensu tanto às obras da pintura, da escultura ou da arquitetura quanto às obras musicais e literárias compreendidas entre finais do século xvi e meados do xviii, desde que estas estejam ligadas de alguma maneira verificável ou enigmática à geografia do Novo Continente. Todas essas obras constituiriam, de fato, as primeiras manifestações “criativas” da arte ocidental produzidas no Novo Continente. Esta formulação é generalizante; mas é evidente que, quando hoje se fala sobre o barroco na academia latino-americana, se estabelece pelos intérpretes algum tipo de legitimação anacrônica da contemporaneidade com relação àquela época, justamente nesta parte do mundo. Não por acaso, algumas das visões do barroco latino-americano geradas no século passado concordaram na existência de uma espécie de continuum barroco — que teria vigorado nestas terras desde finais do séculoxvi até o século xx(reconhecendo-lhe, certamente, uma menor visibilidade durante o séculoxix). Outras elucubrações, do lado europeu do barroco, se apresentam estranhamente sobrepostas a isso: existiria uma ligação entre o barroco e o modernismo; conexão que teria se evidenciado de repente como em um surto esquizóide no âmago da hegemonia positivista, curiosamente a partir da segunda metade do século xix (quando o positivismo era mais forte). Através doutros surtos virulentos e mais ou menos periódicos (simbolismo, vanguardas, nouveau roman, a tendência Pop de maio de 68 e, finalmente, o delicioso pavor do terrorismo islâmico), ao longo de mais de cem anos o barroco teria sido um sintoma da crise da razão iluminista, que ainda haveria de chegar ao seu clímax antropoclasta com a explosão, ao nível global, das mídias. O concreto é que, pelo menos desde as primeiras décadas do séculoxx, abandonar as interpretações historiográficas da literatura latino-americana — em prol do barroco comoestilo, como um período artístico ou como época, graças aos trabalhos pioneiros de Heinrich Wölfflin, e mais tarde dos trabalhos primevos de Eugenio D´Ors, de Benedetto Croce (ainda que este último em conflito axiológico) e de Walter Benjamin —, implicava recriar o barroco como objeto cultural privilegiado para além de uma definição puramente epistemológica, sendo esta viciada desdeo início por sua própria história européia. Noutras palavras, o bar-

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roco apresentou-se como uma chave discursiva para inventar uma imagem da América Latina que pudesse dar conta de sua identidade diferenciada, multicultural, heterogênea, misturada, mutante, plural, etc. Tratava-se, em suma, de uma preocupação política que se refletia na literatura de ficção, na apreciação da arte colonial e, também, no trabalho da crítica e da historiografia. Voltemos agora, então, àquela carta quase secreta e pouco citada. Implicitamente, havíamos formulado duas hipóteses que explicariam esse paradoxal arroto anti-barroco lezamiano. Na primeira, o confronto se estabeleceria de maneira sincrônica com o momento do maior sucesso editorial da literatura latino-americana, conhecido como Boom, focalizando-se em particular contra a figura de Alejo Carpentier. De fato, o texto citado de Lezama pode ser considerado, na distância, como uma contestaçãobastante feroz à palestra realizada por Carpentier em Caracas nesse mesmo ano de 1975, apenas uns meses antes daquela carta. Carpentier, que recentemente tinha publicado o seu romance Concierto barroco (1974), ali explicava que […]el barroco que ustedes conocen, la novela contemporánea latinoamericana, la que se ha dado en llamar la «nueva novela» latinoamericana, la que llaman algunos la del boom — y el boom, ya lo he dicho, ni es una cosa concreta, ni define nada—, es debida a una generación de novelistas en pie hoy en día, que están produciendo obras que traducen el ámbito latinoamericano, […] de modo totalmente barroco. (CARPENTIER, 1984, p.125).

Isto, é verdade, pode ter motivado Lezama a escrever sua carta, tendo-se em conta a crescente prosperidade que as idéias de Carpentier adquiriam por cima das suas próprias, levadas na torrente triunfalista do Boom editorial latino-americano dos anos 70. Lezama não saía de Cuba; Carpentier era delegado cultural em Paris e viajava pelo mundo dando palestras. Lezama era um autor cult e sua ópera prima, o romance Paradiso (1966), era desconhecido para o grande público; Carpentier vendia a cada dia mais exemplares, sendo editado na Espanha, no México, na Colômbia e em Buenos Aires. Contudo, o modo íntimo da comunicação, a sua transmissão quase conspirativa e os longos anos que demorou em ser conhecida, sugerem também razões de tipo político. As repercussões do caso contra o poeta Heberto Padilla (acusado por Fidel Castro de conspirar

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contra a Revolução), e a lastimosa carta de arrependimento de Padilla depois do cárcere, ainda ressoavam com amargor entre os intelectuais progressistas (cf. CROCE, 2006). Já em 1975, o governo de Cuba intensificou a perseguição aos homossexuais, por uma parte, e Lezama Lima tinha retomado sua antiga amizade com o escritor Virgilio Piñera, por outra — Piñera, aliás, estava de volta a Cuba e sendo bastante incomodado pelas autoridades devido a sua militância prévia em favor do homossexualismo, que havia sido ostensiva fora do país. Seja como for, é sintomático que os autores mencionados no texto da carta sejam justamente aqueles que conservavam uma simpatia quase incondicional ao governo da Revolução, como era o caso de Carpentier, Fuentes, García Márquez e Cortázar. Mas às vezes o que não é dito adquire conotações similares ao gritado. Isto nos leva diretamente à nossa segunda hipótese (diacrônica) sobre a carta de Lezama, cuja pergunta se prolonga até o debate sobre o neo-barroco dos anos 1980. Por quê, com efeito, Lezama Lima não menciona nem sequer de maneira indireta a Severo Sarduy e a Haroldo de Campos? É impossível que Lezama desconhecesse o trabalho de Sarduy, pois Barroco y neo-barroco foi publicado precisamente na mesma compilação crítica da qual participara Lezama, i.e. América Latina en su Literatura (1972), livro organizado por César Fernández Moreno e patrocinado pela UNESCO. Outrossim, é bem provável que Lezama também tivesse notícias dos trabalhos sobre o barroco de Haroldo de Campos, quem de fato publicara um ensaio na mesma compilação da UNESCO. Aliás, tanto Sarduy quanto Campos já tinham nesse momento uma produção poética ou ficcional para além de suas atividades críticas. Em sua carta, porém, Lezama os ignora ao passar em revista os autores latino-americanos. E suspeito que ele tampouco tinha muito interesse nos primórdios do pós-estruturalismo francês, ao qual aderiam entusiasticamente aqueles,nesse momento jovens, brasileiro efranco-cubano.Como entender, então, esse espólio final de Lezama? Quais questionamentos estaria ele lançando sobre o campo conceitual do Neo-barroco, enquanto categoria da análise literária? Do meu ponto de vista, a explicação se encontra no contexto do fenômeno conhecido como Boom da Literatura Latino-americana, porque é o núcleo problemático comum tanto nas citações de Lezama e Carpentier como nas preocupações críticas de Sarduy e Campos.É como se, para esse derradeiro Lezama, a enorme disseminação barroca já não fosse produto exclusivo de uma determinada poética do barroco em si, mas um efeito de multiplicação discursiva derivada do interesse crescente da Europa — ou, melhor dizendo, da cultura européia hegemônica, que

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também inclui os departamentos latinos da academia americana — pela identidade cultural latino-americana, durante as décadas de 1970 e 1980. Estaríamos, então, de novo ante o assunto da política continental como na crítica de cunho sociológico (p.e. os trabalhos de Antonio Candido ou Angel Rama); só que agora essa política era vista por Lezama como chegando de fora sob a forma de continente. Ou seja: provinha da necessidade da indústria editorial de conter (ou controlar) o caos da vida cultural da América Latina dentro do estereótipo de uma identidade estética capaz de unificar academicamente, na categoria do barroco, algumas manifestações tão dissímeis como o gênero fantástico, o realismo maravilhoso e os romances sócio-realistas sobre tiranos. Inclusive na atualidade, esse aspecto de continentalidade inscrito no adjetivo “latino-americano”é previsível nas leituras críticas que apelam ao neo-barroco — embora agora vinculadas em conjunto ou esporadicamente aos novos modelos das identidades múltiplas e/ou da heterogeneidade, do hibridismo e/ou da mestiçagem, do corpo e/ou da performance, do pós-estruturalismo e/ou da desconstrução, do travestismo e/ou do mimetismo. Nesse sentido, que a possível história pré-modernista da palavra barroco (como objeto de pesquisa etimológica) esteja enquadrada entre as definições enciclopedistas de Rousseau e Diderot (por um lado) e a conceituaçãohistórica de Jakob Burckhardt (por outro), indica que, quando avaliamos as referências formuladas posteriormente a esse período pré-historiográfico, não podemos prescindir da consideração das relações problemáticas entre a modernidade e a língua. Embora esse tema se torne particularmente relevante no caso das teorizações sobre o neo-barroco latino-americano — pois elas estão envolvidas de múltiplas formas na equação de modernização-nacionalidade-língua, modeladora da identidade cultural do continente — isso não significa que exista uma positividade no conceito de barroco, mas talvez uma paulatina invenção modernista desse conceito. O problema colocado neste ponto da questão, acredito, é aquele da recepçãodo barroco, i.e. como certas manifestações artísticas de três séculos atrás foram lidas no final do século xix e durante o século xx, catalizadas pelos devires da palavra barroco, cuja presença remonta ao século xvi e ao período específico das descobertas ultramarinas da Europa. Contudo, a diferença entre Carpentier e Lezama é tão marcada que explodirá nos anos 1980 com o debate em torno das obras de Sarduy e de Campos. Porque a retórica da proliferação (horror vacui) preserva em Carpentier a função de dar uma transparência, dar uma imagem das coisas americanas.Ao contrário, a

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poesis demoníaca em Lezama não comunica um sentido que não esteja cifrado no mesmo dispositivo do “incondicionamento poético”. A relativa claridade de um contrasta, pois, com a absoluta dificuldade do outro.Carpentier retoma o barroco como estilo, como tarefa consciente para representar nossas essências, enquanto Lezama converte o barroco em uma forma do dinamismo, um paradigma contínuo desde as origens no século xvii até a atualidade. De certa maneira, poderíamos dizer que as duas posições se resumem numa troca de adjetivo. Carpentier fala do barroco “latino-americano”, porque o essencializa numa categoria que, embora universal, seria magistralmente exemplificada no continente. Enquanto isso, Lezama falaria de “nosso” barroco, porque o particulariza — lembremos de sua prosopopéia do Senhor Barroco — numa sensibilidade que, embora advinda da paisagem americana, pertence aos artistas do continente, e portanto não é um exemplo de outra coisa externa, mas síntese própria. Esta modificação da palavra adjetiva para determinar o conceito de pertença está no âmago da crise da historiografia moderna na América Latina. As considerações intempestivas de Friedrich Nietzsche, e em especial o ensaio sobre a utilidade e as desvantagens da história para a vida (Vom Nutzen und Nachteil der Historie für Historie für das Leben, c.1873), conformam a sombra que paira sobre os debates latino-americanos com respeito ao historicismo gerados em torno às teorias do barroco de Wolfflin, Croce, d´Ors e Benjamin. Esse ensaio é, também, talvez um dos textos de Nietszche em que é mais visível a impressão que no jovem professor da Universidade de Basiléia haviam causado as idéias de Jakob Burckhardt. Destaco isto porque, se bem a obra de Burckhardt seja como que apagada pela de Wölfflin quando se considera a questão sobre a definição do barroco — sendo Burckhardt em geral apenas mencionado como o antecedente que determinou a mudança na valoração pejorativa das manifestações dessa arte —, parece-nos que o vínculo de Burckhardt com Nietzsche (amiúde negligenciado) é fundamental para nosso entendimento do barroco. Essas conexões são imprescindíveis para se analisar, como aqui, a recepção das teorias do barroco à luz daquela preocupação (e incômodo) pela nacionalidade e pela história dos latino-americanos oitocentistas e do século passado. Obviamente, excede o fôlego de esta comunicação referir aqui o teor da divisão historiográfica promovida por Burckhardt entre uma história da arte e uma história da cultura — que estariam ligadas, “mas apensas como algo simples e casual”, lembra Wolfflin no final do seu posfácio de 1933 aos Conceitos fundamen-

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tais… (2000, p.339). Os debates sobre o tipo de continuidade da história existente na obra de Burckhardt, levando-se em conta os cortes transversais (rupturas?) da sua historiografia em geral lidos sob a influência retrospectiva de Wolfflin e Nietzsche, ainda continuam. Porém, “fazer da história da cultura o meio para garantir a continuidade histórica, é justamente o cerne das reflexões de Burckhardt sobre a história”, afirma Oliveira (2006, p.176). Em síntese, ainda que tanto Burckhardt como Nietzsche empreendessem críticas contra Hegel, há entre eles vários pontos problemáticos não resolvidos quanto à continuidade ou ruptura no devir histórico e quanto à confiança na história em si, pois enquanto Burckhardt, por exemplo, considera sua época o “século estúpido” do “progresso irresistível” (apud. CAPEAUX, 1991, p.X), também é verdade que destaca a “receptividade universal” da época moderna, aberta às diversas culturas, e constata com certo orgulho que “somos os primeiros em julgar os homens partindo de seus antecedentes”(cf. CAEIRO, 1998, p.17-18). Já Nietzsche apostrofa diretamente de “louco furioso” (NIETZSCHE, 1998, p.113) ao homem europeu do século xix pelo orgulho desmedido do seu saber historicista. Se aceitarmos que a questão do barroco na América Latina é um dos incômodos que pairam sobre a História, não podemos ignorar que existem circunstâncias históricas concretas na recepção das idéias sobre o barroco também dentro da Europa, e muito especialmente referidas ao estatuto da História da Cultura como uma oposição ao cientificismo na prática histórica e uma crítica à periodização e à cronologia, que por sua vez promoveriam diversas interpretações dos autores locais. As leituras de Nietzsche feitas pelas vanguardas artísticas latino-americanas, por exemplo, desconsideram estes debates que, na Europa, se desenvolvem por sobre toda uma estrutura acadêmica que já tinha coletado e arquivado um passado ocidental que remontava à Grécia antiga, e a partir do qual Wolfflin, Croce, d´Ors e Benjamin concretizam suas teorias sobre o barroco (dito em sentido amplo). Quando essas leituras são retomadas no começo do século xxna América Latina, o trabalho “ingrato” do patrimônio ainda está por ser feito, mas como seria possível fazê-lo sem apagar as divisões entre a história política, a história da cultura e a história da arte? Esta problemática está na raiz do percurso de um modernista como Mário de Andrade, por exemplo. Na apreciação européia, então, a questão do barroco e o estatuto dado à história têm certos pontos de contato. Na América Latina, ainda mais radicalmente, o Barroco e a História parecem ter se fundido num único e mesmo problema, inseparáveis, ou melhor, indistinguí-

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veis, pelo menos no momento da primeira recepção das obras de Wolfflin, Croce e d´Ors. As respostas dadas foram duas; uma atingiu a hegemonia, outra está a caminho disso: [A] O adjetivo “nacional” acrescentado às histórias (marca do apagamento das diferenças entre elas). Assim, uma história “nacional” envolveu tudo, inclusive a arte do “barroco colonial” como marcas anunciadoras das nacionalidades por vir — é curioso, ainda hoje, percorrer museus de arte colonial e ler os textos “didáticos” que vinculam a palavra “barroco” ao conceito, difuso por demais, de povo. [B] O adjetivo possessivo “nosso”, com uma curiosa inflação do “nacional”. Assim, “nossa história”, “nossa cultura” e, claro, a tríade conformada por “nosso barroco”, “nossa arte” e “nossa literatura”. Aí, o sustento é a universalização do povo dentro daquela “Nuestra América” de José Martí; o que se tornaria difuso, assim, seria a categoria de “barroco colonial”. Um dos mais representativos exemplos do anterior se encontra na polêmica entre Antonio Candido e Haroldo de Campos sobre o papel que coube a Gregorio de Mattos na literatura brasileira. Para Haroldo de Campos, a tarefa que se propõe a Formação… de Antonio Candido (1981) – cujo modelo de cunho sociológico indiscutível das historiografias da literatura latino-americana dos últimos trinta anos) implica um duplo “esforço” (ou articulação) de “construção” e de “expressão”,que é visto como uma “disposição do espírito historicamente de maior proveito”, que “exprime certa encarnação literária do espírito nacional” (cf. CAMPOS, 1989, p.16) Por isso, poetas da época barroca (como de Mattos) pouco teriam a contribuir com a nacionalidade brasileira, na medida em que sua prática de escrita seria anacrônica respeito dela. Assim, para Campos, deveria haver uma reformulação do sistema literário de Candido, passando de um modelo “comunicacional” para outro “meta-linguístico”, no qual sim poderia se inserir o barroco (negligenciado no estudo de Candido) na história da literatura brasileira e, sobretudo, latino-americana. O mais interessante, porém, é que no texto de Haroldo de Campos a única forma de contornar o adjetivo “latino-americano” — fartamente utilizado pelos discursos políticos dos intelectuais militantes de esquerda nos anos de 1980, e colado à dialética marxista da história que ele queria questionar — foi recorrer ao adjetivo “nosso”, repetido especialmente na fórmula “nossa literatura” em substituição de “literatura brasileira”. Mas, em nome de que se poderia fazer essa apropriação, senão de uma identidade? Ainda que por uma trilha sinuosa, Campos acabou seqüestrando do seu próprio discurso, ou talvez recalcando inconscientemente, aquela essencialidade cultural do barroco que já estava presente em Afrânio Cou-

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tinho (1983), e que sempre foi a chave para ler as teorias do barroco na América Latina. Por isso, parece-nos pertinente a observação de Ligia Chiappini: A contradição básica de Haroldo de Campos está em, ao mesmo tempo, contestar a história contínua, a tradição que Antonio Candido se propôs perseguir nos momentos decisivos de sua constituição, e integrar aí Gregório de Mattos que, no entanto, vê como ruptura. Recusar como ideológica essa tradição e, no entanto, querer incluí-lo nela. Trata-se, no mínimo, de um equívoco, Gregório só poderia entrar num outro livro, não neste. (CHIAPPINI, 1992, p. 175). Mas também, isso implica que Candido e Campos — insistimos, para além das definições do que seria ou não o barroco — estariam operando sob a mesma primazia do nacional/continental (seja por formação, seja por subtração) no mesmo objeto. Daí que Joana Muylaert de Araujo deduza que Haroldo de Campos polemiza com Antonio Candido no terreno do seu adversário. […] Tendo como alvo principalmente a idéia de sistema, Haroldo de Campos parece ter esquecido de formular uma pergunta decisiva: o que se entende por nacional? (ARAUJO, 2006, p.25).

Ou seja, que se “o peso decisivo recai na qualificação do nacional” (COSTA LIMA, 1992, p.164) na Formação… — como conclui Luiz Costa Lima no seu ensaio “Concepção de história literária na Formação”—, no caso do Seqüestro…(CAMPOS, 1989) a frase “nosso barroco” acaba continentalizando o “nacional”. A diferença não é pequena, mas, em seu âmago, o nacional e o continental surgem da mesma matriz historiográfica inseminada pelo romantismo nacionalista. O princípio de solução para este problema é incômodo, quase tanto como o barroco, pois passaria por abandonar tanto o nacional como o continental nos estudos literários. Por isso, Costa Lima pergunta: Afinal, quando nos dedicamos à literatura, nosso foco principal é a literatura ou seu qualificativo, ser ela desta ou daquela nacionalidade? O conceito de nacional não tem limites? Ninguém cogita a nacionalidade do saber científico. A extensão do conceito de nacionalidade à literatura e à cultura em geral era explicável no contexto do século 19. Mantê-la, nos dias que correm, significa reduzir a literatura, no melhor dos casos, a documento do cotidiano. Mas como empreender esse questionamento sem a reflexão teórica? (COSTA LIMA, 2006).

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CARTOGRAFIAS DESEJADAS DA HISPANIDADE

Sérgio Luiz de Souza Costa CEFET/RJ

A

representação de um espaço real, concreto, é uma tarefa de difícil execução, que funda toda uma técnica para a sua elaboração. A cartografia, misto de ciência e arte, busca transformar em equipamento material o conhecimento geográfico acumulado; porém, quando se trata de espaços imaginários, fantasias de totalidades efêmeras, deparamo-nos com a dificuldade de desenhar a representação do desejo. Tal dificuldade se concretiza em função do caráter transitório do desejo. Na teoria psicanalítica, o desejo é a instância fundadora do humano, caracterizando-se, sobretudo, pela falta: O objeto do desejo não é uma coisa concreta que se oferece ao sujeito, ele não é da ordem das coisas mas da ordem do simbólico. O desejo desliza por contiguidade numa série interminável na qual cada objeto funciona como significante para um significado que, ao ser atingido, transforma-se em novo significante e assim sucessivamente, numa procura que nunca terá fim porque o objeto último a ser encontrado é um objeto perdido para sempre. Toda satisfação obtida coloca imediatamente uma insatisfação que mantém o deslizamento constante do desejo nessa rede sem fim de significantes. (GARCIA-ROZA, 2005, p. 145).

Pode-se mesmo afirmar que a ausência e deslizamento de objeto em objeto é próprio do desejo, visto que a necessidade de desejar, característica do humano, é incessante. Sendo assim, em termos psicanalíticos, os desejos fazem parte do reino da fantasia e do irrealizável, não devendo, pois, serem concretizados no âmbito do Real, sob pena de se esvaziarem enquanto desejo. Sabemos que os espaços imaginados também pertencem a uma determinada cartografia muito especial. Estamos acostumados a perceber o espaço com o

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apelo de concreto, sem nos darmos conta que existe um espaço imaginário, no qual cada um de nós experimenta e vivencia as suas relações com o mundo. Sendo assim, o espaço imaginado, que diz respeito às fantasias e desejos de cada ser humano, é parte constitutiva do inconsciente e, desta forma, não pode ser transcrito com a mesma matéria e a mesma técnica, misto de ciência e arte, que os espaços geográficos. Consideramos que o texto literário é um testemunho privilegiado de tudo aquilo que é característico do humano, a saber: fantasias, construções imaginárias e simbólicas e desejos, que convivem no universo do inconsciente. A análise textual permite um acesso privilegiado a este universo de difícil passagem, quando nas dobras do texto buscamos interditos que desenham mapas imaginários, fronteiras superpostas, limites esmaecidos. Com efeito, perceber cartografias desejadas não é tarefa das mais simples, pois requer outra matéria e outra técnica que não dizem respeito à representação material, tal como os cartógrafos elaboram com a ciência geográfica. Não-lugar e individualidade solitária As Ciências Humanas elaboraram um corpo teórico bastante representativo para lidar com os aspectos menos visíveis e perceptíveis relacionados ao espaço e a experiência de utilização desta categoria. Neste sentido, interessa-nos a noção de lugar e não-lugar como noções operativas na investigação de cartografias desejadas. Mesmo considerando que as nomeações podem ser diversas, apontamos para o fato de que as atuais experimentações espaciais têm ocupado de forma categórica uma parcela dos cientistas sociais que procuram entender as características desta vivência na modernidade tardia. Estamos atentos para a multiplicidade de termos utilizados para caracterizar o atual momento. Fredric Jameson refere-se à Pós-modernidade, Marc Augé encaminha para Supermodernidade, enquanto Zygmunt Bauman prefere nomear de Modernidade líquida. Desta forma, optamos por não nos deter nesta querela, conscientes de que as diferenças dizem respeito mais a sutis diferenças de recortes de interesses de análise e menos a diferenças teóricas e metodológicas stricto sensu. Interessa-nos, então, especialmente, a oposição elaborada por Marc Augé entre lugar e não-lugar, caracterizando a supermodernidade “como produtora de não lugares”:

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar A hipótese aqui defendida é a de que a supermodernidade é produtora de não-lugares, isto é, de espaços que não são em si espaços antropológicos e que, contrariamente à modernidade baudelairiana, não integram os lugares antigos: estes, repertoriados, classificados e promovidos a “lugares de memória”, ocupam aí um lugar circunscrito e específico. Um mundo onde se nasce numa clínica e se morre num hospital, onde se multiplicam, em modalidades luxuosas ou desumanas, os pontos de trânsito e as ocupações provisórias […] onde se desenvolve uma rede cerrada de meios de transporte que são também espaços habitados, onde o freqüentador das grandes superfícies, das máquinas automáticas e dos cartões de crédito renovado com os gestos do comércio “em surdina”, um mundo assim prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero, propõe ao antropólogo, como aos outros, um objeto novo cujas dimensões inéditas convém calcular antes de se perguntar a que olhar ele está sujeito. (AUGÉ, 1994, p. 73-74).

Por mais que os espaços estejam preenchidos por pessoas, tais espaços não são lugares de encontro entre as pessoas, o que caracterizaria o lugar antropológico. Os não-lugares são espaços de movimento, são plenos porém vazios de comunicação humana, em que todos os textos, todas as palavras são utilitárias e instrutivas. Não existe uma fruição do lugar, gozo no sentido psicanalítico, pelo contrário, apenas utilização provisória, em que os contatos subjetivos são abolidos. Importante ressaltar que, na verdade, não existem formas puras de lugares e não-lugares, eles se alternam e se superpõem na experiência do espaço urbano, criando vivências de resistência coletiva. Nesse sentido, o conceito de lugares de memória elaborado por Pierre Nora, em obra coletiva variada e ampla, oferece uma abordagem interessante no diálogo com as experimentações espaciais inscritas no textosueños digitales (2001), de Edmundo Paz Soldán. A história narrada pelo autor é circunscrita a uma cidade boliviana imaginária, chamada Rio Fugitivo. É uma cidade pequena, que se divide entre uma zona luminosa e uma zona de sombra:

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão Sebastián pagou ao taxista uma corrida completa e voltou à sua casa caminhando, cruzando lentamente a fronteira que separava a cidade luminosa da zona de sombra, se misturando em bairros de casas com janelas azuladas pela luz dos televisores e Volkswagens brasileiros estacionados na rua e triciclos atirados nas calçadas e cachorros insolentes e gatos intrusos. (Tradução livre). Sebastián le pagó al taxista una carrera completa y volvió a su casa caminando, cruzando lentamente la frontera que separaba la ciudad luminosa de la zona de sombra, internándose en barrios de casas con ventanas azuladas por la luz de los televisores y Volkswagens brasileros estacionados en la calle y triciclos tirados en las aceras y perros insolentes y gatos advenedizos. (PAZ SOLDÁN, 2001, p. 86).

A fronteira que separa a cidade luminosa da zona de sombra é uma ponte sobre o rio Fugitivo, que nomeia a cidade. É uma fronteira claramente estabelecida, que transforma a cidade em duas. Esta ponte, como qualquer ponte, tem a função de ligar duas partes; entretanto, no texto, quase recebe status de personagem, absorvendo o poder metafórico de representar a disjunção. Não-lugar por excelência, tendo em vista que é uma zona de passagem, a ponte sobre o rio Fugitivo maximiza o não ser e o indivíduo solitário, na medida em que não se sabe por que é escolhida como ponto privilegiado para os suicídios, que são uma prática corriqueira nessa cidade imaginada. Nesse texto, então, a ponte, enquanto ícone, desliza de significado em significado: ponto de ligação, zona de passagem, fronteira entre o luminoso e a sombra, não-lugar, ponto de eleição para o fim da vida com a radicalização do não-lugar. Sebastián, personagem principal, vive em uma fronteira ética: casado há pouco tempo, sente um ciúme doentio da mulher e sofre com a vergonha desse ciúme e o medo de perdê-la. É um talentoso manipulador de imagens digitalizáveis, o que considera uma arte; em função de tal habilidade, acaba sendo cooptado pelo governo. O presidente imaginário desse país foi eleito em um processo democrático, porém em suspeição, por conta de ter sido anteriormente chefe de governo de uma ditadura muito violenta. Desta forma, Sebastián, tal qual um Fausto supermoderno, por razões que nem mesmo ele sabe quais são, vai prestar serviços ou emprestar sua arte para criar um novo passado para o presidente Montenegro.

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Em suas novas funções, que devem ser realizadas em segredo, Sebastián passa a freqüentar cotidianamente a Cidadela: A Cidadela havia nascido há trinta anos atrás como uma universidade privada jesuíta, sob a égide de um plano tão ambicioso quanto cômico que queria converter Río Fugitivo em Charcas do fim do século. Nunca alcançou tanto, mas ao menos, nos anos setenta, havia se convertido em um dos principais focos de oposição a Montenegro, o centro nevrálgico de grupos atomizados de marxistas e trotskistas e maoístas que lutavam contra a ditadura. Em três anos de seu governo, Montenegro cansou de lutar com esses universitários estimulados por padres livres-pensadores e, da noite para o dia, a fechou e a desapropriou. Passou a ser desde então tecnicamente do governo, Montenegro e os presidentes que o sucederam preferiram deixar que esses edifícios em Rio Fugitivo acumulassem poeira e esquecimento. Entretanto, fazia uns meses que Cidadela tinha se convertido na sede regional do Ministério das Informações. Em todo o caminho podiam se ver pedreiros reparando os tetos, eletricistas instalando cabos, pintores com brochas dando uma cor mais viva a essas pedras entre marrom e púrpura. (Tradução livre) La Ciudadela había nacido treinta años atrás como una universidad privada jesuita, bajo la égida de un plan tan ambicioso como cómico que quería convertir a Río Fugitivo en la Charcas del fin de siglo. Nunca alcanzó a tanto, pero al menos, en los setenta, se había convertido en uno de los principales focos de oposición a Montenegro, el centro neurálgico de grupos atomizados de marxistas y trotskistas y maoístas que luchaban contra la dictadura. A los tres años de su gobierno, Montenegro se cansó de lidiar con esos universitarios azuzados por curas librepensadores y, de la noche a la mañana, la cerró y la expropió. Pese a ser desde entonces técnicamente del gobierno, Montenegro y los presidentes que lo siguieron prefirieron dejar que esos edificios en la cima de Río Fugitivo acumularan polvo y olvido. Sin embargo, hacía unos meses que la Ciudadela se había convertido en la sede regional del Ministerio de Informaciones. Todavía se podía ver

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão a albañiles refaccionando sus techos, a electricistas instalando cables, a pintores de brocha gorda dándole un color más vivo a esas piedras entre marrón y púrpura. (PAZ SOLDAN, 2001:88)

A Cidadela passa do estatuto de lugar a um estatuto de não-lugar, através da ação de um poder ditatorial; todavia, no passado, a Cidadela abrigara uma universidade jesuítica. A Ordem da Companhia de Jesus, fundada com o objetivo expresso de defender o espaço de poder da Igreja Católica Romana no período das Reformas religiosas na Europa, desenvolve em toda a América Ibérica um papel relevante no que diz respeito à ação pedagógica das instituições religiosas. É conveniente lembrar a máxima jesuítica, forjada em tempos de reafirmação do poder da Igreja Romana, da obediência máxima e irrestrita,perinde ac cadaver, obedecer como um cadáver: “os jesuítas deviam ser submissos e estar à disposição do Preposto Geral como ‘cadáveres’, numa alusão à forma de construção da obediência”.(NEDER, 2000:204) Podemos, dessa forma, através de uma dobra do texto, mapear resquícios culturais da obediência, em que não é fortuita a informação de que as construções recentes, de cerca de 30 anos, denominadas Cidadela,fazem referência arquitetônica a uma cidade(la) medieval, abrigaram uma universidade jesuítica que, por sua vez, abrigou também, marxistas, trotskistas e maoístas, e, numa acomodação sucessiva, passa a abrigar o Ministerio de Informaciones, local privilegiado do exercício do poder e da engenharia da submissão. De acordo com a historiadora Gizlene Neder: A designação de reino cadaveroso/perinde ac cadaver, no entanto, fora do contexto do século XVIII, expressaria mais do que uma visão pessimista da sociedade portuguesa, e extensivamente, da brasileira, pela associação ao atraso. Pelo processo de apropriação cultural, que implica mudanças e interpenetrações de culturas – no tempo e no espaço –, a alusão ao termo permite uma crítica radical aos fenômenos que o envolvem e que, mesmo que reprimidos pelo processo de secularização da política, pela repetição de sua ocorrência retornam: obediência cadavérica, submissão intelectual e política aos poderes instituídos. (NEDER, 2000, p. 205).

A sucessão de usos para o local atualiza uma leitura do poder e da submissão na América Latina, em que as instituições se sucedem, às vezes ocupando o mesmo espaço, tal como cidadelas imaginadas, porém mantendo o mesmo fio de controle. 279

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Sendo assim, a investigação das estratégias do poder em um determinado espaço, na atualidade, leva-nos à oposição elencada por Augé entre lugar e não-lugar: Vê-se bem que por “não-lugar” designamos duas realidades complementares, porém, distintas: espaços constituídos em relação a certos fins (transporte, trânsito, comércio, lazer) e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços. Se as duas relações de maneira bastante ampla e, em todo caso, oficialmente (os indivíduos viajam, compram, repousam), não se confundem, no entanto, pois os não-lugares medeiam todo um conjunto de relações consigo e com os outros que só dizem respeito indiretamente a seus fins: assim como os lugares antropológicos criam um social orgânico, os não-lugares criam tensão solitária. (AUGÉ, 2005, p. 87).

O ditador Montenegro, que estatiza a Universidade da Companhia de Jesus, cansado dos grupos oposicionistas, pretende deixá-la desaparecer no pó e no esquecimento. Os lugares de memória têm a função de tornar visível o invisível, mantendo o nexo entre passado e presente; porém, longe de tornar-se um lugar de memória, a Cidadela, que não é mais Universidade, ainda se mantém como local de saber e poder, não mais de cultura, mas de informação. Desta forma, cabe à Cidadela o não-lugar, tendo em vista a vivência que Sebastián experimenta ali: No dia seguinte em Cidadela, Sebastián caminhava à deriva no subsolo, o eco do teto e as paredes devolvendo o ruído de seus passos enquanto aprendia que havia mais corredores do que suspeitava. Viu um par de jovens de rostos taciturnos saindo do banheiro e ignorando-o. Porque o Pantone não mente, escutou ao passar. Havia ruídos de vozes atrás das múltiplas portas em cada corredor. Enquanto estava concentrado em seu trabalho durante as últimas semanas, sua ilha ao entardecer havia terminado de converter-se em uma cidade subterrânea. Habitavam-na jovens mais novos que ele, jovens que se submergiam em uma tela para alterar uma pincelada de um longo período do qual não conheciam nada, como crianças perdidas entre balbucios e saliva. A soma das pinceladas que iam se alterando mudava, lentamente mas sem pausa, o retrato coletivo e monumental desse período, até que chegaria de maneira inevitável o dia em que não ficasse rastro algum do original. (Tradução livre).

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão Al día siguiente en la Ciudadela, Sebastián caminaba a la deriva en el subsuelo, el eco del techo y las paredes devolviendo el ruido de sus pasos mientras aprendía que había más pasillos de los que sospechaba. Vio un par de jóvenes de rostros taciturnos saliendo del baño e ignorándolo. Porque el Pantone no miente, escuchó al pasar. Había ruidos de voces detrás de las múltiples puertas en cada pasillo. Mientras estaba concentrado en su trabajo durante las últimas semanas, su isla al atardecer había terminado de convertirse en una ciudad subterránea. La habitaban jóvenes menores que él, jóvenes que se sumergían en una pantalla para alterar una pincelada de un largo período del cual no conocían nada, como niños perdidos entre balbuceos y saliva. La suma de las pinceladas que se iban alterando cambiaba, lentamente pero sin pausa, el retrato colectivo y monumental de ese período, hasta que llegaría de manera inevitable el día en que no quedara rastro alguno del original. (PAZ SOLDÁN, 2001, p. 152).

O personagem Sebastián percebe de forma atordoada a presença fantasmática de outras pessoas no mesmo espaço, onde ele leva a cabo a tarefa de invenção de passados. O que ele fazia solitariamente, à deriva no subsolo, passa a ser uma tarefa coletiva, em que cada pequeno trecho é objeto de intervenção de jovens, demasiado jovens, que não reconhecem aquele passado como seu, exatamente como Sebastián. A ação do grupo até então não era percebida pelo personagem, que se imaginava, em função da sua arte, um caso especial. Perceber-se como mais um numa comunidade subterrânea provoca a compreensão do caráter destrutivo de sua ação. Sebastián, que até então não se interessava por política, passa a desenvolver um dilema ético, e tal sentimento revela o sintoma que se transforma em objeto dele mesmo, registrando a inscrição do personagem nesse não-lugar. O ético desse não-lugar é um tecido fendado, pois não há lugar na modernidade tardia para uma ética plena – inventa-se a ética rasurada, em que o indivíduo estará sempre preso a mecanismos aos quais ele reluta em usar, porém é levado a fazê-lo, em meio a um turbilhão de afetos que não são vividos inteiramente. A vivência cotidiana do trabalho no não-lugar cria em Sebastián a angústia da individualidade solitária, maximizada no individualismo fóbico, que se efetiva no horror do sujeito ao Outro, na completa incapacidade de relacionar-se com o Outro, que avança para a incapacidade de tolerar-se a si próprio. Não por acaso, os suicídios são rotas de fuga corriqueiras nessa cidade estranhamente nomeada de Río Fugitivo. 281

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REFERÊNCIAS

AUGE, Marc. Não lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. 5 ed. Campinas, SP: Papirus, 2005. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. 21 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.PUC/SP, n. 10, São Paulo: dez., 1993, p.p.7-28. Tradução de Yara Aun Khoury. NORA, Pierre. “ Entre memória e história: A problemática dos lugares”. In.: Revista Projeto História PAZ SOLDÁN, Edmundo. Sueños digitales. Madrid: Alfaguara, 2001.

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A VIOLÊNCIA DO PROCESSO CIVILIZADOR ARGENTINO E A DESCONSTRUÇÃO DO ETHOS GUERREIRO NO ROMANCE JUAN MOREIRA Simone Emiliano de Jesus

A

presente investigação tem por objetivo refletir sobre a desconstrução dos códigos morais de uma sociedade pré-moderna cujas bases repousam no ethos guerreiro (desde já sinalizamos que entendemos ethos a partir da definição de Nobert Elias comoum conjunto de comportamentos socialmente construídos que definem a identidade de uma determinada coletividade, segundo a época) quando da chegada das instituições às regiões rurais da Argentina de fins do século XIX. E évisando a problematizar a violência desse processo civilizador registrado nos Pampas, mas também presente no espectrodas demais nações da América Latina, que tomamos como corpus de pesquisa o romance Juan Moreira, de Eduardo Gutiérrez, uma vez que se constitui numa manifestação simbólica que traduz a percepção dos subalternos em relação aos conflitos suscitados pela acelerada mutação da conjuntura político-social da Nação. A bem dizer, é na esteira de um mundo em ruínas quese destaca a ação de sujeitos que se vêem deslocados diante do novo padrão de sociabilidade que se institui nos tempos modernos, como foi o caso de Juan Moreira, o protagonista homônimo dos folhetins policiais de Gutiérrez. Recorremos a Josefina Ludmer para entender melhor a forma como as mudanças provocadas pelo advento da modernidade na periferia se verificaram na época de Moreira. A autora afirma, em O corpo do delito, que o criminoso Juan Moreira da literatura apareceu em 1879 com o processo de modernização e imigração, no próprio momento do fim das guerras civis, da aniquilação dos índios, da unificação política e jurídica da nação por parte do Estado liberal, e no momento em que a Argentina alcançava o ponto mais alto do capitalismo para um país latino-americano: a entrada no mercado mundial.(2002, p. 207).

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Como vemos, o salto modernizador da Argentina finissecular processou-se de modo marcadamente violento e, nesse momento de transição, emergiram figuras como a de Moreira que encarnou, por sua vez, a percepção dessa violência por parte de um elemento subalterno, vindo a tornar-se a metonímia dos sujeitos que sofreram as conseqüências da transição perdidos em meio ao turbilhão da modernidade. Mas o que explica a condição de criminoso de Moreira? Por que um gaucho bom, chefe de família e respeitoso das tradições camponesas entra para a ilegalidade e se transforma num dos foragidos mais procurados pela justiça naquele momento? Há dois momentos chave que nos ajudam a compreender esta metamorfose: os dois demonstram que o gaucho torna-se um fora da lei justamente por manter-se fiel aos velhos códigos que regiam o seu mundo e que, juntamente com este, foram superados pelo salto modernizador. Cabe, pois, narrá-los em sucintas palavras. Num primeiro momento, Moreira sofre uma injustiça do poder institucional que em seu povoado estava representado pela figura de Dom Francisco, o tenente alcaide. Esta autoridade política e judicial recorreu ao poder de que estava investido em seu próprio benefício, pois com o intuito de conquistar a mulher de Moreira empreende uma perseguição injustificada a este. Paradoxalmente, aquele que deveria mediar conflitos e distribuir justiça se transforma na verdade em um promotor de abusos e atropelos. Os primeiros folhetins contemplam as várias humilhações pelas quais passou Moreira, já que sem qualquer motivo era preso e conduzido ao cepo, um instrumento de madeira utilizado pela polícia naquele momento como forma de castigo público no qual a vítima tinha mãos, pé, e, às vezes, também o pescoço imobilizados. Nesse sentido, aquele que encarna o braço legal do Estado na região, ao aplicar a nova lei de modo parcial e pessoal, provoca a reação de quem viveu por décadas sob outros códigos. Moreira sofre ainda uma outra injustiça, a qual é determinante para a figuração de seu personagem como o de um indivíduo à margem da lei e fugitivo da justiça. Trata-se de um outro evento que demonstra a rápida transformação de valores por que passa essa sociedade e a inadaptação de alguns de seus integrantesatrelados aos códigos do passado. Desta vez, Moreira se choca com o poder econômico representado pelo senhor Sardetti, um imigrante italiano dono de armazém, a quem o gaucho Moreira emprestou a soma de dez mil pesos. Ao chegar o momento de saldar a dívida, o comerciante busca argumentos para não pagar. Diante da demora de Sardetti em honrar o empréstimo, Moreira recorre ao

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tenente alcaide Dom Francisco. Sem contar, porém, com o respaldo deum documento que comprovasse a transação, requisito básico da lógica moderna segundo a qual o pacto oral é insuficiente, Moreira se vê novamente deslocado diante do novo padrão de sociabilidade que se institui nos tempos modernos. Amparando-se na falta de legitimidade de um sujeito anacrônico que ainda privilegia palavra e honra, o imigrante acusa a Moreira de mentiroso e, por isso, o tenente alcaide novamente o põe atrás das grades. Ao ser solto, Moreira decide se vingar. Sua reação violenta consiste em chamar para as próprias mãos o resgate do dano e da humilhação sofridos: mata o imigrante e, em seguida, o elemento político-militar que encarna a representação da lei. A partir desse ato, condenável num mundo moderno de base institucional em incipiente processo de afirmação nas cidades do campo argentino, mas considerado a “boa lei” para um mundo pré-moderno, Moreira entra para a ilegalidade e se transforma num foragido da justiça. Têm-se então, como destaca Josefina Ludmer, “a passagem da legalidade à ilegalidade por uma injustiça”(2002, p. 212). Segundo a autora, Moreira faz a travessia necessária para o surgimento do justiceiro popular e se torna, por seu turno, num sujeito antiestatal, na medida em que se rebela contra os atores sociais que atuam na órbita do poder institucionalmente investido. A bem dizer, os atos de violência do gaucho nada mais fazem que deflagrar a violência que continua a operar de forma vertical. Para entender essa lógica circular da violência, reportemo-nos às considerações que faz Alberto Passos Guimarães, em As classes perigosas: banditismo urbano e rural. Embora as palavras do autor estejam direcionadas à emergência dos criminosos no interior do proletariado – o lumpemproletariado, estrato mais baixo de uma sociedade que remonta suas origens à formação urbana da Inglaterra, durante a decadência do modelo feudal – parecemmuito aplicáveis ao contexto em que emerge o herói popular da violência pré-moderna argentina: […] a elite das classes dominantes forçou a parte mais desesperançada e mais desesperada das classes pobres, aqueles que penetraram no “inferno do pauperismo”, a modificarem seu comportamento tradicional e a passarem das fileiras do proletariado para as fileiras do lumpemproletariado; a se transformarem de reservas do “mundo do trabalho” em reservas do “mundo do crime”; a passagem,em suma, “das classes laboriosas” para as “classes perigosas”. (2008, p. 260).

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Vimos como a Moreira, impelido pela necessidade de resgatar a honra, não lhe sobrou outro caminho senão o da violência. Com efeito, essa é a lógica dos folhetins de oposição que circulavam na imprensa da época. Como assinala Josefina Ludmer, “o esquema do folhetim de oposição não faz senão repetir a lenda do criminoso heróico levado a uma vida de delito por uma injustiça ou por cometer um ato que o Estado, mas não a comunidade, considera criminoso”. (2002, p. 212). Matar em nome da honra era um código pré-moderno validado socialmente. Gutiérrez, o autor do folhetim que difunde a imagem do bandido social, capta,portanto, o ethos de uma sociedade na qual as ofensas deviam ser vingadas pelas próprias mãos dos que sofriam a ofensa.Num mundo pré-moderno, como é o de Moreira, o arquétipo do “sujeito-homem” é aquele que traz arraigadas a coragem e a virilidade. Não havia lugar para covardia, tampouco para mediações, pois cada um devia resolver seus problemas por si, “cara a cara” com os adversários. Essa era a “boa lei”, a lei camponesa fundada não na escrita, mas numa mentalidade que se difundia pela oralidade. Reportando-nos às considerações de Beatriz Sarlo, em A paixão e a exceção, observamos que na ausência das instituições de justiça, o código de honra regia plenamente a sociedade e reconhecia na vingança a única possibilidade de reparação de uma injúria ou dano. No entanto, quando os braços da instituição estatal chegam, há uma mudança de perspectiva. As nações em processo de modernização, como era o caso da Argentina naquele momento, abandonam a lógica da vingança legitimada e passam a postular que todo o ato de vingança pessoal se constitui num ato criminal por trazer em sua base a negação do exercício legítimo da violência por parte do Estado. Cabe agora à Instituição Judicial averiguar as ofensas públicas e privadas e distribuir as penas, atendo-se somente aos fatos. Isso quer dizer que a defesa do indivíduo se desloca do confronto direto, da “justiça com as próprias mãos”, para oâmbito impessoal de uma mediação institucional. Ao abordar essa questão, Beatriz Sarlo afirma que: Os indivíduos podem seguir exercendo a vingança, mas não mais como direito; o ato de vingança é um ato criminal porque existe a possibilidade de um ato (despersonalizado) de justiça. A compensação concreta e direta da vingança é deslocada por uma regulação social geral que castiga o crime mas não oferece uma reparação personalizada a suas vítimas. A coragem moral e física, indispensável para o ato de vingança, é substituída por outras virtudes. (2003, p. 189).

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Com efeito, a coragem, a virilidade só eram virtudes pré-modernas necessárias em um mundo no qual imperavam a lei da força e as idéias de honra e vergonha, uma vez que neste contexto permitiam aos homens mover-se em situações de perigo, além de lhes conferir o respeito diante dos outros. Como destaca Sarlo, “em um mundo onde não existem outros procedimentos formais para estabelecer o direito e a preeminência entre os homens, onde o Estado não está presente com instituições que ofereçam garantias nem reparem o dano exercido pela violência, a coragem é o traço do temperamento que permite prover a honra e responder a desonra ou a provocação” (2003, p. 191). No entanto, numa sociedade moderna em pleno funcionamento das instituições, esses valores serão rechaçados em favor do que a autora chama de “outras virtudes” que são, com efeito, oethos civilizado. Este,diferente do ethos guerreiro, pressupõe, por seu turno, o controle das pulsões. Cabe destacar aqui as considerações de Nobert Elias sobre o processo civilizatório ocorrido nas sociedades ocidentais. De acordo com esse autor, o ethos guerreiro foi ultrapassado pelo monopólio legítimo da violência pelo Estado. Isso significa que cabe somente ao Estado o papel de mediador dos conflitos, de maneira a cumprir o processo de pacificação que em sua base traz a negação do uso da violência física entre os indivíduos. Na contramão da pacificação do Estado, no entanto, está a rebeldia do personagem objeto de nossa pesquisa. A obra Juan Moreira fecha um ciclo da literatura na Argentina, destacando-se no momento final do romantismo, quando os romances visavam a um objetivo específico: fazer uma representação que resgatasse os tipos populares perdidos com o advento dos tempos modernos. Vale ressaltar queessa construção literária ressemantizada do gaucho proposta pelos escritores da oposiçãoagradou bastante ao novo público-leitor formado pelas classes populares, quando da massificação da imprensa. Se antes havia tão somente a imagem do gaucho pacífico, agora despontava a figura do gaucho que se recusa a uma negociação com as classes de poder para ingressar no mundo da rebelião. Dessa sorte, não é muito difícil entendermos o porquê do sucesso dos folhetins policiais de Gutiérrez. Esse escritor do meio urbano acaba por ceder a voz ao elemento excluído e silenciado pela sociedade moderna, denunciando assim seus sofrimentos provenientes da ação abusiva dos agentes do poder. Como explicita Ludmer, Moreira se confronta diretamente com os representantes da lei, aqueles que são tomados pelo povo como seus inimigos, como os responsáveis diretos pela opressão. Isso explica a elevação do gaucho Moreira à condição de “herói

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da violência e da justiça popular”. De alguma forma, no espaço da representação, a alteridade se vê vingada de tantas injustiças e desmandos dos representantes do poder estatal. É importante sinalizarmos, contudo, que a violência de Moreira se exime de qualquer perspectiva revolucionária. É antes de tudo uma reação inconsciente. Moreira não coloca em cena qualquer projeto de transformação social.Muito pelo contrário: apenas reage às transformações, já que não consegue compreender a lógica de um processo que opera no âmbito da abstração, como o é um sistema de base institucional. Moreira é um sujeito alienadoem meio às muitas transformações por que passava a nação. Como define Josefina Ludmer, Moreira é um mártir da justiça popular que é suprimido pela violência do Estado. Nesse sentido, a Moreira lhe resta a condição de elemento descartável pelo sistema, ou seja, o refugo humano para quem, diante da nova situação político-social da Argentina moderna, não sobra nada a não ser o sentimento de perda da noção de pertencimento a uma comunidade em vias de reconfiguração do imaginário que garante coesão a seus membros. Reforça-se com o exemplo de Moreira um dos pilares que sustentam nossa investigação, a saber, a leitura da criminalidade como fator decorrente da modernidade enquanto deslocamento da “boa lei” da vingança e do resgate da honra a partir do momento em que passa-se a reconhecer como legítima unicamente a violência exercida pelas instituições estatais. Outro sustentáculo da nossa investigação é a reflexão sobre a construção do ethos guerreiro dos sujeitos pré-modernos. Vimos que Juan Moreira é um membro de uma sociedade da honra. E numa sociedade em que as relações estão fincadas neste código, qualquer ato de ofensa implica a vergonha por parte do ofendido e a conseqüente necessidade de uma resposta que resgate ou recomponha a imagem comprometida. Temos, portanto, a dicotomia que nos interessa trazer aqui para analisar o processo de construção da identidade masculina num mundo pré-moderno. Já nos referimos, acima, às duas ofensas à honra de Moreira que o levaram ao mundo do crime: o caso do comerciante trapaceiro e a perseguição injustificada do tenente alcaide. Entretanto, neste momento em que nos encaminhamos para uma conclusão, pretendemos projetar alguma luz sobre outros personagens, a saber, Vicenta – a mulher de Moreira – e Giménez, seu compadre. É a partir deles que se articula a trama da traição sofrida por Moreira de modo a reforçar o paradigma da honra e da vergonha como estrutura que rege a mentalidade desse grupo social.

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Quando Moreira passou à ilegalidade, pediu a Giménez, padrinho de seu casamento, que protegesse sua mulher, a bela Vicenta. Esta, de fato, ao ver-se numa situação-limite de miséria oriunda do desamparo em que a deixao marido foragido, foi socorrida pelo compadre Giménez que, no entanto, aproveitando-se da situação,confirma rumores mentirosos sobre a morte de Moreira e assume a esposa do fugitivo. Podemos dizer que este ato de ofensa à honra de Moreira é o que gera mais vergonha e, por conseguinte, o que despertou maior desejo de vingança. Vejamos os trechos que ilustram essa leitura: No rancho que havia abandonado sendo feliz ainda, esperavam-no a solidão e a vergonha, a dor e a humilhação. […] Sua mulher, sua Vicenta, era de outro homem e seu filho talvez chamaria de pai o miserável a quem devia a afronta cuja lembrança lhe fazia corar de vergonha.(p. 45, 2º Tomo – grifos nossos) Agora hei de pelejar para defender minha vida, porque quero viver para me vingar dos que me insultaram em minha desgraça, aproveitando-se de uma mulher desvalida. A esses – prosseguiu com ira -, hei de costurá-los a punhaladas, pouco a pouco, gozando-me em suas horas finais. (p. 21, 2º tomo).1

Se a fama de gaucho valente foi sendo conquistada à medida que Moreira saía vencedor dos duelos travados nas “pulperías”, a sua honra pessoal era algo que não dependia apenas dele, sobretudo quando se tratava do processo de manutenção do seu ethos masculino.Centrado em valores como a coragem e a virilidade, este também depende da forma como agem os outros indivíduos relacionados ao sujeito-homem, especialmente as mulheres da família. Moreira, ao construir sua própria imagem, seguia tão somente a lógicada frase clássica do universo camponês: os “homens que se fazem respeitar”. Vê-se, portanto, que a construção da identidade está inteiramente relacionada à interaçãocom os outros e à lógica do parecer, uma vez que assume importância determinante a opinião dos demais sobre a sua pessoa. Como assinala Marcos Alvito, ao retomar, em As cores de Acari,

1 Tradução nossa. Vide original in: GUTIÉRREZ, Eduardo. Juan Moreira. Prólogo de Josefina Ludmer. Buenos Aires: Perfil Libros, 1999.

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o argumento de Pierre Bourdieu (1972, p. 27), na esfera da representação, enfatiza-se tanto a dimensão pessoal como a dos outros. Conclusão essa a que chega Bourdieu ao estudar o “sentimento de honra” entre os cabilas da Argélia. Segundo o autor, “o nif ou «sentimento de honra»[…] é antes de tudo o que leva o indivíduo a defender, não importa a que preço, uma certa imagem de si mesmo destinada aos outros.” (BOURDIEU apudALVITO, 2001, p. 241). Essa lógica que abrange tanto aspectos subjetivos quanto objetivos se confirma, sobretudo, no conceito de honra. Vejamos a definição proposta por Pitt-Rivers e retomada por Alvito: Honra é o valor de uma pessoa aos seus próprios olhos, mas também aos olhos da sociedade. É a estimativa de seu próprio valor ou dignidade, pretensão ao orgulho, mas também o reconhecimento dessa pretensão, sua excelência reconhecida pela sociedade, seu direito ao orgulho. (ALVITO, 2001, p.241).

A imagem que devolvem os demais integrantes do grupo assim como a auto-imagem são fundamentais para a definição da masculinidade dos membros de uma sociedade da honra e da vergonha. No entanto, parece que essa lógica está longe de ser algo intrínseco às sociedades arcaicas ou pré-modernas.Principalmente no que diz respeito à hierarquia do gênero masculino sobre o feminino e os papéis que cabe a cada um deles é possível encontrá-la em espaços que apresentam contemporaneamente uma persistência de antigas temporalidades. Haja vista que Alvito conseguiu aplicar perfeitamente os pressupostos norteadores da sociedade de Atenas ao contexto de sociedades contemporâneas, como a favela de Acari, chegando à conclusão de que a lógica da honra e da vergonha ainda impera na construção das identidades sexuais. Segundo o autor, na favela de Acari, homens e mulheres se guiam pela “política dos gêneros”, segundo a qual há comportamentos exclusivos para cada sexo. “Em Acari isto é percebido da forma mais clara possível. O comportamento ideal da mulher casada inclui, além das tarefas domésticas, um rígido controle de sua movimentação”(2001, p. 253). Ainda segundo o autor, “os maridos mal podem disfarçar o orgulho que sentem das mulheres que não gostam de sair de casa: «minha mulher é caseira»” (idem). A “política dos gêneros” alcança sua maior evidência no que diz respeito ao adultério: “Não existe adultério masculino” (idem). Essa fala tomada dos moradores de Acari pode dialogar de forma elucidativa com a traição de Vicenta. Os trechos a seguir apresentam um diálogo entre Moreira e Vicenta:

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão ― Não vá meu Juan, mate-me antes. (Agarra-se ao chiripá.) Mate-me como a um cão, porque eu te ofendi, mas antes me perdoe; eu não tive culpa, me enganaram dizendo que tinha morrido e se eu dei esse passo, foi para que nosso filho não morresse de fome. Perdoe-me e depois morrerei com gosto. ―Não o permita meu Deus (guardando a adaga). Você não tem culpa e nosso filho precisa de você porque eu não posso levá-lo comigo: quem cuidará dele se eu manchar minhas mãos matando-a? Adeus, Vicenta; não voltaremos a nos ver mais porque agora sim vou fazer-me matar deveras, já que a terra não guarda para mim mais de que amargas penas… (Ato 2, cena 3 – versão dramatizada).

O diálogo não deixa dúvidas. A relação entre Moreira e Vicenta é norteada por uma mentalidade compartilhada segundo a qual a defesa ou o resgate da honra cabe ao homem e a vergonha está relacionada ao feminino.A desonra do homem podia derivar tanto de seus atos como das ações das mulheres da casa. E neste caso seria legítimo e necessário o ato violento reparador. Como enfatiza Georges Duby: A defesa da honra consistia em primeiro lugar em erguer um anteparo diante do público: o temor de ser desonrado pelas mulheres da casa explicava ao mesmo tempo a opacidade arranjada em torno da vida privada e o dever de vigiar de perto as mulheres, de mantê-las o quanto possível enclausuradas (DUBY,1990. p. 93).

Uma vez exposta sem os anteparos de proteção que devia lhe proporcionar o marido fugitivo da justiça, Vicenta acaba por ser levada a um ato que compromete a honra de Moreira. Este, contudo, apesar de pautar-se por um código que orienta todas as demais ações de sua vida, não recorre à ação violenta para eliminar aquela que comprometeu sua honra, pois é também a mãe de sues filhos, mas com isso decreta a sua morte social. E não podendo mais ostentar a imagem de homem cabal, com sua honra íntegra, só lhe resta esta forma de suicídio que é deixar-se matar no confronto. Comointegrante de uma sociedade que vive a transição de valores, Moreira perdoou a mãe de seu filho, porém jamais reassume o papel de marido. De acordo com Ludmer, o gaucho “no próprio momento do perdão abandona-a e a transfor-

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ma numa subjetividade culpável” (2002, p. 220). Na base dessa problemática está o que a autora, ratificando o pensamento de Bourdieu, chama de correlação entre os gêneros. Para ela, hoje, “não se pode ler um gênero literário e sexual se não se lê ao mesmo tempo o outro, os outros, que são seus correlatos. Em Moreira vê-se claramente que o gênero masculino se define entre homens e também define o feminino” (2002, p. 221). Numa sociedade pré-moderna, essa definição em relação à mulher é, como vimos, sempre permeada de preconceitos. Já no caso do homem, sua masculinidade só será posta em dúvida se vacilar diante dos valores ético-morais definidores do “sujeito-homem”. Esses valores, que sãoas referências identitárias da hombridade, estão carregados de concepções aceitas socialmente. Na sociedade de Moreira, ou dito de outro modo, no imaginário rio-platense até finais do século XIX, ser homem é trazer arraigadas a honra e a coragem. Beatriz Sarlo nos diz que “A honra é a paixão principal, e a coragem a virtude que a acompanha” (2003, p. 191). Cabe ressaltar ainda que, como afirma a autora, “a coragem continua sendo a forma plena da virtude masculina, preferida como hipérbole antes que como ausência” (2003, p. 190). Sem dúvida alguma, a virilidade exagerada é um dos traços que caracterizam o ethos masculino num mundo pré-moderno. Esse traço deve guiar o caráter do indivíduo não somente na vida como também na morte. No romance de Gutiérrez, abundam episódios de duelos nas mercearias (“pulperías”), nos quais o gaucho pode vivenciar inúmeras situações contribuem para a construção da imagem de valente.Numa clara manifestação da representaçãomais extrema da violência (“Um contra todos”, Hannah Arendt apud ALVITO, 2001, p. 283), venceu sozinho um grupo numeroso de homens armados. Essa condição de quase invencibilidade nos combates coopera para criar a esfera mítica do elemento masculino do romance de Gutiérrez. A vida errante de Moreira seria, em realidade, uma epopéia degenerada nos tempos modernos. E como a epopéia pressupõe a presença de um herói, na narrativa não faltam os episódios que enfatizam a atitude de um destemido varão a lutar em defesa de seus valores. Após analisar a trajetória de Moreira, observamos que o salto modernizador coloca uma imensa parcela da população a viver as conseqüências do conflito entre dois códigos e podemos sustentar que a violência do bandido social argentino se caracterizou por uma violência reativa como resposta à ação dos agentes sociais dopróprio processo civilizador. É exatamente como resposta aquilo que lêem como uma violência que emergiram figuras antiestatais, como o foi Moreira,

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as quais embora não encarnassem projetos de transformação social, eram porta-vozes da resistência na luta contra a desconstrução dos códigos morais de um mundo em ruínas que acaba por soçobrar no rastro de uma modernização que transfere o papel protagônico dos indivíduos para os representantes do Estado.

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REFERÊNCIAS

ALVITO, Marcos. As cores de Acari: uma favela carioca. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. CECCHETTO, Fátima Regina. Violência e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. DUBY, Georges. História da vida privada, 2: da Europa feudal à Renascença. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Vol. 1: Uma história dos costumes. Apresent. Renato Janine Ribeiro. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. GUIMARÃES, Alberto Passos. As classes perigosas: banditismo urbano e rural. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 2008. GUTIÉRREZ, Eduardo. Juan Moreira. Prólogo de Josefina Ludmer. Buenos Aires: Perfil Libros, 1999. LUDMER, Josefina. O corpo do delito: um manual. Trad. Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. SARLO, Beatriz. La era de la venganza. In: ___. La pasión y la excepción. México: Editorial Siglo XXI, 2003, p. 188-192. ZALUAR, Alba. Violência, cultura e poder. In: PEREIRA,Luiz Fernando.De olhos bem abertos: rede de tráfico em Copacabana. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 9-37.

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FIGURAÇÕES DA ALTERIDADE EM: PERROS EN LA NOCHE E BLADE RUNNER

Simone Silva do Carmo Tolerar a existência do outro, E permitir que ele seja diferente Ainda é muito pouco. Quando se tolera, Apenas se concede E essa não é uma relação de igualdade, Mas de superioridade de um sobre o outro. Deveríamos criar uma relação entre as pessoas Da qual estivessem excluídas A tolerância e a intolerância. José Saramago

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requentemente, quando a arte se propõe a representar a sociedade do futuro, depara-se com distopias nas quais se identificam críticas e frustrações derivadas do mundo presente. O avanço tecnológico, as conquistas na área da saúde e a necessidade de uma produção que atenda ao consumo desenfreado geram um efeito de “superpopulação” associada a uma crescente exclusão e produção de “vidas supérfluas”. Outras consequências desse modo de vida são a violência e o medo, fantasmas que pairam sobre “nós” diante da convivência necessária com “eles” e da geração de mais “deles” no processo de separação do “produto útil” do “refugo”, que deve ficar restrito a determinas áreas ou territórios. Focando na construção da imagem dos “outros” (ou “eles”) como refugos, o presente estudo pretende abordar, com o objetivo de identificar o impacto da alteridade na reestruturação do espaço e da vida urbanos, a partir da leitura do conto 295

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Perros en la noche(1983), do narrador argentino Carlos Gardinie do filme Blade Runner– O caçador de andróides, de Ridley Scott (1982), em contraponto com as teorias do sociólogo Zygmunt Bauman, do geógrafo Marcelo Lopes de Souza, dentre outros. Pode-se perguntar o porquê de resgatar estas obras depois de mais de 20 anos. A relevância do tema é reflexo do clima de instabilidade, violência e medo que parecem estabelecidos na sociedade atual. O medo de ser assaltado, de sofrer uma agressão física, ou seja, de ser vítima de um crime violento. Quem são os “outros”? Quais são os espaços do “nós”? E quais os espaços dos “outros”? Os outros têm medo? Partindo dessas concepções, este trabalho delimita-se a apresentar os espaços e as relações de conflito e contato, ou seja, a tensão entre jodidos, como são denominados os “outros” no conto Perros en la noche (1983) e replicantes, como são identificados os do filme Blade Runner (1982) com a sociedade em que estão inseridos. A partir de uma relação com a sociedade atual, procuraremos relacionar os espaços dos jodidos e replicantes nessas obras,levando em consideração, principalmente, a tentativa desesperada de proteção e isolamento em condomínios fechados de uma parcela da população. Blade Runner- o caçador de andróides (1982) apresenta uma série de personagens identificados como replicantes, os quais, na verdade, são robôs fabricados pela companhiaTyrell Corporation,nomeados na obra como Nexus-6. O filme se passa numa Los Angeles decadente e opressiva do ano 2019, onde a individualidade humana é somente uma sombra molhada pela constante chuva ácida, decorrente de um devastado ecossistema, no qual o protagonista Deckard, vivido pelo ator Harrison Ford, é um ex-policial que volta a ativa para liquidar um grupo de andróides fugitivos programados para servir à colonização do espaço. Já o conto de Gardini, Perros en la noche (1983),apresenta caçadas humanas noturnas e sombrias de dois matadores de aluguel disfarçados de recolhedores de cachorros abandonados. Eles utilizam essa caracterização para eliminar pessoas pobres, sejam elas moradores de rua, ou não, de uma sociedade não identificada. O conto e o filme estão dentro de um movimento literário no gênero da ficção científica conhecida como cyberpunk. São histórias de indivíduos marginalizados em ambientes culturais de alta tecnologia e caos urbano, daí a origen do nome, colocando em sinergia cyber, de máquinas cibernéticas; […] e

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão punk, da atitude “faça você mesmo” do movimento punk inglês da década de 70 do século passado. (LEMOS, 2004, p.12, grifo do autor).

Essa narrativa tipicamente pós-moderna apresenta protagonistas com características de anti-heróis, transitando por cenários sócio-políticos complexos em que corporações gigantescas dominam vários campos da sociedade. São figuras que se “deparam com situações ligadas ao quotidiano das grandes metrópoles atuais, assoladas pelo caos urbano, pelo crime, pela poluição e pela degradação das relações sociais.”(LEMOS, 2004, p. 12). Alteridade e identidade Outra questão que se destaca nessas obras é a alteridade, que pode ser apresentada de duas formas diferentes: abstrata, constituída pela percepção dos “outros” como um ser diferente do “nós” ou concreta, quando se focaliza a percepção que se entende dos “outros” como pessoa ou grupo concreto físico. O filófoso e linguista Tzvetan Todorov em seu livro A conquista da América(1999) mostra que os “outros” podem ser vistos como: Um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos. Este grupo, por sua vez, pode estar contido numa sociedade: as mulheres para os homens, os ricos para os pobres, os loucos para os “normais”. Ou pode ser exterior a ela, outra sociedade que, dependendo do caso, será próxima ou longínqua: seres que se aproximam de nós, no plano cultural, moral e histórico, ou desconhecidos, estrangeiros cuja língua e costumes não compreendo, tão estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que pertencemos a uma mesma espécie. (TODOROV, 1999, p. 3).

Sendo assim, os “outros” no conto e no filme se apresentam tanto de maneira concreta quanto abstrata, porém vistos como indivíduos que pertencem à mesma sociedade ou ao mesmo grupo, mas que se diferenciam destes por algum motivo, seja econômico, político ou cultural.

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Nesse contexto, os personagens são sujeitos com identidades fragmentadas, compostas “não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-revolvidas”. (HALL, 2002, p.12)Nos textos de Perros en la noche e Blade Runneraparecem claramente como caçadas humanas, onde os caçadores perderam a hominidade e estão mergulhados numa ação que contém uma profunda reflexão sobre o problema da busca da identidade perdida. Enquanto caçam, animalizam-se, e os “outros”, que eles consideram animais, humanizam-se. Tal fato pode ser observado, por exemplo, quando o detetive Deckard persegue o último replicante, Roy, mas, em vez de matá-lo, deixa-o ir embora. No entanto, a execução não era reconhecida como tal, nem no filme nem no conto, pois os caçadores não utilizam a palavra “matar”. Em Perros en la noche (1983), usavam a expressão “limpiar un jodido”, e no filme, “aposentar um replicante”. As referidas expressões aparecem como uma forma de favor que tanto o detetive ou os matadores de aluguel estão fazendoàs vítimas. No conto de Gardini, exatamente na hora da escolha, havia uma predileção pelas mulheres: “En lo posible elegíamos mujeres, como me había enseñalado el Turco. […] Sí hay menos mujeres, se reproducen menos.” (GARDINI, 1983, p. 18). Esta escolha tinha o propósito de evitar a procriação de mais “deles”. Atualmente, a preocupação com uma “superpopulação” é evidente, pois a fecundação “deles” provoca uma excessiva pressão no sistema de sustentação do planeta. Esse fato é destacado no conto com a já citada eliminação preferencial das mulheres, enquanto no filme, tal ocorre com a personagem Pris, uma replicante usada como objeto sexual descartável, chamada de “modelo básico de prazer”, pois, justamente por ser máquina, não procria, apenas desempenha o papel para o qual havia sido criada. No conto, os “outros” são identificados como jodidos, enquanto que, em Blade Runner, como replicantes. Os caçadores de ambos os textos declaram, ao longo das narrativas, que não é tão fácil assim reconhecê-los, pois“Distinguir a un jodido no es fácil, pero, con la práctica se adquiere olfato profesional, como en todo.” (GARDINI, 1983, p. 14) Cabe ressaltar que o olhar é um ponto em comum entre as obras, utilizado como instrumento de reconhecimento. Os caçadores do conto vão diversas vezes ao hospital para analisá-los mais de perto. “Me hizo visitar el hospital. Los pasillos estaban llenos de jodidos haciendo cola. […] Tenían esa mirada perdida”. (GARDINI, 1983, p. 17).

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Na cena de abertura do filme, há um close-up magistral dos olhos do detetive Deckard contemplando o sombrio cenário de Los Angeles. Logo em seguida, outro detetive utiliza-se de um aparelho para fazer a leitura da íris dos olhos, pois é através desta análise que se pode identificar um replicante. Durante todo o conto, os personagens deixam transparecer que vivem numa crise de identidade. Uivam como os cachorros, sentem remorso quando descobrem que quem eleshaviam matado não era um jodido e, principalmente, no final, quando, desempregados, o Turco começa a repetir:“Eso no es lo peor, eso no es lo peor, […]”. (GARDINI, 1983, p. 16). Afinal, o pior que lhes poderia acontecer era haver-se tornado um deles. Ou será que já eram, mas não o sabiam? Tudo isso lhes dói na alma. Entretanto, mesmo com as idas frequentes aos hospitais, os caçadores e caçados se confundem. Há uma explícita tensão sobre a linha limite que separa o “nós” dos “outros”. Ela é muito estreita, e os próprios caçadores, às vezes, têm dúvida se eles próprios são ou não jodidos ou replicantes. Quem são os “outros”? Pode-se dizer que é o estrangeiro, o diferente, o estranho, o desempregado, o refugo, o perigo, a ameaça, o inimigo. É evidente que esse “outro” também pode ser visto “no favelado, no morador de rua, no suburbano…” (SOUZA, 2008, p.74).Numa sociedade de consumidores, quem não consome não importa, pois é considerado passivo, falho, ou seja, é custo numa situação em que se visa basicamente ao lucro. (BAUMAN, 2005, pp.21-22, passim). Ao longo dos séculos, a história nos mostra a tentativa de eliminação da diferença. O ponto de referência da existência dos “outros”, no entanto, parte do “nós”, que não admite a presença “deles”. Muitas vezes,a hostilidade surge sem nenhum contato ou conhecimento dos “outros”, mas,principalmente, do desconhecimento, o que leva ao preconceito e à discriminação. O personagem protagonista de Perros en la noche, que narra o conto, é um veterano de guerra, que não tem três dedos dos pés, e seu companheiro de “serviço” é identificado como Turco. Ambos apresentam marcas de alteridade, um deficiente físico (reformado pós-guerra) e um estrangeiro. Evidentemente, ambos não fazem parte da parcela do “nós”, e sabem disso, pois quando ficam sabendo pelo rádio que o governo aprovou o orçamento para construir mais hospitais, ficam desesperados, pois eles são desnecessários, sem uso. E ambos têm consciência do destino de muitos desempregados: o refugo, as calçadas, os abrigos públicos. Sentem a ameaça do desemprego e são invadidos por um sentimento de abandono e insignificância, pois: 299

Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares Os outros não necessitam de você. Podem passar muito bem, e até melhor, sem você. […] Ser declarado redundante significa ter sido dispensado pelo fato de ser dispensável. […] “Redundância” compartilha o espaço semântico de “rejeitos”, “dejetos”, “restos”, “lixo” – com refugo. O destino dos desempregados, do “exército de reserva da mão-de-obra”, era serem chamados de volta ao serviço ativo. O destino do refugo é o depósito de dejetos, o monte de lixo. (BAUMAN, 2005, p. 20, grifo do autor).

Os protagonistas de ambos os textos sabem que estão inseridos num jogo em que não há vencedores, somente vencidos por regras duras, vindas de ordens superiores, onde“Cada cual atendía su juego, pero todo juego tiene sus reglas, y las aguantábamos sin rencor.” (GARDINI, 1983, p. 17). Deckard é um homem solitário, aposentado e obrigado a voltar à ativa por motivos não muito claros, porém percebe-se que há uma chantagem do chefe de polícia de Los Angeles,que diz a ele: “Conheço o jogo meu chapa. Se não topar, está acabado.” (SCOTT, 1983). O detetive começa a duvidar de sua própria identidade quando a personagem Rachel, secretária de Tyrel, dono da poderosa corporação industrial produtora dos Nexus 6, descobre que é uma replicante. Sua memória, na verdade, havia sido implantada e pertence à sobrinha de Tyrel. Na verdade, o que fazia Rachel acreditar que era humana não passava de fotografias, de um simulacro de memória de sua família. Esse fato leva o ex-policial a uma reflexão profunda, pois no seu apartamento há inúmeros quadros de fotografias, levando-o a não ter mais certeza de ser ou não também um replicante. Como não fazer da diferença um motivo de discriminação? A função de triagem e seleção, em uma sociedade capitalista e desigual como esta, é, normalmente, feita pela instituição policial. A ela cabe esse primeiro contato na função de controle social. Porém a maior dificuldade é apresentada nesse momento, pois não só nos EUA, como,com menos evidência na Europa e abertamente no Brasil, essa triagem é feita entre ricos e pobres, brancos e negros, e não entre bandidos e cidadãos de bem. A polícia, muitas vezes, analisa a cor da pele, as roupas, a maneira de falar para fazer a seleção. A dificuldade de reconhecimento dos “outros”, vivida pelos protagonistas do conto e do filme em questão, parece recair sobre quem na sociedade atual tem a obrigação de fazer esse primeiro contato.

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O direito ao verbo Durante muitos séculos, a literatura excluiu os pobres, os indígenas, as mulheres e os marginalizados sociais, considerando-os temas para romances naturalistas. Os professores Ary Pimentel e Ricardo Pinto (2005) dividem o último século em três momentos: no primeiro, a literatura está centrada no mundo do Eu, e transforma o Outro em objeto da escrita”; no segundo,esses elementos ainda aparecem como projeção de um olhar do Eu, daquele que tem voz; no terceiro momento, já no final do século XX e início do XXI, quando a relação entre a literatura e a alteridade aparece como sujeito e o Outro conquista o direito de se autorrepresentar. (PIMENTEL & PINTO, 2005, pp. 6-7) Nesse contexto, somente o homem é o possuidor do Verbo, característica que o distingue diante de outros entes, individualizando-o e dando-lhe personalidade. Mas nem todos têm direito à Palavra. Portanto, o Verbo, o Logos, a Palavra, mediante essas expressões, o homem deixa de ser um ente entre todos os outros e passa a ser um habitante desse Universo, pois “A Palavra é magia, é ela que faz possível a existência de algo do nada. E, mais que magia, é o poder criador por excelência.“No princípio era o verbo”, diz a Bíblia.” (ZEA, 2005, p.355). No entanto, como se observa no conto, as vítimas não tinham direito à fala, nem na hora da morte, como fica claro neste trecho: “–¿Y cómo muere un jodido? – Sin dignidad. Ni siquiera pegan un grito” (GARDINI, 1983, p. 19), pois sabiam que não havia a quem pedir socorro.Por diversas vezes, os caçadores comentam que a polícia sabia de tudo, e evitava transitar por aquela área.“La cana sabía bajo cuerda y no se metía en las zonas de descontaminación […]La cana si aparecía, llegaba tarde, y todo iba sobre ruedas. Claro que a veces había malentendidos, y entonces los encontronazos. No se metan con la cana, nos decía el jefe, pero si se meten tienen que dar con todo”. (GARDINI, 1983, p.16). E havia uma clara consciência de que a ordem para eliminá-los vinha provavelmente de uma pessoa importante. Quando os caçadores foram dispensados do serviço, o chefe deixou transparecer que era alguém ligado ao governo que dava a ordem.“El jefe nunca nos dijo nada, por algo era el jefe y tenía que aguantarse más que nadie.[…] – Se acabó – dijo. – De arriba nos llegó la orden de dejar a los jodidos en paz.” (GARDINI, 1983, pp. 18-19).

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Em Blade Runner, os replicantes, que não são do gênero humano, mas objetos tecnológicos complexos, produtos do trabalho humano e dos avanços da engenharia genética.Não têm direito ao Verbo, porém isso não significa que não reajam. Uma das cenas mais significativas do filme é o diálogo de Roy (o líder dos replicantes rebelados) e Tyrel (o seu criador), no qual Roy pede que seu código genético seja alterado para que viva mais de quatro anos. Tyrel, entretanto, diz que ele havia sido feito da melhor maneira possível, mas não para durar, o que talvez se consiga para as gerações futuras.Insatisfeito, ele mata seu criador. Essa relação do tempo no filme destaca que não há diferença entre as máquinas e os humanos no que se refere ao tempo de vida. A principal, talvez, é que, enquanto os humanos não sabem qual é seu prazo de validade, as máquinas têm consciência de que durarão apenas quatro anos. Segregação A relação do homem com a terra sempre foi de apossamento e domínio,como um “animal territorial, por demarcar e defender territórios” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p.7). Ou seja, não é natural, segundo sua natureza, que viva em isolamento e segregação. A aproximação ao termo segregação se dá no sentido de fragmentação, principalmente de espaços, como consequência do medo generalizado.Na passagem do conto de Gardini (1983), observa-se o lugar onde eram recolhidos os cachorros e,consequentemente, ocorre a eliminação das vítimas. Varias noches por la semana cargábamos perros en todos los barrios, pero viéndolos juntos no podía creerse que fueran tantos. Perros de todas las calles de suburbios inmundos, con toda la tristeza de los basurales, la tristeza de los fierros oxidados, la tristeza de los escombros de las obras abandonadas, la tristeza de los desocupados y las fábricas cerradas[…] la tristeza de las pateaduras y los cascotazos. Ocupaban grandes corrales de tierra con cercas de madera. Pasaban casi todo el tiempo corriendo, dando vueltas y vueltas. Casi no se peleaban, de puro flacos.(GARDINI, 1983, p.18). Já no filme, os Nexus 6 vivem fora do planeta, como escravos, em colônias interplanetárias. Na Terra, são caçados como animais, ou seja, não há lugar nem para os jodidos nem para os replicantes. Os espaços em que ambos vivem são caracterizados, em primeiro lugar, como afastado do centro, periférico, sujos,

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cercados de vagabundos e pessoas abandonadas que jogavam carne “boa” aos cachorros, enquanto a elite lhes dava carne envenenada. Nos seus espaços, os “outros” eram perseguidos e assassinados, fora deles, rechaçados para que retornem ao lugar determinado. Pode-se dizer que hoje se vive em um processo de segregação residencial, no qual uma parte da população é forçada ou induzida a viver em um local que, se pudesse escolher, não viveria confinada ali. Enquanto que, por outro lado, outra parcela da sociedade, acreditando estar protegida, opta por se fechar em condomínios. Essa segregação e limitação de espaços imaginários provocam um profundo abismo e transforma diversos grupos humanos em inimigos ou estranhos. Para isso não é necessário muito, uma vez que a hostilidade surge por saber que o “outro” advém de um lugar, de uma cidade, de um bairro, etc., considerado por “nós” como atrasado, inferior, subdesenvolvido, ou algo similar, acreditando plenamente que as pessoas originárias dali também o são. A segregação dos espaços que “nós” e os “outros” devem ocupar ficam claros nesta passagem de Perros en la noche“En general los jodidos no se metían en ciertos lugares, no se mezclaban así con la gente decente. Es como todo. Hay perros con collar y perros sin collar, y un perro sin collar no se pasea lo más campante por un barrio de bien.” (GARDINI, 1983, p. 15).Observa-se nesse trecho o preconceito em relação à origem do lugar, uma vez que os jodidos, ou seja, “los perros sin collar” não estão proibidos de frequentar qualquer localidade, porém sabem que não são bem vindos e que serão identificados como “estranhos” naquele ambiente. Os “perros con collar” são as elites, representados no conto pelos “tigres” (que não passam de jovens ricos, drogados, que fingem ser marginais), mas, no fundo, não saem de seus territórios protegidos, visto serem filhos de pessoas importantes, com sobrenome de peso. No filme, por outro lado, o convite é para todos, pelo menos aparentemente, pois ele inicia com uma visão futurística da Los Angeles de 2019 enquanto uma mensagem publicitária convida a população para viver num paraíso fora da Terra:“Uma nova vida espera por você nas colônias interplanetárias. Vamos para as colônias! […] Ajudando a América a entrar no Novo Mundo.” (SCOTT, 1983), e segue descrevendo a colonização espacial e o uso dos Nexus 6 nas tarefas mais pesadas, perigosas ou degradantes nas novas colônias. No entanto, logo se constata que, para o acesso a esse novo mundo, é preciso uma rigorosa avaliação para escolher as pessoas que estão aptas a viver nesse suposto paraíso. 303

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Nesse contexto, percebe-se que não é uma questão somente econômica, pois o personagem J.F.Sebastian, projetista genético dos replicantes, tem excelente condição financeira, porém foi reprovado nos exames por sofrer de Síndrome de Matusalém. Essa doença não é contagiosa, mas o acesso a esse novo mundo foi negado por simples questão estética. Sebastian é o diferente, pois tem apenas 25 anos e aparenta o dobro. Por ter uma profissão importante, poderia viver nas colônias interplanetárias, mas a decrepitude provocada por sua doença poderia incomodar a elite, tendo sido, por isso, excluído. A solução escapista à auto-segregação encontrada pelas elites representa uma fuga que não contribui para solucionar o problema da insegurança e da violência, pelo contrário, colabora para a deteriorização da civilidade, da qualidade de vida e do exercício da cidadania. Impede o contato com o “outro”, o diálogo, o respeito à diferença, a solidariedade, aumentando ainda mais o ódio de classe e, não raro, amalgamado com o ódio racial. (SOUZA, 2008, pp.54-56). O isolamento das elites hoje se dá principalmente através da formação de condomínios residenciais fechados e exclusivos, com a população pobre sendoforçada a viver ao redor desses locais, porém sem usufruir as mesmas vantagens. Eles não vivem lá, mas ali trabalham. Deste modo, formam comunidades em torno para poderem ficar mais perto, mas o saneamento básico, o policiamento, a saúde e a educação são precários. Todo esse processo de proximidade e afastamento é complexo e acaba gerando medo. O medo do outro O medo de sofrer uma agressão física, ser atingido por uma bala perdida em sua própria casa, um sequestro relâmpago ou ter uma bomba explodindo sobre qualquer cidadão. Pode parecer que isso não acontece em qualquer lugar, mas basta abrir os jornais para se perceber que essa pode ser uma notícia comum, não somente não grandes cidades, mas também no interiordo país e do mundo:“É no mundo todo, inclusive na Europa, que se pode já perceber que a problemática da (in) segurança pública, tendo por pano de fundo o medo generalizado, vai se convertendo em um […] fator de (re) estruturação do espaço e da vida urbanos.” (SOUZA, 2008, p.33). Os problemas urbanos e os conflitos sociais aumentam ainda mais o sentimento de insegurança. Entre eles, pode-se destacar: ascensão de valores consu304

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mistas, individualismo, falência do sistema prisional, corrupção estrutural do aparato policial, entre outros. Todos esses fatores associados levam a sociedade atual à fragmentação, ao isolamento e ao medo. Basta ter um tipo “suspeito” pela aparência para ser discriminado. E para ser considerado “suspeito” não é preciso muito, é só está fora do padrão que a classes média e alta acreditam ser o certo de acordo com seus preconceitos, pois essa distinção pode ser pela “classe social, a cor da pele, a faixa etária, o sexo e o local de residência”. (SOUZA, 2008, p.54). Indubitavelmente, vive-se hoje na era do medo, onde as drogas têm uma importância direta para o agravamento dessa situação. Cocaína mais barata, drogas sintéticas e instalação do comércio varejista nas comunidades e no asfalto. Por outro lado, o envolvimento de alguns policiais corruptos na extorsão de traficantes, formação de milícias (composta de ex-policiais e ex-bombeiros), que constituem diversos negócios ilícitos como: operação de tv a cabo, distribuição de sinal de internet clandestina e venda de gás de cozinha, pioram ainda mais essa situação. Não se deve pensar que as classes média e alta não sofrem com a violência, pois elas estão enclausurados, cercadas de segurança privada, muitas vezes mal preparada, cercas elétricas, parques gradeados. Enquanto na favela não é muito diferente, pois os traficantes ou os milicianos impõem toque de recolher e taxas de segurança ilegais e abusivas. O cidadão de certas regiões tem que pedir autorização até para receber uma visita. No sombrio e tenso cenário do filme há uma iminente sensação de medo de todos os lados.A tensão é constante. Os personagens circulam por vias urbanas deterioradas, cheias de transeuntes, camelôs, uma chuva ácida persistente, em bairros decadentes, (como por exemplo, a oficina de J.F. Sebastian, que mora sozinho hum prédio abandonado). No conto, o cenário é praticamente o mesmo, pois os cachorros recolhidos à noite são jogados em currais, e os corpos, em lixões; as vítimas são perseguidas em bairros sujos, escuros, afastados e miseráveis: “Desde las calles sucias, desde las manzanas de casa de chapa, desde las vías abandonadas, desde los basurales con olor a goma quemada, desde los terraplenes llenos de ratas muertas, podredumbre y preservativos secos […]” (GARDINI, 1983, p. 17). A combinação dos personagens e dos cenários são elementos que constituem o que Marcelo Lopes de Souza denominoufobópole“do grego phóbos, que significa “medo” e pólis, que significa “cidade””.(SOUZA, 2008, p.9) Na cidade ou no interior, no Brasil ou em qualquer lugar da Europa, grande parte de seus 305

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habitantes presume sofrer de estresse crônico devido a violência, o medo da violência e a sensação de insegurança. O replicante Roy, pouco antes de morrer, diz ao detetive Deckard: “uma experiência e tanto viver com medo. […] Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva” (SCOTT, 1982). Tratar de temas como violência, medo, discriminação, morte, alteridade, exclusão não é simples. O filme Blade Runner (1982)e o conto Perros en la noche (1983) nos levama reflexões que incomodam e causam grande impacto visual. Porém, com um olhar mais atento, consegue-se perceber beleza atrás de tanto sofrimento. Enfim, nessa pequena reflexão se pôde observar como a não aceitação do diferente influencia a estruturação da vida e do espaço numa sociedade. Tudo começa com o estranhamento, passa pelo isolamento e culmina na eliminação do “outro”. O conflito entre pessoas diferentes sempre irá existir, porém talvez falte o respeito e a aceitação da ideia de que o “outro” é diferente de mim, mas não menos ou mais humano. Pode até parecer utópico num mundo tão distópico, mas é preciso acreditar neste primeiro passo.

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REFERÊNCIAS

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CIDADE E EXCLUSÃO DA ALTERIDADEEMDOISCONTOS DE CARLOS GARDINI E JULIO RAMÓN RIBEYRO

Sylvia Helena de Carvalho Arcuri

Narrativa urbana: a massa que forma a periferia

A

grande época de migração da história foi e a época Moderna. Um grandenúmero de pessoas se moveu portodo o planeta (BAUMAN, 2005). Na primeirametade do século XX porcausa do crescimento das grandescidadesque passavam peloprocesso de modernização e clamavam por mudanças, ondas de pessoas do campo migraram para essas cidades e transformaram rapidamente a imagem dessas metrópoles. Diante dessa nova fisionomia e da angustia de assistir o crescimento desenfreado, os artistas se mobilizaram e sentiram uma necessidade de falar, de denunciar. Essa necessidade foi percebida nas artesvisuais e na literatura das cidades da América Latina. Vários autoreslatino-americanos se destacaram nesse cenário, entreeles o peruano Julio Ramón Ribeyro que se angustia com esse processo e o expõe no conto primoroso “Al pie del alcantilado”. Dentro desse desenvolvimento acelerado e desencadeado a partir da segundametade do século XIX, os centros das cidades, já inchados, iniciam seusprocessos de deslocamento da massaurbanapara as áreas periféricas e a populaçãoque compõem esses bairros começa a tervoz e essa autonomia desperta os autoresparaoutroprocesso de mudança, mas dessa veznão das cidades em si mesmas, mas dos homens que a habitam. Os escritores sentem necessidade de falar, de refletir, de mostrar como a doença dos grandes centros atinge os homens e a periferia e a “crise urbana” se instala. Os autores passam a falar da temática urbana deixando de lado os temas do campo. Parasobreviver, esses grandes centros precisam realizar uma limpeza ambiental, eliminando e expulsando aquilo ou aquele que não serve, esse momento é um tema também presente no conto “Perros en la noche” do argentino Carlos Gardini que denuncia a segregação, o preconceito, a divisão e o refugo humano.

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As ações dos contos mencionados acontecem na periferia de uma grande cidadeque pode ser Lima, Buenos Aires, Los Angeles ouRio de Janeiro. O narrador em primeira pessoa nos dois contos é proposital, pois impregna a narrativacom a voz daquele que esteve sempre à margem e queagora tem oportunidade de expressão, de falar das suasangústias e das mudanças que a periferia, comoalteridade dos grandescentros, pode provocar neste homem marginalizado, visto como aquele que não serve, o excluído, ouainda, aquele que só serve paraservir, aquelequesó tem a função de ser o outro. Julio Ramón Ribeyro assume a missão de mostrar com o texto literário a novageografia de Lima, o desafio de apresentar a cidade moderna, e todas as angústiasque o advento dessa modernidade urbana traz e contamina seus habitantes, uma cidade renovada que incorpora no seu espaço a imagem real do país e do continente. Esta nova realidade traçada não só por Ribeyro, mas por outro sautores, é realizada através de uma perspectiva crítica das aceleradas modificações urbanas que vêm acontecendo durante algumas décadas. O discurso literário dramatiza as mudanças e as coloca em contraste com o momento presente, saindo da barbárie e entrando na civilização. Ribeyro descobriu e revelou essas mudanças da realidade social limenha nas entrelinhas do seuconto: […] até que de repente começavam desesperadamente a construir uma casa com aquilo que tivesse o alcance da mão. As casas deles eram de papelão, latas amassadas, pedras, bambusacos de aniagem, esteiras, tudoaquiloque pudesse fechar um espaço e separá-lo do mundo. Não sei do que vivia aquela gente… (RAMÓN RIBEYRO, 2007, p. 111).

Não dá para pensar em periferia sem pensar no centro. A formação da periferia é algotípico do processo de formação das metrópoles, que está intimamente ligado ao processo de “favelização” com condições mínimas de sobrevivência e precariedade. A cidade quando cresce oferece emprego, a massa rural se sente atraída, pois já não tem mesmo nada, entãovale a pena arriscar para ter uma vida melhor, mesmo que paraisso vivam na zona periférica dos grandes centros ou nas favelas. Além do mais, a cidade com suas possibilidades de bem estar, possibilidade de acesso aos serviços atrai esses homens do campo que chegam iludidos com a imagem de que podem mudar suas vidas. Essas ondas de migrantes só aumentam o índice de pobreza. A mobilidade social desencadeia uma nova identidade do popularsegundo Martin-Barbero: 309

Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares Talvez em poucas cidades latino-americanas o fenômeno atinja, na atualidade, as proporções sociais e culturais que tem emLima, onde vive quase a metade da população do Peru e onde 70% dos habitantes vivem em assentamentos populares, os “pueblos jóvenes”, isto é, bairros de posseiros legalizados ou ainda irregulares. […] As favelas que há trinta anosnem existiam nessa capital, converteram-se no principal personagem da “nova” Lima, como resultado de oscilação ecológica e demográfica de um país queem 1940 era 65% urbano. “Em 1984, Lima é uma capital de forasteiros, A cidades aturada em sua geografia e em sua moral: as situações existentes – invasões de terrenos na periferia, parafins de habitação, e das ruas do centro, para o desempenho de atividades de sobrevivência – geram novas fontes de direito reconhecidas ou permitidas porum Estado que também está saturado. (MARTIN-BARBERO, 2008, p. 274).

A mutação e a realidade contemporânea urbana, que deixa para trás umpassado campestre, bucólico, e a definição do espaço onde acontecerá a narrativa é o que vemos logo de inicio do conto “Al pie del alcantilado”. Nesse primeiro momento, o protagonista compara o ser humano que vive à deriva com uma espécie de planta selvagem, que assim como ele pode viveremqualquer lugar que lhe dê chance, que faça essa concessão, mesmo que esse espaço seja longe do centro, de onde a vida acontece. A planta serve como símbolo de representação, como metáfora da persistência dos menos agraciados que conseguem sobreviver às duras penas. Também serve como sinal de renascimento da vida, fertilidade e abundância que vence a morte, que cria raízes, mas que pode ser arrancada a qualquer momento assim como os homens podem ser deslocados e condenados a viverdistante do centro. O habitat dessa planta é à beiramar e nesse cenário se desenvolverá toda a narrativa de Ribeyro queganha o espaço externo. Os personagens de Ribeyro são expulsos de chácara em chácara até que chegam a um balneário abandonado, onde cresce a figueira-brava e se estabelecem. Maslogo o medo se instala quando percebem que existe uma rachadura no despenhadeiro que os leva a buscar uma saídaque será construir um contraforte para impedir o desabamento.

310

Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão A gente é como a figueira-brava, essa planta selvagem quebrota e se multiplica nos lugares mais amargos e escarpados. Vejam como cresce no areal, sobre o seixo rolado, nos córregos sem água, no desmonte, ao redor dos depósitos de lixo. Não pede favores a ninguém, tão-somente umpedaço de espaço para sobreviver. (RAMÓN RIBEYRO, 2007, p. 95).

A imagem da periferia como um lugar de crescimento desordenado, caótico, poluído, comsérios problemas ambientais, onde a arquitetura foge daquela que é planejada para os grandes centros também é mostrada no conto de Gardini. Essa periferia que apresenta uma planta desordenada, ondenão há saneamento básico, luz escolas, um lugar onde as ruasnão têm calçamento e que são traçadas para facilitar acesso para casas construídas cada vez mais distantes e com material reciclado, porque podem ser desapropriadas a qualquer momento, também pode serlida no conto “Perros en la noche” nessa passagem: “Desde las calles súcias, desde manzanas de casas de chapa, desde las vías abandonadas, desde los basurales comolor a goma quemada, desde los terraplenes llenos de ratas muertas, podedumbre y preservativossecos, respondían otros perros”(GARDINI, 1983, p.16). Os autores com suas narrativas tentam representar e chamar atenção para essa massa que muda, aquela que será a responsável de manter a identidade do centro. Pano de fundo: a violência No conto “Al pie del acantilado”, que pode ser lido comum sentido universal, pois mostra que os homens, de sociedade ssimilares, passam geralmente pelosmesmos problemas, Ribeyro desenha um mundo que ultrapassa a ficção e aborda problemas da sociedade moderna, um mundo cheio de seres inúteis que vivem como nômades porque não se acomodam em nenhum lugar por causa da especulação imobiliária. Esses personagens formam uma verdadeira sociedade de anônimos, desconhecia que se consola com a ilusão da promessa de um mundo melhor. Já mergulhados em um mundo miserável que nasce emtorno dos grandescentros, o leitor deste conto, começa a perceber como esses personagens vivem, a maneiracomo lidam com a cotidianidade e como sobrevivem. Do estágio de per311

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cepção o leitor passa para o estagio de questionamento e de identificação do problema que está além das linhas e descobre que outras questões aparecem como pano de fundo e que se tornam aparentes, uma dessas questões é a violência. As narrativas de Ribeyro e de Gardini dialogam em vários momentos, emambos os contos há a presença de cães, que aparece no título de “Perros en la noche”. No conto de Ribeyro o cão aparece como o vira-lata, aqueleque é rejeitado e expulso do núcleo de convivência e assimcomo os humanos sofrem algumtipo de violência. Diz o narrador: “No começo foram os cachorros, aqueles cachorros vagabundos e pobres que a cidade expulsa cada vez para mais longe, feito gente que não paga aluguel”. (RIBEYRO, 2007, p.99). Mas os personagens humanos recebem todos os cachorros enjeitados que aparecem porque se identificam comeles. Essa cidade que traga e já não deixa que todos desfrutem do que ela pode oferecer como: trabalho, estudo, uma vidamaisdigna. No conto de Gardini, caçar cães é uma ação que serve de fachada para o trabalho sujo realizados pelos personagens, que na verdade caçam humanos e os eliminam para que a cidade fique mais limpa. Os cães funcionam como álibipara um trabalho sujo. O personagem narra: “y después nos metíamos en la zona de descontaminación quenos habían asignado esa noche para limpiarla de perros y jodidos”. (GARDINI, 1983, p.14). Pode-se constatarque a recessão econômica acompanhada do desemprego que assola os moradores da periferialeva a uma desordem social e o aumento da pobreza eclode na violência urbana. A violência passa a fazer parte dessas áreas mais carentes e dá margem à criação de grupos de extermínio e ao crime organizado. A violência que permeia os contos não é apenas a violência como a conhecemos, mas um outro tipo de violência mais sutil, violência moral que comete o Estado quando desapropria, expulsando como cachorros enxotados, os mais pobres das suas moradias nas periferias e os empurra para mais longe, o que acontece como nos conta Ribeyro: No entanto, na primeira manhã de inverno, um grupo desceu correndo pelaquebrada e entrou na minha casa gritando: –Já estão lá! Já estão lá! – diziam, apontando paracima. –Quem? – perguntei. – A companhia! Começaram a abrir caminho.

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão Subi no ato e cheguei quando os operários tinham botado abaixo a primeira casa. Traziam muitas maquinas. (RAMÓN RIBEYRO, 2007, p.120).

Frente à banalização da violência o ser humano se torna passivo, a narrativa continua até chegar o momento de destruição da casa do Leandro, personagemprincipal, que já está sozinho, sem filhos, sem o único amigo Samuel, cansado de lutar pelo o direito de moradia, pelo direito de cidadania, diante da violência cometida e do estigma de serpobre, de viver na periferia, de serrefugo, passivamente sai da sua casa em busca de um novo chão para morar, mais uma vez, constata que está privado de uma identidade social, recolhe alguns pertences e os únicosque o acompanha são os seuscães. Privados da sua identidade social, isolados dos grupos e em uma situação marginal, também estão os personagens de “Perros en la noche”, que estão apartados do convívio social por causa do papel que exercem na sociedade que não acolhe o diferente. Além disso, se afastam da própria identidade porque já não estão tão certos de quem são. Turco e seu ajudante trabalham para uma empresa cuja função é eliminar os “jodidos”, seres que também não possuem identidadesocial: “yo los destinguía cada vez más de la gente. Tenían esa mirada perdida, esos brazos flojos, esa piel pálida, pero había otra cosa, ese aire traicionero de los jodidos […] –Terminás siendo como ellos, Una basura, un inservible.” (GARDINI, 1983, p.18). Essesseres estigmatizados podem ser lidos como: negros, índios, homossexuais, deficientes. Ambos os contos apresentam personagens masculinos com humanidade, ainda que seja uma humanidade “distorcida”, dentro de uma sociedade desigual e mutável. Sobre essa humanidade, Alfredo Bryce Echenique no decorrer prólogo do livro Sóparafumantes de Ribeyro afirma que: O individuo socialmente desamparado encontra um novo amparo no discurso que o substitui. Dir-se-ia então que o sujeito do drama do subdesenvolvimento ou da modernização desigual pode perder tudo, exceto essa capacidade piedosa de recuperar sua humanidade na imaginação. (RAMÓN RIBEYRO, 2007, p.14).

Essa afirmativa cabe também para o conto de Gardini, que de uma maneiramais sutil, também convida o leitor a entender o processo de formação da perife313

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ria, mesmo que seja através da ficção científica, Gardini denuncia a desigualdade, a exclusão e a solidão que assola essa região das grandes cidades. Neste conto os leitores entram em um mundo que parece de ficção cientifica, mas que com a proximidade do real pode-se especular que seja mesmoreal, jáque aparecem várias misturas, de sociedades ainda periféricas com as quejá possuem maior grau de tecnologia. Imagens oníricas, desumanização, solidão e fracasso dão o tom, a cor, o ritmo à narrativa de “Perros em la noche”, uma grande metáfora da sociedade moderna fragmentada, onde a crueldade, a violência e o prazer em exterminar o que não faz parte do senso comum, impera. Alteridade sem autoridade: o outro em si mesmo A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre nós e eles, entre “eu” e os “outros”. O fato de estabelecer fronteiras, separação, segregação e distinção supõem relação de poder, de autoridade. De um lado estão aqueles que são, que podem e do Outro os que não são, os que não podem. Divide-se e classifica-se o mundo em: aqueles que tem privilégios e os que não tem, os que são civilizados e os que não são e conseqüentemente se estabelece uma hierarquia um tanto quando desigual. Existem os que estão do lado positivo e os que estão do lado negativo, e dentro desses lados, os que podem mais que outros. Ao mesmo tempo em que se diferenciam se identificam. Incapacidade de convivercom a diferença é descriminação, é preconceito, é ter do Outro uma imagem distorcida e errada. Quando fala-se do “Outro”, fala-se de máscara, do outrorosto, dos excluídos, dos estranhos, dos bárbaros, dos ignorados, dos estigmatizados, dos vulneráveis, dos que estão alijados, daqueles que são refugo e que sofrem algum tipo de violência e preconceito, do medo que esse “Outro” causa e do lugar e da posição desse “Outro” no mundo. Se nega-se o “Outro”, nega-se a simesmo, o “eu” não se reconhece, deixa de ter cumplicidade e passa a não admitir a sua própria identidade, a querer aniquilar o “Outro”, a não aceitá-lo. Os dois personagens que exercem a função de exterminadores e recolhedores de cães pela periferia da cidade no conto “Perros en la Noche”, acabam sendo dois iguais que tentam eliminar outros tantos que são iguais entresi. A identidade passa a ser coletiva deixa de ter uma única impressão digital. A alteridade se 314

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confunde com a identidade e vice-versa. Eles existem porque os “Outros” existem e um justifica a existência do outro. O “eu” existe a partir do “Outro”, de como o “Outro” o vê e o percebe. Os personagens que vivem umdeclínio de poder dentro do conto, em um dado momento se perguntam: comoeu vou dialogar com o “Outro” que pode sereumesmo? Ouainda, como dialogo e percebo o “Outro” se eu sou tão bárbaro como o “Outro”? Como dialogo com o “Outro” que está sendo colocado no lugar do eu, quando sou impedido de caçá-lo? Essa interdependência é assinalada durante a narrativa quando o Turco fica decepcionado com a decisão do governo de aumentar os números de hospitais para os “jodidos”, seu chefe tenta consolá-lo dizendo que ainda restam os “cães”, e o Turco responde: “-Por ahora –dijo el Turco–. Un día de estos ponen más centros de rehabilitación y se acabó todo.” (GARDINI, 1983, p.19). A autoridade, a alteridade e a identidade dos personagens ficam afetadas. Eles já não sabem mais o quesão, a quem perseguir, jánão existe uma razão paraviver, para escutar a rádio, para identificar que meliminar. Eles apenas foram, existiram em função do “Outro”. Sem esse “Outro” já não são mais nada, mas estariam salvos se tivessem aceitado as diferenças. A alteridade também fica sem autoridade no conto de Ribeyro quando o governo decide construir um condomínio de luxo na zona periférica onde moram Leandro e os seus vizinhos sem voz, sem direito, sem representação. O governo decide levá-los para maisl onge, a massa aceita a oferta porque nunca usufruíram o direito de terautoridade sobre o lugar onde moravam. O personagem diz: O juiz veio no dia seguinte acompanhado de dois policiais e outros senhores. Apoiado no parapeito falou: –Eu vou acertaristo – disse. – Sinto muito, acreditem. Não podem ser jogados no mar, é evidente. Vamos conseguir um lugar para vocês morarem. […] O juiz regressou. – Quem quiser ir para Pampa de Comaslevante a mão! – disse ele. – Consegui que cedam setelotes de terreno. Dois caminhões vão vir para removê-los. É um favor que a prefeitura faz. Nesse momento me senti perdido. Soube quetodos iam metrair. Quis protestar, mas a voznão saía.” (RIBEYRO, 2007, p. 125, 126)

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Leandro, aquele, que um dia representou os seus iguais, diante da perda da pouca autoridade que tinha perante o grupo não aceita a oferta e prefere buscar, junto com o filho, suaidentidade. Caminha até encontrar outra vez uma figueirabrav aonde fincará o primeiro pilar da sua nova moradia, a sua nova identidade, a sua voz. Finalmente a possibilidade de diálogo entre os dois contos, mostra o conceito prévio que se tem do outro, do que é diferente, da periferia que aumenta em torno dos grandes centros que provoca movimentos separatistas, provoca estranheza, provoca um afastamento e essas ações se tornam violentas quando se tenta impor a visão do que se crê que seja “eu”, a identidade, a normalidade, a igualdade. Os autores em suas narrativas denunciam esses sentimentos que assolam a humanidade há algum tempo, masque se potencializa na época atual. Viver a diferença faz parte do processo de ser humano, mas o homem na ânsia de ser esquece que é a partir do outro, e se enclausura, e despreza. Os personagens e os temas dos contos levam o leitor a acreditar que para se chegar ao que se denomina civilização voltamos, com muito mais intensidade, a um processo de barbárie, atéque se perceba queum interage com o outro, queum tem um laço de interdependência com o outro, que a violência se instala por falta de tolerância e reconhecimento. A humanidade deveria passar por umprocesso de limpeza se reescrever paraa prender que a periferia como alteridade do centro é importante nesse processo de aprendizado e que o outro sou eumesmo, que esse outro tem identidade, tem um lugar no mundo e que, na verdade, alteridade e identidade devem ser vividas sem autoridade. O centro cresce, se desenvolve porque existe a periferia, o eu cresce e se desenvolve porque o outro é possível e provoca a conquista da liberdade de sereu.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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UMA ANÁLISE DAS TRANSFORMAÇÕES DA LÍNGUA EM UM CONTO DE LUANDINO VIEIRA

Tatiana Vieira B. Farias Valéria Muniz

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eterminados escritores, ao se depararem com uma nova realidade a ser tematizada, terminam por precisar de uma língua também nova, a fim de delineá-la melhor. Não necessariamente outra, podendo resultar da fusão de duas línguas diferentes ou da mescla de variações regionais de uma mesma, a língua trará alterações do nível fonológico ao sintático em geral. Para exemplo dessas modificações lingüísticas, há a obra do escritor mineiro Guimarães Rosa, representante da prosa brasileira, que fez escola com publicações como Saragana (contos), 1946 e Grande Sertão: Veredas (romance) 1956.Outro grande escritor a demonstrar essa necessidade é o luandense Luandino Vieira. A seu respeito, diz Ubaldo T Rodrigues: “Para a revelação de um mundo em transformação, Luandino Vieira busca não só novas estruturas narrativas, mas renovados materiais lingüísticos: quimbundismos, sintaxe popular, calão de Luanda, arcaísmos, corruptelas jocosas e simbólicas e sobretudo a neologia” (p145), fundamentando seus estudos no livro Macandumba (1978). Desse modo, a proposta desse trabalho é verificar a aplicabilidade da afirmativa acima no conto do autor intitulado “Estória da galinha e do ovo”, do livro Luanda (1964), procurando, na medida do possível, realizar outras investigações, como a relação do trabalho artístico de Luandino com a busca de sua angolanidade. Antes, verifiquemos algumas informações que podem ser de grande auxílio: “José Luandino Vieira Mateus da Graça, nome civil do escritor José Luandino Vieira, é cidadão angolano, nascido na Lagoa do Furadouro, freguesia do Ourém, na cidade do mesmos nome (Portugal), em quatro de maio de 1935. O nome Luandino, não batismal, começou a ser usado por ele nos escritos e foi averbado legalmente, uma semana depois da independência de Angola (ex-colônia de Portugal), verificada em onze de novembro de 1975” (LARANJEIRA, 1995: 120). O

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poeta soma ao nome primitivo português uma palavra angolana, enunciando sua escolha, seu engajamento e a já existente mistura entre essas culturas. Podemos, assim, explicar o porquê de também procurar nos seus textos vestígios de uma busca por uma certa angolanidade. Abordando a história resumidissimamente, apropriando-nos novamente de algumas palavras de Laranjeira, o conto em questão narra uma história, ou estória, segundo o narrador, passada no musseque Sambizanga, lugares marginais semelhante às favelas cariocas, onde, em geral, a norma oficial só existe para a subversão. Nga Zefa, uma mulher de corpo magro, cheio de ossos, acusa Bina, a vizinha, mais nova, gorda e ainda grávida, do roubo de um ovo, motivo da confusão que se arma. Instaurada a “maka”, a mais velha, Bebeca, procura, com a sua autoridade, resolver a contenda, mas, mesmo através desse instrumento tradicional (o extremo respeito pelos mais velhos), nada se consegue. Na busca pela solução, pede-se auxílio a várias pessoas. Todos personagens típicos do universo colonial mussequiano: Sô Zé, comerciante, todo “defeituoso”: zarolho, magro, de cara enrugada, feia, de riso mau, corpo magro e torto, com apenas de bonito os olhos azuis. Talvez, se possa ter o aspecto dos personagens como uma metonímia do espaço geográfico que os cerca, também transfigurado. Sô Vitalino, burguês colonial, proprietário de várias cubatas. Azulinho, negro assimilado, semi-religioso e semi-letrado. Arthur Lemos, símbolo do espírito burocrata, ex-auxiliar de um notárioum branco decadente, que, de certa forma vive na mesma condição que os negros, casado com Rosália, uma meretriz. O sargento, uma figura gorda e barriguda, com seus dois soldados, como representantes da autoridade. Podemos perceber um pouco da influência naturalista e realista na figuração e tratamento do universo narrado. Todos, com exceção da velha Bebeca, egoisticamente tentam resolver a situação, mas nada conseguem. São os miúdos Xico e Beto, filhos de nga Zefa, usando das habilidades passadas pelo avô, em acordo com a galinha, que resolvem a contenda a favor da coletividade, unida no final contra a ameaça vinda de fora, representada pelo sargento e os demais. É a vitória baseada na esperança do novo, aqui representado pelas crianças, tanto pelas que já mostraram sua força: Xico e Beto, como pelas que só podem mostrar seus desejos: o filho esperado por Bina, ou, mesmo, o ovo, disputado por todos. A esperança está também na história que se inicia num dia comparado ao de uma tempestade e termina com

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um sol mergulhado no mar, pondo “pequenas escamas vermelhas lá em baixo nas ondas mansas da Baía.” (p. 123) Ainda aqui, destacamos a questão temporal. A história se inicia na “hora das quatro horas” (p.99), e, quando se alcança o fim, “Só eram mesmo cinco e meia quase” (p.122). A progressão temporal é semi-nula. Todos os acontecimentos ocorrem no espaço de uma hora e meia “quase”. Além das menções temporais realizadas no início, outras mais claras são feitas unicamente nas partes finais o conto. O decorrer do tempo como que acompanha a evolução dos fatos, lenta, difícil, símile à vida nos musseques. Antes de passar à análise lingüística, é interessante notar a auto-inclusão do narrador no narrado logo no início do conto: “Estes casos passaram […] nestanossa (grifo nosso) terra de Luanda” (p.99). No contexto da produção, isso é mais que um artifício lingüístico para dar veracidade ou outro efeito poético; é uma adesão, assim como a alteração no nome do autor. Começa aqui a busca pela angolanidade, que não é individual, mas, antes, coletiva, “da nossa terra”. Pretendemos revelar o trabalho lingüístico de José Vieira Luandino, nesse conto, a fim de evidenciar o universo angolano. Serão listados apenas alguns casos pertinentes ao léxico, de modo a não tornar exaustiva essa análise. Assim, no conto de Luandino, encontramos algumas figuras de linguagens como: 1) sinestesias- “passou um murmúrio” (p. 102), “o calor era pesado e gordo” (p.122); 2) personificação: “o tempo a fugir para a noite” (p.99), essa tarde estava chamar azar” (p.114); 3) hipérbole: “comido na doença” (p.111); 4) metáfora- “paus de fruta” (p.111), “corpo cheio de osso”(101), “a raiva a trepar na língua”(p.101), “a cara era aquela máscara cheia de riscos e buracos feios”(p.106); 4) metonímia: “e os olhos dele procuraram” (p.112); “fazemos um vintecinco linhas” (p.116). Não são muitas, pois o forte de sua prosa encontra-se nos regionalismos e nas construções inusitadas. Há presença de onomatopéias relacionadas ao cacarejar da galinha. E essas são descritas numa clara aproximação com o linguajar africano: “Ká…Ká…Ká… Ká.. Kakeklela” (p. 101), “Ngêxile kua ngana Zefa, ngala ngó ku kakela” (p.108). Essa “fala” da galinha, como os “miúdos” dizem, revelam que existe uma língua nativa anterior à colonização portuguesa. Poucas criações por justaposição: “vintecinco” (p. 116), “maliducados” (p.118), “cadavez” (p.108) ; algumas sufixações: “mandioqueiras” (p. 101), “Azulinho”

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(p.109); e formas do calão popular: “arreganhava” e “monandengue” (p. 100), “banzada”- “admirado”(p.101), “cubata”- “casebre” (p.101); “mataco”- “região glútea” (p.101) , “makutu”- “mentira” (p.101), “marreco”- “corcunda” (p.106), “gueta” – “coisa sem valor” (p.107), “camuelo” –“mentira” (p.107), “chapada”- “tapa, bofetada” (p.107), “intrujas”- “enganar” (p.110), “quiquerra” – “farinha de mandioca, açúcar” (p.112), “uatobaram”- “fazer troça, zombar” (p.113) , “zaragateiras”- “arruaceiro” (p.119), “chiça”- “porra” (p.120). Além desses termos, presenciamospalavraspuras do kimbundo: “fimba” e “mulemba” (p. 99), “jindungo” (p. 100) e “massambala” (p. 101); e algumas interjeições, como: “pópilas!” (p. 100), “sukuama!”, “tuji” (p. 102), “Aiuê” – “manifestação de dor” (p.111) . Ao lado dessas palavras, também pudemos encontrar algumas poucas de uso mais arcaico ou erudito, como: “escusas” (p.101), “alcunhar” (p.109) e “oiçam” (p.117). É um vocabulário rico, que nos transporta ao universo angolense, ao mesmo tempo em que torna a leitura mais pausada em virtude de serem palavras desconhecidas para nós. Nesse caso, podemos ilustrar o mesmo fato, ocorrido, aqui, no Brasil, com Guimarães Rosa. Muitos leitores sentem dificuldade na leitura de seus livros, em virtude da grande variedade de palavras utilizadas, muitas delas praticamente desconhecidas, além dos muitos neologismos que dependem e muito do contexto da obra para serem compreendidos. Há alguns metaplasmos por supressão, característicos da linguagem oral, como aféreses: “mília” por Emília (p. 111), “bessa” em vez de “à beça” (p. 112), “baralhou” sem o “em” (p.121), “rebento-lhes” sem o “a” (p.100),“me dá ‘mbora”(p. 114), “tá quieta!” (p.121) ; de próteses: “vavô” e “vavó” (p. 100); apócopes: “mamã” (p. 100), “m’ensinou” (p. 108), “Hom’é!” (p.114). São esses os principais fenômenos de natureza morfológica, que em conjunto com as criações sintáticas, bastante freqüentes, imprimem ao conto toda a riqueza da linguagem, característica marcante de José Luandino Vieira. A seguir, será feita análise das construções desse autor, de modo a evidenciar seu estilo. Uma prática muito freqüente é a elipse sistemática do artigo: “falava verdade”, “chamar galinha” (p. 100); da preposição:“que andava guardar” (p. 101), “que muito tempo já andava ver” (p. 103), “estavam atacar” (p.111); da conjunção que: parecia estava ainda” (p. 101), “e falou a Cabíri estava presa” (p. 101), “parecia ainda estava quente” (p.101).Ou, inversamente, como expletiva: “ a pobre nem que tinha força de contar” (p. 103), “já ninguém que sabe como nasceram”(p.99), “Ninguém que lhe ligava”(p.105), “ninguém que tem”(p.105); da mesma forma 322

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acontece com a preposição: “tinha-lhe ensinado de imitar a fala dos animais” (p.100); acréscimo do pronome “se”: “calem-se a boca” (p. 109), ou omissão “Xico e Beto esquivaram num campo”, pronome oblíquo como realce: “então a galinha me nasceu-me doutra galinha” (p.117); “nessa hora, a loja ficava vazia, fregueses não tinha, podiam-lhe deixar assim sozinha”(p.105).Uso da conjunção que no lugar da preposição de: “conversa, conversa e nada que resolveram e, com essa brincadeira[…]”, uso da preposição de no lugar de com: “mesmo que só de dezesseis anos”(p.109). Advérbios substantivados: “sem depressa” (p. 101); preposição “em” como pronome de complemento indireto: “dizia nas outras” (p. 102), dar comida na Cabíri” (p. 103), “queixando no pai”(p.100), “vieram no quintal” (p.100), “saiu nas escondidas”(p.111); complemento indireto por direto: “O ovo, a minha galinha é que lhe pôs” (p. 102), “mas pôs-lhe no meu quintal” (p. 102). Uso de pronome oblíquo como objeto indireto no lugar do dativo de interesse: “ia te pôr um ovo”(p.104).Concordâncias irregulares: “na musseque” (p. 99), “as pessoas paga” (p.113), “você ficas” (p. 121); e troca constante dos processos verbais: infinito por gerúndio: “ficou, então, olhar Beto e Chico” (p. 104), ou mesmo troca de verbos: ir por sair: “saiu embora” (p. 114); passear por ir: “a pobre queria sair, passear embora” (p. 104); “arreganhava o homem era um mole”(p.100); “espetou-lhe o dedo na cara” (p.101); “abanaram a cabeça que sim”(p. 101); e outras trocas afins: “mesmo que dava encontro” (p.111). Fenômenos como esse percorrem todo o conto. Uso do verbo pôr em construções diversas: “ponha sua opinião” (p.105), “quem devia pôr os casos era cada qual”(p.105), “só mesmo vavó é que podia pôr conversa”(p. 112), “estou pôr mentira” (p. 114), “possa!” (p. 117). Há algumas inversões: “uma gorda galinha de pequenas penas” (p. 100); locuções adverbiais ampliadas: “ com depressa” (p. 121), “sem depressa” (p. 101). Uso de ditado popular com intuito de mostrar uma situação sem saída: “A cobra enrolou no muringue! Se pego o muringue, cobra morde; se mato a cobra, o muringue parte!” (p.105). Como se constata, o trabalho lingüístico é mais intenso no nível das relações sintáticas, dando uma atenção maior à sintaxe popular. As criações vocabulares não são tão freqüentes nesse conto, sendo o plano morfológico mais marcado pela seleção vocabular, com uso de regionalismos, em detrimento da criação.

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Considerações finais O trabalho lingüístico no conto é mais um fator de coerência, que se junta ao tempo, ao espaço, ao tema e às personagens no retratar da vida dos musseques. Ao escrever como um angolano, subvertendo a norma, o autor afirma sua condição de escritor angolano e, simultaneamente, a dos angolanos, ao emparelhar literariamente suas realidades à do opressor, não dependendo mais desse para reconhecer a sua cultura. Reivindica, portanto, uma literatura de expressão angolana, assim como tantos outros escritores pertencentes a países que passaram por condição de colônia. Um fato interessante deixa perceber essa condição de Angola numa passagem desse conto. No momento da confusão com o sargento, este, para apartar a briga, justifica que elas, as mulheres, estavam a alterar a ordem pública, pois estavam reunidas mais de duas pessoas e isso, segundo ele, era “proibido!” (p.120). A fim de manter a ordem, a população é proibida de se reunir. Isso transparece uma atitude do governo em evitar a união do povo, em prol de um resgate da identidade, há tantos anos reprimida. Essa opressão precisa ser contextualizada no interior dos problemas políticos vivenciados por Angola na época em que o conto foi escrito, isto é, num momento anterior a independência do país. A língua do colonizador é retroagida à condição de “carcaça” a ser preenchida pela língua do colonizado, atuando agora como veículo da cultura desse. A arma de opressão, reconstruída, converte-se em instrumento de defesa. A nova sociedade, idealizada pelo autor, continuará a ser palco da língua portuguesa, por ser esse o idioma comum a todas as etnias, mas, por ser fruto também da união do povo, será uma mescla da língua falada pelo povo. O autor traz para a escrita palavras da oralidade, numa atitude bilíngüe, numa clara rebeldia aos padrões estruturais impostos pelo regime colonial. Por fim, vale lembrar que esta nova fala não é apenas angolana ou unicamente portuguesa, é uma terceira fala, do terceiro momento da sequência histórica: libe rdade>colonização>liberdade, que, na soma tese-antítese, é a síntese a fluir no continuum da história esperando sua “antisíntese” para se fazer futuro. Um futuro depositado na força do novo a partir dos ensinamentos do passado.

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REFERÊNCIAS

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A CULTURA CHICHA: ASPECTOS RELEVANTES DE UMA CULTURA MARGINAL

Thayssa Taranto Ramírez

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á aproximadamente dois anos, durante o período em que estive vivendo em Lima, costumava parar de vez em quando em frente a alguma banca de jornal para dar uma olhada nas notícias daquele dia. Essa prática, inicialmente despretensiosa, logo se tomaria um hábito, especialmente após o anúncio da trágica morte de uma singela figura de indumentária um tanto quanto extravagante conhecida como la Muñequita Sally. O que mais me impressionou, depois de ler a notícia e todas as publicações subsequentes acerca do fato, foi não tanto a comoção do povo pela perda da artista, mas sim a forma como esta saiu de um quase anonimato à condição de mulher notável, digna de admiração e devoção. Graças ao estardalhaço feito pelos jornais e pela televisão, Sally aumentou grandemente seu número de seguidores, passando a ser vista como um verdadeiro ícone da "música andina contemporânea" após seu desaparecimento. Tal episódio, bastante ilustrativo sobre a capacidade dos meios de comunicação de interferirem na construção dos imaginários populares, despertou-me para a existência de uma dimensão da cultura peruana até então desconhecida por mim. Durante minha passagem por Lima foi difícil não notar os tablóides baratos carregados de sensacionalismo, os programas de entretenimento que garantiam sua audiência devassando a vida privada dos artistas, os tons cintilantes e aquarela da maquiagem das dançarinas dos programas de auditório ou os cartazes verde limão anunciando o show da banda do momento. Decidi, então, investigar a origem dessas manifestações, até que por fim entendi que essa miscelânea de cores berrantes, nomes exóticos e sons dissonantes possuía uma lógica própria e respondia pelo nome de cultura chicha. Inicialmente, a palavra chicha servia para designar apenas uma bebida ancestral feita de maíz e frutas, mas a partir da chegada dos primeiros serranos à capital

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peruana, durante as décadas de 50 e 60, começaria a adquirir novas conotações. Em primeiro lugar, deu nome à música que era produzida por aqueles migrantes nos lugares onde se instalavam, as temidas barriadas, e posteriormente passaria a ser empregada para referir-se a qualquer produto oriundo da indústria cultural massiva. Para além dessas perspectivas, o termo chicha viria a comportar ainda uma gama de sentidos negativos, consequência sobretudo do preconceito existente contra os migrantes de origem andina, em sua maioria pouco instruídos e de hábitos rústicos. Esse fato, somado ao tipo de ambiente onde aquela música era veiculada - os famosos chichódromos, não raro palco de discussões ou de agressão física por parte de seus frequentadores - contribuíram em muito para a estigmatização do termo, o qual acabaria associado a algo marginal, transgressor ou de índole duvidosa. Cabe dizer que esta última acepção afirmou-se grandemente durante o governo de Fujimori, sobretudo se levamos em conta a reeleição fraudulenta do presidente e a manipulação desenfreada de informação por parte dos diários populares. (Quispe, 2000). Paralelamente à dimensão moral, vale dizer também que a palavra chicha evoca ainda uma estética bastante peculiar, sendo associada quase sempre ao mau gosto e ao escandaloso devido à combinação de cores fortes, estampas e estilos diferenciados. Ilustrativos a esse respeito são as vestimentas de alguns cantores e dançarinas, a publicidade feita em tons florescentes e os letreiros em néon de certos estabelecimentos, os quais poderiam se enquadrar perfeitamente no que se convencionou chamar de estética kitsch. Entre as características desse estilo, estão seu anti-elitismo, seu caráter de não-funcionalidade e de trivialidade e sua fácil assimilação, uma vez que seus produtos se inserem na ótica do consumo massivo (Ceia, s/d). Canclini, por outro lado, definiria esse tipo de manifestação como "parte de la disputa por una nueva cultura visual en medio de la terca persistencia de signos del viejo orden" (1992, p.271). Ao reunir diferentes estratos sociais, culturais e étnicos, Lima dispõe hoje de todo tipo de oferta material e simbólica, renovada por uma constante interação com o nacional e o transnacional (Canclini, 1992). Trata-se de uma cidade controversa, em que convivem elementos modernos e tradicionais de uma maneira curiosamente fusionada: exemplo disso é o acriollamento1 dos migrantes andinos e seu acesso às novas tecnologias e por outro lado, a popularização do folclórico, em que danças indígenas são apresentadas em eventos promovidos pelas Processo pelo qual o migrante andino, ao chegar à capital, vai adquirindo hábitos próprios dos chamados criollos, isto é, dos limenhos mais antigos, herdeiros de certa tradição urbana vigente desde o período colonial. 1

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municipalidades, não raro acompanhadas por orquestras modernas com músicos profissionais (Martín-Barbero, 2003). Detentora de um maior desenvolvimento relativo se comparada a outras áreas do país, a capital acabaria se convertendo no principal foco de atração populacional. Motivados pelas precárias condições de vida no campo - oriundas de um elevado grau de concentração da terra, da ausência de oportunidades de emprego e de um contínuo crescimento demográfico - muitos provincianos viram nela uma chance de prosperar economicamente. Além desses fatores, foram determinantes para o movimento migratório o aprofundamento da crise econômica no país com queda significativa do PIB, o crescimento da produção de coca na região da selva e a escalada de violência provocada pelos grupos terroristas, em especial na serra central (INEI, 1995). À medida que estes migrantes iam chegando à capital, aumentava-se a pressão sobre os serviços públicos tais como saúde e educação, mas principalmente criavam-se novas demandas de moradia, infra-estrutura urbana e emprego, as quais o Estado peruano se via simplesmente incapaz de atender. Dessa forma, a ocupação de terrenos vazios em áreas periféricas constituiu-se na única opção para essa massa populacional, que ao estabelecer-se ali inaugurariam os chamados pueblos jóvenes, mais adiante transformados em distritos oficiais2. Ao serem ocupados por estes novos habitantes, porém, estes espaços deixariam de ter uma conotação apenas geográfica para assumir um sentido político, ou seja, tomar-se-iam "algo gerador de raízes e de identidade" (Souza, 1995, p.84). Prova disso é o surgimento da música chicha, que segundo diferentes autores teria se originado em fins dos anos 603, reunindo formas rítmicas e estilos vocais Embora apresentassem condições de vida inicialmente precárias, muitos desses distritos chegaram a converter-se em zonas de grande dinamismo econômico. Entretanto, a falta de incentivos por parte do Estado e principalmente de recursos para investir em seus negócios fará com que esses indivíduos venham a optar pela informalidade, a qual chegará a constituir-se num mundo "paralelo" ao Peru oficial. Segundo estatísticas recentes do Ministerio del Trabajo publicadas no jornal EI Comercio, 74% das microempresas peruanas não estão registradas, daí o país ocupar o segundo lugar na região em economia informal, perdendo apenas para a Bolívia. 3 Embora haja um consenso entre diversos autores quanto à época de seu surgimento, o fato é que a música chicha como se conhece hoje data da década de 80, a partir da aparição de Chacalón. Juntamente com seu grupo, La Nueva Crema, Chacalón foi sem nenhuma dúvida o responsável pelo boom desse estilo musical em Lima, sobretudo em face de inovações no vestuário e no amplo uso da guitarra. Antes de Chacalón, o quehavia eram grupos de inspiração cumbiambera - a exemplo de Juaneco y su Combo, sucesso durante os anos 70 -, o que justifica que essa manifestação musical tenha sido conhecida anteriormente como cumbia-folk, cumbia andina, cumbia peruana, etc. (Leyva, 2005). 2

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e instrumentais pertencentes a vários gêneros. Estão presentes, por exemplo, as inflexões de voz dos cantores de música folclórica, as formas de execução da guitarra do músico mexicano Carlos Santana, a base rítmica que compõe a cumbia, entre outros elementos da moda. Em suma, se constitui num "tejido musical cuyos hilos provienen de distintos y, a veces, contradictorios 'focos' de cultura" (Leyva, 2005, pp. 24-25). Sendo considerada inicialmente uma forma musical monótona e sem criatividade pelos setores populares ligados à tradição urbana limenha, além de ser estigmatizada como uma "música de cholos4", a chicha resistiu a todos os preconceitos, passando logo a ter a sua própria indústria cultural: criou-se um design peculiar para seus discos, apareceram cantores, compositores, editores musicais, coreógrafos, sistemas de distribuição, pontos de venda e etc. (Leyva, 2005). Mais que um estilo musical, a chicha se inscreve num contexto de construção de uma nova identidade pelo migrante andino na capital, contribuindo para a produção de um modo peculiar de viver e sentir o ambiente urbano. Nesse sentido, também a rádio desempenharia um papel relevante, pois ao falar o idioma das massas, este meio não se limita apenas a preencher "o vazio deixado pelos aparelhos tradicionais na construção de sentido" segundo rezam alguns autores (G. Munizaga e P. Gutiérrez apud Martin-Barbero, 2003, p.327), mas nas palavras de Martin-Barbero, representa uma "ponte entre a racionalidade expressivo-simbólica e a informativo-instrumental". Exemplo disso são as emissoras andino-provincianas, de vital importância para os recém-chegados à capital. Ao incluir em sua programação "música da região e felicitações de aniversário, informações sobre festas e acontecimentos da região, atividades do grupo regional na cidade e propaganda dos produtos feitos por pessoas da coletividade" (Alfaro apud Martin- Barbero, 2003, p.329), 4 Cholos é como são conhecidos os serranos que migraram para a capital e os descendentes destes migrantes. Ao estudar o fenômeno migratório em seu ensaio "Lo cholo y el conflicto cultural en el Peru", Aníbal Quijano (apud Balbí, 1997) vai afirmar que o estrato social cholo provém de um processo no qual determinados setores da população indígena, ao serem submetidos a um sistema de dominação social na capital, abandonam elementos de sua cultura, passando a adotar alguns da cultura ocidental criolla. Deconotação altamente pejorativa, o termo já era utilizado pelos espanhóis durante o período colonial para referir-se negativamente aos índios e aos mestiços, como bem observou el inca Garcilazo em seus "Comentarios Reales", mas seuuso só passaria a difundir-se mesmo com o surgimento da República (Flores, s/d). Atualmente, é empregado também em contexto afetivo, embora seu sentido depreciativo ainda permaneça forte.

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estas emissoras cumpririam duas funções: a de orientar o migrante no ambiente desconhecido da cidade e a de mantê-lo ligado ao seu local de origem (Munizaga e Gutiérrez apud Martin-Barbero, 2003). Além desta, Rosa Alfaro vai listar ainda duas outras modalidades do rádio presentes em Lima, as quais revelam a "densidade e a diversidade de condições de existência do popular": a emissora local e a popular urbana. No primeiro caso, tem-se o "uso democrático" do rádio, sendo sua programação notoriamente comercial e voltada para os interesses e necessidades da região. Quanto à segunda, verifica-se uma situação peculiar, pois embora o universo popular seja ali evocado de diferentes maneiras - através do repertório musical, da linguagem empregada e de uma participação expressiva dos ouvintes -, esse movimento se faz sob a direção populista de setores hegemônicos. Nesse sentido, emissoras como Inca AM (substituta da extinta Inca Sat5), Radiomar Plus e Moda nada mais são do que variantes populares administradas por um grande conglomerado radial, a Corporación Radial del Perú. Ao caracterizar-se como uma forma cultural essencialmente híbrida, produto da negociação entre setores populares e hegemônicos em meio a um cenário urbano, a cultura chicha vai contemplar uma infinidade de ofertas simbólicas, diante das quais é impossível manter os ordenamentos e hierarquizações tradicionais. Dessa forma, vão se estabelecendo novas coleções, que ativadas pelos dispositivos de reprodução multiplicam as possibilidades de cruzamento entre diferentes repertórios (Martin-Barbero, 2003). No caso específico da música, mas sem esquecer os mercados cinematográfico e editorial, a conseqüência mais notável é o crescimento da pirataria. Graças ao descaso e muitas das vezes à conivência das autoridades, a pirataria conseguiu se constituir em uma promissora indústria, que ao estabelecer seus próprios sistemas de reprodução e distribuição, alcança atualmente a marca de 98% dentro de toda a produção fonográfica do país6.

5 A Inca Sat, única rádio dedicada inteiramente à "música pop andina", funcionou até meados de 2007, quando foi substituída pela Top FM 107.1 e posteriormente, pela Nueva Q FM. A interrupção de suas atividades veio por decisão da CRP, pois sendo voltada para o público provinciano, não despertava o interesse de grandes anunciantes. Seu fechamento, como não poderia deixar de ser, causou protestos entre artistas e ouvintes, pois através dessa rádio que muitos grupos chicheros e cumbiamberos se fizeram conhecidos. 6 Dado fornecido por Martín Moscoso, chefe do Escritório de Direitos Autorais de INDECOPI (Instituto Nacional de Defensa de la Competencia y de la Protección de la Propiedad Intelectual) com base em cifras internacionais.

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Inversamente ao rádio, a televisão suprimiu as diferenças regionais, padronizando a fala e uniformizando tudo em uma só temporalidade (Martin-Barbero, 2003). Dessa forma, desempenha seu papel de mediadora a partir de mecanismos distintos aos anteriores, que são a "simulação do contato" e a "retórica do direito" segundo Muniz Sodré (apud Martin-Barbero, 2003). Tendo a família como "unidade básica de audiência", a mídia televisiva vai trabalhar de modo a forçar o reconhecimento e a proximidade, os quais se revelarão através do tom coloquial dos apresentadores e da sensação de familiaridade produzida pela imagem. Prova disso são os programas de caráter humorístico e aqueles tratam de temas ligados à farándula chola, a emblemática Chollywood. Constituindo-se na versão chicha da indústria cultural mais famosa do mundo, Chollywood reúne dançarinas aspirantes a atrizes (as famosas vedettes), apresentadores sem papas na língua, comediantes, jogadores de futebol, cantores de cumbia e chicha, entre outras figuras representantes do mundo do espetáculo. Alimentado pelo escândalo e pela fofoca, geralmente motivados por alguma ação ilícita (consumo de drogas, violência contra a mulher, etc), alguma intriga ou algum relacionamento moralmente reprovável, esse universo se aproxima muito ao dos setores populares, e mais especificamente aos espaços da família e da vizinhança. Por outro lado, a impossibilidade de assumir certas atitudes ou comportamentos no dia a dia faz com que estes espectadores tenham pela gente de la farándula uma admiração quase sempre inconfessa, que se manifesta muitas das vezes sob a forma de rejeição ou crítica. Outro aspecto que permeia o universo televisivo é a apropriação de signos do mundo ocidental globalizado, a qual se faz notar especialmente na figura das vedettes. Embora algumas já se encaixem nos padrões de beleza prescritos pela mídia televisiva - notadamente as oriundas da selva e as de ascendência branca - a maioria recorre à cirurgia plástica como uma forma de tomarem-se mais avantajadas, correspondendo assim ao gosto popular. O resultado disso, como não poderia deixar de ser, são mulheres de fisionomia andina, seios norte-americanos e bumbum brasileiro estampando a cada de algum jornal ou dando seu ar da graça em algum programa cômico. Mais do que empregar vedettes, Martin-Barbero (2003) vai afirmar, com base num trabalho de Peirano e Sánchez León, que os programas humorísticos peruanos representam verdadeiras "brechas" em meio à oferta televisiva, pois é no espaço da comicidade que se consegue ver o povo tal qual ele é. Através do

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"mosaico racial", o popular se faz presente na televisão, sendo esses tipos étnicos encarnados por atores que, na maioria das vezes, compartilham dessas origens. Exemplo disso é a sátira ao ex-técnico da seleção peruana, Julio César Uribe, levada a cabo pelo programa "El Especial del Humor" durante o ano de 2007. Interpretado pelo ator Jorge Benavides, o qual pintava o rosto para encenar a figura do controverso treinador, Uribe era tipificado como um profissional falido que, ao ser destituído de seu posto, passava a vender tamal e a varrer as ruas para sobreviver, ocupações típicas de negros no imaginário popular. Da mesma forma, não poucas foram as vezes em que se zombou do ex-presidente Alejandro Toledo, sobretudo em função de suas aventuras amorosas, de seu gosto pela bebida e da negação de sua origem andina, a qual lhe rendeu a irreverente alcunha de Choledo. É, portanto, através da paródia e da caricatura que certas autoridades, personalidades e setores sociais são questionados e ridicularizados pelas classes populares, cuja principal arma está na linguagem acriollada, estrategicamente utilizada para confundir o outro. Como já dizia Canclini (1992, p.326), "ante la imposibilidad de construir un orden distinto, eregimos en los mitos, la literatura y las historietas desafios enmascarados. La lucha entre clases o etnias es, la mayor parte de los días, una lucha metafórica". Caminhando lado a lado com a televisão está a imprensa sensacionalista, a chamada prensa chicha, magistralmente abordada por Juan Gargurevich em sua obra "La prensa sensacionalista en el Perú" (2002). Embora o jornalismo popular encontre seus primórdios na publicação do tablóide vespertino Última Hora, editado no ano de 1950 pelos mesmos donos de La Prensa, diário representante dos interesses de grandes latifundiários, foi somente a partir do surgimento do tablóide El Popular que o periodismo chicha se consagrou, em meados dos anos 80. Constituindo-se no primo pobre do jornal La República, essa publicação inaugurou um padrão que se estenderia posteriormente a outros diários de cunho popular: esteticamente, a utilização do formato tablóide, o abuso de cores fortes e a presença de letras garrafais na primeira página, bem como de vedettes seminuas quase que obrigatoriamente fotografadas de costas. Quanto ao conteúdo, há uma notória inclinação por temas mórbidos ou do mundo do espetáculo, reunidos em um número mínimo de páginas e disponíveis em uma linguagem notoriamente coloquial. Além dessas características está o baixo preço, o que o toma ainda mais atrativo para os segmentos menos favorecidos, interessados mais em seu caráter de entretenimento que de informação.

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Após o advento de El Popular, muitos outros diários de inspiração chicha tiveram lugar nas bancas de Lima, especialmente em função da crise política e social produzida durante o período em que Fujimori esteve no poder. Dessa forma, nasceram jornais como El mañanero, El chino, El tío, La Reforma, El chato e La yuca7, os quais eram abertamente manipulados pelo governo em conjunto com alguns canais televisivos, fazendo campanhas de oposição aos inimigos do regime. Diante desse quadro, pode-se afirmar que grande parte da população de Lima hoje é composta de um setor que, na ausência de um Estado que fizesse frente a suas demandas, não teve outra solução que não fosse negociar com o sistema imposto, por vezes rebelando-se contra ele e por outras se adaptando. Por conta dessas inúmeras transformações, as quais incorreram em mudanças irreversíveis no que se que se refere à visão de mundo, à sensibilidade e à linguagem desses indivíduos, alguns estudiosos vão lançar sobre essa nova manifestação cultural um olhar pessimista, produto sobretudo de uma visão romantizada e anacrônica do andino. Sobre a música chicha, por exemplo, R. Montoya expressará sua opinião: […] del encuentro entre lo andino quechua y lo moderno a través de la chicha, la cultura quechua se empobrece, porque sencillamente pierde mucho más de lo que gana. Pierde el quechua y la poesía que se deriva del dominio de esa lengua; pierde el valor de la comunidad y el principio de reciprocidad que aquella encierra […] (MONTOYA, apud LEVYA, 2005, p. 26).

Evidentemente, trata-se de uma perspectiva limitada na medida em que parece não considerar a nova realidade no qual esses indivíduos estão inseridos e as necessidades surgidas a partir de uma interação com ela. Em segundo lugar, se equivoca porque vê na cultura quechua uma autenticidade que, por exclusão,

7 Sem guardar nenhuma relação com o processo comunicativo em si, o nome desses jornais não raro tem origem na linguagem coloquial ou estão associados com a picardia, evidentemente buscando chamar a atenção do público. El mañanero, por exemplo, faz alusão às relações sexuais que se tem logo ao despertar, enquanto que El chino, El tío e El chato se referem claramente ao aspecto físico de Fujimori. Mas talvez o caso mais interessante seja o do tablóide La yuca, batizado assim pelo fato de o ex presidente, sendo engenheiro agrônomo, haver-se apresentado durante uma reportagem acompanhado do referido tubérculo. A partir de então teria origem não só o jornal, mas igualmente a expressão meter la yuca, que na linguagem coloquial significa algo como joder ou estafar, à semelhança do que fazia com o país à época.

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acaba relegando a chicha à condição de "deformação profanatória", para usar as palavras de Martin-Barbero (2003). É possível dizer, inclusive, que se trata de um etnocentrismo às avessas, uma vez que não se atém ao sentido do desenvolvimento daquela cultura e à sua capacidade de mutar-se frente a diferentes contextos sociais. Mas ao contrário do que pressupõem tais teóricos, a cultura chicha, muito além de ser um mero produto de manipulação ou de contaminação cultural, é sem sombra de dúvida uma forma de resistência, pois como diria Carlos Monsilváis (apud Martin-Barbero 2003, p.281) "As classes subalternas assumem, porque não lhes resta alternativa, uma indústria vulgar e pedestre, e certamente a transformam em auto-complacência e degradação, mas também em identidade regozijante e combativa". Outro traço interessante dessa manifestação cultural é a sua capacidade de oferecer àqueles novos limenhos "una matriz de desorganización-organización de las experiencias temporales más compatibles con las desestructuraciones que suponen la migración, la relación fragmentada y heróclita con lo social" (Canclini, 1992, p. 340). Mas apesar de incluir uma parte significativa da população e de expressar como nenhuma outra forma cultural as "forças dispersas da modernidade" peruana (Canclini, 1992), a cultura chicha ainda não vigora como parte do imaginário oficialmente construído, o qual continua dividindo-se entre os signos do popular criollo e as imagens do mundo andino, aplicados segundo a conveniência e o contexto. A partir de uma perspectiva interna, percebe-se que a identidade nacional está invariavelmente atrelada ao discurso hegemônico do criollismo, o qual sempre se reportará a uma elite branca independentemente de todos os esforços para associá-lo a setores mais humildes. Exemplo disso são algumas canções criollas como "Pobre obrerita" e "Felipa, la tomatera”, que embora se refiram a personagens que ilustram a pobreza urbana, são consumidas apenas por um seleto público herdeiro da tradição jaranera limenha. Na medida em que é visto de fora, isto é, pelos olhos da imprensa e da mídia estrangeira, a identidade nacional passa a configurar-se a partir da cultura andina, sendo os peruanos associados quase sempre a seus antepassados incaicos. Essa fórmula, estrategicamente adotada pelas instituições do país com fins de incentivar o turismo, acaba convertendo as culturas indígenas em espetáculo, uma vez que força sua estereotipagem. E embora inserido num contexto de modernização urbana, nota-se que o "primitivo" ocupa aí uma posição de subordinação, pois sua

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relevância se encontra unicamente na quantidade de divisas que ele possa gerar, isto é, no seu caráter de mercado. Um último ponto é seu aspecto ideológico, pois ao ser exaltado como capital cultural comum pelo Estado, busca "fazer frente à fragmentação social e política do país" (Martin-Barbero 2003, p.274). É por essa e outras razões que a cultura chicha continua excluída no que se refere às representações nacionais, sendo em conseqüência disso poucas vezes abordada pela indústria cultural "séria" e menos ainda, problematizada. As raras produções que existem são de origem televisiva, a exemplo de séries dedicadas ao público cholo - a maioria de caráter biográfico, a exemplo de "Chacalón, el ángel del pueblo", "Dina Páucar, la lucha por un sueño", "Néctar en el Cielo" e mais recentemente "Sally, la muñequita del pueblo" - e algumas novelas, das quais somente "El Cholito", transmitida no início deste ano pelo canal Frecuencia Latina, mereça talvez algum comentário. Cabe dizer, entretanto, que o cholo representa hoje o setor mais dinâmico da sociedade peruana, em todas as esferas da vida nacional: na economia, com sua inventividade e iniciativa que se mantém a despeito das crises; na cultura, com sua abertura aos signos da modernidade mas ao mesmo tempo, com um notável continuísmo que se manifesta sobretudo através do cultivo de práticas milenares; e na política, ao optar por candidatos quase sempre desconhecidos do grande público, como uma forma de fazer frente ao sistema criollo. É por todos esses motivos que sua cultura merece ser reconhecida por essa sociedade e mais do que isso, integrada a ela com todas as suas idiossincrasias.

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REFERÊNCIAS

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O CONTRAPUNTEO DE GUILLÉN DA TESSITURA SIMBÓLICA DA IDENTIDADE ANTILHANA Wanessa Cristina Ribeiro O contrapunteo define o cubano, a partir do cubano, em um discurso cubano e mediante uma metodologia cubana. Roberto Gonzaléz Echevarría

A

inda que possa parecer enfática a afirmação, do crítico cubano Roberto González Echevarría, permite ilustrar a justificativa ao título proposto no presente trabalho. Tomo a liberdade de denominá-lo contrapunteo, em um intento de aproximar-me do sentido que tal palavra adquiriu no contexto musical. O vocábulo contrapunteo se apresenta como um cubanismo do termo contrapunto, e denomina a técnica musical através da qual se combinam partes ou vozes simultaneamente resultando em uma textura harmônica. Assim sendo, pretende-se associar o sentido original da palavra, que se refere ao conteúdo verbal de uma disputa, à sua conotação musical para transformar tal expressão em uma metáfora do processo de criação poética de Nicolás Guillén (1902-1989). Ao embalar o passado histórico e cultural de seus ancestrais, Guillén não faz menos que figurar ponto contra ponto os elementos que, entrelaçados, apresentam-se como em um contraponto musical (balada) na tessitura simbólica da identidade nacional antilhana. Para tanto, analisaremos a composição poética “Balada de los dos abuelos”, publicada em West Indies no ano de 1934. Composição cujos referenciais nos remetem a elementos próprios de diversas culturas, com a intencionalidade histórica de representar em seus versos o processo que desencadeou no fenômeno transculturador. Antes de seguir com as considerações sobre os conceitos a serem aplicados ao longo da análise, cabe ainda dissertar a respeito da significância de Nicolás Guillén no cenário histórico-literário cubano. Quando se centra o tema da discussão no que chamamos poesia negra ou negrista, tem-se Nicolás Guillén como um dos principais poetas que refletiram e ajudaram a consolidar, através de seus escritos, a identidade nacional cubana. 338

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Guillén começou a publicar seus versos por volta de 1917 e dividiu suas publicações entre a lírica e o jornalismo. Sua poesia é herdeira das composições patrióticas de Jose Maria Heredia (1803-1839), precursor do processo de revolução na ilha de Cuba; e dos escritos de José Martí (1853-1895), nos quais o clamor da nação em marcha em direção à independência se propaga. Está situado no terceiro momento do processo da independência de Cuba atuando como a voz de uma nacionalidade em vias de se consolidar. A poesia de Guillén está carregada de imagens presentes no imaginário popular antilhano. Em vez de escolher esta ou aquela expressão o poeta, qual um alquimista, formula em seus versos uma poderosa e melodiosa ferramenta para questionar a realidade, o contexto vigente. Enfim, é a prova humana de que historia e poesia em Cuba, desde Heredia, são uma mesma expressão quando o poeta tenha suas veias atreladas às de seu povo. Sempre que, como afirmava Pablo Neruda, se tenha uma pacto de amor com a formosura e um pacto de sangue com seu povo, teremos uma obra tão significativa como a de Guillén. Transculturação: história e ampliação de um conceito La verdadera historia de Cuba es la historia de sus intrincadísimas transculturaciones Fernando Ortíz Para dar continuidade aos estudos propostos no presente trabalho, cabe situar no tempo e espaço, as condições em que se instituiu o conceito-chave que o fundamenta. O termo transculturação, proposto pelo antropólogo e músico Fernando Ortíz foi publicado, primeiramente, em 1940. Neste ano, entra em vigência na ilha de Cuba a Nova constituição da República. Nascido como um conceito pertinente ao campo etnográfico, o termo transculturação definia, segundo Ortíz, o vocábulo mais adequado para […] expressar melhor as diferentes fases do processo transitivo de uma cultura a outra, porque este não consiste somente em adquirir uma cultura distinta, que é o que a rigor indica a voz anglo-americana acculturation, mas sim que o processo implica também, necessariamente, a perda ou desarraigo de uma cultura precedente, o que se poderia denominar uma

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares parcial desculturação e, além disso, significa a criação de novos fenômenos culturais que foram denominados neoculturação. Por fim, como bem sustenta a escola de Malinowski, em todo abraço de culturas sucede o mesmo que na cópula genética dos indivíduos: a criatura sempre possui algo de ambos os progenitores, porém é sempre distinta de cada um dos dois. Em conjunto, o processo é uma transculturação e este vocábulo compreende todas as fases de sua parábola. (ORTÍZ, 2002, p. 260).

Mais que consagrar um neologismo, e substituir várias expressões correntes como “câmbio cultural ou “osmose de cultura”, o antropólogo cubano desejava com a publicação de Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar (2002) apresentar um estudo do nacionalismo econômico e seus reflexos na sociedade cubana e fazer dele uma “nova sugestão para o estudo de Cuba e suas peculiaridades históricas”. No entanto, a difusão do conceito proposto por Ortíz foi muito além da análise sociológica da realidade cubana. Tomou proporções continentais e abarcou não só a história, mas também a compreensão da temática literária latino-americana. O crítico uruguaio Ángel Rama, em seu livro Transculturación narrativa en América Latina (2001), aplica o termo transculturação ao campo dos estudos culturais com o fim de “neutralizar os efeitos nocivos ou alienantes causados pela modernização”. (RAMA, 2001:22) De tal modo, Rama pode vislumbrar que o processo transculturador se compunha através de algumas etapas. Uma parcial desculturação, aplicável tanto a cultura como ao exercício literário, ocorrida em diversos graus e capaz de afetar várias zonas; a incorporação de elementos próprios da cultura estrangeira e, finalmente, o intento de recompor os elementos de ambas as culturas em uma nova concepção da mesma. Tem-se, portanto, a partir de Rama, a possibilidade de trabalhar com o conceito fundamentado por Fernando Ortíz também no contexto literário. Tal ampliação causou um significativo impacto nos estudos culturais da época. Tornou-se até, em análises pouco densas, um sinônimo para mestiçagem ou hibridismo. Termos que nomeiam apenas o resultado do processo que implica a mescla de etnias, diferente do termo de Ortíz que contempla o acontecimento de maneira mais ampla. Contudo, no que concerne ao estudo de Cuba, não é possível aplicar o vocábulo transculturação como um simples cognato do produto de uma mescla de etnias. Como já exposto, na introdução do presente estudo, história e poesia em 340

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Cuba se traduzem em uma mesma expressão. Em conformidade com o acima exposto temos a seguinte afirmação de Ortíz: Em todos os povos a evolução histórica significa sempre um trânsito vital de culturas em ritmo mais ou menos lento ou veloz; porém em Cuba foram tantas e tão diversas, em posições de espaço e categorias estruturais, as culturas que influenciaram na formação de seu povo, que esse imenso amestiçamento de raças e culturas sobrepõe, de maneira transcendente, a qualquer outro fenômeno histórico. (ORTIZ, 2002, p. 255).

A poesia de Nicolás Guillén, como expressão de vida do povo cubano, alcança perfeitamente o intento de Ortíz ao propor o conceito de transculturação, afirmando que este vocábulo “expresaria os variadíssimos fenômenos que se originaram em Cuba através de complexas transmutações de cultura que lá se verificam, sem as quais se torna impossível entender a evolução do povo cubano em todos os níveis sociais.” (ORTIZ, 2002, p. 254). A transculturação como recurso da criação poética1 No par de versos, que inicia o poema “Balada de los dos abuelos”, contemplam–se duas sombras, vistas unicamente pelo sujeito do poema, a escoltá-lo: Sombras que sólo yo veo, me escoltan mis dos abuelos Após tal consideração observa-se a composição imagística de cada um desses ancestrais: o avô branco e a avô negro. Cada um em seu território, com suas peculiaridades culturais que futuramente seriam transformadas. Desvela-se primeiro a imagem do avô materno. Lanza con punta de hueso, tambor de cuero y madera: mi abuelo negro.

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Todos os fragmentos da poesia se encontram em (GUILLÉN 2005, p. 58-60).

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Os elementos “lanza”, “punta de hueso” e “tambor” conotam a origem do guerreiro africano. A lança é empunhada por heróis. Ao descrevê-la como um artefato pontiagudo, confere poder a quem a detém. A ponta de osso confirma a origem do combatente. Trata-se de um líder guerreiro e herdeiro das tradições africanas. O tambor, além de ressaltar a influência africana, atua como símbolo de arma psicológica: seu ruído se aproxima ao do trovão e ao do raio, desfazendo internamente toda a resistência do inimigo. Sua presença também sacraliza o acontecimento da guerra, já que se utiliza o tambor para invocar a descida das bênçãos celestes em favor das causas de um povo. Em seguida, temos a caracterização da figura do avô paterno. Gorguera en el cuello ancho, gris armadura guerrera: mi abuelo blanco. Este se encontra com sua “gris armadura guerrera” e sua “gorguera”. Ao atribuir ao pescoço de seu avô branco o adjetivo “ancho”, o poeta constrói tal figura como detentora de extensa força vital. Tal hipótese pode ser baseada no fato de os likoubas e likoualas do Congo considerarem o pescoço a morada primeira das articulações do ser humano. Nela circula a energia geradora, por meio do jogo das articulações2. O sujeito do poema representa o resultado da fusão de duas fortes lideranças. Descende de dois guerreiros que parecem desempenhar, em seus territórios, posições de poderio e realeza. Em seu avô branco, vislumbra-se uma armadura que protege o seu corpo dos males, já o avô negro aparece, como se verá em seguida, despido, o que pode torná-lo mais vulnerável em um confronto. Os versos seguintes dão continuidade à descrição iniciada na primeira estrofe do poema. O eu - lírico destaca o corpo de seu avô negro: Pie desnudo, torso pétreo los de mi negro;

Entende-se que as articulações permitem a ação, o movimento, o trabalho. Simbolizariam, segundo tais crenças dos povos do Congo, as funções necessárias à passagem da vida à ação. In: Dicionário de Símbolos.

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O “pie desnudo” sugere um maior contato do guerreiro africano com a sua terra. Já o tronco recebe o adjetivo “petreo” com o intuito de atribuir ao corpo do guerreiro africano a resistência de uma pedra, simbolizando também o marco de uma civilização. Quando a descrição é sobre o avô branco o sujeito poético ressalta o olhar que se mostra como “pupilas de vidrio antártico”, possível alusão ao mar. Espaço que possibilitou a chegada dos conquistadores. Um mar azul como as pupilas do avô branco, pelas quais pode depreender um novo campo de visão: a terra a ser colonizada. pupilas de vidrio antártico las de mi blanco! O poema de Guillén trata de duas vozes cansadas e caladas pelo triste espetáculo da guerra as quais ecoam na memória de um indivíduo, cujos ancestrais travaram longos combates em um passado distante. O que se ratifica quando consideramos a interrogação de Walter Benjamin: “Não existe, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?” (BENJAMIN, 1995, p. 225). Em um mesmo lugar cada figura experimenta uma sensação diferente. Como afirma Kevin Lynch, em seu livro A imagem da cidade. As imagens ambientais são as resultadas de um processo bilateral entre o observador e seu ambiente. Cada pessoa depreende, organiza e confere significado singular ao que é visto. Lynch afirma também que “[…] a cada instante há mais do que o olho pode enxergar, mais do que o ouvido pode perceber, um cenário ou uma paisagem esperando para serem explorados.”(LYNCH, 1982, p. 1).Nada seria vivenciado em si mesmo, mas sempre em relação aos seus arredores, às sequências de elementos que a ele conduzem, à lembrança de experiências passadas. Comprova-se o anteriormente dito com o seguinte fragmento:

Africa de selvas húmedas y de gordos gongos sordos… --¡Me muero! (Dice mi abuelo negro.) Aguaprieta de caimanes, verdes mañanas de cocos… --¡Me canso! (Dice mi abuelo blanco.) Oh velas de amargo viento, galeón ardiendo en oro… --¡Me muero! (Dice mi abuelo negro.) ¡Oh costas de cuello virgen engañadas de abalorios…! 343

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--¡Me canso! (Dice mi abuelo blanco.) Perpetuam-se no sujeito poético as impressões de um “abuelo negro” que morre com o duelo e de um “abuelo blanco” que se cansa em territórios a serem conquistados por seu povo. A memória do avô negro registra uma paisagem de “selvas húmedas” de onde parte um “galeón ardiendo en oro”. Em contrapartida, um cansado avô branco contempla “costas de cuello virgen” e “verdes mañanas de coco”.Do duelo travado entre o sangue negro e o branco este último sai como vencedor, ainda que fatigado da guerra e da distância que o separa de sua pátria. ¡Oh puro sol repujado, preso en el aro del trópico; oh luna redonda y limpia sobre el sueño de los monos! O “puro sol repujado” e a “luna redonda y limpia” são espectadores oniscientes desse cenário. Contemplam a dor e o cansaço de cada ânsia. Escutam as preces de todos os personagens desse capítulo da história de dois povos. História que se eterniza no corpo e na memória de um poeta. Memória que surge graças às reminiscências que fundam a cadeia da tradição, transmitindo os acontecimentos de geração em geração. Por ela se dá a propagação da memória. O ouvinte pode então participar do que foi vivido, confirmando as acepções de Walter Benjamin ao enunciar que “[…] quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia.” (BENJAMIN, 1995:213). Assim sendo, uma voz segue o canto relatando o passar dos dias na terra colonizada e todo o horror presenciado nos navios negreiros. Qué de barcos, qué de barcos! ¡Qué de negros, qué de negros! ¡Qué largo fulgor de cañas! ¡Qué látigo el del negrero! Piedra de llanto y de sangre, venas y ojos entreabiertos, y madrugadas vacías, y atardeceres de ingenio, y una gran voz, fuerte voz, 344

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despedazando el silencio. ¡Qué de barcos, qué de barcos, qué de negros! Voz que pode ser entendida tanto como a expressão do colonizador, bem como a voz que surge da dor e da rebeldia em face de tal situação. Encerra-se, no poema, a gênesis da mestiçagem. A estratégia de Guillén insere todos os elementos que compõem esse processo: a imigração branca com o propósito de colonizar; a forçada imigração negra; a produção açucareira como base da economia colonial; a escravidão.O par de versos que aparece no início do poema é retomado para aproximar as duas imagens. Sombras que sólo yo veo, me escoltan mis dos abuelos Tal recurso confirma o título dado ao poema. Ao atribuir à composição o título de balada, o poema de Guillén aproxima-se à acepção dada ao termo. Além de possuir um estribilho, como na definição histórica3 assemelha-se à acepção dada recentemente ao mesmo vocábulo. Por influência anglo–saxônica, o sentido da palavra ampliou-se, passando a designar também “una canción que cuenta la vida de una persona o algunos hechos precisos”. Em seguida temos o início da integração entre as duas tradições: a africana e a europeia. É o prenúncio do fim das diferenças entre os guerreiros. “Don Federico”, que grita, e “Taita Facundo”, que cala, sonham “en la noche”. Noite pode denotar tanto a ideia de escuridão e morte como referir-se à noite ancestral, a instauração do não-tempo. O eu-lírico afirma que seus avós seguem por essa noite a sonhar. O que pode corroborar com a ideia de morte como redenção do indivíduo. Don Federico me grita y Taita Facundo calla; los dos en la noche sueñan y andan, andan.

Historicamente Balada se define como “una forma fija del lirismocortesano del final de la Edad Media, que aparece en el sigle XIV. Diccionario ERA.

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O corpo do eu-lírico é o elemento que permite a síntese desses dois guerreiros em um só corpo: “Yo los junto”Os quatro versos que encerram o poema tratam de uma série de ações a serem realizadas pelos dois guerreiros: gritan, sueñan, lloran, cantan. Sueñan, lloran, cantan. Lloran, cantan. ¡Cantan! A ausência de uma conjunção aditiva entre o penúltimo e o último verso da referida estrofe, sugere uma união que se mostra eternizada pelo uso de vírgulas ao enumerar tais ações que, combinado com o recurso poético da aliteração trazem à poesia uma conotação fono-semântica importantíssima, confirmando o título da composição e contribuindo com a musicalidade. Segundo Walter Benjamin, […] a ideia da eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica. Morrer era um episódio público na vida de um indivíduo e possuía caráter altamente exemplar. É no momento da morte que a sabedoria do homem e, sobretudo sua existência vivida assumem pela primeira vez uma forma transmissível. (BENJAMIN, 1995, p. 207)

Ainda que mortos, a história de cada avô do poeta permanece viva no coração de seus descendentes e na memória de cada um que pôde tomar conhecimento de suas experiências. O que se vislumbra perfeitamente se considerarmos a seguinte afirmação de Benjamin: Contar história sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido (BENJAMIN, 1995, p. 205).

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A REALIDADE SEGUNDO A POLIFONIA OU A POLIFONIA SEGUNDO A REALIDADE: POSSIBILIDADES TÉCNICOESTÉTICAS Yann Carlos de Almeida O sonho é um ponto de vista. É um lugar de onde se vê. O pesadelo é um jeito de encarar o medo com olhos de quem sonha. (CARVALHO, apud PINTO, 2003, p.81).

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presente trabalho versa sobre a técnica polifônica na literatura sob o ponto de vista da informação acerca da “realidade”. E como diferentes pontos de vista podem contribuir para ampliar o horizonte de significações ou como um mesmo objeto observado pode receber diferentes sentidos de acordo com os seus observadores. Assim, estas questões serão pensadas sob o prisma da leitura das obras Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez, e Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. Iniciar-se-á com algumas considerações sobre os livros e sobre os termos “realidade” e “polifonia” e, em seguida, será apresentado uma análise dos livros destacados a partir desses conhecimentos teóricos. Crônica de uma morte anunciada Publicado em 1981, Crônica de uma morte anunciada, ficção do colombiano Gabriel García Marquez, é uma narrativa fragmentada constituída a partir de relatos orais e verbais coletados por um cronista sobre a violenta morte de Santiago Nasar a fim de esclarecer esse crime e, assim, provar a inocência do morto. Essa crônica, escrita ficcionalmente pelo filho da madrinha de Santiago e amigo íntimo do mesmo, cujo nome não é identificado, é formada por cinco capítulos que se complementam, mas que não possuem um enredo linearmente cronológico, por exemplo, o capítulo dois não continua o enredo do capítulo um. As narrativas dos capítulos interpenetram-se em alguns pontos, o que gera novos significados a

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cada repetição de ação através do acréscimo de informações dessas várias narrativas de um mesmo objeto; e, em outros pontos, estas são totalmente diversas, que, por sua vez, amplifica as significações através do contexto espaço-temporal, isto é, através das ações que ocorrem paralelamente à narrativa principal. A história gira em torno do assassinato à facadas de Santiago Nasar pelos gêmeos Pedro e Pablo Vicário. Isso acontece porque Bayardo San Román, um rico forasteiro, casa-se Ângela Vicário, moça de origem humilde, e em sua noite de núpcias Bayardo descobre que Ângela não é mais virgem. Este a devolve a sua família e, na mesma noite, os irmãos de Ângela decidem matar Santiago Nasar porque ela o acusa de roubar sua honra. Eles eram muitos cavalos O livro Eles eram muitos cavalos, escrito por Luiz Ruffato, é uma reunião de 71 textos, dos quais apenas os 69 primeiros são numerados. Os “gêneros” dos textos são inúmeros: diálogos, anúncio de revista para procura de parceiros (quer para um relacionamento sério, quer para prostituição), horóscopo, cardápio, lista de livros de uma estante ou de vagas de emprego, folheto com oração de Santo Expedito, carta de uma mãe ao seu filho, diploma de batismo, retângulo negro que cobre toda a página, além de “típicas” narrações em 1º ou 3º pessoa. Os temas desses textos estão naturalmente na mesma proporção da sua variedade. O autor utiliza também uma sucessão de recursos de formatação de texto: fontes diferentes e com tamanhos variados, em itálico, negrito; recuo de alinhamento do texto nos mais diferentes pontos da página, entre outros. Isto é, Eles eram muitos cavalos é uma complexa ficção pela sua heterogeneidade. Ele, pois, valoriza a pluralidade de olhares com toda sorte de ideologias e, aproximando os gêneros, dilui as fronteiras de classificação. E tais tênues fronteiras literárias, por sua vez, conduzem o leitor ao aperfeiçoamento do processo de leitura textual e, logo, de leitura do mundo. Uma diferente argumentação a favor da diversidade. “Realidade” e “polifonia” Cumpre distinguir o termo “realidade” que aqui se opõe à definição de “ficção”. “Realidade” é aquilo que existe de fato, tudo aquilo que é perceptível aos sentidos

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humanos e manipulado racionalmente como informação acerca do mundo físico e até do metafísico. Porque “A realidade […] concretiza-se a partir do momento em que há uma racionalidade para dizê-la, ajustando-a a parâmetros que nos permitem imaginá-la através de signos codificados e decodificáveis […]” (PINTO, 2004, p. 102). E “ficção” é, pois, uma obra de arte criada segundo a “realidade” e que apesar de mimética não é mais do que uma representação de sua origem, a “realidade”. A realidade, portanto, é percebida segundo cada observador – nome genérico para o indivíduo que utiliza todas as suas faculdades mentais/sensoriais para interpretar o mundo. Ela altera-se, assim, dentro de cada um dos intérpretes (será necessariamente dentro?) porque a interpretação do mundo sensível pode ser múltipla – e esse é o ponto de origem das culturas. E a literatura faz-se oportuna e naturalmente um simulacro porque a partir do observável constrói imagens, mundos paralelos. Tais “realidades paralelas” já não estão subjugados pela lei inexorável do tempo, ao contrário, usam dela apenas quando lhe convém. E a “polifonia” deve ser entendida como uma possibilidade técnica de apresentar mais de uma “voz” na narrativa. “Voz”, dessa forma, é a expressão individual resultante da percepção da “realidade”. Enquanto, a visão de um narrador implica em um único ponto de vista – o que simplifica a narração e aproxima-se do conceito de alienação (imposição de apenas um ponto de vista) –, a polifonia apresenta mais olhares simultâneos sobre o mesmo objeto – o que o torna complexo, mais próximo do real. Ou seja, a verdade passa a uma verdade, o que era hegemônico, torna-se um dos fios que formam as espessas cordas do conhecimento humano. Assim, a própria definição de “verdade” precisa ser revista porque seu comum grau absoluto é relativizado. A verdade, segundo a polifonia, é dependente do ponto de vista de quem observa, é variável segundo as vozes dispostas pelo narrador. O narrador polifônico, portanto, abandona seu antigo cargo, sai do palco e traz ao foco os atores, aqueles que dizem o que ele deseja, porque sua função agora é dirigir, escolher as vozes que melhor servem de meio para seu fim. (O que pode ser um instrumento muito mais sofisticado de alienação.) Em literatura, a polifonia é um atributo da arte contemporânea. A voz narrativa multiplica-se na tentativa de alcançar mais da “realidade” – utopia essencial da arte literária – pela representação, codificação. Isso resulta no aprimoramento dessa representação e na oportunidade sempre válida de questionar (dubito ergo sunt)a realidade criando modelos de reconstrução para diversos aspectos do mundo sensível.

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Eis a análise das ficções em destaque a partir dos reflexos destes pensamentos anteriores: Como já foi dito, Crônica de uma morte anunciada é escrito ficcionalmente pelo amigo íntimo do morto Santiago Nasar e esse escritor ficcional, cujo nome não é comunicado, quer através de seu texto esclarecer os fatos ligados a este assassinato. O narrador/escritor/personagem (NEP) é um “ser humano ficcional” típico, com suas limitações físicas, temporais, etc. E a origem do conhecimento expresso no texto é própria experiência do NEP, o sumário da polícia e conversas/ interrogatórios com as testemunhas do crime. Por exemplo, Os irmãos Vicário entraram às 4h10m. A essa hora só vendia coisas de comer, mas Clotilde Armenta vendeu-lhes uma garrafa de aguardente, não apenas pelo apreço que sentia por eles, mas também porque estava muito agradecida pelo pedaço de bolo de casamento que recebera. (GARCÍA MÁRQUEZ, 1981, p.81).

O NEP não é onisciente nem estava presente para saber o que ocorreu. O que significa que esses acontecidos não foram interpretados diretamente da realidade, mas da narração de Clotilde Armenta para o NEP. E, é assim que é constituída a maior parte desse texto, de vozes alheias ao NEP, ora transcritas, ora re-criadas linguisticamente por ele. Segundo a classificação de narrador de Walter Benjamin, a saber, clássico, romântico e jornalista, o NEP passa por todas essas, ora tece considerações sobre os fatos narrados, ora vivencia sua narrativa, ora a expõe tão somente, como num relatório. Enfim, o NEP poderia ser chamado aqui de narrador híbrido. Há, entretanto, uma questão ainda mais delicada: o distanciamento temporal entre a reconstituição e o evento propriamente dito, que situa-se entre 20 e 27 anos. Observe: “‘Sempre sonhava com árvores’, disse-me sua mãe 27 anos depois, evocando os pormenores daquela segunda-feira ingrata.”(idem, p.9); “A única vez que tentei falar com ele, 23 anos mais tarde, recebeu-me com certa agressividade e se negou a contribuir com o dado mais íntimo que permitisse esclarecer um pouco sua participação no drama.” (idem, p.129); “Mas era ela: Ângela Vicário 23 anos depois do drama.” (idem, p.131).

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Tal distância implica profundamente sobre a memória, que é uma das fontes de informação mais importantes para essa crônica. A memória depois que não consegue mais dar detalhes ou ligar fatos cria novas informações segundo as antigas, segundo o contexto geral dessas ações e, principalmente, segundo as impressões subjetivas pessoais. Assim, qualquer reconstituição à medida que se distancia temporalmente do objeto lembrado será alterada. E, por consequência, uma série de relatos de um mesmo ponto criará inúmeras significações não observadas no momento original. Por exemplo,“Os primeiros fregueses eram escassos, mas 22 pessoas declararam ter ouvido tudo quanto disseram, e todas concordavam na impressão de que o disseram com o único propósito de serem ouvidos.” (idem, p.77); Santiago Nasar […] com todos comentou de um modo casual que era um dia muito bonito. Ninguém estava certo se ele se referia ao estado do tempo. Muitos coincidiam na lembrança de que era uma manhã radiante com uma brisa de mar que chegava através dos bananais, como seria de esperar que fosse em um bom fevereiro daquela época. A maioria, porém, estava de acordo em que era um tempo fúnebre, de céu sombrio e baixo e um denso cheiro de águas paradas, e que no instante da desgraça estava caindo uma chuvinha miúda como a que Santiago Nasar vira no bosque do sonho. (Idem, p.10-11).

E ainda: Eu conservava uma lembrança muito confusa da festa antes de me decidir a resgatá-las aos pedaços da memória alheia. Durante anos, em minha casa, continuaram falando que meu pai voltara a tocar o violino de sua juventude em honra dos recém-casados […]. No curso das indagações para esta crônica recuperei numerosas vivências marginais […] (Idem, p.65-66).

A partir destes fragmentos e da observação que estas testemunhas divergem sobre inúmeros eventos, deve-se pensar que a realidade original é re-criada pelas testemunhas e pelo NEP quando seleciona qual das vozes das testemunham estarão presentes ou não e em destaque ou não.

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Quanto à origem dos conhecimentos vertidos nessa Crônica, é necessário lembrar-se que o próprio NEP não omite sua intenção em inocentar seu amigo Santiago Nasar. Isso é significativo porque todo o texto foi criado com esse objetivo: conduzir o leitor por eventos/argumentos que o faça pensar (e quase pressupor) a inocência do falecido. Na citação seguinte, o NEP mostra como conduziu uma de suas entrevistas: de modo a “arrancar” de Ângela o que ele queria ouvir. A versão corrente, talvez por ser a mais perversa, era que Ângela Vicário estava protegendo alguém a quem, de verdade, amava, e tinha escolhido o nome de Santiago Nasar porque nunca pensou que os irmãos se atreveriam a enfrentá-lo. Eu mesmo tentei arrancar-lhe esta verdade, quando a visitei pela segunda vez, com todos os meus argumentos em ordem, mas ela só levantou os olhos do bordado para contestá-los. (Idem, p.133).

Outra fonte de informação foi o sumário do crime encontrado pelo NEP. Doze dias depois do crime, o instrutor do sumário encontrou um povoado em carne viva. No sórdido escritório jurídico do Palácio Municipal, bebendo café de panela com rum de cana contra as miragens do calor, precisou pedir tropas de reforço para organizar a multidão que se precipitava a depor sem ser chamada, ansiosa por exibir a própria importância no drama. Acabara de se formar e ainda vestia a toga negra da Escola de Leis e o anel de ouro com o emblema de sua promoção, além da vaidade e do lirismo da feliz estréia. Nunca, porém, se soube o seu nome. Tudo o que sabemos de seu caráter foi colhido do sumário, que muitas pessoas me ajudaram a buscar 20 anos depois do crime no Palácio da Justiça de Riohacha. Não havia registro algum nos arquivos, e mais de um século de processos estavam amontoados no chão do decrépito edifício colonial que foi, por dois dias, o quartelgeneral de Francis Drake. O andar térreo inundava-se com as marés, e os processos desencapados flutuavam pelas salas desertas. Eu mesmo procurei, muitas vezes com água até os tornozelos, naquele tanque de causas perdidas, e só um acaso me permitiu resgatar, depois de cinco anos de buscas, umas 322 folhas salteadas das mais de 500 que devia ter o sumário.

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão O nome do juiz não apareceu em nenhuma, mas é evidente que era um homem inflamado pela febre da literatura. Sem dúvida, tinha lido os clássicos espanhóis e alguns latinos, e conhecia muito bem Nietzsche, o autor da moda entre os magistrados do seu tempo. As notas marginais, e não apenas pela cor da tinta, pareciam escritas com sangue. Estava tão perplexo com o enigma que lhe coubera por sorte, que muitas vezes incorreu em divagações líricas contrárias ao rigor da sua ciência. Principalmente, nunca achou legítimo que a vida se servisse de tantos acasos proibidos à literatura para que se realizasse, sem percalços, uma morte tão anunciada. (Idem, p.145-147).

Esta lasca da narração evidencia indiretamente a parcialidade do instrutor do sumário e do juiz ao exibir as condições de criação do sumário ligadas a “café de panela com rum de cana”, “miragens de calor” e ao mostrar como o juiz ao fazer suas notas marginais também não cumpria sua função corretamente, mas preocupava-se em expressar sua própria opinião e conhecimento. Estas poucas linhas críticas sobre o trabalho do juiz são ainda potencializadas por “As notas marginais, e não apenas pela cor da tinta, pareciam escritas com sangue”. Assim, a soma do trabalho do inflamado juiz mais o trabalho do relator inexperiente (vide coletar informação de “um povoado em carne viva”) resulta neste sumário: um trabalho escrito de maneira parcial e que tem como relator e juiz homens influenciados pelas condições de produção. Já em Eles eram muitas cavalos, o modo de tratar a origem da informação tende a ser diferente porque ela não pode ser precisada pela sua grandevariedade. A maioria das narrativas é feita por narrador extradiegético onisciente. Por exemplo, 11. Chacina no 41 Bem dado, de baixo para cima, o chute que atingiu as costelas à mostra do vira-lata catapultou-o para o meio da rua, onde, aterrizando meio de banda, escapuliu ganindo, sem atentar tamanha crueldade. Só empós escapar ligeiro por entre valas fétidas e becos sonolentos, escuridões e clareiras, é que, encorajando-se, tornou-se ao revés. Já ninguém não havia extorquindo a manhã nascitura. Parou, resfolegante, o coraçãozinho às corcovas, estendeu-se sobre o corpo 355

Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares trêmulo, a confusa recém-lembrança. Por que fora agredido? Arfando, a língua lambe o pêlo duro, amarelo-sujo, tenta escoimar os doloridos. Por quem fora agredido? Os dentes agudos mordiscam ao léu, à cata de invisíveis pulgas. Exausto, a cabeça pende sobre as patas esticadas, cerra os olhos, o rabo sossega, suspira. Aos poucos, os caquinhos coloridos assentam no fundo do caleidoscópio. Caminhava, entreabrindo cortinas da noite à procura de seu dono, orelhas afiladas, todo prontidão, porque sabia da Vila Clara, várias vezes enxotado, pontapés, baldes de água quente, pedras, bombinhas, foguetes, porretes, até tiros, sim senhor, até tiros!, quando, próximo ao salão onde os pés do povo forrozeiro levantam finas nuvens de cimento, avistou a cena intrigante: […] (RUFFATO, 2006, p.28).

Neste fragmento, além notar o narrador, fica claro um outro recurso usado pelo autor: a oralidade. Expressões como “meio de banda”, “empós”, “já ninguém não havia extorquindo a manhã nascitura”, “todo prontidão”, evidenciam isso. A oralidade nesse livro por vezes aparece claramente, em outros momentos, só é usada com poucas palavras, e, principalmente, aparece paralelamente com a variedade formal da escrita. E há muitos textos sem narrador porque não são narrativas: 36.Leia o Salmo 38; 42.Na ponta do dedo (2); 54.Diploma, entre outros. Por exemplo: 1. Cabeçalho São Paulo, 9 de maio de 2000. Terça-feira. 2. O tempo Hoje, na capital, o céu estará variando de nublado a parcialmente nublado. Temperatura – Mínima: 14º. Máxima: 23º. Qualidade do ar oscilando de regular a boa. O sol nasce às 6h42 e se põe às 17h27. A lua é crescente. 3. Hagiologia Santa Catarina de Bolonha, nascida em Ferrara, na Itália, em 1413, foi abadessa de um mosteiro em Bolonha. No Natal de

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão 1456 recebeu o Menino Jesus das mãos de Nossa Senhora. Dedicou sua vida à assistência aos necessitados e tinha como única preocupação cumprir a vontade de Deus. Morreu em 1463. (Idem, p.11).

Assim, as possibilidades linguísticas de produção e leitura de textos são ampliadas. Ao se deparar com esses muitos “sub-gêneros”, o leitor passa a classificá-los, ordená-los para extrair deles mais significações. Isso aprimora o sentido de leitura do leitor e permite que o autor use de meios além dos que seria permitido pela escolha de apenas um desses sub-gêneros. Através destes exemplos, percebe-se outro aspecto da polifonia: plurilinguismo. Da mesma forma como a voz do narrador pode se desdobrar, os “gêneros” e outros caracteres do texto podem ser multiplicados a fim, por exemplo, de “confundir” o leitor sobre algum aspecto, trazer a dúvida sobre ações passadas ou projetos futuros. Considerações finais Todas as características observadas contribuem para a formação de imagens do leitor. Muitas delas funcionam com apenas um objetivo, como o acréscimo de informação ou a problematização de questões de origem duvidosas (cf. Crônica de uma morte anunciada), ou, mais naturalmente, esses objetivos se con-fundem, se interpenetram, e alterna-se a preponderância de um e outro. Em Crônica de uma morte anunciada, as informações narradas formam um todo narrativo homogêneo que é questionado pelo próprio narrador e, principalmente, pela via da polifonia. Essa forte ligação entre as partes é mérito do trabalho poético-linguístico do NEP e não das informações utilizadas por ele porque essas são variadas e muitas vezes desconexas. Em Eles eram muitos cavalos, o autor alterna os narradores e “gêneros” como uma bandeira pelas diferenças tão comuns no ser humano. O ambiente de contexto é São Paulo no dia 9 de maio de 2009 e isso é totalmente intercambiável porque os enredos ali desenrolados são comuns em qualquer centro urbano. Com isso, verifica-se que a atenção do leitor deve recair sobre as diferenças de forma e de conteúdo. Para que o leitor, através do pacto de leitura, vivencie o artístico nesse livro é necessário se despir dos preconceitos, se permitir sentir as diferenças.

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Conclui-se que nestes tempos contemporâneos a(s) realidade(s) altera(m)-se porque o olhar dos leitores muda e, tão logo, muda-se o agir no mundo, que muda, por sua vez, o mundo. E se o mundo é que permite a criação artística por vias da mimeses, deve-se perguntar, pois, a realidade determina a polifonia ou a polifonia determina a realidade.

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(B) EDUCAÇÃO, TRABALHO E IDENTIDADES: MÚLTIPLOS OLHARES

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FORMAÇÃO DE VALORES DE ALUNOS DO CURSO DE GRADUAÇÃO

Almiro Schulz UFG

Introdução

A

formação, no âmbito da educação superior, tem-se tornado um assunto de interesse, sobretudo, quando se trata da formação de professores. Existe uma literatura ampla que aborda o assunto. Mas, quando se trata da formação de valores, permanecem dúvidas sobre o papel formador da educação superior. O aspecto da formação de valores, não é uma preocupação da atualidade, já está posta desde sempre, porém a sua discussão, como parte da educação superior, ainda é pouco discutida e estudada. As pesquisas centram a sua atenção nas fases da educação anterior; a grande maioria das publicações aborda a questão de uma forma genérica e, quando focam a educação no contexto escolar, abrangem a educação, sobretudo, infantil e fundamental. Entretanto, no âmbito das empresas e em relação ao exercício profissional, ela ocupa grande espaço. (TAMAYO, PORTO, 2005). O problema que se levantou para esta pesquisa foi se ocorre formação de valores na educação superior? Ou seja, se a educação superior contribui para mudança de valores. Pois, há um consenso de que a melhor fase para a formação de valores ocorre na infância (CABANAS,1998, p.400), mas ao mesmo tempo, admite-se que as pessoas mudam seus valores no decorrer de sua história (CABANAS, 1998, p. 403), seja quando se esgotam ou quando há experiências fortes. Aí então a indagação: a educação superior contribui para a mudança/formação de valores? Diante desta questão, colocou-se como objetivo principal para esta pesquisa: verificar se a educação superior contribui para a formação de valores, isto é, se os alunos mudam sua percepção ou elaboração de seus valores durante o tempo de

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curso. Como objetivos específicos, colocaram-se a)Verificar, segundo uma escala de valores, quais os valores mais significativos do aluno ao ingressar na educação superior; b) identificar, segundo a mesma escala, quais os valores mais significativos dos alunos no final de seu curso; c) constatar quais fatores indicados pelos alunos que tem contribuído, na opinião deles, para mudança de valores. Fez-se uma revisão bibliográfica relativa ao assunto, que serviu como base para o estudo e análise dos dados obtidos por meio da pesquisa empírica. A pesquisa teve como sujeitos 224 alunos dos primeiros turnos e 224 dos últimos turnos, de 8 cursos de graduação, de três instituições, os quais responderam o questionário. O instrumento teve como base uma tabela de valores, do texto “Inteligência Moral”, de Kiel e Lennick (2006), no qual consideram que um conjunto de valores forma proscrições ou prescrições, que guiam a vida das pessoas no cotidiano, bem como, contribuem no modo como interpretam a realidade, que acaba sendo, o que chamam de “bússola moral”. Elaboraram uma planilha para identificar os valores considerados fundamentais e mais importantes, que segundo eles, vão representar os aspectos da vida à que se está mais ligada. Foram dois instrumentos adaptados, com base na indicação da planilha acima citada, um para o primeiro turno e a outro para o último turno, sendo que, as duas primeiras partes são idênticas, e para o último turno, foram acrescidas questões, relativas à opinião de ocorrência de mudanças de valores. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa, após a aprovação, o questionário foi aplicado aos alunos sala por sala, aos primeiros turnos e aos últimos turnos, em horário de aula previamente autorizado pela Pró-Reitoria da Graduação, ou por quem de direito. Após a coleta de dados, foram digitados e processados, cujo resultado, em síntese, está sendo apresentado. Noção sobre o sendido de valores Quer-se aqui discutir um pouco sobre o sentido dos valores, sobre a sua classificação, isto é, sobre a sua hierarquia, se, se pode considerar que há primazia entre um e outro?

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Concepção – o que se entendo por valores? Discutir sobre a concepção dos valores não é tarefa simples. Cabanas trata do assunto em seu texto “Pedagogia Axiológica”- la educación ante los valores”, texto de 448 páginas. Mendez (1985) no seu texto “Valores Éticos” de 622 paginas, discute só sobre valores éticos. Há muitos aspectos e muitas divergências. Marques (2001), no texto “ O livro das virtudes de sempre”, no capítulo sobre “Educar em Valores”, apresenta uma certa síntese, ou resumo das diferentes concepções sobre o que é um valor, sobre o que é a escala dos valores, como se captam os valores. Seguindo a abordagem sobre os valores de Cabanas e de Marques, podem-se identificar duas concepções básicas, mesmo que ocorram variações entre as duas alas. Como dito: visão idealista e positivista. Quanto à primeira, seus principais representantes podem ser considerados Scheler e Hartmann, segundo os quais, os valores são entes em si, a prioricos e autônomos (CABANAS, 1998, p. 396). De acordo com Cabanas, um valor pode ser entendido como a qualidade abstrata e secundária de um objeto, consiste em que, ao satisfazer uma necessidade de um sujeito, suscita nele interesse ou aversão por essa qualidade (1998, p.397). Em relação à fonte dos valores, para Cabanas, são as necessidades humanas que se classificam em racionais, de onde decorrem os valores racionais e universais, e as sensitivas, que correspondem aos valores vitais, produto dos contextos e das condições sociais. De acordo com o segundo grupo, positivistas, não existem valores absolutos, que são chamados por Cabanas de relativismo axiológico, para esses, os valores não passam de preferências subjetivas, sua variação depende do lugar e da época; de acordo com essa concepção, não há valores, só há fatos. Também negam a existência de uma escala, por não passarem de preferências. Sua preocupação não é com o que são, mas com sua função (CABANAS, 1998, p.193-196). Acabam tendo importância, e transformam-se em crenças. A questão da hierarquia dos valores De acordo com a visão positivista e subjetivista, como os valores não existem objetivamente, não há hierarquia, a diferenciação dada decorre do interesse e das necessidades do sujeito. 365

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Para os objetivistas, para os quais os valores existem, há uma escala, uma hierarquia, na qual os valores racionais precedem os sensitivos. Entretanto, existem muitas e diferentes classificações, Marques (2001), bem como Cabanas (1995), apresentam uma síntese sobre essas diferenças. Contudo, nesse texto será indicada a escala de valores segundo Mendez1 (1985). Segundo ele, os valores configuram-se em mais fortes (concepção de Hartmann) e mais elevados (concepção de Scheler), sendo que os mais fortes são os básicos, por ele denominado econômicos, que no caso, não são absolutos. Além de serem mais fortes, é a partir dos básicos que se dá o processo do seu desenvolvimento, da ascensão, dos mais fortes para os mais elevados. Os mais fortes se estabelecem no sentido horizontal e no sentido vertical se configuram os mais importantes, mais altos, mas que, no dia a dia, os que mais pesam, são os fortes, os mais baixos, pois, segundo o critério de dependência e independência, los valores más bajos son también los más sociales debido a que en ellos el hombre es más dependiente de sus semejantes. En cambio en los valores más altos es más independiente; por eso mismo son más personales. […] En los valores éticos más bajos la conducta del ciudadano individual repercute fuertemente sobre la colectividad. […] Todos han de actuar tal como la sociedad lo há prescrito de antemano. Pues hay uma gran interdependência entre los intereses de todos y cada uno de los ciudadanos. (MENDEZ, 1985, p.167-168).

Pode-se considerar que segundo Mendez (ver gráfico1), pela lei da força, os valores mais baixos são os mais obrigatórios e também os mais sociais, porque neles o homem é mais dependente de seus semelhantes. Já os valores mais altos são os menos sociais porque neles o homem é mais independente, por isso são mais pessoais, ou seja, o social está ligado aos valores baixos e fortes e os valores pessoais estão ligados aos valores mais altos e menos fortes.

Mendez, em relação aos valores, pode ser considerado um idealista, porém, pretendia superar as concepções de Scheler e de Hartmann, valendo-se, no entanto, de ambos para construção de sua teoria sobre a hierarquia dos valores, apresentada no seu texto: “Valores Éticos”.

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Noção sobre a educação para valores De certa maneira, pode-se dizer que a questão básica gira em torno se os valores são construídos ou se são percebidos, apreendidos? Diante disso, é relevante levar em consideração a concepção dos valores, pois há implicações da filosofia e de metodologia de educação ou formação. Nesse sentido, levando em conta, ao menos, as duas concepções nos seus extremos: os que admitem a objetividade dos valores e os que a negam, além das variantes entre as duas posições extremas, pois, na primeira, os valores são captados, percebidos, e, na segunda, os valores são construídos. Percepção ou construção dos valores Segundo o modelo objetivista ou idealista, admite-se que os valores existem e que o processo educacional dos valores precisa proporcionar meios para que sejam descobertos, captados, apreendidos e vividos. Neste caso, os valores se impõem à espontaneidade e à liberdade do educando. (CABANAS, 1998). Levando em conta que existem valores absolutos, o professor não pode abandonar o aluno, antes, precisa ensiná-lo a valorar corretamente e respeitar a hierarquia. Porém a forma da captação, percepção dos valores, pode ocorrer por meio de diferentes formas: pela vivência, da prática, pelo exemplo, pode decorrer de forma natural de um ambiente, também por meio da recusa de valores considerados desprezíveis. (MARQUES, 2001, p.44). Segundo o modelo positivista, cognitivista, os valores não existem, são produções, assim, o processo da formação de valores adquire pouco significado, e o foco cai no desenvolvimento da capacidade cognitiva, na reflexão. Nesse caso, se todos os valores são relativos, a função do professor pouco deverá auxiliar em relação a determinados valores, mas dar a máxima liberdade para que o aluno possa estabelecer sua preferência. Considera-se que os alunos são capazes de construir valores. (SCHULZ, 2008, p.83). De acordo com essa concepção, a forma de educar nos valores, isto é, para que o aluno seja capaz de elaborar, construir suas preferências, convém adotar meios pelos quais o aluno desenvolva sua capacidade de raciocínio, mediante, por exemplo, a discussão de dilemas, o debate de problemas, o jogo de papéis etc. (SCHULZ, 2008, p. 83). 367

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De acordo com Cabanas (1995), é preciso adotar uma posição intermediária, pois há valores universais e relativos e nesse caso, o processo da educação dos valores ocorre por meio do saber, da reflexão ou cognição, mas também por meio do treino, do hábito, ou seja, pela inteligência emocional, afetiva. Pois, segundo esta concepção, os valores são descobertos e interiorizados. Segundo essa visão, a formação ocorre por métodos indiretos, que são: o exemplo, clima ou ambiente, pela incorporação da benevolência, do sacrifício, do amor. Considerando as variáveis implicadas nesse processo da formação de valores, surge o dilema em saber qual é o melhor método, a melhor forma de se ensinar e educar para os valores. Cabanas enfatiza: Hay um gran dilema: el de si la formación em valoares há de hacer-se em la esfera de lãs ideas de educando o, más bien, em la de sua vountad e su comportamiento. Este dilema pedagógico es clásico em educación moral […]. tradicionjalmente estaba resuelto em favor de uma solución mista; pelo he aqui que, com el predomínio actual Del cognitivismo y Del formalismo moral, se há puesto de moda el luso esxclusivo de métodos intelectualistas (CABANAS, 1998, p. 286).

Possibilidade de mudança de valores É bom ponderar se é possível à mudança de valores e em que situações eles mudam. Segundo Schaff (1995), os valores mudam de épocas em épocas, também na vida das pessoas. Julga que a mudança se dá quando um valor se esgota, isto é, quando um valor é atingido e, com o passar do tempo, já não representa a mesma coisa, não tem o mesmo significado e aí se passa a almejar outros. Segundo Cury (2006), em seu texto “Inteligência Multifocal”, considera que é possível mudar sempre e que isso ocorre por meio de múltiplas variáveis. Mesmo que se admite a mudança de valores, considera-se que a fase infantil é a mais adequada para a formação dos valores, nesse caso, o espaço e a relação com a família tornam-se a prioridade e o “locus” mais importante. Tem-se entendido que a formação cabia, em primeiro lugar, à família, em segundo lugar, a religião, por intermédio da Igreja, e, em terceiro lugar, à escola, na fase do ensino fundamental e, no seu interior, centrada no professor. 368

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Goergen (2001, p.80/81), porém, ao discutir, em seu texto, sobre ética e educação na pós-modernidade, considera que a educação é um processo sociocultural de individuação/socialização, nessa perspectiva, a formação não é mais uma questão meramente de foro íntimo, mas da participação de todos. Não é só papel da família, da escola ou de um determinado seguimento específico, mas responsabilidade de todos. O risco é quando se dilui a responsabilidade a todos, não sendo mais de ninguém. Políticas e desafio para a formação em valores O grande desafio para a educação e seus gestores não é unicamente a ampliação do espaço físico, de vagas e da inclusão, mesmo que também o seja, mas é, assim, uma educação voltada para responder às necessidades de seu tempo. Nesse sentido, coloca-se ou recoloca-se a formação ética - de valores. Ser gestor de uma organização educacional é muito mais amplo e complexo do que de qualquer outra, considerando sua finalidade e suas funções. Segundo Schwartzman: É mais fácil construir um prédio escolar do que administrar uma escola; é mais fácil trazer uma criança para a escola do que ensiná-la a ler e escrever; é mais fácil contratar professores em dedicação exclusiva do que transformá-los em pesquisadores “ (In: BROCK; SCHWARTZMAN, 2005, p. 43).

Cabanas (1998) ao discutir em seu texto a questão da formação para valores no âmbito da educação formal levanta as dificuldades que se colocam em uma sociedade pluralista, frente o estabelecimento de políticas educacionais para a educação escolar, considerando a educação pública e privada, observa que: Por eso muchos son partidários de que em la escuela se haga uma declaración expresa de los valores que se proponen. Esta postura Es la adoptada por la escuela privada, apoyada em la presuasión de que hay unos valores que deben ser propuestos. La escuela pública, por su parte, admite que estos valores son los estabelecidos em la Constituición del país, de modo que se imponen obrigatoriamente a los alumnos: em cambio, se deja a estos libres en lo que se refiere a los demás valores (incluso los valores ideales). (CABANAS, 1998, p. 407).

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No entanto, as dificuldades frente o pluralismo cultural e ideológico, precisa ser enfrentado, pois, somos humanos, terrestres e temos um destino comum. A educação precisa contribuir para formar um homem com valores que dêem sustentabilidade a vida no planeta. A formação para valores no âmbito da normatização Quando a LDB trata da educação básica, no art. 27, inciso 1, consta: “A difusão de valores fundamentais ao interesse social aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática”. Mas não esclarece e não especifica quais são os valores fundamentais, contudo consideram-se os que têm uma dimensão universal, presentes nos direitos universais, como: liberdade, igualdade, solidariedade, justiças, entre outros. No capítulo da LDB sobre o ensino fundamental, no Art. 32, incisos III e IV, o texto registra que […] “desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores”. No capítulo sobre o ensino Médio, no Art. 35, inciso III, consta: “[…] o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia e do pensamento crítico.” Está claro que, nesses níveis de formação escolar, a básica (fundamental e média) está prevista e espera-se uma educação voltada para a formação ética, moral e de valores. O mesmo não ocorre nos Artigos sobre a educação superior, não há referência direta à formação de valores ou a moral alguma. Poder-se-ia subentender que não há necessidade, ou porque já não é mais possível nessa fase, já é tarde. Entretanto, na declaração mundial sobre educação superior no século XXI: visão e ação, fruto da Conferência Mundial sobre Educação Superior, realizada em Paris, pela UNESCO em outubro de 1998, é da responsabilidade da educação superior a formação ética- moral e de valores. Gislene (2001, p.155), ao comentar sobre a formação ética e da cidadania à luz da LDB, considera que: As atuais discussões sobre como adequar as instituições de ensino e “capacitar” os professores de acordo com o que pede a Lei, se apresentam com esta querela: como vamos transformar nossos professores em cidadãos aptos a ensinar cidadania e nossas escolas em espaços democráticos que 370

Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão auxiliem a resolver o problema da ausência de ética e da violência na sociedade? Como fazer com que os educandos passem a desejar o bem e a virtude e a praticá-los para que nossa sociedade não se transforme no reino da barbárie? (GISLENE, 2001, p.155).

O que se pretende dizer é que não cabe apenas à comunidade escolar a responsabilidade, em especial, aos professores, a formação de valores, mas a todos os segmentos da sociedade. Resultado e análise da pesquisa empírica Conforme a metodologia proposta fez-se a tabulação e apresenta-se, em síntese o seu resultado com uma breve análise, fundamentada na classificação dos valores segundo Mendez. Saúde como principal valor Em primeiro lugar procurou-se verificar se pelo resultado é possível identificar a existência de uma diferença entre os valores considerados mais importantes. Os dados mostram que da escala com uma relação de 40 valores, entre os cinco mais importantes, a saúde é indicada por todas as variáveis propostas como o principal valor. A saúde é indicada por 38% dos alunos dos primeiros turnos e por 28,7% pelos alunos dos últimos turnos. Em segundo lugar, também com maior percentagem pelos primeiros e últimos turnos, aparece a sabedoria. A saúde também aparece como valor em primeiro lugar entre os gêneros, indicada por 27,1% do sexo masculino, e por 37,8% pelo sexo feminino. Ao se verificar o resultado segundo os sujeitos pertencentes aos diversos cursos, a saúde também é indicada como valor principal, por todos eles. Procurou-se também verificar se, em relação a todos os sujeitos, qual dos valores aparece como sendo considerado o mais importante, a saúde novamente aparece em primeiro lugar, com 33,7 % e a sabedora com 14,3%. Constata-se que de acordo com os dados da pesquisa, a saúde é indicada como o valor mais importante e os demais quatro valores, dos cinco mais importantes, três se repetem por ambos os turnos: sabedoria, amizade e justiça. Isso também se confirma por meio das outras variáveis.

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A questão que pode ser verificada e discutida é qual a razão da saúde ser indicada como o valor mais importante em todas as variáveis? Nesse caso, com base na concepção de Mendez e na sua classificação de valores, a saúde é colocada no nível dos valores mais fortes, que são os mais baixos, nesse caso, está entre os mais sociais, entre os mais dependentes e entre os mais obrigatórios. Segundo ele, a evolução se dá à medida que os básicos, os fortes, são atingidos. Esse resultado, com base na teoria de Mendez, pode indicar que, de um lado, os valores percebidos como mais importantes são os materiais, parte-se deles e que do outro lado, pode sinalizar que a saúde em nosso país vai mal e que esse valor ainda não foi materializado de forma significativa, pois, se até os universitários, que não são da classe mais baixa, a colocam em primeiro lugar. Mudança de valores Quanto à questão sobre a mudança de valores, segundo o objetivo proposto: verificar se a educação superior contribui para a formação de valores, isto é, se os alunos mudam sua percepção ou elaboração de seus valores durante o tempo de curso, os dados da pesquisa, segundo as tabelas anteriores não indicam mudanças, os valores principais apontados pelas primeiras turmas e as últimas, além da saúde ser o principal, há também aproximação entres os outros. Nesse caso, poder-se-ia trabalhar com duas hipóteses: ou não ocorrem mudanças por que no contexto da educação superior não existe essa preocupação, não há uma normativa estabelecida claramente para que se eduque para valores, como uma exigência curricular. Ou porque, nessa fase, da adolescência para vida adulta, os valores já não mudam, ou ao menos, não mudam tão facilmente. Porém, ao se perguntar aos alunos das últimas turmas, se em sua opinião eles mudaram seus valores durante o curso, 67,3% dos sujeitos, afirmaram que sim. Procurou-se saber, caso a resposta fosse sim, quais os fatores, segundo eles, contribuem, ou seja, exerceram maior influência para a ocorrência dessas mudanças? O resultado indica que entre uma relação de nove fatores, conforme demonstração da tabela abaixo, a convivência com os colegas está em primeiro lugar, com 70,9% e em segundo lugar, indicado por 65,5%, estão às aulas, nas quais se discute temas afins. Em último lugar, estão apontadas por 18,4%, as normas

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e exigências institucionais e, a divulgação dos valores da própria instituição, por 17,6%. Tomando o fator, que segundo a opinião, o que mais contribui para a mudança de valores e o que menos contribui, pode-se indagar sobre as razões e as implicações no processo formativo. Não significa que exista apenas um fator, a formação se dá numa relação dialética da práxis, em que diversas variáveis e situações contribuem na descoberta e assimilação de valores. Entretanto, segundo os dados dessa pesquisa, entre as nove variáveis, há uma distância entre a que mais contribui e a que menos contribui. No entanto, a que mais influencia não tem uma relação direta com a proposta pedagógica institucional, enquanto que a que menos contribui, refere-se a uma possível estratégia institucional. A razão da indicação da convivência como o principal fator, nesse caso, é possível considerar que a relação emocional envolvida e vivida exerce maior influência, a convivência entre colegas, enquanto que, a segunda situação, temas afins, nesse caso a informação, pode ser entendida que se dá no âmbito mais cognitivo. Em outra pesquisa, desenvolvida com estudantes universitários, procurou-se saber sobre as influências percebidas pelos alunos no seu processo de mudanças no período universitário, Pachane comenta que de todos os relacionamentos pessoais citados, os amigos parecem ser a influência mais significativa, obtendo 76,23 % de respostas positivas. De modo geral, os universitários consideram que são os amigos que fornecem as bases ou os parâmetros para a mudança pessoal, além, é claro, da convivência mais próxima e da ajuda oferecida. (PACHANE, 1998, p. 69).

O fato das normas serem indicadas como a menor condicionante, pode indicar que essa faixa etária já superou mais a heteronomia, ou ainda, pelo fato da adolescência ter maior aversão a normas. Contudo, pode-se então entender que a formação e a mudança de percepção de valores ocorrem com mais proeminência, quando eles envolvem experiência, vivência, emoção e reflexão. Mesmo que, Puing (1998) considera que instituições são como guias de valor, que elas são portadoras de significados valiosos, tornam-se um referencial no processo do aprendizado, da formação, para quem a ela esteja vinculado.

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Considerações finais A formação para valores é importante e se justifica, pois, constituem e são inerentes à formação humana. Schwarts (In TAMAYO; PORTO, Orgs., 2005, p.23) considera que eles […] “guiam a seleção e a avaliação de ações, políticas, pessoais e eventos”. Segundo Schaff (1995), a influência dos valores contribui para a formação do caráter, mediante sua vivência. Também, contribui para a integração social, uma vez que por meio deles, as pessoas estabelecem inter-relações, passam a se aceitar ou podem se excluir. Pessoas ou grupos que cultivam valores muito diferentes entre si terão dificuldades de manter relações permanentes ou mais profundas. Os valores também exercem uma força no sentido de contribuir para a manutenção e a cristalização de um determinado status social, bem como podem ser um fator de gestar mudanças, transformações, tanto em nível individual, como nas relações coletivas. Diante dessas discussões, fica o desafio para que, além de estabelecer os valores que são próprios como seus, da organização, na gestão das instituições educacionais se implemente políticas e ações que contribuam para a formação de valores e moral de caráter universal. Outro desafio é criar uma cultura, um clima e ambiente em que são refletidos e vividos os valores e a moral que se pretende formar por meio das relações nos diferentes níveis e entre os diferentes atores envolvidos. Não basta estabelecer políticas, são necessárias, mas é preciso que estas se materializem, ou seja, tornem-se vivência. A adesão nem sempre é um processo fácil, sobremaneira, porque é preciso adequar às estratégias. Vários são os entraves, variáveis que dificultam, pois a cultura menor, da organização, precisa superar a cultura maior, da qual fazem parte também sua comunidade e ela mesma. Outro aspecto corresponde à formatação de um currículo que contribua para a formação ética, dos valores. Tomado aqui a sua concepção, não apenas como grade curricular, mas como o conjunto de ações que interfiram direta ou indiretamente em todo processo institucional e educacional. Caso a instituição pretenda desenvolver valores, teria que proporcionar vivências, onde determinados valores estivessem mais em foco. Nesse caso, as estratégias poderiam ser organizadas no âmbito das ações da extensão universitária, onde se torna mais possível à prática e a convivência em situações concretas. Implica, no entanto, ampliar a participação dos alunos em projetos de extensão, pois, poucos normalmente se envolvem e tomam parte. 374

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TRAJETÓRIA DA EDUCAÇÃO NA CIDADE DE NOVA FRIBURGO: REGIMES E MÉTODOS DE ENSINO

Aura Maria Ribeiro Faria Luanda de Oliveira

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ão é possível compreender a educação atual, sem conhecer o passado desta atividade cultural no país, estado e cidade. O ensino no Brasil colônia foi tardio, elitista e vinculado aos interesses do Estado. Entre 1549 e 1759, os brasileiros, em sua grande maioria, foram educados pelos Jesuítas. Quando estes foram expulsos do Brasil, por determinação do Marquês de Pombal, deixaram 17 colégios que acabaram fechando as portas; começam a surgir, então, escolas independentes, de professores particulares. E, em 1772, a Coroa Portuguesa cria o subsídio literário, que permitia a manutenção do ensino primário e secundário, surgindo assim, o ensino público brasileiro. Contudo, os colégios brasileiros, não concediam diplomas –o que era privilégio da corte; o ensino fundamental, embora oferecido nos colégios, era costumeiramente adquirido em casa, por meios dos parentes ou por preceptores. Apenas, com a vinda de Dom João VI muda-se bastante o quadro da educação brasileira; então, como sede da corte, o país exigia uma série de mudanças no campo educacional. A primeira referência que se tem sobre o ensino na Cidade de Nova Friburgo, “marco inaugural da política de colonização estrangeira no Brasil” (ARAÚJO, 2003a), é o Tratado de Colonização, assinado em 1818, que previa a vinda de “uma sociedade multifacetada”, composta por habitantes católicos, apostólicos, romanos, e em seus artigos VII e VIII estipulava a vinda a Nova Friburgo de responsáveis religiosos e civis; e, embora “não mencione, os organizadores se preocuparam em ter professores na colônia”; desta forma, em 1820, juntamente com os colonos suíços, tem-se a chegada do professor primário Pierre Bonaventure Bardy1, com 19 anos e 1 “Natural de Fribourg, engajou-se no movimento migratório na qualidade de segundo professor de primeiras letras da colônia (o primeiro, Antonie Simon Mettraux, jamais exerceria no Brasil a profissão)”. (BON, 2004. p. 246)

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título de Mestre Régio de Primeiras Letras e da Gramática Francesa. (NICOULIN, 1995. p. 76-83) Começava assim a história da educação na cidade. Esta história vamos elencar, indicando a trajetória das escolas na cidade de Nova Friburgo, no século XIX, de forma cronológica e abordando seus diferentes regimes e métodos de ensino. Esta abordagem e recorte temporal foram definidos levando-se em consideração que, ao longo de três séculos, XVII, XVII e XIX, as proposições relacionadas à questão educacional enfatizaram a importância do método de ensino tanto para formação de professores quanto para aprendizagem de crianças e jovens. De forma que até o século XIX, a partir do método de ensino – síntese das proposições teóricas e guia prático da profissão de ensinar, podiam ser compreendidos todos os aspectos relacionados ao conteúdo a ser ensinado, aos valores considerados para a formação humana e à teoria do conhecimento que fundamenta o processo cognitivo do aluno. Em 1820, Bardy escolhe para suas aulas o método de ensino mútuo2, que seria pioneiro no América portuguesa e recebido com entusiasmo. Não havendo escolas, seu projeto teve o lançamento festivo da pedra fundamental, marcado pelo seguinte discurso: […] sejamos testemunhas de uma solenidade não menos interessante, já que se trata da fundação de um prédio escolar para a juventude da colônia e de um grupo de estabelecimentos, cujo conjunto oferece mil e uma vantagens. De fato, esse conjunto compreenderá não somente a manutenção das escolas públicas onde serão ensinados os princípios religiosos e políticos do reino, as gramáticas portuguesa, francesa e latina, mas também compreenderá uma biblioteca onde se multiplicarão conhecimentos dos jovens alunos. Também compreenderá uma escola de veterinária onde aqueles que

Na historiografia ficou conhecido como Método de Ensino Mútuo, Método Monitorial, Método Inglês de Ensino, Método de Lancaster, Método Lancasteriano de Ensino e também como Sistema de Madras. Método amparado no ensino oral, no uso refinado e constante da repetição e, principalmente, na memorização, porque acreditava que esta inibia a preguiça, a ociosidade, e aumentava o desejo pela quietude. Em face desta opção metodológica, esperava-se que os alunos tivessem disciplinarização mental e física. Defendia a utilização do monitor, que tinha com principal encargo coordenar para que os alunos se corrigissem entre si, e era, também, o responsável pela organização geral da escola, da limpeza e, fundamentalmente, da manutenção da ordem. 2

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão tiverem gosto e pendor por essa arte encontrarão meios de nela se formar […]. Além disso, haverá um museu e dentro de suas dependências um jardim botânico onde todos poderão vir estudar a natureza por meio de seus sábios, úteis e agradáveis produtos. Por fim, […] um terreno bastante grande será anexado a essa casa para formar os jovens alunos nos trabalhos e diferentes práticas que fazem do homem do campo um ser útil e feliz.3 (NICOULIN, 1995. p. 192).

Com a volta de Dom João VI para Lisboa, desaparecerá a euforia existente na época da instalação da colônia. A construção da escola não passaria do lançamento da pedra fundamental e as autoridades logo estabeleceriam restrições a Bardy, que segundo o Inspetor da Colonização, Pedro Miranda de Machado Malheiros, negligenciara seus deveres de mestre-escola. E, assim como a população de imigrantes, que a procura de terras mais férteis ou de oportunidades de trabalho, dispersa-se também a escola, destinada aos filhos dos imigrantes, do mestre Bonaventure. Em 1826, segundo Bon (2004. p.197), “o alemão Bernard Adolf Eckhard reivindicaria a função de mestre-escola, esbarrando na resistência de Miranda pelo fato de ser protestante”. O candidato, se convertendo ao catolicismo, teve sua nomeação promulgada, mas não permanecera muito tempo no cargo. Dezembro de 1832, após inúmeras solicitações, fora nomeado o professor Nicolau Coelho Messeder para a cadeira de Primeiras Letras. “Curioso professor, ministrará ele aulas em francês devido à falta de livros de gramática no idioma pátrio”. (BON, 2004. p. 198). Contudo, ainda faltava escola; com este fim, a Câmara opta por recuperar as casas coloniais de nº 49 e 50. Aproveitando as obras da escola, o mestre solicita que se mandasse preparar nela, “em forma de prisão, um quarto para castigo dos meninos”. Pedido indeferido pela Câmara. Março de 1833, inaugura-se a primeira Escola de Primeiras Letras da Vila de Nova Friburgo. Passados poucos meses, o mestre-escola insatisfeito com os soldos, deixara a cargo de um filho menor a tarefa de ensinar aos poucos alunos; e em janei3

Discurso de Luiz de Porcelet.

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ro de 1834, constatou-se que “por negligência dos pais e falta de assiduidade do mestre, há muitos dias não compareciam às aulas mais de quatro alunos”. (LIMA, s.d.). Em 1834, após inúmeras reclamações, Messeder se demite do cargo. Em 1835, a Câmara de Vereadores de Nova Friburgo envia carta ao Presidente da Província reclamando da instrução pública e “fazendo ver que, existindo na cidade mais de 600 meninos entre 7 a 14 anos, um só mestre não existe”, e lamenta que “a mocidade cresça na ignorância” (NOVA FRIBURGO, 1835). Em resposta, o governo informa que nada pode fazer sobre a falta de professores, até que a Escola Normal do Brasil (fundada em 1835, Niterói/RJ) habilitasse novos professores. Em 1839, é criada, pelo governo provincial, a primeira Escola Pública de Primeiras Letras de Nova Friburgo exclusivamente para meninas. Em 1841, segundo a Inspetoria de Ensino, existem três escolas de Primeiras Letras em Nova Friburgo, sendo duas públicas e uma particular. O diário de viagem de Hermann Burmeister4, em visita a Nova Friburgo na década de 1850, confirma com a seguinte descrição, O lugar, como as demais vilas brasileiras, tem duas escolas públicas, uma para meninos e outra para meninas, com professores pagos pelo governo, existindo portanto instrução gratuita. Ensinam as crianças a ler, escrever e fazer cálculos e dão-lhes noções de religião e de geografia. As meninas aprendem também trabalhos manuais. A instalação de escolas livres, isto é, a instituição do ensino gratuito, data de abdicação de D. Pedro I e representa uma grande medida, cuja adoção foi obtida já na primeira reunião constitucional. (BURMEISTER, 1980. p. 116).

Em 1841, surge a primeira escola particular de Nova Friburgo, o Instituto Colegial de Nova Friburgo. Fundado por John Henry Freese, com método de ensino despertador da consciência crítica5, oferecia instrução primária, curso de preparação para ingresso

Alemão, naturalista e professor Catedrático de Zoologia na Universidade de Halle. “[…] com intuito de desenvolver o intelecto, com debates livres. Seria o precursor do atuais Seminários”. (BITTENCOURT-SAMPAIO, 1997. p.18) 4 5

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nas Academias do Império e, ainda, curso comercial, cujos programas de estudos eram calcados nos do Colégio Pedro II. Sobre este colégio, Burmeister relata: […] visitei somente o diretor do grande Instituto de Educação de Nova Friburgo, o sr. John Heinrich Freese, cujo estabelecimento fica à altura dos melhores existentes no país. O grande conjunto de edifícios do mesmo está situado um pouco fora da cidade ao pé de uma colina coberta de mato, que lhe pertence. É formado por uma série de construções em redor de um espaçoso pátio, onde se encontravam as moradias dos professores, as salas de aulas e os dormitórios dos alunos. As salas destinadas às reuniões e exames, o oratório e mais dependências do instituto não ficam a dever nada, quanto às instalações, às suas congêneres européias […]. As matérias ministradas eram o grego, latim, inglês, francês, alemão e português; religião, matemática, geografia, história natural, física, astronomia em geral, desenho, contabilidade e cálculo etc. O curso era de seis anos ou classes das quais a superior corresponde à segunda nos nossos ginásios. O grego ensinase somente no último ano, latim desde o quarto, o inglês desde o segundo e o francês e o alemão nos dois últimos. Quanto às outras matérias, religião, português e matemática, ensinavam-se em todos os anos letivos, sendo esta última ministrada apenas em seus superiores e história nos dois últimos. As outras matérias eram divididas entre certas classes ou secções equiparadas. Havia nesse colégio, além do diretor, cinco professores, todos eles portugueses, com os quais, aliais, não tive maior aproximação. O diretor Freese teve a gentileza de mostrar-me as instalações todas, informando-me do andamento e do progresso do instituto por meio de boletins, que mandava imprimir de tempos em tempos. A rica biblioteca que mantinha foi de grande interesse para mim. Encontrei nela várias obras de história, geografia e ciências comerciais em francês e inglês. O próprio Sr. Freese organizara alguns livros didáticos sobre estas matérias, as quais ele igualmente

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares ensinava no instituto. O que ele escrevera sobre ciências comerciais6 teve várias edições, originalmente em inglês, e foi introduzido em diversas escolas dos Estados Unidos da América do Norte. (BURMEISTER, 1980, p. 114).

Entre 1852 e 1864, funcionou no antigo Chateau, o Colégio Marques, depois, Colégio São Vicente de Paula. Colégio particular, que oferecia curso primário e secundário para meninos. E, em 1858, contava com o Barão de Tautphoeus7, em sua direção. Em 1858, Theodoro Gomes8, substitui o Sr. Freese na direção do colégio e posteriormente, vende o Instituto Colegial de Nova Friburgo para o Galiano Emílio das Nevese Cristovão Freitas9, que em homenagem ao fundador, passa a ser denominado Colégio Freese. O colégio contava, então, com 100 alunos em média e oferecia preparatórios para as academias do Império. Em 1864, surge o primeiro colégio particular para meninas, o Colégio Braune. Fundado por Maria Dulce Braune10, em regime de internato e externato feminino, oferecia curso primário e secundário. Tinha em seu currículo as disciplinas: português, francês, história pátria, aritmética, religião, desenho e piano. Em folder divulgava, O prédio em que funcciona o collegio, afastado do centro da cidade […] segundo todos os preceitos rigorosos de hygiene escolar; vastas salas de aula e estudo, dormitórios, refeitorios amplos e ventillados, superior água potável, canalisada em rede especial para o prédio, rêde de esgotos exclusiva ao edifício, de modo a preservar o pessoal de moléstias infecciosas; parque arborisado para passeios, banheiros excellentes, alimentação abundante e sã. […] procuram o desenvolvimento The Commercial Class-book, etc. por John Henry Freese, Baltimore, 1849. Homem de grande inteligência e cultural. Professor do Colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro e Vereador em Nova Friburgo. (BITTENCOURT-SAMPAIO, 1997. p. 19). 8 Médicohomeopata, vereador de destaque, chegando a ser presidente da Câmara. (GUIMARÃES, 1916. p. 48). 9 O primeiro, vereador, substituto de delegado de polícia, Inspetor de Instrução pública e presidente da Câmara de Vereadores de 1890 a 1892; e o segundo, professor público em Cantagalo, onde fundou o jornal Cantagalense (LIMA, s.d.). 10 Mãe de Alberto Braune. 6 7

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão intelectual das disciplinas, segundo os methodos mais aceitos pela moderna pedagogia.

Entre 1865 e 1872, funcionou no antigo Chateau, o Liceu de Humanidades. Colégio particular, que oferecia curso primário e secundário para meninos. Teve em sua direção, Valentim José da Silva Lopes. Em 1872, o Colégio Freese encerra suas atividades, quando o prédio é vendido ao Dr. Carlos Eboli. Instala-se no local, o Instituto Hidroterápico. Entre 1872 e 1880, funcionou, também no antigo Chateau, o Colégio Conde D’Eu. Colégio particular, com primário e secundário para meninos. Por um acordo com a Marçonaria, dava gratuidade a um certo número de alunos. Em 1880, foi fundado o Lyceo Nacional. Destinava-se a um público exclusivamente protestante, com regime de internato e externato e seu programa “era de acordo com o Ginásio Nacional”. “Era de propriedade do pastor protestante João Gaspar Meyer, sendo auxiliado por seu filho, Alberto Meyer, e pelo pastor John M. Kyle”. (O FRIBURGUENSE apud CORRÊA, 2008. p. 123) Em 1886, funda-se o Colégio Anchieta. Instalado no antigo Chateau, como uma filial do Colégio de Itú, em São Paulo. Destinava-se à educação primária e secundária em regime de internato (por 37 anos), e seguia o projeto pedagógico jesuítico inaciano, exclusivamente católico e masculino. O currículo contava com aulas de português, inglês, francês, alemão, latim, cosmografia, geografia, matemática, algebra, geometria, lógica, física, química, história natural, religião, música, canto orfeônico, entre outras. “O dia-a-dia dos alunos se completava com horários de estudo, esgrima, linha de tiro, banda de música e cinema uma vez por semana”. Além disso, “várias modalidades esportivas como […] jogo de dardos, disco, saltos.” (Araújo, 2003b. p. 209). No início do séc. XX contava com mais de 600 alunos matriculados, os quais eram aceitos em universidades internacionais como a de Fribourg e de Detroit sem passar por exames vestibulares (Araújo, 2003b.). Atualmente atende alunos da Educação Infantil ao Ensino Médio e é considerado um dos melhores colégios do Estado do Rio de Janeiro.

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Em 1890, os editoriais reclamavam da insuficiência das escolas públicas. “Estes estabelecimentos limitavam-se à instrução primária” além de que “não atendiam à demanda e às necessidades do município e não correspondiam aos pesados impostos que se pagavam”. (CENSO IBGE, 1890 apud CORRÊA, 2008. p. 126). Outro problema observado nas escolas públicas seria a omissão por parte dos pais e professores. Em 1891, é fundado o Colégio Friburguense11. Colégio particular feminino, sob regime de internato e externato. Em anúncio divulga a grade curricular, que “incluíam português, francês, inglês, aritmética, geografia e corografia do Brasil, história, com especialidade em pátria, primeiras letras, doutrina cristã, trabalhos de agulha ‘e noções geraes de tudo que for objecto de educação moral e intellectual’”. Oferecia ainda, disciplinas como “alemão, italiano, desenho, música, piano e ginástica”, como opcionais a serem “pagas à parte”. (CORRÊA, 2008, p. 124-125). Em 1893, o Prédio do Instituto Hidroterápico, antigo Colégio Freese, é comprado pelas Irmãs da Ordem Santa Dorotéia, que vêm se instalar na cidade “para educar meninas e moças cristãmente, dentro de princípios sociais burgueses”. (ARAÚJO, 2003b. p. 212) E inauguram o Colégio Nossa Senhora das Dores. Internato e externato, católico e feminino, sua metodologia, “procurava evitar rupturas da ordem escolar […] deixando a punição para casos extremos […]: desobediência, indocilidade, preguiça”. A falta mais grave era “namorar de uniforme” e poderia resultar em expulsão. A rotina diária consistia em ocupar totalmente o tempo das alunas, com atividades das seis horas da manhã, às oito e meia da noite. “A ênfase desta instrução recaía sobre o ensino de línguas, matemática, trabalhos manuais e religião.” A rotina escolar era intercalada com práticas religiosas, “confissões, comunhões, rezas entre as aulas”. Tudo isso para evitar a “ociosidade e ocasiões de pecado”. (Araújo, 2003b, pág. 213). Em 1902, O Lyceo Nacional encerra suas atividades. Entre 1902 e 1907, construção do atual edifício do Colégio Anchieta. Em 1907, o Colégio Braune torna-se misto. Em 1922, o Colégio Anchieta fecha as portas.

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Segundo Côrrea (2008), antigo Colégio Wiliams.

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Em 1923, o Colégio Anchieta reabre com Seminário, destinando-se apenas a formação de padres. Em 1928, fecha-se o Colégio Braune. Em 1942, o Colégio Anchieta é reaberto ao público leigo, oferecendo os cursos de administração e ginasial. Em 1948, o Colégio Anchieta passa a oferecer os cursos clássicoe científico. Em 1967, o Colégio Anchieta passa a ser somente externato e começa a receber meninas com alunas. A autora Côrrea (2008), ao falar sobre educação em Friburgo, aponta a presença, ainda no século XIX, de outros estabelecimentos particulares de ensino para meninos, como: o Colégio de Instrucção, dirigido por Guilherme Leocadio Pinto; o Externato América, dirigido por Candido da Silveira Rodrigues; o Collegio Victor Hugo, fundado em 1885 - com internato, externato e semi-internato; e o Instituto Sul-Brazil, dirigido por Menezes, que oferecia para seus alunos em classe elementar, as disciplinas de português, francês, aritmética e geografia; e em cursos médio e superior, de português, francês, história, latim, inglês, geografia, aritmética, álgebra, geometria, literatura e retórica. Ressalta, a introdução de aulas de ginástica e exercício ao ar livre, como inovações introduzidas nas escolas privadas, de acordo com os discursos higienistas da época; e ainda, “a supervalorização da oratória ou da eloqüência ou da retórica, quer sacra, quer política ou simplesmente mundana”, dada nos estabelecimentos de ensino da cidade. (CORRÊA, 2008. p. 134). No que diz respeito as instituições públicas de ensino, a mesma autora, lista: uma escola mista subvencionada na Estação de Conselheiro Paulino - fundada pela decana professora Emília Roschemant; em São Pedro; em Santo Antônio da Campina, e em Banquete; duas escolas públicas mistas na Estação do Rio Grande; e uma escola pública feminina, duas escolas públicas masculinas e duas escolas públicas mistas na cidade. Também, no distrito de Lumiar, o registro de uma escola particular, o Lyceu Lumiarense - que ministrava aulas de francês, caligrafia, leitura, gramática, história sagrada, geografia, análise gramatical, moral e cívica, aritmética e ditado. Por fim, indica a existência de três escolas noturnas na cidade. (CORRÊA, 2008, p. 127-129). No século XX, as questões referentes aos métodos de ensino sofrem uma forte reflexão, passando a ser consideradas como secundárias numa escala de

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importância dos problemas educacionais; deslocou-se, então, o centro de preocupação para questões sobre com a criança aprende, emergindo aí um primado dos fundamentos psicológicos da educação em detrimento dos fundamentos filosóficos e didáticos, componentes essenciais na elaboração de métodos de ensino. Este deslocamento regra uma redução no processo educativo, produzindo uma cultura escolar mais simplificada. No entanto, avançaremos nosso recorte temporal para citar quatro escolas, que trouxeram, ainda, questões relevantes sobre o método de ensino: O Instituto de Educação de Nova Friburgo, o Colégio Modelo, o Cêfel, e o Colégio Nova Friburgo. Em 1912, funda-se a Escola Ribeiro de Almeida; escola leiga e mista – onde meninos e meninas ficavam separados por barreiras simbólicas ou físicas, como em sua sexta sede, inaugurada em 1933 e projeto de Heitor de Mello, que faz uma planta simétrica determinando uma ala masculina e outra feminina. Passa a denominar-se Escola Estadual Ribeiro de Almeida, em 1976, e finalmente, em 1986 implanta-se o Instituto de Educação de Nova Friburgo - voltado para o ensino de professores, e agrega o Jardim de infância Elisa Teixeira Uzeda e o ginásio de Esportes Celso Peçanha. Em 1923, transfere-se para Nova Friburgo, o Colégio Modelo12. Oferecia o curso secundário em regime de internato, semi-internato e externato misto. A princípio funcionou no prédio do antigo Hotel Leuenroth, mudou-se duas vezes, até instalar-se, em 1968, no prédio (construído em 1867, pra ser uma residência) em que encontra-se até hoje. Um panfleto de propaganda, datado de 1927 e pertencente ao acervo do Pró Memória de Nova Friburgo, divulga, que oferecia os cursos de Primário, Complementar, Admissão – visava preparar candidatos aos cursos secundários da própria escola, dos Colégios Militares e Escolas Normais, e Secundário, seriado ou ginasial. Obedecia rigorosamente ao programa do Colégio D. Pedro II,e ainda, “Prepara alunos para as Escolas superiores da República”, destaca também, “Educação physica e instrucção militar”, além da, “Alimentação farta e variada commum aos professores e director”. O Colégio Cêfel - Cooperativa Evangélica Friburguense de Educação Limitada, colégio do movimento protestante, obteve a autorização de funcionamento

Criado, em 1919, pelo professor Carlos Côrtes, na cidade de Cordeiro, a princípio colégio primário que em dois anos já preparava alunos para o exame da admissão ao Colégio D. Pedro II. 12

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em 23 de março de 1945. Para tornar-se membro da cooperativa, o interessado deveria ser indicadopor um membro, e compartilhar da mesma crença; além de não poder “dedicar-se a nenhuma espécie de atividade que entre em conflito com os interesses materiais e educativos da cooperativa” e possuir “boa conduta moral e social”. Por fim, um dos colégios “mais marcantes” da história recente da cidade, o Colégio Nova Friburgo, com regime de internato e externato, leigo e inicialmente masculino, supervisionado pela Fundação Getúlio Vargas, funcionou de 1950 a 1977. Instalado no prédio que seria um hotel cassino, fez-se necessário adaptações como: construção de ginásio esportivo - o primeiro da cidade, pista olímpica, piscina, auditório, um novo prédio para o curso científico - que contava com biblioteca, laboratórios de química e física, dormitórios e áreas de lazer; e posteriormente, prédios de almoxarifado, carpintaria, lavanderia, portaria, abrigo para gerador de força, prédio para trabalhos manuais e prédio do colégio primário (curso fundamental), galinheiros e pocilga; e ainda, uma estação de tratamento, um reservatório e três caixas d’água; e salas próprias de uma proposta educacional moderna - sala de tombamento, sala para clubes, sala de áudio. Constituía-se numa “experiência no campo educacional”. Com modelo pedagógico baseado “nos moldes norte-americano”, sob o princípio que o aluno deve aprender fazendo, iniciava suas atividades às oito horas da manhã e se estendiam até às cinco horas da tarde, visa, assim, oferecer educação em regime integral. Os professores e funcionários moravam em 45 casas no entorno do colégio. (SOUZA,s.d.). Nesta pesquisa buscamos uma visão mais efetiva da trajetória das escolas na cidade de Nova Friburgo. Observamos que, desde a sua fundação, Nova Friburgo espera por cerca de vinte anos até que novos colégios surjam e alcancem pouco a pouco, a imagem de “centro irradiador de ensino”. Contudo, atenderá muito mais os filhos dos grupos economicamente e politicamente dominantes, do que a sua população em idade escolar. Percebemos, também, que problemas educacionais atuais resultaram-se de um processo que teve progressos e retrocessos. Não pretendemos, no entanto, esgotar a temática da educação, nem mesmo da história das escolas na cidade, tendo consciência das lacunas ainda existentes; esperamos, contudo, que tenhamos contribuído para o conhecimento referente as temáticas abordadas. Enfim, buscamos uma abordagem que viabilize leituras sincrônicas e diacrônicas da trajetória da educação na cidade.

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A EDUCAÇÃO NA AMÉRICA LATINA: DO OLHAR COLONIZADOR AO SÉCULO XXI

Camila Dias Amaduro Línea Schneider Maria Beatriz Abicalil Couto Romilda. N. Machado Sheila Cerbino A América Latina constitui inúmeras zonas de contato, lócus não só de assédio e resistência, mas de troca, negociação de intercâmbio, dados de forma assimétrica e baseados em relações de força, mas que alteram substancialmente não só as culturas subalternas ou marginais, mas as do próprio império. Caminhamos ainda no mesmo labirinto de espelhos de nossos antepassados, no percurso ainda de um processo histórico inacabado, seguindo os mortos em busca de nós mesmos. E somos nós, que somos também o outro, que carrega muito do que nos é característico. Zagni

Introdução

A

História da América Latina conheceu duros períodos de dominação colonizadora, destruição dos bens naturais, exploração da mão de obra e escravização por um lado. Por outro ângulo, sofreu inúmeras crises, conflitos políticos, e sociais, desajustes econômicos, regimes ditatoriais, crescimento da pobreza e da violência que a caracterizaram como detentora de altos índices de desigualdade. Em contrapartida a diversidade cultural e étnica desenhou contornos próprios à democratização dos países e a soluções para cada crise: […] a história da América não se iniciou com a vinda de Colombo em 1492, mas é fruto do trabalho árduo, cooperativo, humano de nossos índios, mestiços, das civilizações maias, incas e astecas, que, há milhares de anos, foram capazes de arquitetar, construir, produzir e viver harmonicamente com a 390

Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão natureza e certamente em condições mais dignas que a de alguns cidadãos nos dias atuais. (LAMPERTI, 1998).

O domínio econômico do período de colonização deixou um meio ambiente deteriorado pela exploração dos recursos naturais, o empobrecimento das populações e a subjugação aos interesses econômicos. O maior problema ainda permanece sendo a desigualdade onerando, a um custo social elevado, os 20% mais pobres da população latino americana, ou seja, o percentual de 10%,dos mais ricos acumulam uma renda de 40% a 47%. A população negra e indígena é a que mais duramente sofre as conseqüências da desigualdade: • Aumento da pobreza • Insegurança alimentar (fome) • Baixa escolaridade • Desqualificação profissional • Crescimento das favelas e moradias em áreas de risco • Degradação do meio ambiente • Precário atendimento pelos serviços públicos (água, esgoto, telefonia, educação e saúde) • Ausência de Políticas Públicas para a juventude Na América Latina em 2009, 40,3 milhões de pessoas estarão vivendo abaixo da linha da pobreza, constata o Relatório de Monitoramento Global do FMI e do BIRD (O ESTUDO, 2009), exigindo, pois um esforço dos governos para articularem mecanismos comuns de redução do problema. Após décadas de regimes militares, com níveis variados de violência, e indícios de genocídio no Chile, Argentina e Uruguai, a maior parte dos países conheceu a transição e consolidação da democracia, restabelecendo direitos políticos e novas constituições, nascidos dos movimentos populares, implementando direitos e o exercício da cidadania como imperativos à mudança social, e entre esses direitos, o direito à educação. Cabe a América Latina firmar-se na democracia, estando atenta a manobras continuístas de alguns chefes de estado e a contenção da corrupção, via transparência no uso e nas prestações de conta dos orçamentos públicos e acom391

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panhamento dos gastos. Imperiosos ainda investimentos justos em educação, colocando-a no centro das ações regionais de estados e governos. Desenvolvimento Ainda hoje a América Latina se ressente da educação eurocêntrica dominante no período colonial de forte conotação religiosa, predomínio da cultura enciclopedista, voltada para a eloqüência e a dialética, baixo estímulo ao pensamento crítico e desprezo pela investigação científica. Historicamente os países latino-americanos se constituíram como nações colonizadas com base na dominação e imposição de uma língua, destruição dos alicerces educacionais e culturais dos povos nativos, desumanização dos habitantes locais. Paralelamente, implantaram uma cultura autoritária, ora com um discurso dominador, ora com outro protecionista. Durante o período colonizador apenas as elites, os filhos dos colonizadores, ascendiam aos cursos secundários, geralmente mantidos por religiosos, obtendo na Europa posteriormente o grau universitário. Aos nativos, aos escravos, pouco conhecimento e apenas o primário, através de peças de teatro, com o nítido intento de impor a religião dominante. As lutas pela Independência trouxeram novos olhares para a realidade com a instalação de escolas e o resgate dos valores de cada civilização antes submetidos às normas homogeneizadoras do colonizador europeu. Ao longo da história a América Latina avançou em inúmeras conquistas sociais, econômicas e educacionais, porém O´Connor destaca educação e saúde como pontos a aprofundar com a inclusão dos filhos dos excluídos, com garantia de nutrição e conclusão de estudos superiores (POBREZA, 2009). O desenvolvimento educacional da América Latina é reconhecido, especialmente no acesso a Educação Básica quanto na expansão do Ensino Superior e da Educação Profissional numa real democratização da educação. […] democratizar o ensino seria oferecer a todas as camadas da população e a todas as categorias sociais iguais oportunidades de freqüentar a escola […] iguais oportunidades para ricos e pobres, moradores da cidade e do campo, homens e mulheres. (GHANEN, 2004, p.63).

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Inúmeras e positivas experiências surgiram em diversos países visando garantir aprendizagem para todos, por exemplo, a Escuela Nueva na Colômbia, envolvendo aprendizagem participativa, atividades solidárias, peculiaridades locais, professor líder da comunidade. Chile, Guatemala, El Salvador e Honduras, têm sistema semelhante. O Brasil, através do Programa Bolsa Família, procura com ações em saúde, nutrição e educação garantir permanência e aprendizagem escolar. O indicador OXFAM-UNESCO (AKKART, NOGUEIRA, 2007) conjuga alfabetização de adultos, nível de igualdade entre sexos e números médios de anos de escolaridade, classifica os países da América Latina em três grupos: GRUPO I – Desenvolvimento Alto: • Argentina • Chile • Costa Rica • Guiana • Peru • Trinidad y Tobago • Uruguai GRUPO II – Desenvolvimento Médio: • Brasil • Colômbia • Equador • Jamaica • México • Panamá • Paraguai • Venezuela GRUPO III – Desenvolvimento Baixo • Belize • Bolívia

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• Republica Dominicana • El Salvador • Guatemala • Haiti • Honduras • Nicarágua Análises da UNESCO relatam que a América Latina, até 2015, terá todas as suas crianças na escola. Em contraponto a isso, permanecem como foco de preocupações: 1. as disparidades persistentes entre países, 2. as disparidades no interior de cada país (especialmente, México, Colômbia e Brasil), adiando a melhor qualidade para o ensino. 3. o analfabetismo insistente entre a população maior de 15 anos com forte impacto na qualidade de vida e nas oportunidades de trabalho, afeta 35 milhões de latino americanos, sendo que um 1/3 ou, 14 milhões são brasileiros,Jose Rivero –educador peruano e consultor internacional - insiste que Estado e sociedade civil devem enfrentar conjuntamente o problema. Há mais esperanças na medida em que há mais consciência de que não se pode seguir como era antes. Há programas muito interessantes, mas é preciso que os países se organizem sabendo quanto custa alfabetizar. "Não basta o político dizer que precisa alfabetizar, é preciso saber o preço." Com autoridade alerta para os riscos a educação dessa parcela da população em decorrência da crise financeira internacional. […] ás vezes nos esquecemos de que não pode existir um bom futuro em matéria de alfabetização se a escola pública não for fortalecida, ela é a grande alfabetizadora. E para isso é preciso dinheiro. (ONU, 2009) A tabela abaixo demonstra a situação de cada país da América Latina frente o analfabetismo de acordo com a CLADE (Comissão Latino Americana pelo Direito à Educação, 2009).

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1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19.

Cuba Uruguai Aruba Argentina Chile Costa Rica Venezuela Colômbia Panamá Equador México Paraguai Suriname Brasil Peru Bolívia Honduras Nicarágua Guatemala

0,2% 1,9% 2,7% 2,8% 4,3% 5,1% 7,0% 7,2% 8,1% 9,0% 9,1% 9,8% 10,4% 11,4% 12,3% 13,3% 20,0% 23,3% 30,9%

O relatório UNESCO aponta um ponto positivo: 62% das crianças recebem educação pré-primária ou pré-escolar na América Latina, contra 35% na Ásia Oriental e no Pacífico; 32% na Ásia Meridional e Ocidental; 16% no mundo árabe e 12% na África Subsaariana. O mesmo relatório considera ainda, os esforços para qualificar profissionais para atuarem na educação infantil (AMÉRICA, 2009). Passada a onda neoliberal, com predomínio dos interesses econômicos na educação, os países agora devem enfrentar o desafio de oferecer educação plural, igualitária a seus cidadãos, promovendo a educação para a vida em ambientes humanos e educacionais múltiplos e interativos, numa escola de horário integral. Povos e governos devem melhorar as condições de trabalho dos profissionais da educação, promovendo qualificação permanente, políticas salariais condizentes à responsabilidade. Para erradicar o analfabetismo a América Latina em seu conjunto deve investir pesadamente em educação, acompanhar e controlar a distribuição dos recursos públicos, ampliar a oferta de bibliotecas, salas de informática e acesso de profissionais e estudantes aos mais variados equipamentos culturais. As reformas educacionais executadas no continente latino americano têm como característica o processo de descentralização, consonante com as metas

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estipuladas pelos organismos econômicos internacionais. Tal descentralização, entretanto, refere-se ao cotidiano da escola, e variável de país a país. Observa-se, porém que o poder público não abre mão de definir a política educacional, as avaliações e a normatização do sistema educacional, aceita no máximo, partilhar com os demais entes, o financiamento, o currículo e o planejamento. Considerações finais A solução para a bipolaridade desigualdade social / educação de qualidade presente na América Latina terá de percorrer inúmeros caminhos, uns de caráter político, outros, de cunho administrativo-financeiro. Desta forma a decisão política passa pelo enfrentamento das posições neoliberais e desregulamentadoras, impondo aos sistemas educacionais, forte contenção de salários, o desgaste dos profissionais envolvidos, perda da qualidade do ensino. Governos firmes em políticas educacionais colocam a agenda educacional como prioridade a ser realizada e definem Planos Nacionais adequados as suas realidades. O caminho político deverá: • Implantar o Plano de Cargos e Salários, • Estabelecer a política salarial nacional para a categoria • Ampliar e acompanhar a formação dos profissionais. • Ampliar o percentual da Educação no Orçamento Público, estabelecendo simultaneamente mecanismos de acompanhamento e controle dos gastos. • Definir a Política Nacional de Educação, garantindo a TODOS, sem discriminação, EDUCAÇÂO DE QUALIDADE e INCLUSIVA. • Articular com os governos regionais da América Latina a definição de objetivos comuns de forma a resgatar os valores e tradições dos povos nativos, bem como, incentivar Programas e Projetos de ampliação de escolaridade aos maiores de 15 anos, sem descuidar-se da Alfabetização Popular. • Estabelecer metas para a Educação Rural com foco na erradicação do analfabetismo. • Ampliar cursos de qualificação e educação profissional, geradores de melhores condições de empregabilidade.

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• O caminho administrativo financeiro deverá estabelecer: • Oferta da Escola de Horário Integral. • Currículos cada vez mais inseridos nas realidades locais, permitindo a redução das diferentes formas de desigualdades. • Utilização das ferramentas tecnológicas, numa ampliação da inclusão digital. • Estimular a participação comunitária, sem que isso signifique a exclusão do poder público dos encargos de manutenção e modernização dos espaços escolares.

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REFERÊNCIAS

AMÉRICA Latina tem a melhor educação infantil do mundo em desenvolvimento. Disponível em . Acesso em: 6 nov. 2009. AKKAR, Jalil-Abdel, NOGUEIRA, Natania. As condições para uma Educação Básica de Qualidade na América Latina. Diálogo Educacional, Curitiba, vol.7, n.22, pp.131-145, Set/dez. 2007. Disponível em: . Acesso em: 6 nov. 2009. CLADE,Brasil concentra mais de 1/3 dos analfabetos da América Latina. Disponível em:.Acesso em:6 nov. 2009. GHANEM, Elie. Educação escolar e democracia no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica/Ação Educativa, 2004. In: Akkar, Jalil-Abdel, Nogueira, Natania. As condições para uma Educação Básica de Qualidade na América Latina. Diálogo Educacional, Curitiba, vol.7, n.22, pp.131-145, set/dez. 2007. Disponível em: .Acesso em: 6 nov. 2009. LAMPERT, Ernani. Educação e Mercosul: desafios e perspectivas.Rev. Fac. Educ., São Paulo, v. 24, n. 2, jul. 1998. Disponível em:. Acesso em:6 nov. 2009. ONU, Brasil concentra mais de 1/3 dos analfabetos da América Latina. Disponível em:.Acesso em:6 nov.2009. POBREZA, educação e qualidade institucional: desafios da festa do bicentenário argentino. Disponível em:.Acesso em:6 nov. 2009. ZAGNI, Rodrigo Medina Reflexos Distorcidos no Espelho de Próspero Hegemonia e Identidade Supranacional nas Relações entre EUA e América Latina, das Independências às Vésperas das Guerras Mundiais Disponível em:. Acesso em:6 nov. 2009. 398

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FLAGRANTES DISCURSIVOS – UM MODO DE VER A HISTÓRIA DA PROFISSÃO DOCENTE Kelly Cristine Oliveira da Cunha

Introdução

A

s pesquisas sobre a relação existente entre linguagem, consciência e pensamento reiteram o interesse em um estudo que, baseado em enunciados recolhidos na escola, busque a compreensão da ideologia, dos valores e dos sentimentos que permeiam este ambiente. Para tanto, este trabalho traz enunciados que foram ouvidos no contexto escolar e serão aqui analisados em situações concretas de comunicação discursiva, com o objetivo de melhor compreender a instituição escolar contemporânea, suas conquistas e perdas, alegrias e angústias. Enfim, buscar nos discursos, uma visão mais ampliada e crítica do ambiente em que profissionais da educação e alunos emergem enquanto construtores de uma realidade que, por sua vez, carrega marcas históricas e é influenciada por perspectivas futuras. Seguindo a orientação de Bakhtin (2003), estes enunciados foram agrupados em razão do contexto do qual fazem parte, pois assim compõem um tipo relativamente estável de enunciação, ou seja, compreendem um gênero do discurso formado em condições de comunicação discursiva imediata, ou seja, falas cotidianas espontâneas, desprovidas de elaboração antecipada. Agrupados os enunciados formados no contexto escolar, é possível examiná-los com relação ao seu todo. São autores destes enunciados, autoridades políticas, alunos, professores, diretores, coordenadores e responsáveis ou pais de alunos, e suas falas serão estudadas não só em suas autorias, mas também em seu elo na cadeia de comunicação discursiva e na relação com outros enunciados a eles vinculados, pois neles estão presentes seus enunciados, os de outros que, por ventura, estejam presentes no momento da formação discursiva, e, antes de

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tudo, os elos precedentes à cadeia (que podem ter sido produzidos imediatamente ou remetem ao contexto sócio-histórico-cultural da escola como instituição social). Ressonâncias históricas – um modo de ver a (des)valorização do profissional docente Entre tantos problemas que afligiu o magistério, a baixa remuneração é assunto comum entre professores. Uns revoltados, outros descrentes, não há profissionais docentes satisfeitos com seu salário. Com a imagem social deteriorada e sem reconhecimento, os professores vêm desempenhando seu papel, alguns com afinco e responsabilidade por reconhecerem a si próprios como fundamentais no desenvolvimento de uma sociedade mais justa e outros nem tanto, provavelmente por já não suportarem mais a rotina, aparentemente eterna, de perseverança e crença no futuro da profissão. Discursos pejorativos estão em todos os lugares, seja por parte do aluno que diz que professor não faz nada, só “passa um deverzinho” e eles (os alunos) precisam fazer, seja da grande quantidade de pessoas que diz que professor só trabalha meio período, ou que professor tem muitas férias, entre muitos outros – há sempre alguém com alguma frase que desmereça o profissional docente, analisando seu trabalho superficialmente, com discurso reducionista. Algumas frases tornam-se inesquecíveis e são lembradas e repetidas em não raros momentos de discussão a cerca da desvalorização do magistério. A que se segue é tão conhecida, que já ganhou versões diferentes de tantas vezes repetida:“Professora não ganha mal, professora é mal casada!” Dita por um famoso ex-governante e incitada por um movimento grevista, a frase tornou-se um símbolo do que as autoridades pensam (ou querem veicular) sobre a remuneração do profissional docente. Recordo Bakhtin (1997, p.33) quando afirma que “cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas um fragmento material dessa realidade”. Ou seja, cada palavra vive num determinado contexto concreto; mas vai além, continua ressoando, pois como Bakhtin enfatizou, o signo não morre. Assim, enquanto fragmento de uma história que, sutil ou, às vezes, explicitamente, descredibiliza o professor, mais especificamente a professora, esta frase se firma como material ideológico e, portanto, de estudo para a compreensão de um modo de ver e de fazer que participa de um processo de desvalorizaçãodo profissional docente ao longo dos anos.

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O enunciado citado representa uma visão da formação profissional da professora e do trabalho que ela desempenhou nas escolas há décadas atrás, quando a profissionalização das mulheres ainda era pequena, não havia democratização das creches e ouvia-se sobre as professoras: “Salário de professora é para os alfinetes”. Nesse momento, a classe média ocupava a maioria das cadeiras do magistério e para os maridos era preferível que a mulher ficasse em casa com os filhos. Trabalho mesmo, quem exercia era o homem. Na escola, ela apenas ocupava-se um pouco, para não ficar todo seu tempo em casa. Os enunciados trazem implícito a marca do pensamento de uma época, que pouco via a mulher como indivíduo intelectualmente capaz, e também ressoam os (pré)conceitos que compunham uma fase em se inicia o declínio da valorização salarial do profissional docente. O magistério, hoje, ainda enfrenta os mesmos problemas, porém, como atualmente há mais homens exercendo a profissão docente e há uma visível entrada da mulher no mercado de trabalho em geral, tem-se a impressão de que esta ideologia - que inferioriza as mulheres e, com elas, o magistério - vem se enfraquecendo, no entanto, quando se trata de ideologia, o problema é mais complexo. Uma fala a mim relatada pela diretora de uma escola comunitária,traz para a atualidade novamente essa idéia, chocando a todos que a ouviram. Segundo a diretora, todos estavam reunidos na escola para a discussão de inúmeros assuntos, dentre eles, aumento de salário. Quando um professor toma a palavra e, como argumento para justificar seu aumento salarial, diz: “[…] vocês podem observar, a professora mais arrumadinha é aquela que tem marido, um homem não pode receber este salário!” Imediatamente pensei se o homem também não anda mais arrumadinho quando casado com uma mulher economicamente ativa. Está implícita novamente a idéia de inferiorização do trabalho feminino: a mulher/professora não desempenharia um papel rentável e o homem/professor sim. Mesmo com todas as mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas, como a profissionalização da mulher e sua inserção no mercado de trabalho em geral, que possibilitaram o desenvolvimento de um novo status familiar e social que a inclui nas tomadas de decisões, esse movimento apenas vislumbra tal eqüidade social entre homens e mulheres. A velha ideologia cunhada sob o ponto de vista masculino não morreu e parece não estar em vias de acabar. Neste último enunciado citado, a mulher/professora, teoricamente, não utilizaria seu salário para a manutenção da casa, para o conforto dos filhos, nem tampouco para se arrumar, seu salário não serviria nem para

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os alfinetes? O que faz um ponto de vista de décadas atrás aparecer atualmente, quando os papéis homem/mulher não estão mais tão definidos na organização familiar? Isso denota, ainda que controversamente, uma suposta irrelevância da mulher na composição da renda familiar, como se a sociedade não considerasse a possibilidade de a mulher ser cabeça de família, fato que já ocorre e demonstra-se crescente na sociedade atual. Ou seja, embora a mudança esteja ocorrendo, a mulher/professora dedique sua renda sim à manutenção doméstica, podendo ser esta algumas vezes a única renda familiar, esse novo valor social ainda não é percebido ou não quer ser percebido por muitos, o que se confirma em Bakhtin quando diz que “[…]o signo ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como sendo a de hoje em dia. Donde o caráter refratário e deformador do signo ideológico nos limites da ideologia dominante.” BAKHTIN (1997, p.47).

O autor citado nos ajuda a compreender que, ainda hoje, discursos como este são ditos, sem constrangimento, por seus locutores. O que traz para a atualidade duas idéias que, há muito, caminham juntas: uma suposta inferior capacidade intelectual feminina e a desvalorização do profissional docente. Embora pesquisas demonstrem o potencial intelectual feminino e a valorização de professores seja assunto sempre em pauta, à boca miúda, o que se diz é bem diferente, ainda carrega uma ideologia que subalterniza a mulher o que, entre muitos outros fatores, subalterniza também o profissional docente. O que a história explica A subalternização das mulheres no mercado de trabalho em geral se explica historicamente. É sabido de todos e pauta comum na mídia as lutas travadas pelas mulheres pelo seu reconhecimento profissional. No magistério não seria diferente. Segundo Villela (2007), há uma vertente interpretativa que enxerga a entrada da mulher no magistério como concessão dos homens, que abandonariam a carreira em busca de profissões mais bem remuneradas; uma outra que associa a feminização do magistério à queda do prestígio da profissão e à baixa remuneração docente e outra que vê a questão de maneira mais complexa, vê sua desvalorização 402

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acontecer devido à lógica capitalista que não dá importância a uma profissão que atente à população de baixa renda, nega que as mulheres tenham entrado nesse ramo sem a resistência dos homens e considera a necessidade de as mulheres assumirem o magistério de escolas femininas, no século XIX. É fato que a feminização do magistério não dá conta sozinha de explicar a desvalorização da educação, há muitos interesses políticos, de dominação, por trás disso. Porém, essa relação não deve ser descartada como inexistente. Ela tanto existe, que ainda faz parte de certos discursos atuais que remetem a uma sociedade patriarcal. Ainda em Villela (2007), na década de 30 do século XIX, quando da criação das primeiras escolas normais no Rio de Janeiro, já se praticava a exclusão do saber em relação às mulheres, que não eram formalmente proibidas de freqüentar escola, porém tinham o conteúdo de seu currículo reduzido. Elas deveriam ler, escrever e fazer as quatro operações, aprenderiam também a coser, bordar e demais afazeres próprios da educação doméstica. Enquanto aos meninos se ensinava a parte relativa aos decimais e proporções, bem como o estudo da geometria. Essa diferenciação se dá em virtude dos preconceitos quanto à capacidade intelectual feminina em uma sociedade patriarcal. Diferenciação esta resguardada legalmente em emenda à Lei Geral do Ensino de 1827, que propunha à simplificação dos conteúdos das escolas femininas. Evidenciado em discurso proferido pelo senador Visconde de Cayru ao defender a superioridade masculina e pelo Marquês de Caravellas: “…as meninas não têm desenvolvimento de raciocínio como os meninos”. Essa diferenciação nos currículos perdura durante todo o século XIX, tanto nas escolas primárias femininas quanto nas seções femininas das escolas normais. Somente no final do século, momento em que o número de mulheres superava o de homens, unifica-se o currículo. No entanto, esse nivelamento é feito por baixo, excluindo um ensino mais aprofundado da matemática. Seria mera coincidência a unificação e simplificação do currículo se darem no mesmo momento em que mulheres são maioria nas cadeiras dos cursos normais? Mesmo atualmente, os cursos normais ainda existentes1 não oferecem estudo aprofundado de matemática, e disciplinas como física, química, biologia e língua estrangeira não constam de alguns currículos. 1

Atualmente, a instância privilegiada para a Formação de Professores é a Superior.

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As escolas normais, instituições autorizadas a formar o novo professor, que substituiria o “mestre-escola”, vivenciaram uma série de mudanças curriculares, as principais delas citadas por Villela: Pelo Ato n° 10 da Assembléia Legislativa da Província do Rio de Janeiro, na década de 30, ficaram definidas as disciplinas que seriam ministradas pelo diretor, seu único professor, naquele momento: a escola será regida por um único professor que ensinará os conhecimentos da leitura e da escrita pelo método lancasteriano, cujos princípios doutrinários e práticos explicará; as quatro operações de aritmética, quebrados, decimais e proporções; noções de geometria teórica e prática, elementos de geografia; princípios da moral cristã e a religião oficial e a gramática nacional. Começa-se por uma grade simplificada, que se diferencia das escolas primárias somente pelo estudo do método, para cujo ensino foi impresso o primeiro compêndio pedagógico – Curso Normal para professores de primeiras letras. Este primeiro currículo recebeu acréscimos pela Reforma de 1847, possibilitando a oferta de formação diversificada para professores de ensino preliminar e médio. Os candidatos do ensino preliminar deveriam cursar língua nacional, aritmética, álgebra, geometria elementar, catecismo, religião do Estado e didática, música e canto, desenho linear, geografia e história nacional e os candidatos ao ensino médio cursariam as mesmas disciplinas acrescidas de história nacional e sagrada, noções gerais de ciências físicas e história natural aplicáveis aos usos da vida. Há um retrocesso durante a presidência de Coutinho Ferraz, quando se delibera que os professores seriam formados pela própria prática. Em 1859, no Rio de Janeiro, a escola normal é recriada e estabelecem-se as “cátedras” na seguinte seqüência: língua nacional, caligrafia, doutrina cristã e pedagogia; aritmética, inclusive metrologia, álgebra (até equações do 2° grau), noções de geometria teórica e prática e desenho linear; elementos de cosmografia e noções de geografia e história, compreendendo com maior desenvolvimento a do Brasil; música e canto. Neste período há novamente ensino diferenciado para homens e mulheres. As alunas aprenderiam todas as matérias do curso masculino com exceção da álgebra e da geometria. Em substituição o currículo comportaria os “trabalhos de agulha” e as “prendas do exercício doméstico”, primeiro sob o nome de prendas e, em seguida, se chamaria prática.

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Na década de 1880, com a Deliberação de 14 de fevereiro, introduzia-se no Currículo maior número de disciplinas de caráter científico como física, química, botânica, zoologia e higiene, e o estudo de francês. Porém, tal reforma foi desautorizada no final do ano letivo, momento em que o número de mulheres já havia superado em muito o número de homens. Com o advento da República, o ensino da religião foi proibido para os cursos normais da época e houve novas alterações na grade curricular, promovendo uma escola que garantia a formação de uma ideologia republicana. O ensino de prendas é mantido para as mulheres. Em 1893, a grade curricular assim se compunha: Português e literatura portuguesa e nacional; aritmética, álgebra e geometria, geografia e cosmografia, história, principalmente a do Brasil; física e química elementares, elementos de mineralogia; história natural e elementos de higiene; francês; pedagogia e metodologia; introdução moral e cívica; caligrafia, desenho geométrico e de ornato; música; ginástica e trabalho de agulhas e economia doméstica (exclusivo para o sexo feminino). Segundo Beraldo (2001, p.21), para dar combate ao analfabetismo, os republicanos reforçavam as idéias que associam a docência ao sacerdócio. Nessa perspectiva, esse ofício caía muito bem para as mulheres em função da suposta capacidade que o gênero feminino tem de doar-se sem esperar grandes recompensas. “Uma vez entendido o magistério primário como uma missão, fundamentalmente como função materna, os papéis representados pelas professoras ganhavam em dignidade o que perdiam em recompensa material. O trabalho docente, assim como a dedicação materna, não tinha preço. Que fosse pago então pelo reconhecimento e valorização sociais de seu papel, valor maior que qualquer pagamento material.” (CORREA,1991, p. 197, apud BERALDO, 2001, p. 21).

Como se pode constatar, o acesso da mulher à profissão docente, até o século XIX, foi lento, difícil e marcado por preconceitos próprios de uma sociedade patriarcal. A escola para mulheres teria um currículo inferior, até o momento em que se inferioriza totalmente o currículo, visto que a escola era composta em sua maioria por alunas. Com a chegada do século XX, os currículos escolares são moldados segundo a orientação positivista e as escolas passam a ser um lugar privilegiado de mo-

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dificação de hábitos e formação do novo cidadão. Nas primeiras décadas, nas escolas normais, era predominante a presença de estudantes provenientes de famílias com posses. Nesse contexto de patriotismo exacerbado, a escola enquanto disseminadora da ideologia passa a ser mais valorizada e com ela as normalistas e professoras, então maioria absoluta no magistério. Esse movimento de valorização ganha corpo chegando a se evidenciar numa visão romantizada da normalista, que pode ser constatada com a música Normalista de autoria de Benedito Lacerda e David Nascer, interpretada por Nélson Gonçalves, famosa canção da época: Vestida de azul e branco Trazendo um sorriso franco Num rostinho encantador Minha linda normalista Rapidamente conquista Meu coração sem amor Eu que trazia fechado Dentro do peito guardado Meu coração sofredor Estou bastante inclinado A entregá-lo ao cuidado Daquele brotinho em flor Mas a normalista linda Não pode se casar ainda Só depois que se formar Eu estou apaixonado O pai da moça zangado E o remédio é esperar Reconhecidas e respeitadas as professoras e normalistas experimentam o prestígio social que os interesses políticos e ideológicos trazem para o magistério. Falas trazidas deste tempo por avós e bisavós também retratam o orgulho de ser professora de outrora: “Casou com professora para dar o golpe do baú.”ou ainda“ Marido de professora é malandro.” Numa época em que apenas os trabalhos socialmente respeitados eram assalariados, as professoras recebiam salário e isso as tornava alvo de interesse por parte dos homens, muitas vezes interpretado pelas famílias como interesses

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financeiros. A normalista/professora ganhara um novo status, passara então a ser admirada por todos. O que pode ser constatado inclusive agora, quando avôs e avós são os que mais se orgulham de terem netas professoras, principalmente em famílias de classe popular. Tais tempos áureos perduram até a década de 50, quando o domínio da cultura escrita e os hábitos refinados das professoras ainda geram orgulho de pertencer a um grupo socialmente privilegiado. A partir dos anos 60 e 70, quando políticas públicas iniciam um processo de sucateamento do magistério, tornam-se perceptíveis os primeiros indícios de descaso do governo com relação ao magistério como prédios sem material adequado, profissionais com formação escassa, entre outros. Com o fim da ditadura militar, o Brasil vive um momento privilegiado de união das classes e forças sindicais frente às lutas pelos direitos do trabalhador; nesse momento, os professores conseguem, através de paralisações, greves e forte movimentação de grupos organizados e sindicatos de classe, um reajuste salarial significativo, quando se dizia em caso de nascimentos:“Esse nasceu em berço de ouro!” A partir de então, há um processo de enfraquecimento do movimento organizado de professores, causado por políticas de deslegitimação e ataque às greves e qualquer outra manifestação de insatisfação dos profissionais do magistério, o que gerou uma conseqüente fragmentação da classe, conseqüência também da formação de um Estado neoliberal. O que mudou na história da profissão docente? Que traços foram mantidos? A produção da não-existência do professor pode ser explicada pelo que Santos chama de lógica da classificação social que consiste na distribuição das populações por categorias que naturalizam hierarquias. A classificação sexual é uma saliente manifestação desta lógica, visto que as mulheres foram culturalmente dominadas e sua inferioridade (tratada como fragilidade) tornou-se norma, ou seja, natural dentro de uma hegemonia masculina. A docência foi atribuída às mulheres por ser considerada uma extensão da educação doméstica e, por isso, vista como atividade que dispensa maior remuneração devido ao seu caráter supostamente 2

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Santos, Para uma sociologia da ausências e uma sociologia da emergências.

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materno. Quando se aproxima a docência dos afazeres próprios da educação doméstica, quando ela é tomada como adequada à natureza feminina, naturaliza-se também o magistério como categoria inferior. Assim, o magistério está para as demais profissões, como a mulher está para o homem em uma sociedade patriarcal, isto é, inferiorizados posto o lugar que lhes são dados na dicotomia hierárquica da lógica racional ocidental. Para Santos, é nesta lógica que a desqualificação incide prioritariamente sobre os agentes, logo, há a desqualificação do magistério em virtude da desqualificação dos professores, 85% deles mulheres. Assim, instalado sobre a sólida monocultura da naturalização das diferenças3, o magistério encontra dificuldades para sobreviver dignamente. Os conteúdos dos cursos de formação de professores ainda são considerados “fracos”, sendo essa escola ainda composta majoritariamente por mulheres (embora esteja havendo uma crescente procura masculina). Desde sua formação, há quem considere os professores menos capazes que outros profissionais, as universidades reservam alas menos equipadas aos cursos de magistério e essa categoria profissional, quando comparada com outras de mesmo nível de formação, é bastante mal remunerada. Conclusão A desvalorização do trabalho intelectual feminino, assim como a do magistério vem caminhando senão juntas, paralelas. A voz do ex-governador que ridiculariza a mulher enquanto profissional ainda ecoa. Ecoa na fala do professor que julga merecer um salário melhor que o da professora, devido a suas responsabilidades financeiras. O trabalho docente feminino ainda é visto como irremunerável, visto que, para esse professor, não é suficiente nem para arrumar as mulheres. Quando há muitos indícios de que as mulheres estão sendo mais respeitadas em seus ambientes de trabalho, mais especificamente, no exercício do magistério, ainda se escuta frases capazes de chocar. Os locutores dos enunciados analisados contribuíram substantivamente para uma compreensão de alguns dos

Termo usado por Santos para explicar a lógica da classificação social, uma dentre as cinco lógicas que ele utiliza para explicar a razão metonímica, lógica de racionalidade em que nenhuma das partes pode ser pensada fora da sua relação com a totalidade e que é dominante nos estratos do mundo abrangidos pela modernidade ocidental.

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muitos fatores que influenciaram na construção do magistério que se apresenta atualmente. A consciência, para Bakhtin, adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. O que denota um conjunto de forças capaz de construir uma sólida ideologia que atravessa séculos, os signos que formaram a consciência outrora, ainda ressoam, e porque ressoam colaboram para a manutenção de uma sociedade que cria a inferioridade e a condena. A naturalização da condição de inferior quase retira dos professores e professoras argumentos que validem seus anseios como profissionais, isso porque culturalmente já se encontram instalados valores que justificam o tratamento recebido. É importante questionar que interesses dão suporte aos valores e ações que se entrecruzam em determinada época, dando forma a um modelo social vigente. É nesta perspectiva que se torna possível compreender melhor para intervir bem.

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REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV, V.N.) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997. ______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BERALDO, Tânia Mara Lima. Ciência e docência – Revista Ciência e Ensino. n°10, Julho de 2001. REVISTA NOVA ESCOLA On-line. Rotina Desigual. SANTOS. Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Texto digitalizado. VILLELA, Heloísa de O. S. O mestre-escola e a professora. In: 500 anos de Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

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MESTRES DA ESCOLA, MESTRES DA RUA: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE AS PRÁTICAS SÓCIO CULTURAIS E O ENSINO FORMAL

Munira Queiroz Eles chegaram. Eles tinham a Bíblia, nós tínhamos a terra. Eles nos disseram: `Fechem os olhos e rezem`. Quando abrimos os olhos, eles tinham a terra e nós tínhamos a Bíblia. Desmond Tutu

O

presente artigo dá continuidade aos estudos sobre as representações mentais que venho desenvolvendo em meu percurso acadêmico. A idéia de eficiência sócio ambiental identificada pelas emoções e devolvida ao mundo externo em forma de ações do individuo foi apresentada no Colóquio do Departamento de Ciências do Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense, em 2007. Este encontro gerou um profícuo questionamento das impossibilidades metodológicas frente à complexidade de uma mensuração qualitativa das emoções do indivíduo. Do debate resultou uma proposta de pesquisa bibliográfica sobre a identificação das possíveis relações entre os conceitos de representações mentais (fantasias e imaginação) e as práticas sócio culturais. As práticas sócio culturais, entendidas como processos sociais, ao serem analisadas muito nos informam a respeito de um determinado grupo. As ações, a linguagem, os dizeres e os fazeres, o comportamento, os hábitos e atitudes, a formulação de conceitos e valores, são indicativos para identificar um grupo, diferenciando-o dos demais. Portanto, pode haver a partir de uma associação um reconhecimento mútuo e uma possível troca de experiências entre os Mestres da Rua (não reconhecidos pelos mecanismos formais de ensino) e os Mestres do Ensino formal. Arroyo (2001, p. 273) falando dos fluxos e refluxos dos movimentos sociais, mostra que diversamente dos anos 80, os movimentos atuais trazem outras tramas sociais e outros sujeitos sociais que incomodam. Essa visão da história faz 411

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parte de nossa tradição e para o autor avançamos na construção de projetos educativos. “Educar é colaborar na construção de sujeitos sociais, culturais, políticos. É estar atentos a essa construção, aos sujeitos coletivos educativos”. E avisa: “para captar essas dimensões educativas dos processos sociais teremos de alargar nosso olhar. Às vezes estamos tão centrados na escola, temos um escolacentrismo tão grande que pensamos que, se os excluídos não passam pela escola continuarão na barbárie. Fora da escola não há salvação.” Cabe a seguinte questão: Existe alguma relação entre educação, as representações mentais e as práticas socioculturais? O objetivo principal deste artigo é, a partir de uma análise, verificar a possibilidade de existir um novo olhar sobre a vida fora da escola através das “Maestrias”, havendo inclusão da realidade da rua na vida escolar por meio de trocas e associações entre os Mestres aqui denominados como da Rua (da Capoeira, de Rap, dentre outros) e os do ensino formal. Outras questões se impõem ao nosso estudo: Como algumas práticas socioculturais de indivíduos - reconhecidos como Mestres (da rua) - passam a constituir uma cultura marginalizada frente aos Mestres da Escola? Como os Mestres da Escola, seja ela pública ou privada, ratificam a marginalização desses indivíduos não obstantes serem eles reconhecidos fora da instituição escolar? Quais as relações entre as fantasias e imaginação do indivíduo e as práticas sócio culturais? As novas experiências sócio culturais podem contribuir para a formação de um novo padrão de imagem corporal? As vivências culturais (capoeira, maculelê, samba de roda, repente, dentre outros) podem contribuir para a construção de uma nova identidade que atenda às exigências identitárias do mundo pós-moderno? Freitas e Freitas (2002, pp.12,13) no artigo intitulado “Educação Física Escola: “A capoeira como alternativa presente”, destacam que em função de sua gênese sócio histórica a capoeira é mantida a distância do meio acadêmico, salvo nos casos em que é objeto de estudo sócio antropológico. Os agentes sociais que detém esse saber são tradicionalmente mantidos afastados dos meios culturais eruditos. Projetos eugênicos discriminatórios que desvalorizavam a capoeira como agente disseminador de cultura foram em parte responsáveis por sua marginalização e exclusão. Não se pode descartar o peso da história de domínio e submissão do povo latino americano que tem grandes desafios a enfrentar, conforme descreve Anita Novinsky, Presidente do Congresso Internacional América 92 – Raízes e Trajetórias:

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão O desafio da America em moldar um novo homem é um fardo pesado, que implica uma comunhão de esforços em prol da educação, de uma orientação humanística, onde o valor supremo já não seja salvar as almas, mas, como diz Leopoldo Zea, salvar o homem que vive e morre. Não é a grandeza da conquista que faz a America orgulhosa de seu passado, mas a história clandestina de seus hereges, de seus índios, de seus negros, de seus judeus. É a mistura de povos que antecipa o mundo futuro onde, esperamos, não haverá mais lugar para “raças puras”. A herança que nos honra não é a que recebemos dos dominadores, mas dos milhares de espanhóis e portugueses que resistiram e sucumbiram à dominação.(ANITA NOVINSKY,1999, p. 14).

Para melhor esclarecimento destacamos algumas definições da palavra Mestre: Homem que ensina, professor. Aquele que é perito ou versado numa ciência ou arte. Homem superior e de muito saber. Aquele que se avantaja em qualquer coisa. O que serve de ensino ou lição. Título dado a artista, cientista ou escritor eminente, em sinal de respeito. O mourão mais grosso, que se põe no ângulo do aramado. Que é o mais importante, que serve de base ou de guia. (Holanda Ferreira, 1980). Embora o problema da marginalização dos “Mestres da rua” não seja novo nem circunscrito aos países latino americanos, constituí-se um novo objeto social, uma vez que, por seu modo de agir não se inserem no ensino formal e muitas vezes sofrem preconceito por parte da sociedade. Cabe assinalar que, paralelamente às tentativas de ampliar o conhecimento sobre esses dois grupos e sua interação no processo educativo, serão utilizadas as abordagens sócio interacionista de Vigotsky e Cognição Cultural de Tomasello. Referencial teórico O desenvolvimento cognitivo cultural […] qualquer função presente no desenvolvimento cultural da criança aparece duas vezes e em dois planos diferentes. Em primeiro lugar, aparece no plano social e depois no plano psicológico. Em princípio, emerge entre as pessoas e como uma categoria inter psicológica. […] As relações sociais ou as

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares relações entre as pessoas são geneticamente subjacentes a todas as funções superiores”. VIGOTSKY (1984, p.23).

A “linha cultural de desenvolvimento cognitivo” formulada por Vigotsky considera os bebes como seres culturais que ao longo dos primeiros nove meses de vida vão se tornando membros de suas culturas, num processo cada vez mais ativo e participativo. Aprendem individualmente sobre o mundo em que nasceram antes de entenderem os outros como seres intencionais. A partir daí, entendendo os outros como agentes intencionais iguais a eles mesmos, um novo mundo de realidades intersubjetivamente partilhadas começa a se abrir. É um mundo povoado de artefatos e práticas sociais materiais e simbólicos que os membros de sua cultura, tanto os passados como os presentes, criaram para que os outros os usassem. E as crianças aprendem a utilizar os artefatos de forma adequada e a participar dessas práticas sociais da forma com elas foram concebidas. Para isso tem que ser capazes de imaginar a si mesmas na posição dos usuários e participantes adultos quando os observam. Monitorar as relações intencionais dos outros com o mundo externo, para Tomasello (2003:128), também significa que a criança – quase por acidente, monitora a atenção das outras pessoas quando estas se ocupam dela. Isso “dá inicio ao processo de formação do auto conceito, no sentido de que a criança entende, mental e emocionalmente, como os outros vêem a “mim””. A capacidade de ver o eu como um dos participantes, entre outros, a capacidade de interação é a base sócio-cognitiva da aptidão da criança de compreender os eventos socialmente compartilhados que constituem o formato básico da atenção conjunta para a aquisição da linguagem e de outros tipos de convenções comunicativas. Segundo o referido autor (p.129) “a compreensão dos outros como agentes intencionais é o passo fundamental na ontogênese da cognição social humana”, o que possibilita o inicio da “linha cultural de desenvolvimento”, que irá durar a vida toda e que as capacitará para se engajarem em vários processos de aprendizagem cultural e na internalização das perspectivas das outras pessoas. Vigotsky (1984) reconhece o caráter social e cultural do comportamento humano como um elemento particular e diferenciador da nossa espécie que pode significar o ponto de partida na resolução do complexo problema das relações entre desenvolvimento pessoal, social e educação. Para ele o desenvolvimento cultural se dá no plano social e posteriormente no psicológico.

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As representações mentais A função cognitiva ou mental tem como finalidade analisar, armazenar, categorizar, evocar e transmitir informações captadas do mundo externo, através dos órgãos sensoriais, e, do mundo interno, através das memórias filo e ontogenéticas. Damásio (2000) esclarece que seja qual for o grau de fidelidade, os padrões neurais e as imagens mentais correspondentes são criações do cérebro tanto quanto produtos da realidade externa que levaram à sua criação. A imagem que o indivíduo vê se baseia em mudanças que ocorreram em seu organismo – incluindo a parte do organismo chamada cérebro – quando a estrutura física do objeto interagiu com o corpo. Os mecanismos sinalizadores de toda estrutura corporal – pele, músculo, retina e outros elementos – ajudam a construir padrões neurais que mapeiam a interação do organismo com o objeto. Os padrões neurais são construídos segundo as convenções próprias do cérebro e são obtidos transitoriamente nas diversas regiões sensoriais e motoras do cérebroque são apropriadas ao processamento de sinais provenientes de regiões corporais específicas. A construção desses padrões neurais ou mapas baseia-se na seleção momentânea de neurônios e circuitos mobilizados pela interação. Em outras palavras, os tijolos da construção existem no cérebro, estão disponíveis para serem manipulados e montados. O padrão cognitivo Seja qual for a liberdade existente no domínio da consciência desenvolvida e no mundo em que ela criou, não passa de uma liberdade derivativa, comprometida, conseguida à custa da plena satisfação de necessidades. O princípio de realidade restringe a função cognitiva da memória - sua vinculação à passada experiência de felicidade que instiga o desejo de sua recriação consciente. À medida que a cognição cede lugar à recognição, as imagens e os impulsos proibidos da infância começam a contar a verdade que a razão nega. A regressão assume uma função progressiva. O passado redescoberto produz e apresenta padrões críticos que são tabus para o presente. Além disso, a restauração da memória é acompanhada pela recuperação do conteúdo cognitivo da fantasia. O peso dessas descobertas deve finalmente despedaçar a estrutura em que foram feitas e confinadas.

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Os desafios da educação Bauman (2008) aponta desafios para a educação contemporânea. Aceitar que o atributo de durabilidade do conhecimento não é mais desejável, que se tornou anacrônico ante os imperativos da vida nas sociedades atuais frente à natureza imprevisível das mudanças. O que acontece quando o mundo muda de uma forma nunca antes imaginada e os conhecimentos, junto com os critérios de verdade que os validam e legitimam, não são mais aceitos e não se sustentam. A análise sociológica de Bauman e permeada por suas preocupações com a educação, apesar de pouco abordar esse tema diretamente. Seu eixo são talvez as repercussões na educação da passagem do mundo ordenado, seguro e resolvido da "modernidade sólida" para a condição instável, fluída e mutante da "modernidade líquida". Segundo o autor nos períodos cruciais da história humana, quando estratégias consagradas e consideradas confiáveis não mais se sustentavam e precisavam ser reformadas, a pedagogia esteve sempre implicada nessas transformações. Contudo, os desafios contemporâneos colocam sob suspeita a própria idéia de pedagogia, aquilo que a constituiu como tal, e certezas jamais criticadas são condenadas e substituídas. No mundo líquido moderno, diz ele, também a solidez dos legados humanos é interpretada como uma ameaça. Considerações finais O fato de vivermos em uma sociedade globalizada e, ao mesmo tempo, particularizada, individualizada, de múltiplas faces, nos impele a significarmos nossa presença no mundo traçando novos rumos, novos discursos e novas empreitadas, a fim de sermos capazes de responder às exigências de diferentes ordens. Em outras palavras, um novo cidadão que nos remeta à necessidade de uma nova forma de ser. A escola e a rua deveriam estar envolvidas em uma relação de retroalimentação constante, de troca de significados e de novos posicionamentos frente às demandas sócio cultural e ambiental.

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SERÁ QUE SOMOS TODOS RAJ ANANDA? IDENTIDADES MASCULINAS NAS TELENOVELAS E SUA (RE) CONSTRUÇÃO EM SALA DE AULA

Odir Teixeira Pessanha

A

partir dos anos 70 do século passado, a televisão ganhou status de membro da família. Seu poder de comunicação cresceu sobremaneira no decorrer destas décadas e seu discurso tornou-se poderoso instrumento normalizador de identidades sociais. Este discurso atende a um movimento prévio da sociedade desigual em que vivemos. É uma nova linguagem a serviço das elites, que nega prerrogativas democratizantes, reforça idéias racistas e machistas, atuando como um molde para o cotidiano dos indivíduos, um paradigma do status quo vigente. A televisão é um lugar de homogeneização de identidades, fenômeno característico da contemporaneidade. A televisão é comparada por Muniz Sodré a um panóptico, responsável pelo estabelecimento de relações sociais abstratas e passivas, plasmadoras de acontecimentos em todas as frestas da sociedade. (SODRÉ, 1977, p. 16). Ela irrompe lares, dispensando o domínio prévio de qualquer código. Basta ver e ouvir. Tudo o que sai da tela da televisão e entra por nossos olhos e ouvidos, transforma-se em saber comum. A universalização dos saberes proposta, pasteuriza o discurso, ainda que os diversos receptores possam apropriarem-se destes saberes de maneiras diferentes. O material simbólico é exposto e absorvido de modo particular por cada indivíduo, já que a recepção e apropriação dos produtos da mídia são processos sociais complexos, onde os indivíduos dão sentido às mensagens de uma forma ativa. São adotadas e utilizadas de maneira diferente no curso de suas vidas. (THOMPSON, 2008, p. 153). Desta forma, a apropriação do discurso utilizado nas telenovelas irá adquirir diferentes sentidos, em consonância com o contexto histórico-cultural no qual é apresentado.

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Partilhamos da opinião de que as identidades sociais não são representativas de essências; são antes constructos sociais, mediados pela linguagem e pelas relações de poder (FOUCALT, 1993). Estas identidades estão atreladas a discursos, carregados de cultura, história e institucionalidade. É a prática social que modela conceitos. A língua falada não é inócua. Há sempre intencionalidade no discurso, que age institucionalizando poderes. E nesse sentido, pensamos a televisão como instrumento construtor e des-construtor destas identidades. Não existe identidade social estática. Este conceito é fluido, vai sendo construído de acordo com as práticas sociais de cada indivíduo e as relações sociais que o regem e com aqueles que o cercam. A construção da identidade é um processo em constante movimento. Além disso, a construção destas identidades é submetida a relações de poder, onde grupos sociais exercem e sofrem pressões. É claro que aqueles que têm a possibilidade de poder de representar, irão criar essências de identidades. Desta maneira, vemos a televisão como um sistema de poder que produz essências do real, de identidades, que devido a uma possibilidade de repetição, faz com que seu simulacro do real seja hegemônico. A isto, Derrida (DERRIDA, J. p.76. 2009) chama de citacionalidade, a repetição de um discurso tantas vezes, de modo a tornar-se uma verdade hegemônica. A telenovela, com seu discurso apresentado por seis meses initerruptos, é citacional. E mais, se tomarmos a premissa de que suas tramas e personagens repetem um padrão característico, temos “verdades” repetidas nas telenovelas há pelo menos, quatro décadas. A telenovela é o maior produto da televisão brasileira. Sua estrutura narrativa proporciona ao telespectador uma vivência onírica, onde pode distanciar-se do tempo, do espaço e das identidades. Tudo, então, passa a ser possível, há o estabelecimento de uma intercessão entre a realidade e a ficção, onde os personagens das telenovelas passam a ser nossos amigos, por exemplo. Vemos então que as telenovelas, gênero de discurso midiático dos mais populares no Brasil, se constituem num lugar de representação de um discurso da camada mais abastada da população, exposta, então, como parâmetro para as outras camadas da sociedade. Ao contrário do que afirmamos anteriormente sobre o constructo contínuo das identidades, as telenovelas apresentam tipos cristalizados, típicos da linguagem

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conservadora adotada pelas telenovelas. Há essencialização do gênero, não sendo cedidos espaços para reflexões sobre a construção desta ou outras identidades. As representações que transgridem o discurso dominante são poucas. Segundo Távola (TÁVOLA, 1996, p. 13), “Quando é que o negro é negro, o operário e o camponês passam a ser o padrão – e o patrão da televisão? Praticamente nunca”. Ainda que a construção de identidade masculina (COSTA DE PAULA, 2001, p. 52) esteja permanente submetida a uma pluralidade de maneiras de ser homem, a telenovela constrói aquilo que para ela é a identidade masculina. A determinação da identidade padrão é determinada pelo grupo hegemônico que além de dizer o que é próprio desta, determina o que é o outro. Em nossa opinião, a caracterização de gêneros é baseada numa série de negativas, extrapolando o simples determinismo biológico, a partir das quais o individuo declara-se, ou não, de um gênero. Aos homens, por exemplo, é negado o direito de chorar, brincar de bonecas, externar sentimentos, de falhar sexualmente. Existem “coisas de homem” e aquelas que “não” são. Há a instituição de atitudes parâmetro em relação as quais o indivíduo é ou não é homem. Não importa se cuspir no chão, coçar o saco ou berrar palavrões sejam atitudes deploráveis. São coisas de homem. A masculinidade vai se construindo, não é dado como um conceito pronto e acabado. O que faz um indivíduo macho ou não varia conforme o tempo e o lugar. Nos grandes centros urbanos comportamentos como rapazes com cabelos pintados, corpo depilado ou unhas pintadas, são comuns. As clínicas de estética e cirurgia plástica são cada vez mais procuradas por homens preocupados com sua aparência física. Numa sociedade em que prevalecem o ter e o estar ao ser, o invólucro, a aparência tornam-se mais importantes daquilo que se é na realidade. Este zelo com a aparência, décadas atrás, seria considerado um sinal de homossexualidade. A vaidade, uma característica feminina. Ao analisarmos os principais personagens das telenovelas exibidas mais recentemente pela Rede Globo, nos deparamos com protagonistas brancos, ricos, bem sucedidos no que quer que façam: são as identidades masculinas hegemônicas nas telenovelas. As telenovelas nos sugerem que estes tipos são modelos a serem seguidos por todos os homens, são as essências do real. Aqueles que não se enquadram no molde, são vistos como outro. São homens empoderados não somente pelo dinheiro, mas em alguns exemplos, também pela sexualidade extremada.

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Entendemos que o poder aqui representa o próprio poder do discurso das camadas sociais dominantes de um país que apresenta uma das piores distribuições de renda do mundo. O capital é um instrumento de poder. Logo, se você não é branco nem rico, encontra-se subjugado, socialmente, a outro que com estas características, ocupa um lugar social melhor que o seu. Na novela “Caminho das Índias”, um dos protagonistas é Raj Ananda, branco e rico. Na trama, há um antagonismo entre ele e Bahuan, um dalit (um intocável, o pó dos pés de Brahma, o criador dos homens, segundo os hindus), criado por um rico e influente brâmane, Shankar. Reviravoltas da trama à parte, o fim é previsível: na batalha entre os dois pelo coração da mocinha, aquele que encarna a essência de homem cristalizada pelas telenovelas, é o vencedor. O início da trama mostra o amor impossível entre Bahuan e Maya, moça de casta. Segundo as tradições seculares da Índia, um dalit só pode se relacionar com um outro, o que inviabilizava o amor entre os dois. Prometida a Raj, a quem não conhecia, Maya se entrega a Bahuan, de quem fica grávida. Decidem fugir, mas se desencontram e, no fim das contas, Maya e Raj se casam. O casamento forçado, que tinha tudo para dar errado, vira um conto de fadas. A felicidade do casal só abalada quando são importunados por Bahuan, querendo voltar para Maya. A felicidade dos filhos da elite esbarra na inoportuna presença da choldra. Raj Ananda é o modelo - rico, membro da elite, moral ilibada – confrontado com Bahuan – o outro – a poeira de Brahma, o resto à margem da sociedade. Raj é empoderado por sua própria ancestralidade e por sua condição econômica. Na novela “Caras e Bocas”, um dos protagonistas, é uma exceção ao padrão de homem das telenovelas, pelo menos no que tange à sua condição financeira. O protagonista Gabriel não é o que chamaríamos propriamente de um homem rico: é dono de uma lanchonete. No entanto, aparece repetidamente como mandatário em relações de poder. Tem dois funcionários nordestinos, aos quais trata exclusivamente aos berros, numa clara alusão a uma relação servil, onde ele é o senhor. Um destes funcionários, Fabiano, é um contraponto ao poder representado por Gabriel. É apresentado como um homem de caráter fraco – traído por sua mulher, cria um filho que não é seu e, quando descobre a traição de sua esposa, é expulso de casa. Durante seu périplo atrás de provas que comprovem a traição de sua esposa, Fabiano se traveste freqüentemente, chegando a ganhar um concurso de dançarinas, travestido de mulata (essência de sensualidade brasileira). O caráter vacilante de Fabiano,”homem mole”, é comparado a delicadeza feminina. 422

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O par romântico de Gabriel é Dafne, a mocinha rica, herdeira de uma grande fortuna. Aqui, o personagem exerce seu poder de macho dominante: mesmo não sendo rico, conquistou a mocinha (uma rica herdeira) porque é macho e viril. O drama vivido por Gabriel não é perder ou ganhar mais dinheiro. É afetado em seu empoderamento com a impossibilidade de engravidar sua esposa. Outras essências cristalizadas apresentadas em “Caras e Bocas” são os personagens Caco e Cássio. Caco é um homem negro, alto e forte. É o estereótipo do “negrão”. Reforçando esta essência criada, toda vez que Caco mantém relações sexuais com Laís, sua esposa, toda casa treme, como num terremoto. Isto reforça a imagem criada desde o Brasil Colônia, que associa os negros à sexualidade exacerbada. Cássio é um jovem cheio de maneirismos e afetado. Há uma constante insinuação da possibilidade de ser homossexual, que em nenhum momento é confirmada. Cássio é casado com uma mulher que não se cansa de elogiá-lo enquanto macho. Apesar do estereótipo criado, tem uma relação heterossexual, que apesar disto não assegura a ele um rótulo de macho, caminhando à beira da imagem clássica de homem exibida nas novelas. Na novela Senhora do Destino, reapresentada à tarde (foi apresentada originalmente entre 2004 e 2005), o protagonista é branco e rico. Não há novidade nisto. Também é mandatário em relações de poder. O que nos chama atenção aqui é o fato de não haver críticas ao fato de ter amealhado sua fortuna explorando o jogo ilegal e ter atrás de si um séqüito de capangas, responsáveis pela execução de serviços espúrios. Nas relações de poder dos ricos, não importam as origens dos bens ou os mecanismos de exercícios do poder. Em “Paraíso”, exibida às seis da tarde, o protagonista Zeca, segue o lugar comum: é branco, rico, dono de terras. A novidade aqui é o fato de Zeca ser dotado de empoderamento sobrenatural. Seu pai tem uma estatueta de um demônio dentro de uma garrafa, e há todo um folclore ao redor do “aprisionamento do demônio”. Zeca é conhecido como o Filho do Diabo e o povo acredita que seu corpo é invulnerável. Seu destemor nos rodeios, seus bens materiais e sua gênese “sobrenatural”, fazem de Zeca um macho quase que mítico. Sucedendo “Caminho das Índias” no horário das 21 horas, estreou “Viver a Vida”. O protagonista desta novela encarna a síntese da essência do homem levada ao ar pelas telenovelas. Marcos é um empresário rico. E estes, nas telenovelas, não trabalham, ao contrário da grande maioria da população obrigada a 423

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trabalhar para obter seu sustento. Há sempre um assecla, alguém a disposição do mandatário, que realiza mais que prontamente suas ordens. Além do poder econômico, Marcos também encontra-se empoderado por sua virilidade. Há um séqüito de mulheres que o rodeia. Em menos de um mês de exibição, Marcos já manteve relacionamento com três mulheres. Com sua a mais velha – Marcos é pai, até o momento, de três meninas - tem uma relação dentro de padrões que poderíamos descrever como Complexo de Elektra. É interessante destacar que ao analisarmos os personagens vividos por José Mayer (intérprete de Marcos) exibem basicamente o mesmo padrão: machos dominantes por sua virilidade. Sejam pobres ou ricos, os personagens interpretados por Mayer encarnam o mito do macho viril, mantendo relacionamentos com diversas mulheres ao longo das tramas. O comportamento de seus personagens é reflexo de parte da sociedade que associa a quantidade de parceiras de um indivíduo a sua masculinidade. Pobres como Osnar, em Tieta (1989/1990) ou ricos, como Dr. César, de Mulheres Apaixonadas (2003), os seus personagens empoderados pelo falo. De modo díspar do que vemos, creio que a telenovela deve ser um lugar de re-construção de identidades, ou pelo menos, fórum de debate sobre os mecanismos de construção das identidades culturais. A falta de representação de identidades mais próximas ao cotidiano dos indivíduos, muitas vezes os impedem de auto-afirmarem características próprias de sua identidade, posto que estas identidades não são vistas como normais ou hegemônicas. Qual a parcela da população brasileira se vê espelhada em tipos brancos, ricos e que são plenos mandatários em suas relações de poder? Há necessidade de quebra desta “cumplicidade da televisão com as relações de poder e dos mais sórdidos interesses mercantis”(Martín-Barbero, J. p.4.2004); que esta passe a ser um instrumento democratizador, capaz de dar voz às comunidades, à sociedade civil, que abra espaço para uma ampla construção de identidades sociais, retratos da imensa diversidade cultural que marca nossa sociedade. Se nós enxergamos a telenovela como um agente desagregador das identidades, já que tendem a homogeneizar e não suportar as diferenças, devemos então utilizá-la como uma ferramenta capaz explorar as possibilidades multiculturais de nossa sociedade. Que façamos das telenovelas um hipertexto, que nos conectem com vastas possibilidades. Se não nos encontramos no homem que é branco, 424

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rico e tem a necessidade de afirmar sua masculinidade mantendo relações com inúmeras mulheres, levemos nossos alunos a tecer críticas externas às tramas televisivas. Que as leituras críticas da realidade imposta nas telenovelas, sejam instrumentos nas mãos dos alunos, onde eles possam encontrar valores próprios, constituintes de suas próprias identidades. Na sala de aula podemos interromper a citacionalidade televisiva, e neste hiato podemos instaurar questionamentos díspares da simples reprodução das relações de poder existentes. A escola deve ser o lugar onde a diferença identitária deve ser mais que reconhecida; exposta é necessário que se esclareça que estas são produzidas ativamente.

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(C) ENSINO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS: (RE)VISITANDO QUESTÕES

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão

COMUNICAR-SE: REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA EM LE – UM ESTUDO COM ALUNAS DE LÍNGUA INGLESA COMO FINS ESPECÍFICOS.

Aline Guimarães de Souza […] Hoje, atuamos em uma era que os especialistas chamam de pós-método. Falamos em princípios e em diferentes possibilidades de implementá-los. De certo modo, para a questão da formação docente, isso complica a situação, já que é muito mais fácil pegar uma receita e aplicá-la. Agora, dependemos da análise do professor em relação ao que fazer diante da realidade em que estão inseridos seus alunos. Celani

Introdução e justificativa

A

o falar da realidade do ensino de Língua Estrangeira (doravante LE), em entrevista à revista Nova Escola, a Professora Antonieta Celani (2009) aponta a importância do professor de analisar o contexto em que está inserido para que, assim, escolha uma das possibilidades de ensino e adote-a com o seu grupo de alunos. Nesta entrevista, a autora trata do ensino de LE de uma forma geral, e apesar de não estar focada em ESP (English for Specific Purposes – Inglês com fins específicos), a entrevista nos mostra que para ocorrer um ensino de qualidade é adequado fazermos uma análise das necessidades dos alunos e estarmos atentos ao contexto em que esse está inserido. Ao analisar a minha prática docente como professora de língua inglesa em um curso livre de idiomas na região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, e ao pôr em prática o que aprendi na graduação de Letras português-inglês, verifiquei que minha formação não me dava ferramentas suficientes para a prática docente. Assim, ao identificar necessidades variadas de aprendizado por parte de algumas alunas, senti a necessidade de estudar mais sobre o assunto, primeiro, porque o curso livre não é desenhado para atender às necessidades específicas de um ou outro aluno, e, em segundo lugar, porque eu não me sentia preparada para 429

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atender a estas necessidades dentro do contexto do referido curso. Foi dessa necessidade de atender a essas alunas que trabalham na área de turismo e, mais especificamente, em eventos, que me surgiu a inquietação que deu origem a esta pesquisa Essas alunas me relatam situações das mais variadas sobre suas experiências de comunicação em inglês como língua estrangeira. Situações estas que não são contempladas pelo currículo do curso livre em que elas estão matriculadas, pois o curso contempla apenas o nível básico1 da língua inglesa. Desta forma, a minha inquietação deu origem a esta pesquisa e o aprofundamento dos meus conhecimentos sobre ESP, gerando a criação de um questionário para levantamento de necessidades dessas alunas e, consequentemente, na criação de aulas com o foco em suas necessidades. Ao pesquisar sobre o ensino de idiomas, e mais atentamente ao ensino de língua estrangeira com fins específicos, tive contato com algumas literaturas sobre o ensino de ESP, autores como Celani, et.al.(2005), que tratam sobre a história do ensino da língua inglesa no Brasil com propósito específico, na obra ESP in Brazil: 25 years of evolution and reflection e Dudley-Evans & St John (1998) que abordam sobre os desenvolvimentos no ensino de ESP, no livro Developmentes in English for Specific Purposes: a multi-disciplinary approach, são de grande relevância como aporte teórico que dará base para o desenvolvimento e a análise desta pesquisa. Nessas leituras, entre outras, comecei a compreender melhor como se dá o ensino de ESP e de acordo com estes autores existem características bem delimitadas em um contexto de ESP como: a de ser um ensino direcionado para as necessidades específicas do aluno, estar centrado na língua (gramática, léxico, etc.), nas habilidades de uso da língua, no discurso e em gêneros apropriados para estas atividades e para o contexto específico de ensino em questão (DUDLEY-EVANS & ST JOHN, 1998) e esses autores apontam a interação como algo fundamental nesse processo de ensino-aprendizagem. Há também a importância de leituras como Almeida Filho (2009:78) sobre o ensino de línguas, pois o autor trata a questão comunicativa como um fator importante ao planejar o material didático para o ensino de língua estrangeira e de Bakhtin (1997) que nos trouxe

Nível básico – de acordo com o Quadro Comum Europeu (The Common European Framework of Reference for Languages) o nível do curso completo equipara-se ao A2, com carga horária de 240 horas.

1

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contribuições como o conceito de dialogismo, que será de grande importância para esta pesquisa. Estas leituras suscitaram questionamentos como: Qual é o meu papel como professora de língua inglesa como LE?, Como se dá o ensino de ESP na prática?, Quais são as reais necessidades dos meus alunos como aprendizes de uma língua estrangeira?. No intuito de encontrar respostas para estes questionamentos, como ponto de partida, preparei um questionário de levantamento de necessidades para as minhas alunas e a partir deste questionário prepararei as aulas que daremos início no mês de setembro de 2011. Juntamente com este questionário pretendo, se possível, acompanhá-las em um de seus eventos, apenas para observar e tomar notas de como elas se comunicam em inglês como LE. Este acompanhamento, caso ocorra, será feito em duas ocasiões: no início de nossas aulas e ao final das mesmas. No intuito de comparar se ocorreu alguma alteração na comunicação em língua inglesa como LE. Dentre as várias questões sobre as quais pretendo trazer contribuições para este trabalho, o foco está na coleta de dados de um grupo específico de ensino de ESP. A análise desses dados com auxílio do aporte teórico mencionado, dentre outros, e a reflexão sobre tais análises. E, posteriormente, talvez, ter subsídios para apresentar uma proposta de implementação de um curso de ESP na instituição em que trabalho. Definição do projeto Tema Uma análise das aulas de língua inglesa com fins específicos na área de turismo com foco em eventos, na minha sala de aula. Este olhar terá como aporte teórico a definição de ESP proposta por Dudley-Evans&St John (1998) e as reflexões sobre ESP na visão de Celani, et al (2005), o ensino de línguas, com a abordagem comunicativa, de acordo com Almeida Filho (2009) e o conceito de dialogismo de Bakhtin (1997). Problemas e perguntas de investigação Esta pesquisa está focada no ensino de língua inglesa com fins específicos e como se dá tal processo. Qual o meu papel como professora de ESP? Qual é a importância do ensino de ESP para as minhas alunas em questão? E assim

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verificar se: um aluno de ESP possui e faz uso de outras ferramentas, quando não possui proficiência na língua estrangeira. E também se: a prática do diálogo em sala de aula pode ser um importante exercício para prática em uma situação real de comunicação. Ao final dessa pesquisa espero verificar se ocorreu alguma alteração na compreensão e uso da língua estrangeira por parte das minhas alunas. Se minha prática docente está mais adequada às necessidades dessas alunas após minhas leituras sobre o ensino/aprendizagem de língua estrangeira com foco em ESP, ou não. Hipóteses Acreditamos que o ensino de língua estrangeira com fins específicos está voltado para as necessidades dos alunos e desta forma o foco deste ensino é o aprendiz. Dessa forma, ao final das aulas programadas e preparadas com este objetivo, pretendemos identificar, através dos relatos dos alunos, uma alteração na qualidade da comunicação em LE por parte destes. Objetivos Gerais Refletir sobre o processo de ensino/aprendizagem e minha prática docente em aulas de ESP. Específicos Construir com minhas alunas uma possível melhora em sua comunicação em inglês como LE, através de aulas preparadas após o levantamento de necessidades destas alunas. Observar o uso de língua inglesa, como LE, em uma interação real, que estas alunas fazem em seu local de trabalho. Propor atividades, possivelmente, ao final desta pesquisa, que possam compor um currículo de um curso de ESP voltado para a área de eventos.

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Metodologia Aporte teórico

2011 Número de Número de vagas inscritos Procedimentos Gestão 324 Para alcançar o objetivo deste projeto, farei uma pesquisa324 de base etnográfica, segundo André (1995:28), em que as visões do professor-pesquisador, dos Ensino 9.601 7665 participantes, o contexto específico envolvido e o processo educativo destes participantes serão considerados. Durante o processo de investigação, Total 9.925 7.989contextualizando a questão levantada, prepararei aulas com fins específicos para o contexto de turismo/eventos com foco na língua inglesa. Ao menos duas das aulas que serão aplicadas, serão gravadas e transcritas para futura análise de dados deste projeto. Concomitante com a triangulação destes dados, farei também uma comparação entre o questionário de levantamento de necessidades, que será aplicado no início da pesquisa, com um questionário que será preparado para verificar se estas necessidades foram ou não atendidas ao final da pesquisa. Como ponto de partida, serão analisadas as interações professor-aluno, aluno-professor, aluno-aluno e, possivelmente, a interação dos alunos em um contexto real de uso da LE, porque, se possível, pretendo acompanhá-las em um dia de trabalho para observar o uso que estas alunas fazem da língua inglesa e quais ferramentas são utilizadas por elas na tentativa de se comunicarem em uma LE que não dominam. E, se ainda for possível, também pretendo repetir este tipo de observação depois de termos trabalhado com ESP e mais para o final da pesquisa no intuito de verificar se ocorreu alguma alteração na comunicação em inglês como LE, destas alunas, ao comparar minhas anotações da primeira observação com a última. Depois de gerar os dados, transcrevê-los e analisá-los com uma fundamentação teórica, faremos uma reflexão sobre este processo e se foi produtivo ou não e, em caso afirmativo, provavelmente, ao final desta pesquisa, como já foi dito anteriormente, propor à instituição em que trabalho a composição de um currículo de um curso de ESP na área de turismo com foco em eventos. 433

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Conclusão A presente pesquisa tem por finalidade aperfeiçoar minha prática docente como professora de ESP e refletir sobre este processo. Ao refletir sobre o ensino de ESP, pretende-se verificar também se um curso planejado e direcionado às necessidades dos alunos pode ou não atingir o objetivo de atender estas necessidades em um contexto de ensino/aprendizagem específico que será detalhado e apresentado neste projeto.

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REFERÊNCIAS

ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes de. Linguística Aplicada – Ensino de Línguas e comunicação. Campinas, SP: Pontes Editores e Arte e Língua, 2009. ANDRÉ, Marli Eliza D. A. de. Etnografia da prática escolar. Campinas, SP: Papirus, 1995. BAKHTIN, Mikhail Mjkhailovitch, Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ______.Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12ª Edição – 2006 - HUCITEC BORTONI-RICARDO, Stella Maris. O professor pesquisador: Introdução à pesquisa qualitativa. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais : terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. CELANI, M. A. A. et al. ESP in Brazil: 25 years of evolution and reflection.Campinas, SP: Mercado das Letras; São Paulo: EDUC, 2005. ______. “Ensino de Língua Estrangeira.” Nova EscolaEdição 222, Maio 2009. DUDLEY-EVANS, Tony and ST. JOHN, Maggie Jo. Developments in English for Specific Purposes: a multi-disciplinary approach. UK: Cambridge University Press, 1998. FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008. RICHARDS, Jack C. and RODGERS, Theodore S. Approaches and Methods in Language Teaching.UK: Cambridge University Press, 1986 SILVA, Maria Ângela da.Inglês para a área de turismo: análise de necessidades do mercado e de aprendizagem.;orientadora: Bárbara Jane WilcoxHemais. – Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

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O LETRAMENTO COMPUTACIONAL NA AULA DE INGLÊS: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA

Ana Paula Loureiro

Introdução

L

eciono Inglês desde 1989, quando terminei a graduação em Letras. Desde então, vinha percebendo que minha formação docente, ainda calcada no paradigma da transmissão, parecia nortear minha prática. Isso me fez pensar que, em pleno século XXI, minhas aulas poderiam estar em dissonância em relação a um mundo marcado por mudanças radicais. A decisão de voltar a estudar e ingressar no curso de mestrado foi motivada, portanto, por uma necessidade de reflexão sobre minha própria prática. Afinal de contas, o professor que não interroga sobre si próprio e ignora as transformações no mundo que o rodeia não se transforma e tende a se estagnar, afastando-se da dinâmica contemporânea marcada por instabilidade, mudança constante e flexibilidade. É o processo de experimentação, reflexão e diálogo que pode ajudar o docente e a escola a repensarem e recriarem os saberes escolares, o currículo e a própria pedagogia, de forma que escola e mundo social se aproximem. Este artigo focaliza o relato de uma experiência em sala de aula de língua estrangeira. Inicialmente caracterizo o momento sócio-histórico contemporâneo, que parece pôr em xeque as práticas pedagógicas. Na tentativa de encontrar uma nova possibilidade de trabalho em língua inglesa, apresento um projeto de letramento computacional com foco nas interações sociais para construção do conhecimento. Em seguida, detenho-me em discutir o perfil dos participantes. Visando compreender os sentidos que os alunos atribuem a esse trabalho com letramento computacional, recorro, depois, à discussão de uma entrevista realizada com os alunos participantes. Finalizo comentando como a inserção do letramento computacional – da forma que é concebida – parece sugerir alguns ganhos.

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Geração de um problema e a trajetória de uma mudança Os alunos vêm cada vez mais demonstrando desinteresse e falta de motivação na sala de aula, o que não acontece por acaso. A dinâmica da aula baseada no paradigma da transmissão de conteúdo mantém a escola alheia ao novo paradigma comunicacional da interatividade que alimenta a sociedade contemporânea. O advento das novas tecnologias da informação deixou de se calcar em simples difusão e transmissão de massa para valorizar a interatividade. A nova mídia – hipermídia e multimídia – nos convida a participar, intervir e dialogar constantemente. As telas de televisão e do computador nos abrem as portas dos mundos global e local sob a forma de discursos altamente semiotizados. Para Kress (2003), a nova mídia, em oposição à velha mídia (por exemplo, dos livros), é multimodal, isto é, a comunicação não se limita a uma modalidade – linguagem escrita – e passa a lançar mão também de imagens, sons, música. Ainda segundo Kress (Ibid., p. 6-7), a própria escrita está sendo organizada e estruturada pela lógica do visual. As páginas de revistas, e até as de livros contemporâneos, assemelham-se às telas, nas quais a escrita assume papel subsidiário. É relevante também destacar que essa linguagem eminentemente visual vem produzindo efeitos sobre nossa cognição e nossas formas de percepção (FRIDMAN, 2000). Se levarmos em conta a crescente penetração da cultura da mídia no universo cultural juvenil, é importante podermos refletir sobre os impactos da linguagem midiática multissemiotizada nas capacidades cognitivas de nossos jovens. E aqui recorro à metáfora da “geração MTV”, habituada a “intervalos curtos de atenção, processamento rápido da informação e uma enxurrada de imagens rapidamente cambiantes” (GREEN; BIGUM, 1995, p. 226). É meu juízo que, apesar de tantas mudanças e das novas demandas da contemporaneidade, a Educação parece negligenciar esses novos desafios, insistindo em manter-se “fora” de um mundo em permanente mudança. Faz-se necessário, dessa forma, sintonizar o letramento escolar e a dinâmica pedagógica com a realidade do século XXI. Na tentativa de encontrar uma nova possibilidade de trabalho em língua inglesa, venho desenvolvendo uma prática pedagógica com foco nas interações sociais para construção do conhecimento com alunos do nono ano do Ensino Fundamental.

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Ao final de 2002, eu e a outra professora de Inglês, com quem divido o nono ano, propusemos à direção do colégio um projeto de letramento computacional em parceria com a Informática Educativa. O projeto foi iniciado em 2003 e está em funcionamento até o presente momento, envolvendo somente as sete turmas do nono ano. A motivação para implantar esse projeto foi a falta de interesse dos alunos nas aulas de Inglês.Acreditávamos que os alunos estavam sinalizando uma possível insatisfação com a própria dinâmica de nossas aulas. Em vista de esses adolescentes, em sua maioria, se interessarem em interagir com máquinas e utilizarem o computador em casa com frequência, decidimos introduzir o letramento computacional como forma de estímulo ao processo de aprendizagem. Os professores engajados nesse trabalho mantêm-se os mesmos até hoje: as duas professoras de Inglês da série (dos grupos Avançado e Intermediário – eu e minha colega) e a professora de Informática Educativa. Todo o trabalho vem sendo construído por essa parceria. Neste projeto, das duas aulas de Inglês semanais dessa série, apenas uma delas (um tempo de 50 minutos) é ministrada no Laboratório de Informática. Nessa aula, os alunos dividem-se em duplas, com liberdade para escolha de seus pares. Essas duplas, formadas no início do ano, mantêm-se as mesmas, pois os resultados dessa construção colaborativa de conhecimento são também coletivos. Ao longo do ano letivo, essas duplas utilizam a língua inglesa e o letramento computacional para produzirem seus próprios textos a partir de tarefas propostas pelas professoras. Durante as aulas, a Internet está sempre à disposição dos alunos para consulta e pesquisa de informações que eles mesmos devem buscar. São sugeridos alguns sites, mas isso não quer dizer que eles estejam limitados a tais sugestões. Como fechamento do trabalho, essa produção textual é reunida em uma homepage, ou seja, uma versão hipertextual dos textos já redigidos. Essa homepage é elaborada pelos próprios alunos – cada dupla prepara a sua. A homepage é apresentada oralmente em Inglês à professora e aos colegas de turma, disponibilizando, assim, para todos uma versão final do trabalho desenvolvido no processo de pesquisa. Todas as instruções das atividades, assim como o tutorial para elaboração da homepage, ficam à disposição das turmas em um portal online, produzido para esse projeto pela professora de Informática Educativa.

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Os grupos Avançado e Intermediário ocupam laboratórios separados. A produção textual é dividida em pequenas composições, com temas diversos. Os alunos têm três aulas para redigir uma primeira versão de seu texto. Os erros – apenas o nível sistêmico – são apenas assinalados pelas professoras, para serem corrigidos pelas próprias duplas. Após a autocorreção, uma segunda versão do texto original é produzida. Dessa forma, os alunos podem refletir sobre seus erros, envolvendo-se em um processo de negociação e co-construção, aprendendo mais a partir desses erros. É importante destacar que o controle do trabalho interacional e do que é realizado está nas mãos dos próprios estudantes, que devem encaminhar suas tarefas. O objetivo educacional das atividades propostas ao longo de 2006 – que geraram os dados analisados no artigo – foi desenvolver as habilidades de ler e escrever na língua inglesa. Havia cinco tarefas propondo o trabalho com gêneros textuais diferentes. Na primeira tarefa, utilizando a técnica de narração, cada dupla contaria uma história – real ou não – a partir de fotos retiradas da Internet e disponíveis no portal online. Na segunda tarefa, os alunos criariam uma notícia de jornal, com base em reportagem publicada na mídia internacional e escolhida por eles mesmos. Na atividade seguinte, por conta do tema “Inclusão das Diferenças”, proposto pela Campanha da Fraternidade da CNBB daquele ano, os alunos deveriam escolher na Internet um projeto social cujo objetivo fosse promover a inclusão social de crianças, idosos ou deficientes, e descrevê-lo em seus textos. A quarta atividade baseou-se na leitura extraclasse da versão, adaptada para estudantes, do livro 1984, de George Orwell. As composições deveriam estabelecer uma possível comparação entre o “Big Brother” do livro e o reality show da televisão brasileira. Em seguida, apresento brevemente o perfil dos sujeitos envolvidos na investigação. Os participantes Como já foi mencionado, esse projeto de letramento computacional é desenvolvido apenas no nono ano, com suas sete turmas, dentre as quais decidi escolher apenas uma para fazer parte desta pesquisa. Por se tratar de um grupo de apenas dezessete alunos, acreditei ser a turma mais adequada ao estudo. Nesse grupo há seis alunos – Joel, Diego, Marcos, Gabriel, Robson, Luciano – e onze 439

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alunas – Leda, Marta, Carol, Paula, Andréia, Pamela, Clara, Renata, Mila, Ana, Roberta (nomes fictícios). Esses alunos estão na faixa etária de 13 a 15 anos e pertencem às classes média e média-alta. No início do ano letivo, por conta do resultado da prova de nivelamento, eles passaram a integrar a turma de nível intermediário. Nas aulas do Laboratório de Informática, esses alunos pareciam tranquilos, muito mais entretidos, participativos e envolvidos com as atividades propostas do que era possível perceber nas aulas de Inglês fora daquele espaço. No entanto, com base em minhas observações durante as aulas, acredito poder dizer que alguns deles pareciam mais comprometidos com o trabalho do que outros. Eu sempre circulava pelo Laboratório de Informática, atendendo às dúvidas e às solicitações de orientação dos alunos. Ao me aproximar das duplas para atendê-las e verificar seus textos no monitor, observava que era recorrente a consulta a sites não pertinentes ao trabalho. Apesar de haver maior engajamento dos alunos na realização das tarefas, tal situação era frequente nas aulas. Entretanto, esse fato era mais percebido ao término de uma atividade realizada. No meu entender, é possível comparar esse fato às conversas paralelas em Português que ocorriam com frequência quando estávamos nas aulas na sala de aula convencional. Acredito que, nesses momentos – nas aulas do Laboratório de Informática –, essas duplas sinalizavam certo desinteresse pela própria atividade proposta. De qualquer forma, o que me parece claro é que esses estudantes parecem conseguir trabalhar ao mesmo tempo em que visitam sites, verificam correio eletrônico e ainda conversam com seus colegas. A meu ver, isso nos remete a um aspecto aparentemente cada vez mais comum entre os jovens de hoje: a capacidade de fazer várias coisas simultaneamente. Essa peculiaridade já foi mencionada antes, quando falei da “geração MTV”. Ora, se, quando estão em casa, esses alunos podem multiplicar seu foco de atenção com diversas atividades concomitantes (falar com amigos na Internet, ouvir música e estudar, por exemplo), por que não o fariam nas aulas do Laboratório de Informática? Com o propósito de compreender os sentidos que os alunos atribuem ao trabalho com letramento computacional, recorro à discussão de uma entrevista realizada com os alunos participantes.

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Discussão a partir da entrevista Meu objetivo é apresentar os dados gerados a partir da entrevista realizada com os alunos em 14 de novembro, último dia letivo de 2006. Decidi-me por uma entrevista semi-estruturada na língua portuguesa com o objetivo de tentar deixar a turma mais à vontade para que o diálogo entre nós fluísse com mais facilidade. O espaço utilizado foi o da sala de aula. A discussão dos excertos selecionados a partir da entrevista tem por finalidade não só buscar a percepção dos alunos sobre as práticas discursivas por eles desenvolvidas, mas também refletir sobre as experiências propiciadas a esses alunos nesse trabalho com letramento computacional na aula de Inglês. Excerto 1: “Mais legal que trabalhar sozinho” (Alunos: Marta, Joel, Paula, Clara, Carol) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27

Professora:

Marta:

Professora: Clara: Paula: Marta: Joel:

Professora: Carol:

= E voltando àquela pergunta que eu gostaria muito que vocês se colocassem. A troca com o colega, seja ele do lado ou de outra dupla, o que vocês acharam dessa experiência de não ter de trabalhar sozinho? = = Eu achei bom, porque toda vez que a gente tinha uma dúvida, a gente consultava o dicionário ou alguém, então, tipo, enriqueceu muito o vocabulário, porque eu dizia o que achava, ela dava opinião, então, com isso, você vai ganhando vocabulário, vai ganhando outras idéias, tipo, você ainda não deu certa matéria, aqui mesmo, só que ela já deu, então, ela te mostra um jeito novo de você ver alguma coisa, então, te acrescenta muito = = Quem mais gostaria de colocar alguma coisa com relação a essa troca com o colega? = = Também, a mesma opinião que ela, tipo assim, não é só a sua opinião nem a opinião da Internet, mas também a opinião dos outros, que é super bom = = É mais uma outra visão = = E fica mais interativo = = É um exercício de flexibilidade, quando você vai construir um texto e você tem um colega, por mais que as opiniões podem até ser opostas, e o seu texto pode ficar melhor porque você mostra mais de um ponto, você foca em uma coisa mais ampla, agrada também a quem lê e você não fica sempre preso a uma única opinião = = Claro = = É aí que é mais divertido, né? Mais legal que trabalhar sozinho =

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Nesse excerto, os alunos coconstroem uma posição favorável à participação ativa em sala de aula. O que eles parecem indicar não é só a importância da troca e negociação de significados em aula, mas também o enriquecimento que o trabalho coletivo pode trazer para a construção de conhecimento. Nesse sentido destaco inicialmente a afirmação de Marta: “ela te mostra um jeito novo de você ver alguma coisa, então te acrescenta muito” (linhas 10-12), que parece reforçar a conotação positiva dessa experiência de construção colaborativa. As outras alunas, Clara e Paula, parecem ratificar essa idéia e dão destaque à importância de ouvir o outro (linhas 15-18). Marta ainda sinaliza o aspecto dialógico do processo de ensino–aprendizagem ao acrescentar “fica mais interativo” (linha 19). Joel cosustenta a posição das colegas classificando a experiência como “um exercício de flexibilidade” (linha 20), o que parece salientar a importância da abertura à negociação com o outro. Em certo sentido, esses alunos, assim como eu, parecem perceber que o paradigma da transmissão cede lugar a uma dinâmica na qual o saber é produzido colaborativamente nas práticas discursivas, que não se restringem à conversa com o professor. Dessa forma, entendo que os estudantes não ratificam os sentidos culturalmente atribuídos à construção do conhecimento centralizada pela fala do professor. Portanto, esses alunos parecem coconstruir outras experiências, nas quais eles se veem, se expressam, se julgam e se conduzem como sujeitos abertos à negociação e à troca com o outro. Ora, se a comunicação em aula não é monopolizada pelo professor, que sentidos esses alunos constroem quanto à interação na sala de aula? Por conta dessa questão, trago o próximo excerto. Eu havia perguntado à turma se eles viam a figura da professora da mesma maneira nos dois espaços: no Laboratório de Informática e na sala de aula. Excerto 2: “fica todo mundo reunido falando” (alunas: Carol, Marta, Paula) 28 29 30 31 32 33 34 35

Marta: Carol: Professora: Carol: Paula:

= Tipo, a gente tem o mesmo respeito e tal, só que é bem mais legal porque a gente podia falar com você com mais liberdade = = É mais descontraído = = Por que é mais descontraído? = = Porque aí você tá toda hora falando, toda hora, fica todo mundo reunido falando = [E você também não fala só daquilo, você fala do assunto que você tá tratando no texto =

Nesse excerto as alunas parecem sinalizar a maior liberdade para se expressar nas aulas do Laboratório de Informática. Marta ressalta esse aspecto ao dizer 442

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“só que é bem mais legal porque a gente podia falar com você com mais liberdade” (linhas 28-29). Carol ratifica essa idéia empregando o adjetivo “descontraído” (linha 30). A meu ver, as alunas parecem perceber uma flexibilidade maior das regras interacionais em aula, ou seja, a fala dos alunos não se sujeita à fala do professor, nem depende dela. Logo, é possível inferir que eu não imponho domínio sobre a comunicação nas aulas no Laboratório de Informática. Quando Carol esclarece: “você tá toda hora falando, toda hora, fica todo mundo reunido falando” (linhas 32-33), é possível, então, argumentar que não há regras fixas de controle interacional, ou seja, alunos e mestre são corresponsáveis pelo trabalho interacional. No meu entender, essas alunas, assim como eu, parecem entender que o controle interacional não se concentra nas mãos do professor, o que sugere que, no Laboratório de Informática, novas regras interacionais parecem orientar a comunicação entre alunos e professor. É com base nessas colocações que me arrisco a dizer que, no Laboratório de Informática, essas alunas constroem em conjunto outras experiências, nas quais elas se veem, se expressam, se julgam e se conduzem como sujeitos com maior liberdade para falar, participar e tratar de outros assuntos, sem depender da agenda tópica da professora nem de regras interacionais fixas.Ora, se os alunos se envolvem em relações intersubjetivas, responsabilizando-se pelo trabalho interacional, como são operacionalizadas, na percepção desses alunos, as relações de poder no Laboratório de Informática? Para refletir sobre essa questão, apresento o próximo excerto. Excerto 3: “Aqui você dá as cartas, lá todo mundo pode dá” (alunos: Marta, Paula, Clara, Joel) 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51

Professora: Marta: Paula: Marta: Paula: Marta: Joel:

= Mas será que o fato da gente tá lá na Informática fica mais claro que eu sou mais uma a trocar naquele espaço? = = Acho que fica = = Porque a gente se sente mais igual, sabe? Porque aqui, sei lá [ [Ali a gente não sente muita diferença = = É como se aqui eu fosse [ [Aqui você dá as cartas, lá todo mundo pode dá. […] Aqui tem uma diferença muito grande, sabe, do livro, do seu domínio, então, é assim [ [Você não manipula uma idéia única, você deixa a gente livre pra gente debater aquilo. E você não fica em cima, ”ah vocês já tão acabando? Olha, são tantas linhas”. Você deixa na nossa mão, nós somos alunos, nós tamos na oitava série, a gente tem nossas necessidades, tanto de nota, quanto de conhecimento e a gente tem que aprender pela gente, pelo nosso próprio coração e não porque o professor tá mandando =

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Logo no início desse excerto (linhas 36-37), eu demonstro não me ver e nem me conduzir como uma figura de autoridade, detentora do saber, mas, ao contrário, como coparticipante do processo de coconstrução – o que, portanto, sugere uma relação menos assimétrica com os alunos no Laboratório de Informática. Nesse sentido, Paula chega mesmo a sugerir uma possível relação entre iguais ao afirmar: “Porque a gente se sente mais igual” (linha 39) e Marta ainda acrescenta: “Ali a gente não sente muita diferença” (linha 40). A meu ver, a mitigação do grau de assimetria nas relações interpessoais se faz ainda mais perceptível quando Marta, a seguir, faz uso da metáfora do jogo, explicando: “Aqui você dá as cartas, lá todo mundo pode dá” (linha 42). Creio ser relevante destacar como Marta constrói dois perfis bem distintos para o trabalho com o letramento escolar computacional e para o trabalho com o letramento escolar tradicional. Segundo ela, na sala de aula, a professora “dá as cartas” (linha 42), ou seja, é a figura de autoridade que controla o processo interacional e discursivo. Entretanto, no Laboratório de Informática, todos podem “dar as cartas”, isto é, ressignificam-se as relações de poder; logo, os alunos sentem-se mais seguros e autônomos para se expressar e negociar significados. Marta parece tentar justificar o elevado grau de assimetria na sala de aula ao associar a diferença entre professora e alunos ao domínio do saber e do livro. Ora, se a aula se fundamenta no uso do livro didático, a professora, por dominar tal conhecimento, se faz autoridade máxima como centro do saber. Para reiterar a interpretação de Marta, ou seja, para sugerir que a professora abre espaço para que os alunos se expressem, façam escolhas e encaminhem suas tarefas, Joel acrescenta: “você deixa na nossa mão” (linhas 47-48). Logo depois, Joel (linhas 47-51) ainda justifica o comportamento da professora ao se dizer, incluindo também os colegas, como pessoas capazes de trabalhar com autonomia sem ter de depender de comandos da professora. No meu entender, os alunos parecem compartilhar dos mesmos sentidos atribuídos por mim às relações de poder engendradas no Laboratório de Informática. Como foi possível perceber, a professora não é vista como o centro controlador do trabalho nem da comunicação em aula; em lugar disso, é vista como alguém que delega esse controle aos alunos. Assim, as relações intersubjetivas tornam-se mais simétricas, o que sinaliza uma possível revisão das relações de poder em aula. Por essa razão, esses alunos vivenciam outras experiências nas quais eles se veem, se expressam e se julgam como sujeitos mais seguros e res-

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ponsáveis por suas escolhas e necessidades e, portanto, se conduzem como tal em relações de cooperação. Em suma, a discussão, com base nesses excertos, parece sugerir que os alunos conferem ao trabalho com letramento computacional na aula de Inglês novos sentidos que parecem construir relações sociais em sala de aula mais flexíveis e dinâmicas. De igual modo, esses alunos coconstroem outras experiências nas quais eles se veem, se expressam, se julgam e se conduzem com maior liberdade e autonomia. Dito de outra forma, eles sinalizam uma possível ressignificação de sentidos conferidos sócio-historicamente àquilo que se define por aula, assim como ao que se espera do trabalho de professor e de aluno em uma dinâmica pedagógica. Passo agora às considerações finais. Considerações finais É claro que, ao me engajar nesse processo de reflexão sobre a própria prática, estou ciente de que o conhecimento construído com base nesse percurso de trabalho me faz perceber que o caminho de repensar e reconstruir a prática pedagógica passa por uma recriação das regras que nos orientam em aula. Foi possível perceber nos dados analisados que a inserção do letramento computacional – da forma que é concebida - parece sugerir alguns ganhos. Isso não se deve somente ao uso do computador, mas a diversas mudanças concomitantes que incluem, por exemplo, tarefas diversificadas, temas variados para pesquisa, debate e discussão, assim como o próprio arranjo espacial do Laboratório de Informática, que, associado à possibilidade de trabalho em parceria, favorece a rearticulação das regras que regem a interação, a comunicação em aula e o próprio controle sobre as atividades e seu encaminhamento, o que estimula a troca e a negociação que extrapolam a relação professora–aluno, engendrando múltiplos diálogos. Nesse espaço multivocal, contemplam-se as múltiplas subjetividades que compõem essa rede de intercâmbio de significados. A proposta de reflexão sobre a prática docente demanda a observação constante de nossa própria sala de aula, ou seja, esse ciclo de trabalho não apresenta um fim, mas, ao invés disso, busca um novo recomeçar e reconstruir. O que me parece fundamental é entender que cabe a nós mesmos a responsabilidade de propor novos sentidos sobre a realidade e sobre nós mesmos nas práticas discursivas nas quais nos engajamos. 445

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REFERÊNCIAS

FRIDMAN, Luis Carlos. Vertigens pós-modernas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. GREEN, Bill; BIGUN, Chris. Alienígenas na sala de aula. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Alienígenas na sala de aula. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 208-243. KRESS, Gunther. Literacy in the New Media Age. Londres: Routledge, 2003.

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CERVANTES, DICKENS E SHAKESPEARE: A PRESENÇA DE TEXTOS LITERÁRIOS NA SALA DE LE DO ENSINO MÉDIO

Andrea Conceição Braga Antunes Kelly Pereira de Carvalho Luciana Maria da Silva Figueiredo

Introdução

A

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) é uma unidade técnico-científica da Fundação Oswaldo Cruz que se dedica a atividades de ensino, pesquisa e cooperação no campo da Educação Profissional em Saúde. Quanto ao ensino, a EPSJV oferece, entre outros, o Curso Técnico de Nível Médio em Saúde (CTNMS) nas áreas de Gerência em Saúde e Biodiagnóstico. É, portanto, no contexto da formação geral do referido curso que atuamos como professoras de língua estrangeira (LE). O presente trabalho tem como objetivo relatar experiências desenvolvidas a partir de textos literários nas aulas de LE. No CTNMS, a interface entre literatura e língua ocorre ao longo das três séries do ensino médio, pois entendemos que o currículo de LE neste segmento da educação básica não deve contemplar a linguagem somente enquanto sistema de signos a ser decifrado, mas também buscar compreendê-la nos seus aspectos histórico, social e cultural. Com esta perspectiva, promovemos também a aproximação entre jovens leitores e ícones da literatura universal, a fim de despertar o prazer e o interesse pela leitura de clássicos, bem como ressaltar a relevância das obras de Miguel de Cervantes, Charles Dickens e William Shakespeare, figuras centrais do cânone literário ocidental. A opção por esses escritores possibilita a interseção com outras disciplinas do currículo do ensino médio. Além disso e, sobretudo, suas obras retratam de forma marcante o universo sócio-histórico das línguas estrangeiras em questão, seja pela crítica social contundente, seja pela exposição de grandes questões humanas.

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Isto posto, apresentamos a seguir uma relato de nossa experiência na tentativa de garantir a presença de textos literários na sala de LE do ensino médio. Charles Dickens: o correspondente da Inglaterra do século XIX A ideia de abordar o escritor inglês Charles Dickens no primeiro ano surgiu a partir de uma atividade interdisciplinar que contemplou as disciplinas de Artes, Filosofia, Geografia, História, Língua Estrangeira, Literatura e Sociologia. Nesta atividade, os alunos visitaram o centro histórico da cidade do Rio de Janeiro, locus de muitas heranças dos séculos XVIII e XIX, com a finalidade de serem apresentados, particularmente, às questões sócio-históricas e políticas do século XIX, levando em consideração a problemática dos negros após a conquista da liberdade, das remoções de uma classe mais pobre que morava em cortiços e da renovação do centro da cidade devido à chegada de D. João VI e sua corte portuguesa. Tomando como ponto de partida o conhecimento construído sobre a sociedade carioca da época, começamos a pensar em como fazer a articulação com as aulas de inglês. Decidimos, então, abordar a realidade da sociedade inglesa em plena Revolução Industrial no século XIX. Identificamos em Charles Dickens a possibilidade de traçarmos uma comparação entre as duas sociedades, uma vez que o referido escritor retratou em suas obras o cotidiano das ruas, prisões, lojas, parques e casas de penhores londrinos. Além disso, observou de perto e descreveu as dificuldades da maioria dos menos favorecidos. Assim como eles, Dickens também atravessou difíceis momentos durante a sua infância e juventude. Devido a sua importância histórica, a obra escolhida para ser abordada foi “Sketches by Boz”, traduzido por Marcello Rollemberg para “Retratos Londrinos”. Segundo Rollemberg, este foi o primeiro livro de Charles Dickens, publicado em 1836 […]. São crônicas e pequenos ensaios produzidos para jornais como Evening Chronile e Morning Chronile, condensando uma riquíssima combinação de reportagem, crônica e ficção centrada nas cenas urbanas e em personagens da metrópole britânica no século XIX. ROLLEMBERG (2003, sinopse).

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Para a concretização desta etapa, foram indicados apenas três capítulos para leitura durante as aulas, a saber: O amanhecer nas ruas, A noite nas ruas e O Scotland Yard. Cabe destacar que, antes da leitura propriamente dita, os alunos foram apresentados ao contexto sócio-histórico por meio de um trecho do filme My fair lady (1964) dirigido por George Cukor que conta a estória da personagem Eliza Doolittle, uma mendiga que vende flores pelas ruas escuras de Londres em busca de uns centavos. Este filme foitambém selecionado, pois retrata a realidade londrina da época. Solicitamos especial atenção aos personagens, às roupas, aos prédios sujos, bem como às ruas que eram sem saneamento e escuras. Após esse momento de contextualização, os alunos foram questionados acerca de suas interpretações sobre o que foi exposto. Em seguida à leitura dos três capítulos de Retratos Londrinos, propusemos uma discussão sobre os mesmos, privilegiando o olhar detalhista de Dickens. Com vistas a enriquecer a articulação entre Rio e Londres, selecionamos outra obra do escritor: Oliver Twist. Este foi publicado originalmente em folhetim, entre os anos de 1837 e 1838. É considerado um dos livros mais famosos de Charles Dickens e o primeiro romance em língua inglesa a ter uma criança como protagonista. Voltamos então nossa atenção para a vida dos meninos órfãos da Inglaterra do século XIX. Neste período, aquele país era um lugar muito ruim para os mais pobres, pois eram submetidos a tarefas árduas e jornadas longas em fábricas ou em minas de carvão. Nesses locais, trabalhavam muito, recebiam pouco e, consequentemente, não tinham condições de moradia segura e muito menos de higiene. As crianças não freqüentavam escolas, uma vez que também deveriam trabalhar para sobreviverem. Como se já não bastassem tais dificuldades, muitas crianças ficavam órfãs, acabando por irem morar em workhouses - galpões frios e escuros onde as pessoas trabalhavam, dormiam, recebiam uniformes e se alimentavam com a mesma comida todos os dias. Dickens, neste livro, teve a preocupação de demonstrar a experiência que ele mesmo viveu quando ainda era criança após o seu pai ser preso devido a dívidas. A sua obra foi representada em filme pelo diretor Roman Polanski em 2005. Os alunos assistiram ao filme e, em seguida, compartilhamos opiniões e impressões. Muitos lançaram mão de comparações entre os órfãos apresentados em Oliver Twist com os meninos que vivem nas ruas da cidade do Rio de Janeiro. O debate 449

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suscitou reflexões sobre os motivos que os fazem sair de suas casas; a questão da dificuldade de sobrevivência desses meninos que por conseqüência passam a cometer furtos, além do uso das drogas como uma forma de tentativa de fuga da dura realidade a que são sujeitados. Como ponto de culminância das atividades propostas (leitura de Retratos londrinos, o trecho do filme “My Fair Lady” e o filme “Oliver Twist”), os alunos elaboraram como trabalho final uma reflexão crítica que abordou as questões suscitadas pelos debates no que dizia respeito à relação Rio-Londres. Vale sublinhar que o encontro entre alunos e textos literários, seja por meio da palavra impressa (livro) seja pela narrativa fílmica, potencializou um olhar crítico da realidade que os cerca e, segundo eles, os fez enxergar os detalhes da vida cotidiana, assim como o fez Dickens. Miguel de Cervantes: el ingenioso hidalgo Don Quijote De La Mancha Yace aquí el hidalgo fuerte que a tanto extremo llegó de valiente, que se advierte que la muerte no triunfó de su vida con su muerte. Tuvo a todo el mundo en poco, fue el espantajo y el coco del mundo en tal coyuntura que acreditó su ventura morir cuerdo y vivir loco. (Epitafio de Don Quijote, por Sansón Carrasco) A inclusão do texto literário nas aulas de E/LE no Ensino Médio se deve, sobretudo, a necessidade de uma ferramenta que funcionasse no processo de ensino-aprendizagem como integradora de competências, ou seja, o texto literário intermediando as quatro habilidades linguísticas: ler, ouvir, falar e escrever. Nesta perspectiva, a proposta de trabalho apresentada foi a leitura de fragmentos da maior obra da literatura espanhola, D. Quijote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, e de alguns textos teóricos sobre a própria obra. A ideia não pressupunha uma aula de literatura em que o fosse lido e analisado pelos conceitos formais, o importante neste trabalho foi o desencadeamento das variadas interpretações pessoais sobre o texto. 450

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O primeiro momento do trabalho foi uma checagem sobre o conhecimento prévio dos alunos do segundo ano, o quanto eles já conheciam sobre a obra. E, para isso, foi usada uma imagem, um desenho captado na internet, que seria o elemento desencadeador de todo o processo. A imagem escolhida trazia a figura de D. Quijote de La Mancha, seu fiel escudeiro Sancho Panza e um moinho vento.

(http://ser-pensador.blogspot.com.br/2011/11/o-caso-de-dom-quixote.html) Com base nas respostas dadas, percebemos que a obra não era desconhecida pela grande maioria dos alunos. Eles já haviam ouvido falar sobre um personagem que “era louco”, que “tinha um cavalo velho”, que era acompanhado por “um gordinho” e “brigava com moinhos de vento”. E um dado mais importante: sabiam que era uma obra que fazia parte dos clássicos universais. É claro que estes elementos estavam soltos e nem todos vinham ao encontro das análises literárias com o conhecimento que hoje temos da obra, mas saber que já havia alguma informação foi muito importante e conduziu o trabalho para o segundo momento. Nesta parte do trabalho foi apresentada ao aluno uma pequena biografia de Miguel de Cervantes, de sua época histórica, do contexto em que viveu e produziu suas obras. E, ainda nesta etapa, foi feita a leitura do prólogo. Em todos estes momentos foram promovidas discussões que permitiram evidenciar as mudanças na percepção leitora dos alunos, bem como a condução para as próximas etapas daatividade.

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O terceiro momento compreendeu a leitura de fragmentos do primeiro capítulo: “Que trata de la condición y ejercicio del famoso hidalgo don Quijote de la Mancha”, com a clássica frase: “ En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, […]”, onde é apresentado o personagem Quixotesco. E, posteriormente, uma parte do texto de Mario Vargas Llosa, Una novela para el siglo XXI, que ratifica a importância e os principais elementos de que se compõe o texto Cervantino. Cabe ressaltar que em todos os momentos, considerando todas as etapas do trabalho, foram feitas avaliações, em que os alunos e o professor/orientador das leituras, num procedimento coletivo, organizaram pequenos seminários para que fossem debatidos os conceitos de “conhecimento prévio”, “clássicos” e “leitura”. Neste sentido, foi possível a ratificação de um conceito de leitor que infere, interage e tem consciência de sua responsabilidade enquanto sujeito na construção de seu próprio conhecimento. William Shakespeare: o bardo elizabetano Jovem de uma pequena cidade provinciana – homem sem fortuna, sem amigos poderosos e sem formação universitária – muda-se para Londres no fim da década de 1580 e, logo, torna-se o maior dramaturgo não somente de sua época, mas de todos os tempos. Suas obras atraem eruditos e iletrados, refinadas platéias urbanas, bem como provincianos que vão ao teatro pela primeira vez. Faz o público rir e chorar; transforma política em poesia; arrojado, mistura palhaçada vulgar com sutilezas filosóficas. Capta com a mesma sensibilidade a vida de reis e mendigos; num momento, parece ter estudado direito; noutro, teologia; em outro ainda, história antiga, enquanto, sem esforço, imita o sotaque de caipiras e se diverte com superstições.(GREENBLAT, 2011,prefácio).

As palavras de Stephen Greenblat, renomado biógrafo de William Shakespeare, nos remetem não só à importância do bardo inglês como ator social de seu tempo, mas também à magnitude da obra shakespeareana.

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Inicialmente definimos que o trabalho seria desenvolvido no segundo trimestre do ano letivo com as turmas do terceiro ano. A atividade ficou dividida em três momentos, a saber: 1

Primeiro momento: aproximação Leitura de um paradidático sobre William Shakespeare, a fim de familiarizar os alunos com as origens, a trajetória, bem como o background sócio-histórico de sua produção artística. Foram reservadas duas aulas (quatro tempos de 45 minutos cada) para que fosse feita a leitura. Segundo Momento: apreciação Fizemos uma seleção prévia de três produções – A Megera Domada (Franco Zeffirelli, 1967); Romeu & Julieta (Franco Zeffirelli, 1968) e Otello (Orson Welles, 1956). Coube aos alunos escolher qual filme iriam assistir. Em votação, a maioria optou por Otello. Na aula seguinte à exibição do filme, promovemos uma breve discussão sobre a versão de Welles do mouro de Veneza para a telona. Terceiro Momento: apresentação de seminários Os alunos tiveram que se organizar em grupos com a finalidade de apresentar seminários dentro das seguintes temáticas: • Obra, apontando sua produção como dramaturgo e também como poeta; • Stratford-Upon-Avon, apresentando sua cidade natal; • Londres, apresentando a cidade como o lugar de sua projeção, com especial destaque ao The Globe2;e • Citações, identificando frases e expressões famosas das personagens de Shakespeare que circulam até os dias de hoje. 1

O calendário letivo do CTNMS da EPSJV é organizado em trimestres.

Globe Theatre ou The Globe é um teatro inglêsconstruído em 1599 e destruído em 1613por um incêndio, sendo reconstruído em 1614 e fechado em 1642.Uma moderna construção foi erguida e reinaugurada em 1997, sendo agora chamada de Shakespeare's Globe Theatre ou New Globe Theatre 2

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Foi solicitada apresentação em Power Point e em português, uma vez que o foco do nosso trabalho não era avaliar a performance oral.É preciso destacar ainda que esta atividade foi considerada como parte da avaliação proposta no trimestre. Passado algum tempo de realização dessa atividade, pedimos aos alunos que escrevessem sobre a relevância de conhecer um pouco mais sobre Shakespeare e sua obra. Seguem abaixo as suas palavras: Além de grande autor que é William Shakespeare, estudar uma outra cultura, uma outra época te faz ampliar sua visão de mundo, que está muitas vezes presa no teu contexto atual, no seu grupo social. (Isabel C. Barbosa). O estudo de Shakespeare foi importante, pois nos fez conhecer um pouco mais a fundo algo que sempre ouvimos falar. E além do mais nos fez conhecer algo de grande importância ainda nos dias de hoje que talvez não veríamos em outro lugar de tal forma. (Anny Fontes). Se tratando da língua inglesa, mesmo não podendo ser comparado, mas seria parecido quando falamos de Machado de Assis nas aulas de literatura. (Iashmim do Nascimento). Gostei do modo que o estudo foi desenvolvido, porque pudemos ter um panorama da época e do local, e também vimos um outro lado de Shakespeare - como ator, por exemplo. (Julia Barbalho da Mota). Aliado ao estudo de Shakespeare, sua vida, história e obra, faz-se necessário o estudo da Inglaterra daquela época, como funcionava o teatro, entre outros aspectos interessantes sobre a cultura inglesa. Este amplo conhecimento contribuiu e muito no aprendizado do inglês e da história cultural do país. (Michele Agostinho Condé).

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REFERÊNCIAS

CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha; Edición del IV Centenario, Real Academia Española: Alfaguara, 2004. BASSET, Jennifer. William Shakespeare. Oxford Bookworms,OUP, 2008. DICKENS, Charles. Retratos londrinos; tradução Marcello Rollemberg. Rio de Janeiro: Record, 2003. ______.Oliver Twist. Graded Readers - Stage 1. Teen ELI Readers. GREENBLAT, Stephen.Como Shakespeare se tornou Shakespeare, São Paulo, Companhia das Letras, 2011. MY FAIR LADY. Disponível em http://www.imdb.com/title/tt0058385/. Acesso em 28/09/2011. ORIENTAÇÕES CURRÍCULARES PARA O ENSINO MÉDIO VOL. I - Linguagens, códigos e suas tecnologias / Secretaria de Educação Básica. – Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006. ROCCO, M. Literatura/ensino: uma problemática. São Paulo : Ática, 1981. ZILBERMAN, R. A leitura e o ensino de literatura. São Paulo: Contexto,1991.

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GRAMÁTICAS DE LENGUA ESPAÑOLA: UN ESTUDIO COMPARATIVO

Antonio Ferreira da Silva Júnior CEFET/RJ

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ste trabajo tiene como objetivo comparar cómo se presentan los índices de cuatro gramáticas de la Lengua Española. Es bueno informar que el índice de una gramática tiene como rol representar los parámetros descriptivos de un estudio. Dicha actividad pretende atender una reflexión sobre el concepto de lengua que está por detrás de las gramáticas. Para eso, las gramáticas analizadas fueron la Gramática de la lengua castellana, de Antonio de Nebrija (1492); la Gramática o arte de la lengua general de los indios de los reynos de Perú, de Fray Domingo de Santo Tomás (1560); el Arte de la lengua totonaca, de autor anónimo (1752) y la Gramática Descriptiva de la Lengua Española, publicada en 1999, una obra colectiva coordinada por Ignacio Bosque Muñoz y Violeta Demonte Barreto bajo el respaldo e interés de la Real Academia Española (RAE). En resumen, nuestro objetivo será verificar si las gramáticas organizan los elementos de una lengua, basándose en una tradición filosófica e histórica o según sus corrientes teóricas. Antes del trabajo de análisis de los índices de las obra seleccionadas, nos cabe decir que tuvimos acceso a la introducción de dos de las gramáticas, la de Nebrija y la Descriptiva. Creemos que eso fue de extrema importancia para percibir la manera como se esbozó el índice de las mismas. Comparándose la introducción de estas dos gramáticas, una más antigua (de tradición latina) y otra más moderna, se perciben rasgos muy interesantes que las diferencian. La estructura y los objetivos son algunos de los puntos que cambiaron a lo largo de los años que separan estas dos gramáticas. Ignacio Bosque y Violeta Demonte nos muestran, en la introducción, puntos relevantes para el análisis de estas diferencias, cuando exponen las características por las que consideran la obra más moderna como: el hecho de ser una obra colectiva, un estudio descriptivo del idioma, una obra de múltiple acceso con nuevos temas en la gramática del español. Según los autores es posible existir muchas 456

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maneras de analizar los elementos que constituyen una lengua, y por lo tanto, variados medios son los de formular estudios que resultan en muchas gramáticas de la Gramática de la lengua. Por eso la posibilidad que tenemos de analizar estas cuatro gramáticas en el medio de tantas otras que existen. La preocupación por describir detalladamente y de manera exhaustiva la gramática del idioma español llevó a los idealizadores de la Gramática Descriptiva realizar una obra colectiva, es decir, una obra hecha por varias manos. El estudio contó con la participación de 73 expertos en la elaboración de los 78 capítulos de la gramática. Eso no pasa con la primera gramática de la lengua castellana escrita por Antonio de Nebrija. El objetivo del autor es escribir la gramática para que se puedan establecer las reglas del buen escribir. Nebrija tenía el objetivo de legitimar la lengua castellana. En contraposición, esa idea ya no aparece en la gramática de la Real Academia. La intención de los autores de esa última es hacer una descripción de la lengua española, tal como es. En los días actuales es casi imposible que un sólo gramático intente describir con detalles la gramática de una lengua como lo hizo Nebrija. Es clara la necesidad de contar con la ayuda de múltiples investigadores. Se observa, tras levantar ciertas cuestiones que el estudio de la evolución de la lengua es un asunto antiguo y siempre actual. En la presentación de su gramática, Nebrija nos muestra que desde muchos años este estudio se vuelve siempre actual, o sea, hasta los días actuales especialistas tratan de analizar esta evolución. El propio autor escribe: Esta hasta nuestra edad anduvo suelta fuera de regla: a esta causa a recebido en pocos siglos muchas mudanças. Por que si la queremos cotejar en la de oi a quinientos años: hallaremos tanta diferencia diversidad: cuanta puede ser maior entre dos lenguas.

Su obra nos ofrece en gran parte una perspectiva histórica de la lengua. El autor escribe sobre la contribución lingüística de otras culturas y sobre el origen de la lengua en el latín. Eso está señalado en el índice de su obra, pues recurre a todo momento al latín para compararlo al castellano. Nebrija destaca con el índice en la época de publicación de su gramática el influjo vernáculo en la formación de la lengua española. Para Nebrija, la gramática es un instrumento de poder. Además siempre relaciona las lenguas a los hechos históricos, dependiendo de ellos su caída o crecimiento. Antonio de Nebrija da como ejemplo el desmembramiento del reino de los 457

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judíos diciendo que con él se comenzó a perder la lengua. El autor de la primera gramática cree que hacer la gramática sea una solución a la cuestión de la no desaparición de la lengua, pues intenta dar status a la lengua española. Esa idea ya no existe en la cabeza de los autores de la más actual. Para ellos, hacer una gramática es registrar el estado actual de la lengua, ya que ésa siempre está en proceso de constante evolución. La introducción de la gramática moderna que analizamos muestra que ésa es una gramática descriptiva, en la cual el énfasis no está en la historia de la lengua, sino en los fenómenos actuales que se manifiestan en ella, como notamos por el extenso índice, que intenta explotar todos los campos posibles del uso real de la lengua. El objeto de estudio es la lengua actual como vemos en la cita a continuación: Esta obra es descriptiva en cuanto presenta las propiedades de las construcciones y de las palabras que las forman, es decir, en tanto que muestra clases, paradigmas, regularidades y excepciones. Es descriptiva en el sentido de que pretende exponer razonar el comportamiento de las categorías gramaticales, las pautas que regulan su estructura interna y las relaciones morfológicas, sintácticas, semánticas y discursivas que se dan en todos los ámbitos que abarca el análisis (1999: 21)

Los autores muestran en la introducción la preocupación por hacer de la Gramática descriptiva una obra de múltiple acceso que "aspiraba a presentar en términos relativamente sencillos y en un vocabulario común los resultados de trabajos especializados" (1999: 20). Eso no está claro en la obra de Antonio de Nebrija. Este autor tenía los siguientes objetivos: tener la gloria de hacer con el castellano lo que hizo Zenodoto con el griego y Crates con el latín [divulgar las lenguas]; incentivar el estudio del latín; favorecer el aprendizaje del castellano para los enemigos vencidos y para los pueblos que tenían necesidad de conversación en España, es decir, para entablar comunicación entre los más diferentes poblados. Por los índices de consulta de las dos gramáticas notamos una diferencia clara. En el de Nebrija, el filólogo quiso, sobretodo, preservar la lengua. Mientras el de la Gramática Descriptiva ya hay la intención por mostrar el escenario de la lengua actual, es decir, enseñar claramente sus usos, características, estructuras en nuestro tiempo. Antonio de Nebrija pretendió hacer la lengua "extenderse en toda la duración de los tiempos que están por venir." 458

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Las otras dos gramáticas propuestas para análisis de sus índices resultaron de difícil comprensión, porque no accedimos a las palabras de presentación de los estudios. A partir de eso, creemos que ambas las gramáticas se asemejan en la confección de sus índices. Podemos decir que notamos un tono didáctico en la organización de dichas planificaciones, principalmente en la de Fray Domingo. Lo interesante del trabajo de ésas dos es que se refieren a la gramática como un arte, es decir, como si fuera el patrimonio más valioso de una lengua, lo que le da carácter. La gramática de Fray Domingo a diferencia de las otras tres se divide en 26 capítulos que explotan cuestiones ya recurrentes en las otras gramáticas del corpus. Además de destinarse a la catequización de indígenas, ya que como se refiere a su público lector como “al christiano lector”, la gramática también rescata en los capítulos 23 y 24 aspectos específicos del lenguaje de los indígenas que vivían en Perú, como por ejemplo, su léxico propio y sus maneras de comunicarse. El último capítulo de su obra presenta un apartado específico con actividades para ejercitar las reglas desarrolladas en el transcurrir de la gramática. Pocos datos tenemos sobre la gramática de la lengua totonaca, sólo sabemos que sus fragmentos fueron recuperados por un autor anónimo como forma de mantener viva la memoria lingüística y discursiva de un pueblo. Tras eso la gramática es recopilada, en 1990, por la Universidad Nacional Autónoma de México. Un punto que la enlaza a las gramáticas de Nebrija y la Descriptiva es el número de capítulos en que están divididos en los estudios. A continuación exponemos como se presentan las secciones de tales gramáticas:

Primer capítulo/libro Segundo capítulo/libro Tercer capítulo/libro Cuarto capítulo/libro Quinto capítulo/libro

Gramática de Antonio de Nebrija Ortografía Prosodia y sílaba Etimología y las partes de la oración Sintaxis y orden de las diez partes de la oración Declinación del nombre y pronombre; Formación del verbo

Gramática de la lengua totonaca

Gramática descriptiva

Naturaleza del nombre, del pronombre, de su declinación y preposiciones Verbo, su conjugación y formación de los tiempos Naturaleza de los verbos

Sintaxis básica de las clases de palabras Las construcciones sintácticas fundamentales Relaciones temporales, aspectuales y modales Entre la oración y el discurso

Derivación de los nombres verbales y la composición de los nombres con los verbos Acentuación y otros aspectos esenciales de la lengua

Morfología

Pese estar divididas en partes iguales, las tres no siguen una misma secuencia en la hora de elegir los contenidos de sus estudios. Factores como intención de obra, concepto de lengua y discurso influencian en la exposición de los tópicos gramaticales. Ese recurso no significa la limitación de una u otra gramática, o aún, 459

Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares

no representa que una sea superior a la otra, sin embargo, sólo evidencian abordajes y objetivos diferentes en el modo de ofrecer lecturas para la representación de una (misma) lengua. Queremos destacar que en este ensayo no se agotó la posibilidad de lectura para las gramáticas investigadas.

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REFERENCIAS

Arte de la lengua totonaca [anónimo, 1752]. México: UNAN, 1990. BOSQUE, I. y DEMONTE, V. Gramática Descriptiva de la Lengua Española (tomos I, II y III). Madrid: Espasa Calpe, 1999. NEBRIJA, Antonio de. Gramática de la lengua castellana. Estudio y edición de Antonio Quilis. Madrid: Centro de Estudios Ramón Areces, 1989. SANTO TOMÁS, Fray Domingo de. Grammatica o arte de la lengua general de los indios de los reynos de Perú. [1560] 1ed. Cuzco, 1995.

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REFLEXÕES SOBRE O USO DO TEXTO LITERÁRIO NA AULA DE LÍNGUA ESTRANGEIRA

Antonio Ferreira da Silva Júnior CEFET/RJ

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ste trabalho está dividido em duas partes. A primeira pretende discutir os conceitos de globalização e identidade, importantes para a prática do professor, em nosso caso, de língua estrangeira, já que nossas aulas promovem o encontro/cruzamento do aluno com o universo (social, político e cultural) do outro/ estrangeiro. A segunda parte é o relato de uma experiência didática por meio do trabalho com o texto literário (gênero conto) na aula de espanhol como língua estrangeira (E/LE) em uma turma de 2º ano do Ensino Médio no cenário de um colégio privado do Estado do Rio de Janeiro. Desde o método gramática tradução (e isso acabou refletindo u nos cursos de formação de professores de Letras no Brasil), o texto literário ocupava uma posição central do processo de ensino/aprendizagem da língua estrangeira. O conhecimento da língua estrangeira dava-se a partir da leitura dos textos “clássicos” na versão original, cabendo ao professor destacar os aspectos contrastivos entre as duas línguas (materna do aluno e estrangeira) e levantar glossário de palavras na língua meta. A partir dos anos oitenta, vemos a profusão de livros didáticos publicados na Espanha, oriundos da última “moda metodológica” daquele momento, o comunicativismo, porém, tal enfoque acabou por reforçar a pouca importância do gênero literário na aula de língua estrangeira, já que, normalmente, aparecia no final das unidades didáticas e sem propostas de atividades contextualizadas. Optei por relatar a experiência didática mencionada anteriormente porque a mesma se originou de uma reflexão da inserção do elemento cultural na aula de língua estrangeira. A partir da análise e da reflexão de práticas “tradicionais” com o texto literário em sala de aula, pude propor uma atividade em que o aluno estabelecesse contanto com o universo cultural de alguns países de língua espanhola, promovendo práticas interculturais de aprendizagem (já que começa a relacionar a sua própria cultura) e pudesse ter contato com as estruturas linguísticas da 462

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língua estrangeira a partir da organização textual daquele gênero ou, ainda, da transposição de um gênero em outro. 1ª Parte: Fundamentação teórica “[...] para viver a experiência do outro é necessário preservar aquilo que a cada um é próprio [...] pois o contato permanente, que facilita o conhecimento, não elimina as peculiaridades de cada cultura”. Alberto Zum Felde (2001) apud JOZEF (2001, p. 236).

A globalização, segundo o sociólogo espanhol Manuel Castells (2008), seria o fenômeno que estrutura as sociedades contemporâneas, pois adapta a realidade histórica atual às mudanças econômicas, sociais e culturais das próprias sociedades. Por isso, a globalização pode provocar, ao mesmo tempo, processos de inclusão e exclusão, que geram consequências não só econômicas, mas também sociais e culturais. Pode-se afirmar que a globalização não implica necessariamente num processo de homogeneização cultural, apesar de termos uma série de valores cosmopolitas e consciências que tentam uniformizar culturalmente certos grupos sociais. A diversidade cultural é mais nítida do que nunca nos dias atuais, em que num mesmo espaço, compreendido não somente do ponto de vista geográfico, convivem valores diversos. O complexo processo de globalização, fenômeno plural, já que revela os diversos modos de ser no mundo, permitiu a implementação de novas políticas e o estabelecimento de novos modelos culturais, impondo aos indivíduos certos domínios, porém, em muito dos casos, sem resistência. Ao analisarem esses modelos externos, os latino-americanos lutam cada vez mais pela manutenção de uma cultura nacional, mas não negam um contato com o mundo. Ao contrapor sua identidade e seus valores com os do outro, ambos os indivíduos conseguem se enriquecer, mas nunca apagando o que há de mais pessoal na essência destes, tendo em vista o pensamento do crítico uruguaio Alberto Zum Felde exposto na epígrafe deste trabalho. Esse encontro de vozes e a idéia de preservar o nacional, no contexto da globalização, devem ser repensados, já que a noção de dependência não significa que estamos presos a certos traços culturais. Esse contato com outras culturas não representa a perda de uma identidade, mas sim o rompimento de frontei463

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ras interculturais, levando-nos a viver em espaços híbridos (GARCÍA CANCLINI, 2000), em que aceitar as diferenças, num primeiro momento, constituía um empecilho ao progresso da nação. Contudo, em tempos modernos, será na contraposição dessas diferenças que estabeleceremos um diálogo efetivo. Nesse contexto cabe destacar a idéia da ruptura que se faz necessária ao pensarmos no mundo contemporâneo. E essa ligada a de que temos ao reconhecer o outro o encontro com a nossa autêntica base em uma sociedade global. Essa convivência será gerada pela aceitação do outro, ou seja, a partir do momento em que estabelecemos espaços para aceitar outros discursos, que não sejam somente os nossos próprios pensamentos. Desde os ideais do modernista cubano José Martí, a identidade na América Latina deve ser pensada em sua construção com os demais. No contexto da globalização ocorre o questionamento da identidade como uma unidade fixa, imutável e homogênea. Conforme Stuart Hall (2006, p. 13): O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades momentos, identidades que não são unificadas ao redor do ‘eu’ coerente [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis.

As identidades culturais foram enfraquecidas pelo fenômeno da globalização. O contato das culturas nacionais com o mundo externo gerou o enfrentamento entre as diferentes identidades na época contemporânea. De acordo com Hall (2006, p. 74), “[...] é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural”. Portanto, a sociedade moderna descentralizou e deslocou os sujeitos. Esse fenômeno apresenta pontos positivos, pois desarticulou as identidades estáveis do passado e possibilitou a criação de novas. Os sujeitos não conseguem mais mantê-las de modo fixo e estável, contudo se transformam em sujeitos fragmentados, com identidades contraditórias e inacabadas. No mundo contemporâneo, a ruptura com o tradicional faz-se necessária para que nos identifiquemos cada vez mais e avancemos no reconhecimento do outro.

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Temos o fortalecimento de uma autêntica sociedade global na repercussão de nossa identidade e na aceitação dessa pelos outros, permitindo a convivência de distintas culturas no mundo global do novo milênio, melhor dizendo, atualmente, há a necessidade de estar aberto a novas informações e contatos, para manter e reforçar o nosso lugar num mundo, que a cada momento o espaço para o “eu” se faz reduzido, acarretando uma crise da razão manifestada pela crise do indivíduo. Conforme Bauman (1999, p. 65-66), a idéia de globalização traz consigo o processo de desnacionalização e um forte sentimento de catástrofe. Para o sociólogo, esse tempo em que vivemos reflete a verdadeira imagem da desordem global, pois forças díspares e dispersas atuam como as principais responsáveis pela perda do sentido de totalidade do mundo. Chegamos a uma época em que não há mais como prever e controlar as ações humanas. A globalização não só deve ser pensada como o meio para acabar com as diferenças, a tradição ou a memória coletiva de uma cultura, mas também como um intento de diminuir a força dominante de nações externas. Não podemos reconhecer na globalização o germe da homogeneização, nem muito menos de princípios democráticos e igualitários de poder nas nações. Nesse mundo dividido, resultado dos diferentes processos de hibridação, frutos das mais diversas relações entre culturas, cabe ao indivíduo buscar seu lugar no mundo e revalidar seu próprio discurso. Nossos referentes não podem ser o desencanto com o mundo ou o individualismo, muito menos a fragmentação, porém o humanismo e a unidade compreendida na diversidade. Como sabemos, a globalização não é um processo homogêneo, pois traz em si uma certa ideologia de poder e dominação, abrangendo diferentes espaços, permitindo que esses ressaltem suas identidades individuais. Também não podemos deixar de reconhecer que, através do contato diário entre os indivíduos, as identidades culturais revelam o verdadeiro hibridismo de diferentes tradições culturais, sendo esse o produto e o resultado dos diversos cruzamentos, que vêem na globalização sua força motriz. Nessas trocas interculturais, como nos afirma Bauman, não há a assimilação total dos traços da cultura alheia, todavia ocorre uma interconexão entre culturas. A sociedade moderna e da globalização impôs um ambiente plural, em que os mais variados tipos humanos, estilos de vida, crenças, ideais culturais e línguas percorrem a urbe, gerando uma sensação de incômodo e de desordem. Apesar da ideia de unificação proposta pela globalização, o caos é recorrente na Babel em que o mundo se transformou devido ao próprio homem (GOMES, 2008).

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2ª Parte: Relato de experiência A presença da literatura e dos textos literários nas aulas de línguas estrangeiras passou, no decorrer da história da metodologia do ensino, por momentos de glória e de grandes crises. Nos anos cinquenta e sessenta predominou o ensino de línguas baseado no enfoque gramática-tradução. A língua estrangeira era aprendida através da tradução de fragmentos ou de pequenas obras literárias, com a memorização de regras gramaticais, predominando as destrezas escritas diante das orais. Com o decorrer do tempo, a evolução das ciências linguísticas e a chegada e introdução de programas estruturalistas, eliminou-se a presença da literatura do ensino de línguas, pois se considerava ultrapassada e indevida para levar o aluno a aprender a comunicar-se numa língua estrangeira, porque apresentava usos do sistema da língua bastante diferentes das necessidades comunicativas dos aprendizes e dos objetivos didáticos planificados. Nos anos oitenta, a literatura volta a ser introduzida nos currículos através do enfoque comunicativo e das teorias de recepção do texto, pois a literatura é um componente a mais da competência cultural integrada no amplo conceito de competência comunicativa. A questão é que muitas das vezes, quando se pensa em levar a literatura para sala de aula, alguns professores acabam associando-a aos clássicos ou, ainda, seguindo o modelo de currículo de sua formação universitária, já que ambas práticas representam o “modelo ideal” com esse tipo de gênero. No entanto, nossa experiência comprova que a manutenção de tal prática didática acaba provocando um rechaço por parte dos alunos ao universo literário, pois o grau de complexidade da língua, o objetivo estético com que são criadas as obras, e algumas vezes, a temática, nem sempre estabelecem contato com os conteúdos curriculares que trabalhamos normalmente em sala, nem são nada motivadores para os estudantes ou não coincidem com suas expectativas ou, ainda, suas necessidades de aprendizagem. Apesar dessa atual revalorização do literário em aulas de LE, acreditamos que o texto literário, na maioria dos casos, continua sendo utilizado em sala de uma maneira muito limitada e se justifica somente como pretexto para a prática de fixação de elementos gramaticais ou como tema de conversação e de produção escrita.

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Os professores acabam confundido como levar a literatura à sala de aula de LE em turmas de Ensino Médio, pois não diferem seu estudo de sua aplicação prática e lúdica. A literatura, como pura manifestação artística, não tem sentido numa aula de E/LE, pois não é uma disciplina escolar, onde podemos ensinar as correntes literárias, as características de estilo do autor, uma análise profunda das obras, os tipos de escrito, etc., muito menos são “oficinas de literatura”, pensadas como cursos paralelos aos de língua, exigindo, em alguns casos, um alto conhecimento da língua. Os textos literários, ao contrário, sim têm razão de estar presentes em sala como material didático, por suas características de gênero discursivo – informativo e cultural – e, além disso, como fonte “autêntica” de estudos de mecanismos linguísticos que articulam uma língua. Não podemos perder de vista que nem sempre devemos buscar nos textos literários a beleza ou a estética com que foram criados ou trabalhados nas aulas de Graduação em Letras, mas sim o fato de que são textos em si, e por isso, unidades comunicativas, por isso devemos recorrer ao trabalho constante com textos reais e não adaptados, já que perdem sua realidade e se convertem em textos manipulados. Claro que nem sempre é fácil o trabalho de encontrar textos literários autênticos que se adaptem aos diferentes níveis de aprendizagem do aluno. Muitas vezes, o professor não obtém êxito na atividade, pois acaba selecionando textos a partir dos seus interesses literários, sem levar em conta as necessidades e o nível de conhecimento do alunado. Para que o texto literário tenha uma utilidade pedagógica no processo de ensino-aprendizagem de uma língua (SANTOS, 2004), devemos considerar: a) presença de mostras e usos reais da língua contextualizando estruturas e vocabulário b) input novo c) contribuição no desenvolvimento de destrezas d) contribuição no desenvolvimento de habilidades de compreensão leitora e) que seja reflexo dos conteúdos gramaticais, sócio-culturais, discursivos, etc.. trabalhados em sala f) que a extensão do texto permita realizar sua leitura e atividades no espaço da sala de aula. Ao trabalhar com o texto literário em sala, devemos antes considerar certas questões (SANTOS, 2004): 467

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a) o nível de língua dos alunos: se é adequado ao texto ou será um esforço entende-lo. b) as características do grupo: formação acadêmica, sexo, idade, interesses, procedência social, necessidades, etc. c) os conteúdos que podem ser abordados no texto: vocabulário, estruturas, conectores, conteúdos culturais, etc. d) como articular ao trabalho realizado em sala: que conhecimentos prévios são necessários, que aula antecede, qual será a aula seguinte, etc. e) como desenvolver a atividade: estabelecer objetivos gerais e específicos, pensar quais são os possíveis problemas que podem apresentar os alunos. f) sequência das atividades: qual a ordem das atividades, por quê esta ordem? g) como apresentar o texto: texto completo, dividido em partes para facilitar o trabalho h) a função do professor durante o trabalho: forma de ajudar aos estudantes, guiar a atividade, resolução de possíveis problemas no decorrer das atividades Depois do trabalho em sala: a) Auto-avaliação e reflexão que valor recebeu a atividade os objetivos foram alcançados? Por que não conseguimos alcançar todos? Grau de satisfação dos alunos Grau de adequação do texto: problemas não previstos que surgiram, como resolver. Como poder melhorar a atividade: repensar o trabalho Para ilustrar os pontos argumentados anteriormente, apresento um exemplo de trabalho com textos literários autênticos – contos de escritores espanhóis e hispano-americanos –, no ano de 2005, proposto a estudantes do 2º ano do Ensino Médio de uma instituição privada do Rio de Janeiro, correspondendo a alunos com um conhecimento intermediário de língua espanhola. Optei pelo conto porque esse gênero oferece imensas possibilidades de leitura. Além de ser um material autêntico repleto de mostras de cultura, apresenta uma natureza de relato breve capaz de desenvolver produtivas atividades de compreensão leitora e escrita pertinentes a descoberta do alunado desse gênero discursivo, incentivando o desenvolvimento de sua competência literária.

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Nenhum gênero literário foi tão significativo como o dos contos populares na história da literatura universal. O conto, diferente do mito e da lenda, contem muitos mais episódios e uma maior margem para explorar personagens e ações diversas. No mundo do conto tudo é possível, por isso a escolha desse elemento estimulante e criativo como instrumento de trabalho no processo de ensino-aprendizagem de E/LE. Após verificar o nível e as necessidades do meu alunado, selecionei os seguintes contos: “El ahogado más hermoso del mundo”, de Gabriel García Márquez, “Casa Tomada” y “La puerta condenada”, ambos de Julio Cortázar, “El sudor”, de Jorge Ferrer – Vidal Turrul, “Acaso irreparable”, de Mario Benedetti, “La gallina degollada, de Horacio Quiroga y “La zarpa”, de José Emilio Pacheco, e planifiquei uma atividade baseada em três fases diferentes: a leitura prévia dos textos, a leitura propriamente dita e resolução de atividades propostas e, por último, uma fase posterior a leitura, mais reflexiva. A primeira tarefa foi dividir os alunos da turma em grupos com no máximo de oito alunos, de modo que esses grupos trabalhassem de forma separada no espaço da sala de aula. Já em casa, cada grupo deveria terminar de desenvolver as atividades proposta. Cada grupo recebeu um roteiro de trabalho e uma cópia de cada conto selecionado. A primeira fase do meu planejamento ocorreu no próprio espaço da sala de aula ao discutir e construir com os alunos um possível conceito de conto, após destacar a importância de conhecer a realidade sócio-cultural do outro, no nosso caso, uma aproximação maior aos textos produzidos por espanhóis ou hispano-americanos. Dando continuidade a primeira fase de minha proposta, trabalhamos com o levantamento de hipóteses a partir do título acerca do tema que seria abordado por cada texto, bem como estabelecemos uma aproximação com o autor e o contexto da época de produção do texto. Após essa etapa de uma breve apresentação dos textos, realizamos uma distribuição dos contos por afinidade temática dos grupos. A opção por contos de diferentes épocas, países e autores reside na proposta de promover práticas interculturais em sala (PARAQUETT, 2005). A segunda fase foi pensada para ser realizada em casa com um tempo máximo de três semanas para o término das atividades propostas. Os alunos em grupo deveriam realizar a leitura do conto e buscar a biografia do autor, analisar características de sua vida ou o contexto social que poderiam estar presentes em seu texto, analisar aspectos físicos e psicológicos dos personagens, fazer um 469

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levantamento da organização do gênero e do léxico não-conhecido, na tentativa de inferir novas palavras. Os alunos deveriam apresentar aos demais colegas de classe o resultado das pesquisas levantadas, a leitura realizada pelo grupo do conto estudado e apresentar um resumo em espanhol do conto, atividade entendida como resultado do trabalho de leitura do grupo. Além dessas atividades formais, solicitei aos alunos uma transposição do gênero conto para a linguagem teatral, sendo fundamental a participação de todos do grupo na adaptação do texto para outro gênero e linguagem. Cada grupo deveria se reunir com o professor para sanar dúvidas recorrentes da leitura, da confecção de resumo, da adaptação e da criação de um roteiro básico para desenvolvimento da peça. A utilização pelo espanhol na confecção do resumo, roteiro e apresentação teatral não era nosso objetivo central ao propor a atividade, já que o enfoque teórico, trabalhado em sala com esses alunos, era o da leitura de base sócio- interacional (PCN, 1998). O principal objetivo a ser alcançado na atividade foi o de estabelecer contato com textos autênticos de grandes escritores das letras de língua espanhola e promover uma reflexão entre diferentes representações culturais. Muitas dúvidas foram apresentadas pelos alunos nos encontros destinados ao debate e construção da atividade. Os questionamentos centravam-se mais na inferência de certos termos, na análise da organização do gênero textual e na adaptação para a linguagem teatral. Mas, acredito que, através desse diálogo, conseguimos lograr um ótimo resultado na atividade proposta. Notório foi o interesse dos alunos pela atividade solicitada. Todos os grupos apresentaram a parte formal do trabalho com o auxílio de retroprojetores, cartazes ou materiais impressos. O ponto alto da atividade esteve nas apresentações, onde os alunos confeccionaram cenários específicos e utilizaram roupas adequadas a cada conto, oferecendo aos demais alunos da turma uma leitura nítida e pertinente do conto estudado. Após cada apresentação tínhamos uma pequena conversa com todo o grupo comentando certos pontos importantes do texto ou da apresentação. Essa atividade proposta ocorreu durante o segundo semestre letivo da instituição e acabou tomando o interesse de toda comunidade escolar. A terceira e última fase da proposta resumia-se numa atividade posterior a leitura do conto e sua dramatização. Cada grupo recebeu o que nomeei por “diário de leitura”, em que formulei questões que deveriam ser respondidas em português e cobravam atividades críticas e reflexivas após a leitura do texto. Perguntas como comparar personagens, reescrever o final do conto, criar uma versão mais

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atualizada, listar personagens em ordem de importância, contar a história desde o ponto de vista de uma personagem, falar da própria experiência como alunos e leitores e se, talvez, conheciam algum texto parecido em seu país de origem, estavam presentes no questionário solicitado. Esse instrumento complementou a avaliação dos alunos envolvidos no processo e ajudou-me a verificar/pensar possíveis dificuldades encontradas no desenvolvimento da atividade. Cabe ressaltar que inúmeras outras atividades poderiam ter sido propostas e desenvolvidas com os textos selecionados. Não podendo, o professor, esquecer nunca de enfocar a realidade local e os anseios de seu alunado. Com esse breve relato, pretendi compartilhar algumas reflexões básicas que, como docente, tive que planejar para atender muitas ocasiões impostas por minha vida profissional. Acredito que essa experiência didática possa ser estendida a todos os que no seu dia-a-dia de trabalho questionam sua forma de trabalhar e que desejam enriquecer suas aulas.

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STEMBERT, Rudolf. “Propuesta para una didáctica de los textos literários en la clase de E/LE”. In: MIGUEL, Lourdes; SANS, Neus. Didáctica del español como lengua extranjera. Cuadernos del Tiempo Libre. Madrid: Fundación Actilibre, pp. 247-265, 1999.

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UM OLHAR SOBRE A CONTEXTUALIZAÇÃO EM AULAS DE ESPANHOL COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA

Celso Felizola Santos

Introdução

A

partir dos anos finais da década de 90 o termo “contextualização” vem ganhado vida própria, ou seja, do status de verbete passou a ostentar um significado quase mágico, um termo que aparece em quase todos os documentos referentes à educação como fórmula mágica para resolver problemas de aprendizagem. Mas, afinal, o que significa realmente a palavra contextualização? Este artigo é uma tentativa de chamar à reflexão sobre este tema, de maneira a contribuir para a sua desmitificá-lo e estabelecer conexões entre o próprio tema e a realidade vivenciada em salas de aula. Em primeiro lugar optamos por problematizar a própria palavra, visando a torná-la foco de uma maior atenção. Na sequência buscamos estabelecer o vínculo entre a contextualização e a ideologia, uma vez que o contexto cria umas áreas de interseção entre as várias visões de mundo que se defrontam em sala de aula, e a própria condição de professor, e o papel social que dele é esperado, já o colocam, teoricamente, em posição de mando dentro da sala de aulas. Por último, buscamos abordar mais especificamente a questão da contextualização no ensino de língua estrangeira, não se apresentando nenhuma fórmula preconcebida de atuação, mas apontando-se ideias gerais à problemática. A palavra contextualização: conteúdo e significados Preliminarmente podemos dizer que contextualização é o ato de contextualizar. Isto nos leva a outra questão: o que é contextualizar? A palavra nos dá a ideia de inserção de algo em determinado contexto, que traz consigo a noção lugar real ou imaginário de relações, tecido, malha, conexões. Semanticamente vale

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recorrer ao Dicionário Interativo da Educação Brasileira da Agência EducaBrasil, que nos apresenta o seguinte enunciado: A ideia de contextualização entrou em pauta com a reforma do ensino médio, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, que orienta para a compreensão dos conhecimentos para uso cotidiano. Tem origem nas diretrizes que estão definidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que são guias para orientar a escola e os professores na aplicação do novo modelo. De acordo com esses documentos, orienta-se para uma organização curricular que, entre outras coisas, trate os conteúdos de ensino de modo contextualizado, aproveitando sempre as relações entre conteúdos e contexto para dar significado ao aprendido, estimular o protagonismo do aluno e estimulá-lo a ter autonomia intelectual. (MENEZES e SANTOS, 2002).

Não podemos esquecer, no entanto, que, na prática, a ideia de tecer as malhas do conhecimento a partir dos fios que se encontram de posse do educando já havia sido posta em prática nos Círculos de Cultura promovidos por Paulo Freire e seu grupo, em Angicos, em 1963, quando “alfabetizou 300 trabalhadores em 45 dias" (GADOTTI, 2006, p. 2). Usando como deflagrador do processo as narrativas dos alunos, a partir das quais se formava o universo vocabular, o grupo de Freire, “A partir dessa sua prática, criou o método, que o tornaria conhecido no mundo, fundado no princípio de que o processo educacional deve partir da realidade que cerca o educando.” (GADOTTI, 2006, p. 2). Mais de trinta anos depois das experiências piloto de Freire, após o retorno das liberdades políticas, a Constituição Federal de 1988 e a Nova LDB (Lei 9394/96), os PCN´s, Parâmetros Curriculares Nacionais viriam nos indicar, mais especificamente referindo-se ao ensino de língua estrangeira que a aprendizagem de Língua Estrangeira é uma possibilidade de aumentar a autopercepção do aluno como ser humano e como cidadão. Por esse motivo, ela deve centrar-se no engajamento discursivo do aprendiz, ou seja, em sua capacidade de se engajar e engajar outros no discurso de modo a poder agir no mundo social. (BRASIL, 1998, p. 15. Grifos nossos). 475

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Destaque-se aqui que “A aprendizagem de Língua Estrangeira é uma possibilidade […]” e não um instrumental capaz de contribuir a inserção do ser humano como sujeito no mundo social. Malgrado isto, ela deve centrar-se no indivíduo. Contextualização e ideologia Uma narrativa encerra um discurso e subentende um contexto, e este, de certa forma, atribui significados àquele, pois como afirma Fiorin, “[…] o homem está preso aos temas e às figuras das formações discursivas existentes na formação social em que está inserido.”(FIORIN, 2007, p. 41). Aqui se levanta mais uma questão: estará o professor de língua estrangeira disposto a inserir-se no contexto do aluno, em sua malha discursiva e a partir dali iniciar o trabalho auxiliá-lo a tecer essa malha de relações, ou chegará com sua bagagem de contextos próprios e deitá-los-á sobre o aprendente como remédios já prescritos? A contextualização, no sentido freireano, exige uma atitude de humildade, de ousadia e a capacidade de apreensão da realidade. Conforme afirma o Mestre, “A educação, especificamente humana, […] leva consigo frustrações, medos, desejos” (FREIRE, 2004, p. 32). Nesse sentido, a busca da contextualização exige riscos e, na maioria das vezes, o rompimento com preconceitos, ou seja, “o reconhecimento de ser condicionado” (FREIRE, 2004, p. 18), de ter uma visão de mundo condicionada, que interfere em nossa capacidade de apreensão de uma realidade nem sempre visível. Como na Fábula dos três cegos, contada por Eduardo Galeano: “Desde que nacemos, nos entrenan para no ver más que pedacitos. La cultura dominante, cultura del desvínculo, rompe la historia pasada como rompe la realidad presente; y prohíbe armar el rompecabezas.”(GALEANO,2011). A realidade se retrata através de signo mas, como nos colocaBakhtin, “Um signo não existe simplesmente como parte de uma única realidade; também reflete e revela uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la sob um ponto de vista específico, etc.” (BAKHTIN, 2006, p. 22), Apreender a realidade, então, significa romper com essa visão multifacetada que nos é oferecida desde o nascimento e montar o quebra-cabeças, é opor-se à ideologia dominante, a esse conjunto de ideias que também “[…] é uma visão de mundo, o ponto de vista de uma classe a respeito da realidade, a maneira como uma classe ordena, justifica e explica uma ordem social.”. (FIORIN 2007, p. 29). Contextualizar, portanto, não é uma ação isenta de ideologia, mas implica uma opção claramente ideológica. 476

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A contextualização e o ensino de língua estrangeira Nos Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental o ensino de Língua estrangeira lê-se, com respeito À aprendizagem de língua estrangeira que ela “[…] deve garantir ao aluno seu engajamento discursivo, ou seja, a capacidade de evolver e envolver outros no discurso”. (BRASIL, 1998, p. 19). Esse envolvimento, essa enfase nas atividades pedagógicas centradas na constituição do aluno como ser discursivo, ou seja, sua construção como sujeito do discurso a partir de sua própria experiência de vida, de sua própria visão de mundo requer que o professor compreenda que “Trabalhar por analogias ou oposições entre palavras a partir de temas é mais produtivo do que propor a simples memorização de listas de vocábulos dissociados de contextos.” (BRASIL, 2002, p. 105). De acordo com o enunciado acima, no aprendizado de uma língua estrangeira, como de qualquer área de conhecimento, ainda que requeira certo grau de memorização, o que se busca é “O trabalho por temas e áreas de conhecimentos, [que] além de favorecer a interdisciplinaridade, propiciará aquisições contextualizadas de vocabulário, tornando fértil o recurso à memorização que, descontextualizado, […] sempre cairá na esterilidade.” (BRASIL, 2002, p0. 105). Mas, o que significa “Trabalhar por analogias ou oposições entre palavras a partir de temas"? Será que “O trabalho por temas e áreas de conhecimentos” é suficiente para promover “aquisições contextualizadas de vocabulário”? Quem contextualiza o que? Deixemos estas reflexões para futuras especulações. Conclusão As Orientações Curriculares não dizem muito, não definem a contextualização como um processo dinâmico, contínuo e ousado, mas uma prática que deve constar nos currículos escolares com o intuito de torná-lo um cidadão atuante no mundo. A contextualização, então, aparece –e ganha status de fórmula mágicacomo um ato unidirecional no qual o professor leva o aluno a compreender outra língua, outros costumes, a produzir e compreender discursos na referida língua. Perseguindo esses objetivos muitos de nossos professores, no afã de contextualizar suas aulas, à semelhança de alguns livros didáticos, elaboram situações que a maioria de nossos alunos jamais vivenciará, deixando de lado as narrativas

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próprias. Estes, quando muito, constroem narrativas paralelas que, ao invés de serem consideradas como formas de expressão, são vistas como interferências negativas, estranhas ao assunto em pauta. As histórias de vida estão ali, as narrativas estão pedindo para ser contadas e têm paralelos em todas as línguas porque “[…] embora em línguas distintas, os homens dizem sempre as mesmas coisas.” (PAZ, 2009, p. 9.). Deste modo, outras culturas interessam ao aluno, não como novas culturas que ele deve conhecer e até, quem sabe, assimilar, mas como outras formas de manifestações, paralelas às nossas. Isto exige o conhecimento de nossa cultura porque, “Aqueles que não conhecem outras culturas, senão a sua própria, não podem conhecer nem mesmo esta.” (LINTON, 1973, p. 49), ao que podemos acrescentar que a recíproca seja verdadeira: quem não conhece sua própria cultura não tem como avaliar a do outro. Contextualizar no ensino de uma língua estrangeira, portanto, subentende possibilitar que o aluno seja capaz de expressar sua realidade imediata através dessa língua e compreender a realidade do outro a partir da compreensão da sua. Nesse sentido, quem contextualiza é o aluno; o professor possibilita as condições para que seu aprendente, a partir dos fios condutores divergentes que se originam em sua visão de mundo, seja capaz de tecer diferentes e ilimitados contextos.

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REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem:problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12. ed. São Paulo: HUCITEC, 2006. Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira.Brasília: MEC/ SEF, 1998. Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais + ensino médio/ orientações educacionais complementares aos parâmetros curriculares nacionais: linguagens, códigos e suas tecnologias.Brasília: MEC/SEF, 2002. FIORIN, Luiz José. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2003. FREIRE Paulo. Pedagogía de la autonomía. São Paulo: Paz e Terra, 2004. GADOTTI, Moacir. A voz do biógrafo brasileiro: a prática à altura do sonho. (Versión electrónica). Instituto Paulo Freire, 2006. Disponible en: . Acceso en 01 jul. 2011, 23:40. GALEANO, Eduardo. Le Elefante. (Versão Eletrônica). Disponível em . Acesso em 02 set. 2012, 22:20. LINTON, Ralph. “Condicionamento sociocultural da personalidade.” In: FORACCI, Marilice M. e PEREIRA, Luiz. Educação e sociedade. 6ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1973. p. 34-48. MENEZES, Ebenezer Takuno de; SANTOS, Thais Helena dos.“Contextualizaçã o"(verbete). Dicionário Interativo da Educação Brasileira - EducaBrasil. São Paulo:Midiamix Editora, 2002. Disponível em: http://www.educabrasil.com.br/ eb/dic/dicionario.asp?id=55 Acesso em: 03/12/2011. PAZ, Octavio. Tradução: literatura e literalidade (Edição bilíngue).Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2009.

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POLÍTICAS LINGUÍSTICAS E ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS: DISCURSO FUNDADOR NO COLÉGIO PEDRO II

Cláudia Estevam Costa CPII

P

artindo da noção de que a constituição dos sentidos é um trabalho ideológico(Orlandi, 1992), ao estabelecermos uma relação com a história da educação no Brasil, buscamos analisar os documentos legais da educação nacional relacionando-os aos “programas de ensino’(currículos, PPP) do Colégio Pedro II, desde a sua fundação, para refletir sobre a demarcação de um discurso fundador do ensino de línguas estrangeiras no país. Neste trabalho, apresentação inicial de nossa tese de doutorado, buscaremos analisar como as línguas estrangeiras, inseridas num contexto de educação formal e pública, aparecem e representam ideologias e políticas lingüísticas determinadas pelo contexto da influência, dos textos curriculares e o da prática.(Ball,1992). O contexto de influência refere-se a perspectiva macro de política educacional que se concretiza numa rede de discursos e definições políticas. O contexto dos textos curriculares abrange as propostas curriculares oficiais em documentos e cristalizam certa concepção de currículo, o que faz deles uma referência para as práticas. Por fim, o contexto da prática é a arena onde as definições curriculares são recriadas e reinterpretadas. Como define Orlandi(2001), em relação à história de um país, os discursos fundadores são discursos que funcionam como referência básica no imaginário constitutivo desse país. Neste sentido, vários autores, entre eles Guimarães(2002), Orlandi(2001) e outros consideram que a historiografia educacional buscou produzir um sentido para a história do Brasil e nesta constituição de sentido, história e memória está o Colégio Pedro II, uma referência para a construção de um discurso da história educacional. Será examinada em nossa pesquisa a trajetória do surgimento das línguas estrangeiras no contexto escolar até os dias atuais. Nessa perspectiva histórica,

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tendo como foco a instrução pública no Colégio Pedro II analisaremos as políticas de currículo(Ball, 1992) que demarcaram dito período. Segundo Auroux(1989), escrever uma história consiste sempre em homogeneizar o diverso, qualquer que seja a diversidade da historização. Foram discursos constitutivos em relação à sua história e de constituição da própria memória, bem como das bases de uma memória das disciplinas (línguas estrangeiras) e dos currículos ali constituídos historicamente. Estes discursos como diz Orlandi, conjugam noções de instauração e filiação: “no fundacional há necessidade de filiar-se a uma memória política, legitimar-se, reivindicar a fundação”. Propomo-nos analisar de que maneira este discurso se filiou a programas e currículos de cada época de sua escritura e vigência, em que moldes acadêmicos se constituíram e que representantes ou filosofias demarcaram sua construção apontando para a formulação de uma política de línguas. Sabendo que o discurso fundador funda uma nova tradição atribuindo sentido para o próprio passado histórico e discursivo(ou historiográfico) busca estabelecer, através da elaboração de sua memória a própria memória da história da nação. Segundo Orlandi, o que caracteriza um discurso como fundador é que ele cria uma nova tradição de sentidos nesse lugar. “Instala uma nova filiação”. Esse dizer “irrompe no processo significativo de tal modo que pelo seu próprio surgir produz sua memória”. Para abordar a política de línguas analisaremos o currículo de línguas estrangeiras e os sentidos que este representa na constituição desta história do ensino de línguas no Brasil. Não podemos deixar de explicitar nossa visão de currículo como discurso, efeito de sentido entre locutores, nem deixar de entrever o político deste discurso. Na análise do discurso admitimos a textualização do político (J.J.Courtine,1996), onde a apreensão da mesma vem de uma análise dos gestos de interpretação inscritos na materialidade do texto. O político como constitutivo do texto Usar uma palavra é não usar outra, é fazer recortes em regiões de sentidos sem ter nenhumagarantia de um entendimento absoluto, é inscrever-se em redes de filiações de sentidos, as memórias e esquecimentos constitutivos do dizer. Bethania Mariani.

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Consideramos o político como constitutivo de todo texto. Sendo assim, qualquer compreensão ou leitura em análise do discurso é política (Orlandi, 1994). Nas palavras de Pêcheux “a análise de discurso se confronta com a necessidade de abrir conjuntamente a problemática do simbólico e do político" (M. Pêcheux, 1982). Nossa proposta em analisar as políticas lingüísticas, as políticas públicas e as políticas de currículo para compreender o sentido de uma língua estrangeira no currículo “oficial” da educação nacional passa necessariamente pela compreensão do “político”, e para tal, tomamos emprestada a definição de Orlandi, onde perceber “o político discursivamente significa compreender que o sentido é sempre dividido, sendo esta divisão uma direção que não é indiferente às injunções das relações de força que derivam da forma da sociedade na história”. Acrescente-se a isso a percepção de que o sentido é produzido, é um “gesto de interpretação”e toda a semântica do texto está conectada a objetos simbólicos(Orlandi, 1994). A função do político seria, assim, a de produzir um determinado sentido em condições específicas, em uma relação com a exterioridade, com uma direção histórico-social que se produz em relações imaginárias que derivam de um trabalho simbólico. Ao falar do discurso e das políticas de currículo, públicas ou lingüísticas nos remetemos ao modelo de sujeito que admitiremos desde já: é um lugar de significação historicamente constituído (Orlandi, 1994). A esse lugar ou posição correspondem, mas não equivalem aos lugares da estrutura social. São espaços “representados” no discurso, isto é, se fazem presente, mas são transformados nos processos discursivos. Segundo Pêcheux (1969) toda sociedade tem regras de projeção que estabelecem relações entre as situações (objetivamente definíveis) e as posições (representações dessas situações) nos discursos. Essas formações, que são imaginárias e completamente discursivas, onde os locutores designam lugares uns aos outros, formam as condições de produção dos discursos. Políticas de línguas no Brasil O tema das políticas de línguas é extremamente abrangente, porque nele cabem reflexões que abrangem épocas muito diferentes, línguas distintas, situações históricas e sociais diversificadas. Além disso, o próprio modo de se considerar a política, retomada também como ética, envolve reflexões de áreas disciplinares díspares. 482

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Orlandi(2007) assinala a diferença entre políticas lingüísticas e políticas de línguas, por um lado considerando o primeiro nome como aquele que designa a existência deuma língua como tal. Neste caso já se define ou se compreende uma relação entre elas, as línguas, e nos sentidos que são postos nessas relações como se fossem inerentes à essência das línguas e das teorias. Explicita-se a possibilidade de manipular como deseje a política lingüística. Outras vezes, segundo a autora, registra-se ‘política lingüística’ como planejamento lingüístico, quando da organização das línguas ou entre línguas, em função da escrita, de práticas escolares, do uso em situações planificadas. Ao usar a expressão Política de Línguas, abonamos à língua um sentido político necessário. Ou seja, não há possibilidade de admitir a língua sem seu caráter político. Uma língua é um corpo simbólico-político que faz parte das relações entre sujeitos na sua vida social e histórica. Assim, quando pensamos em política de línguas já pensamos de imediato nas formas sociais sendo significadas por e para sujeitos históricos e simbólicos, em suas formas de existência, no espaço político de seus sentidos. (ORLANDI, 2007).

A partir desta definição ou compreensão do sentido da língua faz-se o questionamento, admitindo-se a língua como uma questão política, quais seriam os discursos aceitáveis como verdadeiros que acabam por determinar um conjunto de práticas. E que práticas seriam essas aceitáveis em nosso contexto atual? Todas as línguas se recobrem de um nome oficial, instituído como tal, como por exemplo, o português.Este mesmo nome assume uma multiplicidade de instâncias em que o poder e o modo de sua prática se inscrevem de formas diferentes na sociedade e na história em que eles constituem(Op.cit). Pode-se, deste modo, inferir que há política quando nomeia-se: língua comum, língua nacional, língua materna, língua oficial, língua regional, designando uma mesma coisa, que pode ser a língua portuguesa, mas também algo diferente conotado pela significação dada a estes nomes e observados nos contextos em que eles se realizam. Além disso, o saber sobre a língua, por outro lado, não está desconectado à política das línguas, ao contrário, é a essência sobre a qual se enunciam os modos de sua realização.

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Nossa intenção neste estudo é a de compreender as políticas lingüísticas quando da instauração das línguas estrangeiras na escola brasileira, partindo dos programas de ensino do séc. XIX, buscando refletir os efeitos produzidos na relação escola – sociedade que nos remetem a um saber institucionalizado e historicizado sobre o ensino-aprendizagem de LE, construído no Colégio Pedro II. Estudar a organização deste saber nos possibilitará desvendar a constitutividade como espaço de organização não só da memória, mas de memórias. Pensar a partir da organização de memórias significa compreender as políticas lingüísticas como mecanismos de institucionalização e de legitimação não só de uma língua(ou várias), mas da relação dela(s) com seus sujeitos e dos sujeitos entre si (Orlandi, 2007) Nossa reflexão objetiva compreender os efeitos produzidos por esse processo que institucionaliza a relação do sujeito com a(s) língua(s) de tal maneira que, “pela história da constituição da língua e do conhecimento a respeito dela posso observar a história do país”. (ORLANDI, 2002, p.28). Para Pêcheux, “todo processo de significação é constituído por uma ‘mexida’, deslize – em redes de filiações teóricas, sendo, desse modo, ao mesmo tempo, repetição e deslocamento”(1990, p.24). Pela forma como a escola, no caso o Colégio Pedro II, elaborou seus programas, regimentos, projetos de ensino; instituiu (institui) e legitima uma política de disciplinarização dos indivíduos e de suas idéias e ideais. Segundo Orlandi(2002, p120) não podemos naturalizar a relação com a escola, isto seria apagar o efeito político que se apresenta sob a forma de neutralidade na formulação das políticas públicas, passando a significar o espaço onde as “obrigações sociais são disciplinarizadas pela institucionalização de um certo modo de educar , civilizar o indivíduo em cidadão”. O projeto de cidadão e de sociedade que uma instituição tem passa por seu currículo e pelas formas de representá-lo junto aos alunos. Para reproduzir a força de trabalho requerida na sociedade é necessário que se aprenda a reprodução da submissão ideológica garantindo as práticas que constituem o sujeito(Di Renzo, 2008). Assim admitindo, os programas de ensino, os instrumentais de ensino( gramáticas, livros didáticos, dicionários) e os regulamentos desenvolvem uma formação discursiva que dá coesão a uma forma de sujeito e uma concepção do que significa saber sobre a língua e saber a língua.

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As línguas que um aprendiz se dispõe aprender e/ou crê na necessidade de aprender estão representadas também pela forma como a instituição significa estas línguas e como, através de seus currículos, inclusão ou exclusão das mesmas na grade curricular simboliza determinados valores, denotando uma “forma de educar”. No dizer de Orlandi(2002) tais programas constituem a ética de uma política lingüística. Através das políticas de língua se elaboram no interior dessas relações é possível apreender os sentidos que jogam nas concepções de língua; língua materna, língua estrangeira, segunda língua, e, por conseguinte, língua mais importante ou menos importante, etc. Compreender as condições de produção nas quais se constituiu o ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras na escola, especificamente no Colégio Pedro II nos possibilitará dar visibilidade aos efeitos de um discurso e nas formulações de uma política de línguas no Brasil. Além disso, pode-se apreender a ética linguística (Op.cit), que não somente define as línguas, sujeito, ciência, como, legitima determinadas relações que configuram certo modo de produzir conhecimento sobre a linguagem. Ética esta relacionada ao ensino destas línguas(estrangeiras modernas), buscando significar as políticas e programas, regimentos escolares e currículo, como práticas que textualizam as línguas e constituem/instituem uma forma de sujeito. Importa refletir sobre o tema a fim de propor visibilidade ao sentido político que constitui o discurso escolar, ressignificando as marcas deixadas pelo processo de apagamento como lacunas que nos autorizam outras leituras possíveis. Segundo Orlandi, papel que não se trata de conhecer e explicitar somentenaquilo que tem de mais visível em fatos marcados e emrituais institucionais claramente normativos, mas, também, no cotidiano da prática lingüística escolar regida por formaçõesimaginárias. (ORLANDI, 1998, p. 57).

Reler e ressignificar estes fatos através da materialidade dos documentos citados produzirá um deslocamento na forma de interpretá-los, o que nos conduz ao processo de historicização e à compreensão das filiações teórico-históricas que os sustentam.

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REFERÊNCIAS

AUROUX,S.Historie dês Idées Linguistiques I. Liège: Mardaga, 1989. Bowe, R.; Ball, S & Gold, A.Reforming education & changing school: case studies en policy sociology.Londres – Nova Iorque: Routlegde, 1992. DI RENZO.Escola e a formulação de políticas lingüísticas.“III Jornada do CEPEL-Centro de Estudos e Pesquisas emLinguagem”, julho de 2008, na Universidade de Mato Grosso.. Acedido em 17de novembro de 2009. ORLANDI, Eni P. Maio de 1968: os silêncios da memória. In: ACHARD, Pierre et al. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 59-71. ______. Língua e conhecimento linguístico. Para uma história das Idéias no Brasil. Cortez, SP. 2002. ______. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001. PÊCHEUX, M. A análise automática do discurso (1969). In: GADET, F. & HAK,T. (orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993, p.61-161. _______. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et al. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-57.

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TRADUÇÃO: O CAMINHO DA TRADIÇÃO OU DA TRAIÇÃO? PODEM ESTRATÉGIAS DE TRADUÇÃO INFLUENCIAR NO PROCESSO DE COMPREENSÃO LEITORA?

Cristina do Sacramento Cardôso de Freitas UESC

A

Língua Espanhola é uma língua românica falada hoje por cerca de 329 milhões de pessoas, como idioma nativo. Trata-se, portanto, de um idioma que está entre as línguas estrangeiras mais importantes e estudadas no mundo. Neste contexto da expansão e da variedade do espanhol falado no mundo, surge o estudo da tradução deste idioma à língua portuguesa. Apesar de estarem estreitamente relacionadas, até o extremo de ter um certo grau de inteligibilidade entre uma e outra, há diferenças importantes entre os dois idiomas que podem trazer dificuldades para os profissionais que se dedicam à arte de traduzir do espanhol ao português. Neste trabalho vamos tentar estabelecer uma relação entre as decisões tomadas por um tradutor, ao traduzir um texto do espanhol ao português, e as dificuldades encontradas pelos leitores que entraram em contato com este mesmo texto traduzido. Esta experiência foi fruto de uma pesquisa realizada na Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia, entre professores, tradutores, alunos de pós-graduação em tradução e formandos do curso de Letras (port-esp). Todo tradutor consciente seja ele experiente ou em processo de formação, deverá estar se perguntando neste momento: será que é possível que minhas decisões pessoais, enquanto tradutor ciente da função social que exerço como elemento de ligação entre duas culturas, são capazes de influenciar de fato na capacidade de compreensão textual de indivíduos proficientes no processo de leitura? Será que minhas escolhas lingüísticas, as omissões e explicitações que decido fazer, meus recortes literais ou meus rompantes de criatividade, meu zelo pela forma ou meu desvelo pelo conteúdo, minhas buscas internas ou externas

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no decurso da tradução de um texto em língua estrangeira podem chegar a ser responsáveis por bloqueios, dificuldades, pausas, estranhamentos, ou até mesmo pela incompreensão absoluta do produto, neste caso, o texto? Trata-se de questionamentos cujas “respostas” frutificarão no transcurso deste artigo. Inicialmente, o conceito fulcral com o qual iremos nos defrontar nestas páginas, o de tradução, poderá ser compreendido sob diversos ângulos. Vejamos algumas das definições clássicas. Traduzir pode definir-se de uma maneira geral como o processo através do qual se efetua a passagem de um texto de uma língua para a outra. Esta primeira língua pode ser chamada língua-fonte, língua de partida ou língua original. A segunda recebe as denominações de língua-alvo, língua de chegada ou língua de tradução. Traduzir pode ainda ir além deste horizonte. Há um famoso jogo de palavras em italiano que diz Traduttore, Traditore, cuja tradução é “Tradutores, traidores”, de onde se originou parte da idéia do título deste artigo. Para Derrida, a tradução é uma escritura, não é simplesmente uma tradução no sentido de transcrição, é uma escritura produtiva predestinada pelo texto original. O tradutor é devedor para com o texto original, à medida que aceita a tarefa de traduzi-lo e dela necessita se desvencilhar; por outro lado, o autor do texto original assume, também, uma dívida para com o tradutor, de quem depende para sua própria sobrevivência (Derrida, 1987:175), o que faz com que traduzir seja a um só tempo uma tarefa possível e impossível. Que dilema! Vejamos qual a curiosa relação que se pode estabelecer entre os vocábulos ‘tradução’, ‘tradição’ e ‘traição’? Tradição, do latim traditione, refere-se à passagem de crenças, costumes, informações, de geração para geração; maneira de pensar estabelecida há muito tempo; padrão contínuo de práticas culturais. De uma forma geral, remetendo-nos ao título deste artigo, se considerarmos a tradução como sinônimo de tradição, em sua formulação mais simplista, esse processo irá pressupor a unidade tanto da língua de partida como da de chegada, limitando a atividade de tradução à busca de equivalências adequadas à transferência de um sentido pré-constituído de uma língua para a outra – o tradutor se revelaria assim não mais que um simples intérprete, situado numa margem muito estreita e dotado de escassa autonomia.

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Por outro lado, curiosamente, a palavra Traição também advém do latim traditione, significando, desta feita, violação da confiança alheia, da aliança com os seus, de um acordo pré-estabelecido; em termos mais extensivos poderia remeter ao fato de liberar-se de uma relação conflituosa. Potencialmente, tradução como sinônimo de traição pode fazer sentido a partir da aceitação da liberdade do outro, da busca de um relacionamento, literalmente sem fronteiras, com a diferença. Nesta acepção ampla, o conceito de tradução pode apontar não apenas para línguas distintas, como também para a necessidade de expôr-se a culturas diferentes, em diferentes contextos, de forma que se tornem mutuamente inteligíveis, sem que com isso tenha que se sacrificar a diferença em nome de um princípio de assimilação. Com relação ao vocábulo central deste artigo, o termo Tradução, originalmente advém do latim traductionis, que significa ato de transformar, passagem de um lado a outro. Neste sentido, a tradução pode ser algo livre, não porque não tenha parâmetros ou tenha os parâmetros que cada tradutor escolhe, mas porque o tradutor sempre tem diante de si uma opção dentre várias possibilidades existentes. É óbvio que toda tradução representa uma dentre várias possíveis opções de transposição de um texto da língua onde ele se formou para uma outra língua onde ele surge dependente e originário de n fatores - a começar pela indispensável consideração da identidade cultural dos prováveis consumidores desse texto de chegada. Assim, acreditamos que o tripé no qual se deve basear toda tradução é o seguinte: conteúdo lingüístico do texto de partida; sua ideologia; aliados à sua pretensa destinação virtual. Ser fiel a este tripé de fato envolve ser competente! Traduzir envolve ser competente, primeiramente em uma língua estrangeira. Mas o que significa ser “competente” numa língua estrangeira? Segundo Sophie Moirand (1990:16) significa possuir uma competência dupla: lingüística (das regras gramaticais do sistema da língua estrangeira); e discursiva (das regras de emprego, compreensão e da capacidade de utilizá-las de maneira a fazer-se compreender, implicando, logicamente, comunicar-se). Além disso, todos nós sabemos que não é suficiente conhecer bem uma língua estrangeira para compreender qualquer texto nesta mesma língua. Sempre estão presentes na compreensão de um enunciado lingüístico fatores e conhecimentos extralingüísticos. Assim, se é verdade que o texto constitui o ponto inquestionável de partida de uma tradução, os tradutores não devem, porém, prender-se às palavras, à letra da palavra, à palavra no seu plano físico, de significantes, senão corremos o risco de

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perder-nos do plano do pensamento. A ausência de uma visão mais globalizante do texto em língua estrangeira pode conduzir os neófitos de plantão à mal-fadada tradução ipsis litteris. Ampliando um pouco mais o tema, será que todo tradutor lê o texto que vai traduzir, na íntegra, antes de começar sua tarefa de tradução? Ou, aqueles que são mais experientes traduzem automaticamente, à medida que vão avançando na leitura do texto? Sabemos que o conceito de leituraenvolve compreensão. Não se pode ler decifrando um texto letra por letra, palavra por palavra, posto que esta atividade de decifragem exaustiva tornaria impossível a compreensão. Durante o processo de leitura, o leitor não se fixa sobre todos os sinais gráficos do texto. Isto é uma conseqüência do modo de funcionamento da própria memória humana, um sistema cognitivo que inclui processos psicológicos que permitem a compreensão dos enunciados como um todo. No entanto, alguns devem estar se perguntando: como funcionam esses processos psicológicos, como se pode ter acesso a eles, e mais, como é possível saber o que se passa na mente de um indivíduo quando está lendo ou traduzindo um texto? O mapeamento dos processos cognitivos subjacentes às atividades tradutórias e de leitura tem sido objeto de crescente interesse nos estudos do campo da Tradução. Utilizando a técnica de protocolo verbal, os primeiros estudos na área buscaram investigar as características processuais envolvidas durante a execução de tarefas de tradução. O que representa esta técnica?O Protocolo Verbal ou “pensar alto” (think aloud) é uma técnica introspectiva de coleta de dados que consiste na verbalização dos pensamentos dos sujeitos. Na medida em que o sujeito realiza uma tarefa (que pode ser de leitura, tradução ou qualquer outra), ele verbaliza, ou seja, fala sobre como consegue resolver os problemas relacionados às questões vivenciadas no momento do processo. Para traduzir um texto, intuitivamente, o tradutor utiliza estratégias e procedimentos. Como nos referimos no início deste artigo, algumas vezes, lança mão de dicionários bilíngües e monolíngües, auxílio de nativos, programas de computador, glossários virtuais de termos específicos, avança na leitura do texto para tentar compreender determinado fragmento, retrocede outras vezes, enfim, faz uso de estratégias e procedimentos, visando uma melhor explicitação de seu texto na língua de chegada a um provável leitor virtual. 490

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Lörscher (1991) subordina a noção de estratégia à de resolução de problemas de tradução. Considero que, após a observação dos mecanismos de tradução adotados pelos sujeitos selecionados na pesquisa que gerou o presente artigo, foi possível concluir que, em geral, utilizam-se estratégias a partir do momento em que se toma consciência de um determinado problema _ ou tenta-se solucioná-lo ou abandona-se momentaneamente a tarefa, diante da impossibilidade aparente de resolução imediata. Seguindo a sugestão de Neiva e Corrêa (1998), o surgimento de um problema de tradução será identificado aqui com os momentos de interrupção do fluxo tradutório. Cada vez que ocorre uma pausa, seja pela necessidade de escolha entre duas ou mais alternativas já conhecidas pelo sujeito, seja pela dificuldade de decisão imediata da melhor escolha a ser feita naquele momento do processo tradutório, isto caracteriza um problema que poderia ou não ser solucionado através da utilização de determinadas estratégias. Vinay e Darbelnet (1958:46) foram os primeiros teóricos a investigar a noção de procedimento tradutório como uma estratégia consolidada para a resolução de problemas. Ao observarem os mecanismos utilizados por distintos sujeitos para solucionar suas dificuldades durante o processo tradutório de textos do inglês ao francês, concluíram que, em geral, estes, que aparecem sob múltiplas formas em um primeiro momento da análise, levariam basicamente o tradutor a dois caminhos: o da tradução direta ou literal, quando percebesse um paralelismo estrutural e sociocultural entre o segmento na língua de partida e aquele na língua de chegada; e o da tradução dita oblíqua, quando o primeiro mecanismo é reconhecidamente inaceitável no sistema lingüístico da língua de chegada (Vinay e Darbelnet, 1958:49). Em uma tradução literal, a passagem da LP para a LC é feita sem muita elaboração ou mudança de forma. Os mecanismos de tradução oblíqua, por sua vez, envolvem mudanças formais das estruturas lingüísticas e atêm-se mais ao conteúdo e estilo do texto original. Alguns especialistas em Tradutologia como Nida, Catford, Vásquez-Ayora, Newmark e Barbosa analisaram a questão e propuseram mecanismos adicionais de resolução de problemas tradutórios. Entre estes se encontram: a explicitação, a omissão, a compensação, a definição, a reconstrução de períodos, as reorganizações e melhorias etc.– todos procedimentos comprovadamente utilizados pela maioria dos sujeitos pesquisados pelos autores supracitados e por mim mesma. 491

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As noções de estratégia e procedimento serão aqui utilizadas não como sinônimos, antes como parassinônimos, isto é, enquanto as estratégias envolveriam mecanismos ainda não codificados de resolução de problemas de tradução (ou outros tipos de problemas ocorridos durante o processo), os procedimentos estariam relacionados a maneiras consolidadas e comprovadamente eficazes de se solucionar um problema no decorrer do processo tradutório. Outra distinção importante que se pode examinar na relação entre os conceitos de estratégia e procedimento é a questão da conscientização do processo. Foi possível observar que, quando o sujeito utiliza uma estratégia tradutória (seja ela global ou local), geralmente está consciente do processo, chegando, algumas vezes, a verbalizar a necessidade de utilização de notas explicativas, de dicionários, da recorrência ao elicitador (que é quem está gravando as verbalizações) ou da projeção da leitura do texto na língua de origem, a fim de solucionar determinados tipos de problemas. Quanto à utilização de procedimentos tradutórios, observamos que, em geral, não há conscientização do processo, sobretudo no caso de tradutores não treinados na técnica do “pensar alto” ou protocolo verbal. Quando esta conscientização ocorre e é verbalizada pelo sujeito, revela-se, na maioria dos casos, como a explicação de um automatismo, de um comportamento habitual já consolidado. Assim, o tradutor utiliza estratégias, em geral, para resolver ora seus problemas de compreensão leitora, ora os de tradução. Quando utiliza procedimentos, é porque já resolveu os seus problemas de compreensão e deseja resolver, então, os de equivalência lingüística. Esclarecidos os conceitos de tradução, leitura, procedimento e estratégia, cabe responder à questão: por quê ocorreu a opção pela pesquisa de caráter introspectivo? Foi necessária a triangulação das opiniões e pontos de vista de três tradutores e dez leitores previamente selecionados por apresentarem as características desejáveis para fins de análise. Todas estas visões de mundo se uniram às minhas próprias e às dos autores sobre os quais fundamentei teoricamente minhas idéias. Conforme já explicitado, a utilização do paradigma interpretativista se fez através do método introspectivo, desenvolvido por meio da técnica do protocolo verbal, onde o indivíduo tenta expor o que se passa em sua mente no momento em que se defronta com o texto a ser traduzido ou a ser lido.

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Após a gravação dos protocolos verbais, os três tradutores previamente selecionados em função dos interesses do pesquisador e do perfil de informante desejado, releram individualmente os textos na língua da tradução com o objetivo de reformulá-los (caso considerassem necessário) até que se chegasse à chamada versão final do texto traduzido. Tais reformulações foram acompanhadas por notas explicativas que explicitavam os motivos que levaram cada tradutor a modificar a primeira versão do texto traduzido. Num segundo momento, as versões finais de tais traduções foram entregues a dez leitores considerados proficientes no discurso escrito. Novos protocolos foram gravados, partindo-se, então, da leitura feita e das dificuldades encontradas na mesma. O pesquisador, por sua vez, obviamente não comunicou aos leitores que se tratava de um texto traduzido, visto que talvez esta informação preliminar levasse os mesmos a procurar possíveis erros ou problemas no texto. As dificuldades que seriam supostamente encontradas no texto a ser lido deveriam aparecer espontaneamente. Durante a gravação dos protocolos, os informantes foram incentivados a verbalizar seus pensamentos sobre seus procedimentos e estratégias pessoais de leitura e abordagem de um texto escrito, incluindo a utilização de processos de antecipações e inferências dos conteúdos. Seria impossível – ou, pelo menos, bastante difícil – analisar os dados obtidos nos protocolos e nas entrevistas sob uma visão positivista dos fatos e fenômenos observados durante esta pesquisa, que frutificou no presente artigo. Não haveria possibilidade de analisar tais fenômenos independentemente de cada indivíduo, de sua história pessoal, de suas experiências anteriores com tradução e leitura, de seus objetivos, de suas expectativas, de seus pontos de vista, enfim, de suas concepções no que concerne aos processos de tradução e leitura, que foram abordados nesta pesquisa como atividades intersubjetivas e dependentes, portanto, da capacidade de interpretação de cada sujeito. Havendo explicitado a metodologia e os princípios teóricos utilizados neste artigo, cabe revelar os principais resultados obtidos. Observamos que o tradutor menos experiente dentre os três, porém com alto nível de conhecimento lingüístico nas duas línguas envolvidas no processo tradutório (possui Mestrado em Língua Espanhola), utiliza todos os procedimentos de

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tradução direta citados por Vinay e Darbelnet (1958, p. 46), a saber: empréstimos lingüísticos, decalques (tipo de empréstimo no qual se substituem formas lexicais em língua estrangeira por similares na língua de chegada do texto, de significação equivalente), além de traduções literais, o que demonstra o quanto o tradutor inexperiente parece estar preso aos vocábulos, expressões, estruturas sintáticas e estilo do texto original. O tradutor aprendiz ou em processo de formação, assim caracterizado por tratar-se de um formando em Curso de Pós-graduação em Tradução, utiliza apenas um procedimento de tradução direta (a tradução literal) e sete dentre os onze procedimentos existentes de tradução oblíqua, dentre os quais encontram-se: transposição cultural e das categorias gramaticais, modulação (procedimento que provoca alterações semânticas e estilísticas mais ou menos profundas no texto da língua de chegada), equivalência, adaptação, explicitação, omissão, inversão das categorias sintáticas de núcleo e adjunto adnominal, etc. Em função de seu treinamento como tradutor em nível de formação, pode-se afirmar que este possui consciência dos procedimentos tradutórios que utiliza e, alguns casos, justifica seu uso. No entanto, não percebe que, muitas vezes, o procedimento de tradução literal, embora mais cômodo, não seja o mais apropriado, pois, segundo Vinay e Darbelnet (1958:49), pode produzir um outro sentido ou ausência de sentido; pode ser impossível por razões estruturais; pode não haver correspondente na metalingüística da língua de chegada; ou ainda pode ter sido realizada equivocadamente uma correspondência que geraria um registro lingüístico diferente. O tradutor mais experiente dentre os três informantes selecionados, por sua vez, utiliza todos os procedimentos de tradução oblíqua que estão a seu alcance, excetuando-se os mecanismos de sinonímia lexical (processo associativo que ocorre ao nível paradigmático, no qual se estabelece uma relação de identidade entre os semas e que possibilita uma equivalência de sentido) e inversão das categorias sintáticas de núcleo e adjunto adnominal. Este possui total consciência de seus processos mentais, apesar de, em alguns momentos, revelar a automatização dos mesmos. Nestes casos, coube ao elicitador interferir, a fim de que os dados viessem à tona, isto é, fossem de alguma forma verbalizados. A tradução literal, por sua vez, é utilizada coerentemente nos momentos em que o tradutor profissional percebe uma certa convergência entre os vocábulos ou estruturas da língua de partida, em relação aos da língua de chegada.

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No que concerne às estratégias globais, foi possível observar que o tradutor menos experiente soluciona seus problemas de compreensão na língua-fonte ou de reprodução na língua de chegada mantendo-se próximo à sintaxe da língua espanhola, privilegiando, assim, a literalidade durante seu processo tradutório. O tradutor em processo de formação oscila entre as duas estratégias, isto é, em alguns momentos, reformula a tradução para adaptá-la à sintaxe e ao estilo da língua portuguesa; porém, em outros, mantém-se extremamente preso à sintaxe da língua original, em detrimento do conteúdo global do texto e da destinação do mesmo. O tradutor mais experiente, por sua vez, visando uma melhor explicitação do produto final ao leitor, utiliza apenas a segunda estratégia global, isto é, a de reformulação sintática e estilística do texto na língua de chegada. Com relação às estratégias locais de busca, observou-se que o tradutor aprendiz utiliza estratégias de busca tanto interna quanto externa e recorre ao elicitador como fonte externa, além das que foram postas a seu alcance (dicionários bilíngües espanhol-português, português-espanhol e monolíngüe de espanhol, dicionário da língua portuguesa, além de gramáticas, manuais de conjugação verbal, programas de computador com tradutores on-line e glossários digitais contendo listas de termos técnicos). O mesmo ocorre com o tradutor menos experiente, embora este não sinta necessidade de recorrer ao elicitador como fonte externa em nenhum momento do processo tradutório. Quanto ao tradutor mais experiente, este apenas faz uso de estratégias de busca interna, não recorrendo a dicionários, gramáticas, manuais de conjugação verbal ou recursos digitais nem uma vez sequer. Enquanto o tradutor profissional relata explicitamente suas estratégias e procedimentos, focalizando particularmente os aspectos relacionados ao objetivo final da tradução (que é a leitura, por outros indivíduos), o tradutor inexperiente e aquele em formação colocam em foco mais as escolhas lexicais, a re-estruturação gramatical e o desconhecimento de determinadas expressões idiomáticas do que as estratégias e procedimentos propriamente ditos. O tradutor profissional focaliza muito menos suas dificuldades individuais que as questões ao nível textual, o que revela que, no processo tradutório do mesmo, as estratégias globais tendem a dominar as estratégias mais detalhadas, de nível inferior, tais como a escolha de itens lexicais. Outros interessantes resultados obtidos referem-se às reações comparativas dos dez leitores, após a leitura dos três textos.Analisamos comparativamente as

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reações dos leitores por grupos com características similares. Assim, definimos os seguintes perfis de informantes: poetas, professores de língua materna, professores de língua estrangeira e leitores em língua espanhola. Após a análise dos protocolos dos dez leitores selecionados, foi possível observarque os leitores com perfil de “professores de língua materna” afirmaram durante a gravação dos protocolos que o texto que havia sido traduzido pelo informante menos experiente na técnica de tradução era truncado, com estruturas pouco comuns em língua portuguesa, com um título inusitado que poderia provocar até mesmo um desestímulo à leitura. Todos os leitores concordaram com o fato de que o texto traduzido pelo tradutor mais experiente possuía aparentemente um nível vocabular e sintaticamente estrutural mais simplificado com relação aos demais, podendo desta forma ser adaptado a qualquer tipo de leitor proficiente. Com relação à autoria do texto, enquanto três dos leitores identificaram as três versões como oriundas de uma quarta, original em língua espanhola, os demais informantes, provavelmente por não possuírem habilidade de leitura em língua espanhola, não tiveram êxito em realizar esta correspondência, ao contrário, imaginaram tratar-se ou de três textos escritos por uma mesma pessoa, numa tentativa de prática de reescritura, ou de três textos escritos originalmente em língua portuguesa por três pessoas diferentes. Sobre o uso de notas explicativas pelo tradutor menos experiente, os leitores que não possuíam conhecimentos da língua espanhola observaram que estas os auxiliaram durante a fase de compreensão textual. Por outro lado, os leitores que possuíam conhecimentos de língua espanhola, acreditaram não serem necessárias nenhuma das notas contidas no texto, mas ao contrário, tornaram-se redundantes. Após a minuciosa análise dos protocolos de leitura realizados pelos leitores selecionados, foi possível observar que o texto que obteve maior nível de aceitação foi aquele em que o tradutor utilizou os seguintes procedimentos e estratégias de tradução: eliminação de vocábulos e trechos considerados desnecessários; utilização de paráfrases; modificação, na fase de revisão textual, de trechos traduzidos automaticamente na primeira fase; além dos procedimentos de tradução oblíqua _ transposição, modulação, equivalência e adaptação.

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Por outro lado, os textos que obtiveram menor nível de aceitação foram aqueles em que os tradutores utilizaram os seguintes procedimentos e estratégias locais e globais de tradução: uso de notas explicativas; tradução automática sem uma posterior modificação durante a fase de revisão textual; proximidade sintática exagerada com relação à língua original; além dos procedimentos tradutórios de tradução direta (empréstimo e decalque) e do uso, muitas vezes pouco apropriado da tradução literal de trechos inteiros do texto original. Em termos de conclusão (ainda que inconclusa) e retornando à polêmica inicial, pode-se afirmar que, durante muitos anos, a criatividade foi um atributo exclusivo dos autores de textos literários. Aos tradutores exigia-se rigor e fidelidade; e à tradução, que fosse literal. Quando não havia qualquer hipótese de paralelismo formal entre as duas línguas em questão, negava-se a possibilidade de tradução e qualquer tentativa de criatividade era considerada problemática. Os estudos de tradução iniciados nos anos setenta vieram a questionar esta noção tradicional. Tais pesquisas tiveram como objetivo reabilitar o texto de chegada, colocando-o no mesmo status do texto de partida, pondo fim assim ao dogma da fidelidade absoluta e imparcial ao texto original. Passados quase quarenta anos, a prática da tradução literária é hoje de fato considerada como uma atividade criativa em potencial. Grandes tradutores já adquirem o patamar de grandes autores da literatura universal, posto que o produto desta atividade passou a ser visto não mais como uma cópia inferiorizada do texto na língua de partida. Lamentavelmente, acreditamos que esta visão preconizada não chegou a influenciar positivamente a relação do público-leitor com o tradutor de textos não-literários, designados de uma forma geral como tradutores técnicos, e considerados de uma forma ultrajante como ‘parentes pobres’ do tradutor literário. Como nos referimos ao princípio, este artigo circunscreve-se ao tema da tradução de textos de natureza muito específica, inseridos no domínio das ciências humanas. A transposição do espanhol para o português de textos jornalísticos, nos quais imperam os critérios de objetividade e clareza, exige de fato uma maior literalidade que um texto literário, o que não significa, contudo, que se menosprezem as diferenças existentes entre estas duas línguas, em termos estruturais e culturais, e que se esqueça o objetivo deste produto final, que é de fato o leitor do texto na língua de chegada. Assim, para se obter um resultado satisfatório no campo da tradução não-literária, acreditamos que o tradutor necessite não apenas conhecer profunda497

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mente o sistema funcional dos dois idiomas envolvidos no processo tradutório, seus recursos, suas nuances mais íntimas, mas principalmente, que se sinta livre para desenvolver soluções criativas em caso de percepção de certo estranhamento ou de dificuldade no decurso deste rio chamado tradução, momento íntimo de re-criação da arte, partilhado somente entre autor e tradutor.

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DO IMPRESSO AO DIGITAL: O HIPERTEXTO NO DESENVOLVIMENTO DA COMPREENSÃO LEITORA E DOS CONHECIMENTOS ENCICLOPÉDICOS DE ALUNOS DE EJA

Cristina Vergnano Junger Eduardo Alves Inez Fernanda Caetano de Lima

Introdução

N

ossa reflexão sobre as necessidades do aluno jovem e adulto, bem como sobre os problemas e defasagens de aprendizagem que apresentam, surgiu da prática docente na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Priorizamos a questão da leitura em nosso artigo, tanto por esta ser foco no ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras (LE), segundo documentos governamentais (BRASIL, 1998b; 1999; RIO DE JANEIRO, 2007), quanto por representar um importante instrumento de aprendizagem. Ao avaliarmos a realidade encontrada no trabalho com compreensão leitora na EJA, percebemos que há um conjunto de aspectos que dificulta a realização do ensino nesse grau de desenvolvimento escolar. Seus alunos costumam trazer em si um estigma de exclusão. Sofrem rejeição no mercado de trabalho, já que não concluíram os estudos básicos no tempo previsto, e ocupam, em geral, subempregos. Isso os faz buscar na escola um ensino capaz de prepará-los para realizar as atividades exigidas pelo mundo laboral e de levá-los a uma ascensão. Detectamos, também, como obstáculo ao trabalho efetivo de leitura de texto, tanto em língua materna (LM) quanto em LE, a falta do hábito de ler. Isso acaba dificultando todo o processo educativo formal. Defasagens em relação à habilidade de compreensão e ao desenvolvimento de estratégias de leitura são identificadas nestes estudantes, em alguns casos, por falta de acesso a informações e ao preparo escolar adequado. Em outros, porque a oportunidade de aquisição destes conhecimentos também não lhes foi oferecida, principalmente nas aulas de leitura em LM. (RIO DE JANEIRO, 2006). 500

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Entretanto, é preciso ressaltar que a ausência ou defasagem em relação aos saberes escolares formais não significa que esses alunos não possuam conhecimentos relevantes a serem considerados no processo educativo. O jovem e, em especial, o adulto trazem consigo uma bagagem de vivências rica e diversificada, adquirida e desenvolvida ao longo de sua vida, nas várias relações que vão construindo. No entanto, observamos que a carência de experiência e maturidade leitora, que os prejudica na sua formação geral, também se relaciona ao fato de não possuírem consciência de que seus conhecimentos de mundo são úteis e devem ser aproveitados. Tais conhecimentos prévios geralmente não estão legitimados canonicamente, pois seu aprendizado ocorre através de vivências e experiências na vida cotidiana, informalmente. Essas constatações levam a uma necessidade de buscar maneiras de promover a sua formação, para que se tornem leitores competentes, tanto em sua LM como em LE, partindo dos conhecimentos que já possuem. Procuramos, por tanto, com esta pesquisa valorizar seu conhecimento prévio e ampliar sua inclusão social, contribuindo para o desenvolvimento de seus conhecimentos formais e escolares. No que se refere à inserção digital dos alunos dessa realidade, a partir de nosso trabalho em classe utilizando computadores, foi possível constatar seu desconhecimento das ferramentas de informática. Em função dessa dificuldade e da presença cada vez mais acentuada dos recursos informáticos na vida moderna, concluímos que esse aspecto merece atenção no processo de desenvolvimento discursivo dos jovens e adultos que acedem à EJA. Planejamos, então, a aplicação de atividades que demandam tal conhecimento, porque acreditamos que o domínio nesse campo lhes proporcionaria uma melhor colocação no mundo do trabalho (MARCUSCHI, 2001). O uso de hipertexto on-line funciona, assim, como uma forma de inclusão digital e ampliação do conhecimento adquirido ao longo de suas vidas. O foco de nossa de nossa discussão está voltado para a leitura em espanhol como língua estrangeira e seu papel como contribuinte na formação de alunos da EJA. Entre os aspectos relacionados a este tema, destacamos a ativação dos conhecimentos enciclopédicos prévios e a possibilidade de ampliá-los através do contato com hipertextos.

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Cremos que o papel do professor é importante na realização de propostas de leitura e sugestões de atividades que envolvam relação inter e hipertextual, tanto de textos impressos, como dos hipertextos eletrônicos (MARCUSCHI, 2001). A questão da leitura de hipertextos, no entanto, implica dificuldades além da reflexão sobre suas especificidades e caminhos para que seja implantada em classe. Utilizar o trabalho com hipertextos eletrônicos com objetivo de melhorar a compreensão leitora envolve a apresentação da tecnologia de informação. Esta dissemina um modo diferente de ler que consiste em uma maior mobilidade de conteúdos, em formas diferentes de expressão (MARCUSCHI, 2001). Assim, nosso trabalho se volta para o estudo do processo leitor em espanhol de alunos da EJA em atividades escolares, utilizando hipertextos, envolvendo seus conhecimentos enciclopédicos e estratégias leitoras, sob a orientação teórica da leitura sócio-interativa e como enunciação (RIO DE JANEIRO, 2006). O procedimento metodológico escolhido para a coleta de dados se baseia na pesquisa-ação (THIOLLENT, 1986) e na observação de atividades aplicadas junto a alguns grupos de alunos da EJA, em escolas públicas do estado do Rio de Janeiro nas quais trabalhamos. A análise dos dados segue uma abordagem de caráter qualitativo e o corpus se constitui das atividades leitoras realizadas em classe. Estas estão preparadas de modo a demandar dos alunos a compreensão leitora de hipertextos, a partir da evocação de seus prévios conhecimentos enciclopédicos. Baseando-nos nos resultados obtidos, discutimos o papel dos hipertextos em gêneros diversos para a reconstrução de sentidos e caminhos de leitura em exercícios de compreensão leitora. Este artigo, apresenta-se dividido em um breve panorama teórico relacionado ao tema, detalhes da estruturação metodológica e análise dos resultados obtidos na coleta de dados, seguida da conclusão. Algumas questões de ordem teórica Definimos utilizar em nossa investigação a concepção de leitura interativa, coincidindo com o que afirmam Colomer e Camps1 : “Leer, más que un proceso mecánico de decodificación, es un acto de razonamiento, construcción de una interpretación del mensaje escrito a partir de una información que proporciona el texto y los conocimientos del lector, y contrastar el progreso de esa interpretación para detectar errores de comprensión”. (Tradução nossa).

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão Ler, mais do que um processo mecânico de decodificação, é um ato de raciocínio, construção de uma interpretação da mensagem escrita a partir de uma informação que proporciona o texto e os conhecimentos do leitor, e contrastar o progresso dessa interpretação para detectar erros de compreensão. COLOMER e CAMPS (1996, p.33).

Considerando este conceito, assumimos que ler é um processo mental de interação entre o leitor e o texto, mediante o qual o primeiro tenta satisfazer os objetivos que guiam sua leitura. Para orientar-se, utiliza, entre outros procedimentos, a formulação de hipóteses, realizando antecipações, inferências e verificando essas hipóteses no contato com o texto. Neste processo de compreender, o leitor relaciona a informação que o autor lhe apresenta com a informação armazenada em sua mente, processo fundamental no processo da compreensão leitora, característico da interação (PERINI, 2000). Entendemos, também, que o hipertexto eletrônico, com o advento da Internet, põe o leitor em contato direto com outras fontes de informação, outros usuários e supera restrições geográficas e temporais. Segundo Lévy (1993), o hipertexto se compõe de traços que influenciam nossa relação com o texto e os caminhos escolhidos para sua interpretação. Organização típica dos textos no suporte virtual, se mostra como um meio de informação interativo e dinâmico que oferece diversos caminhos de leitura de acordo com o interesse do usuário. Expande, também, a noção de texto além das fronteiras de uma unidade escrita em uma página e dos elementos estritamente linguísticos. Faz uso, igualmente, de códigos não-verbais, ao incorporar ao discurso elementos de natureza visual e acústica. Ao remeter, além disso, a outras páginas por meio dos links, se expande e se faz mais complexo (LÉVY 1993; 1999). A informação se apresenta móvel. Seu autor pode mudá-la de lugar, modificar sua apresentação, estruturá-la em vários níveis, aumentando a capacidade de diálogo entre o leitor e o texto e as possibilidades de comunicação entre os diferentes usuários (MARCUSCHI, 2001). Como, em termos de leitura digital, cada participante determina como se articularão as conexões nos acervos consultados, a opção por um trabalho com esse tipo de suporte implica, também, desenvolvimento de estratégias que permitam o controle das trajetórias de navegação (KOCH, 2006; LÉVY, 1993). A utilização em classe do hipertexto como ferramenta de desenvolvimento da competência leitora se apresenta, portanto, como o acesso a um modo distinto de realização da leitura

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devido às características da escrita virtual. Exige do aluno leitor o exercício de compreensão textual, partindo de análises não somente apoiadas em suas concepções sociais, políticas, entre outros conhecimentos, mas também admitindo o cenário em que se expõe o hipertexto lido e as características constitutivas dos gêneros digitais (GUIMARÃES e VERGNANO JUNGER, 2007; KOCH, 2006). Cabe, contudo, salientar que o uso de hipertextos na escola significa um deslocamento do texto de seu objetivo original em direção a outro diferente. Ele transforma-se, no contexto de sala de aula, em material didático. Portanto, a observação dos processos de transferência dos hipertextos ao seu uso em classe se associa aos conceitos referentes à transposição didática (GUIMARÃES e VERGNANO JUNGER, 2007). Ou seja, relaciona-se ao deslocamento dos textos de seu propósito e situação iniciais/originais, não didáticos, para uma realidade didática e a suas implicações em termos de alterações nas finalidades, caracterização dos co-enunciadores, do tempo e do espaço de sua utilização. No que se refere às LE, de acordo com Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Estrangeira (BRASIL, 1999), a sua aprendizagem é uma forma de inserção no mundo do trabalho, mas também é, principalmente, uma forma de promover a participação social. Nesse sentido, a aprendizagem de uma LE tem papel fundamental na formação dos jovens e adultos. Um dos motivos é porque permite o acesso a uma ampla rede de comunicação e de informações presentes na sociedade contemporânea. Também participa formação interdisciplinar dos alunos , pois contribui para que ampliem a compreensão e intervenção do/no mundo em que vivem e das diferentes matérias que estudam. Outra consequência do ensino-aprendizagem de LE é o desenvolvimento linguístico dos alunos. A aquisição de novos conhecimentos sobre língua, em contraste ou semelhança com os já internalizados em LM, ajuda-os a aperfeiçoar as habilidades de leitura e de escrita. Também contribui para compreender melhor e utilizar com maior proficiência as estruturas linguísticas e discursivas – inclusive da língua materna (BRASIL, 1998b). O trabalho sob uma perspectiva sociointeracional da linguagem (VYGOTSKY, 1987)é uma maneira de promover a interação entre osparticipantes de comunidades e contextos variados. Essa abordagem parte do pressuposto deque quem fala e escreve se dirige a alguém que interpreta o significado do queé produzido. Assim, nos aproximamos da visão dialógica da linguagem, na qual sujeitos do discurso estão situados histórica, social e culturalmente e, assim, interagem e 504

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constroem sentidos (BAKHTIN, 2000). Tais concepções fomentam a necessidade de maior investigação e estudo em sala de aula sobre a linguagem em uso. Discutir com os alunos de EJA que a forma de compreender e produzir textos, em sua própria língua ou em língua estrangeira, deve-se fazer em um contexto social crítico mais amplo é fundamental para seu desenvolvimento como cidadãos. A abordagem da LE em contextos sociais torna a aprendizagem significativa, pois os alunos são capazes fazer relações e trazer de forma concreta suas realidades para dentro da escola. Em termos do desenvolvimento da leitura, além do uso de textos próximos ao cotidiano dos alunos, é importante trabalhar com os três tipos de conhecimento: de mundo, textual e sistêmico (BRASIL, 1998b). O aluno deve, como já foi mencionado, ter sempre presente sua bagagem de conhecimentos enciclopédicos prévios – sobre o assunto ou a organização do material lido. Também é preciso compreender o contexto em que o texto é produzido – quem, para quem, em que local, quando, como e com que finalidade. No que se refere à organização textual, a percepção dos tipos de organização dos textos permite ao aluno relacionar objetivo, discurso e intencionalidade textual, criando a possibilidade de avaliação do que lê de acordo com seus próprios objetivos (RIO DE JANEIRO, 2006). Já os conhecimentos sistêmicos atendem à dimensão da língua em em si, com uma preocupação mais voltada para aspectos de coesão, por exemplo, e não simplesmente estruturais. Trabalhando desta forma o professor passa a ser o parceiro encarregado de criar oportunidades para que os alunos possam construir seu próprio conhecimento e desenvolver seu processo leitor. No contexto da Educação de Jovens e Adultos, é fundamental que os professores considerem as representações que estes alunos têm da escola, da aprendizagem e de si mesmos. Se podem perceber como são capazes de ampliar as fronteiras dos seus conhecimentos, mesmo que básicos, os alunos passam a ter mais iniciativa na busca de outros novos conhecimentos,. Ou seja, tornam-se cada vez mais autônomos e conscientes de sua aprendizagem. Tal capacidade se reflete consequentemente no aprendizado de língua estrangeira, concretizando o alcance do objetivo que nos propomos buscar a partir da instauração do ensino de língua espanhola como LE na EJA.

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Aspectos da estruturação metodológica do estudo Desejando aumentar as possibilidades de acesso ao conhecimento e de estímulo à leitura e à pesquisa em sala de aula, propusemos utilizar textos impressos e digitais no trabalho com nossos alunos. Porém, nos deparamos com dificuldades dos alunos relacionadas à falta de informação sobre os mecanismos de leitura dos hipertextos virtuais. Isso nos levou a intervir, pesquisando e criando maneiras de orientar nossos alunos para que as carências de conhecimento fossem sanadas e, desta forma, os estudantes da EJA pudessem seguir avançando no aprimoramento da habilidade leitora. Questionamos em nossa pesquisa: (a) como orientar o desenvolvimento de uma perspectiva intertextual e (b) como o contato sistemático com hipertextos e as atividades de ativação dos conhecimentos enciclopédicos podem contribuir não só para a leitura, mas para a ampliação da bagagem enciclopédica que trazem os alunos. Tendo em vista a problematização de nossa realidade de sala de aula de EJA, criamos e aplicamos atividades de compreensão leitora especificamente traçadas para estes alunos. Os exercícios propostos demandavam estratégias de leitura que provocassem o acionamento do conhecimento de mundo e levassem ao manejo competente das ferramentas digitais. Com isso, objetivamos estabelecer em classe maneiras de produção de leituras de hipertextos impressos ou virtuais em espanhol como língua estrangeira com maior autonomia por parte dos alunos. Nosso trabalho, portanto, como já apontamos anteriormente, está estruturado a partir dos pressupostos metodológicos de uma pesquisa-ação. Há, entretanto, um diferencial no uso da metodologia de pesquisa-ação neste estudo. Nosso foco de análise se direciona principalmente em relação à observação de nossos alunos, desviando a atenção de nossa prática pedagógica. Ou seja, em termos de os pesquisadores se caracterizarem também como objeto de estudo, nos afastamos dessa proposta metodológica. Temos elementos da pesquisa-ação porque estudamos turmas nas quais trabalhamos e, por essa razão, vivenciamos o cotidiano e nos submetemos ao convívio com os problemas de realização do trabalho. Optamos por uma abordagem qualitativa de análise, entre outros motivos porque observamos apenas uma turma de EJA do ensino público do Rio de Janeiro e o fazemos desde uma perspectiva próxima à da pesquisa-ação e do estudo de caso. Trata-se, além disso, de um estudo descritivo, que não procura estabelecer

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generalizações, mas discutir uma realidade específica e possíveis soluções para o problema de aprendizagem que apresenta. O ambiente escolar em que trabalhamos tem como característica principal a heterogeneidade: turmas numerosas, idades que variam da adolescência até a terceira idade, grau de conhecimento dos alunos variando de acordo com a escolaridade em que interromperam seus estudos e com a influência das experiências vividas. A turma com a que trabalhamos pertence a uma escola pública da cidade de Duque de Caxias, possui no total 30 alunos, mas participaram efetivamente da pesquisa 18. Seu curso é noturno e as aulas de espanhol acontecem duas vezes por semana, com a duração de aproximadamente uma hora e trinta minutos horas. A coleta de dados se desenvolveu a partir da realização atividades de pré-leitura, leitura e pós leitura de textos que contribuíssem para a melhora do desempenho dos alunos como leitores, e também para a sua inclusão como leitores digitais. Teve a duração de 4 aulas no total. Descrição e comentários da coleta dos dados A atividade de pré-leitura consistiu em destacar o processo de leitura hipertextual e o papel do jornal como fonte de informação, pesquisa e ampliação do conhecimento enciclopédico. Nesta atividade, entregamos aos jovens e adultos, cópias da primeira página de alguns jornais brasileiros. Pedimos para lerem e selecionarem as reportagens que mais lhes interessassem. A partir daí, formamos grupos com mesmos interesses que leram suas respectivas reportagens e apresentaram à turma as ideias principais de cada texto. Embora estejamos considerando essa atividade como pré-leitura para o trabalho leitor em espanhol, temos consciência de que se constituiu em etapa de leitura na LM dos alunos. Esta foi precedida de conversa informal, ressaltando as características da fonte (jornal). Utilizamos, também, um roteiro de questões e explicações entregues aos alunos antes da distribuição do jornal. Ressaltamos com esta atividade, também, que cada leitor faz suas escolhas e seus caminhos, que no geral não são similares aos de outro leitor. O leitor tem condições de definir interativamente o fluxo de sua leitura a partir de assuntos tratados no texto, sem se prender a uma sequência fixa ou a tópicos pré-estabelecidos por um autor. É, em certa medida co-autor do texto.

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Para determinar de fato, se nossos alunos ampliam seu potencial leitor, a partir da interação com seus conhecimentos de mundo e se esta prática serve para inseri-los no uso das novas tecnologias, a atividade de leitura consistiu em mostrar como se processa na prática a leitura de hipertexto. Também pretendeu: (a) comprovar que a forma como o hipertexto se apresenta facilita ao leitor poder escolher o que ler por meio de seus objetivos, gostos e preferências; (b) reconhecer que recursos do jornal foram explorados para auxiliar a leitura e (c) identificar se os textos lidos mantêm uma relação de intertextualidade. A atividade de leitura, que, a partir desse momento, se baseou em textos em espanhol e foi realizadas on-line. seguiu os passos abaixo relacionados. Primeiramente, pedimos a nossos alunos que fossem ao site e escolhessem três edições anteriores do jornal. Em seguida, que eles navegassem entre as três edições escolhidas durante 20 minutos e respondessem a um questionário com perguntas pontuais sobre a leitura realizada. O jornal escolhido foi o El Mercurio, do Chile, voltado para uma classe social média. Essa opção baseou-se no fato de ser este um jornal que reúne características as quais cogitamos que interessariam aos nossos alunos e os motivariam à leitura. Cabe destacar que as versões anteriores desse periódico são documentos em word que resgatam a versão impressa. Não têm, portanto, imagens em movimento, links ou outros recursos hipertextuais. A segunda parte dessa atividade consistiu em acessar a versão digital/animada das mesmas edições do mesmo jornal e observar as características da versão impressa para verificar se os caminhos de leitura foram (ou poderiam ser) os mesmos da primeira parte da atividade. O último passo foi pedir-lhes que destacassem a principal diferença entre essa versão digitalizada do jornal em arquivo tipo “pdf” e a outra versão digital – usada no meio virtual que apresenta com seus links e outros recursos. Na verdade, queríamos ver se nossos alunos percebiam que na versão digitalizada a página do jornal aparece formatada na tela do computador sem os links da versão digital e refletir como esta característica interfere (ou não) na leitura dos textos. De acordo com as outras duas atividades até aqui descritas, a atividade de pós-leitura teve com objetivo principal sistematizar tudo o que construímos nas outras etapas de leitura. Através de reflexões junto aos alunos, apontamos as

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estratégias usadas e os conhecimentos que foram necessários para que conseguissem compreender/reconstruir os significados em cada texto lido. Observamos se os alunos acionavam seus conhecimentos de mundo para a compreensão dos textos de ambos os tipos. Verificamos, ainda, se adquiriram conhecimentos sobre o manejo da leitura digital, e, como utilizaram esses conhecimentos para contribuir de forma a melhorar a compreensão dos textos lidos. Esses aspectos, portanto, foram estabelecidos como critérios para avaliação do progresso ou retrocesso no amadurecimento do processo de desenvolvimento da habilidade leitora dos alunos durante a aplicação das atividades. Algumas conclusões obtidas a partir desse estudo A experiência realizada com os alunos em sala de aula nos proporcionou a consciência sobre a necessidade de seguir buscando caminhos para aperfeiçoamento da compreensão leitora dos alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Através de nossa análise tivemos a oportunidade de formular conceitos a respeito da experiência realizada e das especificidades da prática leitora de nossos estudantes. Os alunos apresentavam dificuldades sérias com relação ao desenvolvimento da habilidade leitora. Tais defasagens são acumuladas devido aos vários anos afastados do ambiente escolar que, consequentemente, os colocou em situação de desconhecimento dos recursos e procedimentos disponíveis para realização de uma leitura perspicaz e amadurecida. Em nossa pesquisa, propusemos atividades de compreensão mediadas por computadores e Internet, num trabalho on-line. Os conhecimentos sobre os recursos que podem ser utilizados em computador, assim como as informações adquiridas sobre o uso da Internet contribuíram para o avanço desses alunos. Eles progrediram não apenas em termos de desenvolvimento da habilidade leitora, mas também no que se refere à prática investigativa. Isso porque, através da compreensão da rede como ferramenta de pesquisa, os alunos da EJA obtiveram melhores condições de aquisição de conhecimentos. A transposição didática (GUIMARÃES y VERGNANO JUNGER, 2007) dos textos de Internet, tanto os digitais quanto os impressos, favoreceu a oportunidade de adquirir informações com eficiente aplicabilidade no desenvolvimento escolar.

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Consequentemente, facilitou-lhes os estudos, a aprendizagem e a compreensão dos textos em língua estrangeira (LE) e em outras disciplinas, nas quais também se demanda a mesma habilidade. Pudemos constatá-lo pela melhora do desempenho desses estudantes durante a leitura dos textos posteriores à atividade proposta por nossa pesquisa. Notamos, igualmente, uma evolução na visão dos alunos a respeito da importância da leitura. Muitos deles descobriram a riqueza de conhecimentos que podem ser adquiridos através do processo leitor no decorrer da pesquisa, conforme depoimentos em classe. Muitos deles, antes, não valorizavam a leitura como fonte de conhecimento e desenvolvimento cognitivo. Mas, a partir dos exercícios de acionamento de seus conhecimentos de mundo e dos recursos presentes nos textos digitais, observamos que conseguiram expandir em suas mentes a noção de como se processa a leitura e interpretação de um texto e da utilidade que pode apresentar. Nosso trabalho proporcionou-lhes a possibilidade de ir além da compreensão textual ingênua, superando o lugar-comum da simples reprodução de sons. Contribuiu para que pudessem compreender que ler consiste num processo de reflexão, significando muito mais do que um processo mecânico de decodificação (T. COLOMER Y A. CAMPS, 1996). A resposta positiva à realização de nossa experiência de forma geral, assim como aos estímulos especificamente aplicados na turma se devem, também, ao contato com o novo formato de leitura, a qual os alunos não tinham fácil acesso. Essa leitura hipertextual, com sua forma de apresentação fragmentada e não-linear (LÉVY 1993), se mostrou atrativa e estimulante para esses alunos, em razão de facilitar o recorte sobre o que escolheram ler segundo seus gostos e preferências. A não-linearidade característica do processo leitor virtual despertou o interesse dos alunos-leitores pelo fato de desobrigá-los do compromisso com a sequencialidade de uma obra impressa que, em alguns casos, demanda a leitura delimitada pelo autor, na ordem exata das páginas do material, para que seja possível a compreensão do que se lê. Para nossos estudantes foi interessante entrar em contato com uma nova maneira de ler, que lhes ofereceu a oportunidade de acessar de modo prático e direto às informações a assuntos que despertaram o interesse de cada um deles. Através das leituras, aos poucos, obtivemos resultados no que se refere ao aperfeiçoamento da competência leitora dos alunos da EJA com os quais trabalhamos, aumentando a capacidade de diálogo entre o leitor e o texto (MARCUSCHI, 2001). 510

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Por outro lado, estes alunos ainda possuem algumas dificuldades em utilizar certas estratégias de leitura. A resolução dos problemas dos estudantes da EJA em relação às defasagens referentes à leitura necessita de muitas outras iniciativas de reparo sob a forma de um trabalho contínuo bem formulado. Este trabalho propõe, também, servir como estímulo ao surgimento de novas pesquisas a respeito deste tema. Portanto, esperamos que novos estudos o continuem ou o aprofundem, para que possamos avançar no campo do ensino-independizarem de LE em EJA. Há ainda a possibilidade de que se descubram novos caminhos para esta reflexão, de modo a encontrarmos outras possibilidades de soluções para as questões envolvidas no desenvolvimento da compreensão leitora, usando como estímulo a leitura dos textos digitais.

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IS THERE SOMETHING WRONG WITH THE ACCENT? WHAT BEGINNERS THINK ABOUT IT Denize Dinamarque da Silva

Introduction

A

ccent is a theme that has been discussed a lot when we talk about teaching and learning a foreign language. There are some studies concerning the Brazilian’s attitudes toward the foreign accent and the own accent and we can realize a prejudice concerning the other variety of English. During this article I intend to show the beginner’s attitude toward the accent and their desire to sound like a native speaker. This study brings implications of this attitude for a reflection during the teaching process, because foreign language teachers have to be prepared to face this problem during the classes and to give explanation to the students for them do not feel diminished in their self-esteem and mainly in their identity. We are going to discuss about some definitions as accent and what are its implications for the speaker’s identity andabout the notion of the ideal native speaker as well. Facilitating the understanding and reflecting about some concepts in which this theme is involved in, I divided this article in some sections. First of all, I discuss some crucial concepts toward this theme, pointing out some references that have developed studies about the accent. In this section we will see the wide definitions from each author and the complexity that involves the subject accent. Subsequently, I introduce the methodological procedures employed during this study and the analysis of the results that was found. Finally I weave some final considerations concerning the implications and relevance of this theme to teaching and learning process.

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Accent, native speaker, language and identity When we discuss about accent it is extremely important to have in mind some concepts like accent, native speaker, identity and some others important details that make part of our discussion. In this section I, firstly, point out some authors who have discussed the wide definitions about the accent. After that I highlight some studies that question what kind of native students want to sound like. Then I discuss how language is a part of the identity. What is Accent? There are several studies about accent and many definitions about it. According to The Encyclopedia of Language and Linguistics accent is “a system of speech-sounds and their combinatorial possibilities of any spoken variety of a language” (ASHER, 1994, p.8). This definition talks about the number of phonemes accessible in a language and about the possibility and options that the language offers when the speaker wants to establish communication. This encyclopedia also defines accent as “a marker of group identity” (ASHER, 1994, p.10) and it suggests that we are different from the others, so our language has particularities that affect our identity and our way to see the world. On the other hand, Lippi-Green (1997) defines accent according to The Oxford English Dictionary that says “accent may include mispronunciation of vowels or consonants, misplacing of stress and misinflection of a sentence” (p.58). This definition points out to the belief that there is a correct way to pronounce words or sentences. However, it is difficult to establish an ideal native speaker, since English is spoken in a variety of countries and a speaker who was born in Africa is a native one and they probably have an African accent that it is different from British one that is different from Australian one. Even through each singular accent, an Australian can get in touch with a North American and be completely understood. Lippi-Green (1997) also supports that accent can determine the speakers’ social class, their country, their region and even their native language. She still says that there are few studies talking about the questions of power and ideology and alerting speakers concerning the attitude towards accent. Later we are going to discuss a little deeper about identity, because as Barcelos (2003) exposes, the identity is an important factor during the learning process

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and the foreign language’s teachers must know about it to help their students to understand this complicated question concerning learning of a foreign language. Native speaker: a norm? Barcelos (2003) discusses about speakers’ desire to have skills to sound like a native speaker, in the most of the time due to the fluency in the discourse that the native speaker supposedly has. Understanding better what a native speaker is, Vivian Cook (1999) brings a definition about it. She mentions Davies (1991) in which he says a person is a native speaker when he/she learns the L1 in his/her childhood. Davies also exposes that accent is the skill to construct a fluent speech. According to him, we are considered a native speaker when we learn a certain language when we are a child and as the time goes by and we got older, we develop our fluency and this can also be a factor that provides the search to sound like a native speaker, specially because sounding like a native one can brings to the speaker an implicit status like Cook (1999) exposes. Rajagopalan (2003) defends that some people want to learn English, because it brings prestige and social status. Then if our speech sounds like a native one, our chances of belonging to an advantage and privileged society are greater than a person who does not. Then, to speak a foreign language has become a symbol of power. Actuallyspeaking as native speaker “seems to be an attempt to be empowered, to gain status, to identify with the powerful group.” (BARCELOS, 2003, p. 12). Barcelos seem to agree with Phillipson (1992) when he says that the concept of an ideal native speaker is attached to the notion of prescriptivism this suggests that there is a wrong way to speak the language and “one correct way and only one model to follow – the native speaker.” (BARCELOS, 2003, p. 11). According to her, this idea does not consider the diverse situations where English possibly will develop. She still tells it is difficult to say what the ideal pronunciation, because we have to define the kind of native speaker we are talking about. Garret also alerts that this model of perfection has injured student in class because sometimes the teachers belief that they have to follow the native speaker as a model, but students should be aware toward the distinction between the different kinds of “varieties of a standard pronunciation.” (GARRET, 1992, p. 11).

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Language and identity It is not so difficult to realize how language and identity are linked (BARCELOS, 2003). According to Lippi-Green (1997)language is the mode as we construct our identity.This author also defends that a language makes us to become a part ofa certain groups, so if we choose to learn English it means that we want to be engaged in that group of English speakers. Barcelos also alerts about the negative way in which an accent is heard. She agrees with Lippi-Green (1997) when he says “if others perceive our language or accent in a negative way, this will most certainly bring damage to our identities” and this is one explanation for the people try to ride their accent. (BARCELOS, 2003,p. 10). As we saw in the Encyclopedia of Language and Linguistics, accent is a “marker of group identity” (ASHER, 1994, p.10). It means that that speaker who wants to eliminate his/her accent wants to make part of certain group in the society, but at the same time he/she is losing a part of his/her identity, that it, this person wants to become part of a society that, according to his/her, is better and more empowered society than the others. On the other hand, Rajagopalan brings an interesting discussion about identity in a globalized world. He says that “in a globalized world, languages are suffering influences in great level.” (RAJAGOPALAN, 2003, p.68). Thus, the identities are becoming mutable and mixed because of the contact between the people around the world. This fact also reinforces the idea that there is not an ideal of pronunciation as Barcelos has said before. The main points in this discussion are the implications that this brings to the teaching context. We have seen some situation in classroom in which students question their teachers about the reasons to learn a foreign language and teachers usually answer saying the foreign language and its culture is more superior to theirs. Then students were put in a place of inferiority in relation to the one who speaks such foreign language.Due to this belief of subjugation that Barcelos affirms, one more time, that the teacher has to be prepared to explain to the students that there is no subjugation between the languages.As teachers, we have to help our students fell more comfortable with their language and their accent, because they have to be aware about the diversity of accents and languages. According to Phillipson’s view, there are lots of reasons that can explain the desire to sound as a native, but the most responsible factor of this wish is the fact of the 517

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English is seen as a symbol of power as we have discussed before(PHILLIPSON, 1992).Concerningto this, Pennycook also confirms our discussion and he says that speaking English without accent is an essential step to make part of the economic power that those English speaking countries can offer.(PENNYCOOK, 1997). In this way, Barcelos affirms that “English has contributed to inequalities”, because in Brazil the elite pays Americans school for their children to study, once they want to guarantee that the children don’t have a foreign accent, but a native one. It means there is a negative belief toward the accent, because people think when somebody acquires English language in the country that has English as the official idiom, he/she will speak like that people who live there. However, as we have discussed before “everybody has an accent” and it “is tied in our self and our identity.” (BARCELOS, 2003, p. 13). Context and methodology Even showing number during the analysis, this article brings a descriptive and qualitative analysis about the data. My sample is composed by the student’s answers from level Starter A (beginners) from an extension course of a federal university. Students are between 25 and 50 years old, all of them are public servants in this university and everyone participated in a voluntary way. I analyzed 15 student’s answers and in each questionnaire there are six questions that can help us to verify their perceptions toward the accent and the status as a result of sounding like a native speaker. Starting this study I was worried concerning the permission for using their answers and also to save their true names. Then all the names here are pseudonym to save my students’ identity. I appliedan open questionnaire in which they could write their answer and in this way we can identify student’s beliefs and perception as well (VIEIRA-ABRAHÃO, 2006).The questionnaire was written in Portuguese, because students were still beginners and they did not have such vocabulary. The questions were 1) Caso você tenha a oportunidade de viajar com intenção de aprender inglês para qual país você viajaria? Por quê?, 2) Você acha que no Brasil se aprende o Inglês de Brasileiro’?, 3) Você gostaria de soar como um nativo? Se sim, Qual é o seu interesse em adquirir tal habilidade?, 4) Como você se sentiria se alguém dissesse que você

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soa como um falante nativo?, 5) Você acredita que aqui no Brasil se aprende inglês sem sotaque? Por quê? I also did a focal group to confirm the answers given to the questionnaire. As Vieira-Abrahão (2006) affirms, recording a discussion, we have possibilities to identify beliefs hidden in their speech. The discussion was done in the beginning of the class and I let the students participate according to their wish. The participation during the discussion was not mandatory, but the most of them participated during the whole discussion. During the focal group, I remembered them about some answers given in the questionnaire. It was an interesting discussion and we will see some quotations that can help us to talk about their opinions about accent. Results During this article, we have discussed about several themes concerning the student’s desire to sound like a native speaker and about the possible reason for this attitude towards the accent. To do this, I applied a questionnaire with five questions and every student has participated and has showed what they think about accent. The first question wasCaso você tenha a oportunidade de viajar com intenção de aprender inglês para qual país você viajaria? Por quê?.I found out that 60% of the students believe that to learn English they should travel to England or to USA. Here we have an answer in which Betâniasaid“Inglaterra, porque está localizada na Europa e eu aprenderia o inglês britânico.”This answer shows the belief that the “True English” is learnt in England maybe because this student believe that the original English is learnt there, so England is the place where the English language was born. Another answer that showsthe economic power and the technological development as Rafael said “Viajaria para a Inglaterra. Um país que possui um alto nível de tecnologia e pesquisas”. The second question was Você acha que no Brasil se aprende o Inglês de Brasileiro’?.We can see that 40% have said “não, porque há boas escolas que ensinam Inglês”(Amanda), 20% have answered that they do not know about this and the others 40% agree with the expression “Brazilian’s English” cited by Barcelos (2003, p.17) and that means a language that is not spoken and written correctly. We can confirm this through the sentence“Sim, pois falta aquela convivência que só é possível ao atuar com nativos” (Gabriela).That means if you don’t have contact 519

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with the native speaker you won’t learn correctly the target language, because just through the contact you will learn the correct pronunciation. Suzialso said “Sim, o inglês falado no Brasil é destinado a atender somente o necessário para poder receber os ingleses e americanos que vêm ao Brasil”. One more time we can see there is a belief that we do not learn the whole English, that is, we learn a piece of it that can help us in our very poor communication with the foreign speakers. Another student said in this same question that “Sim, porque o sotaque do brasileiro irá estar presente na pronúncia do inglês”(Guilherme).This sentence confirms that the accent is going to be in our speech. Barcelos (2003) also talks about the status that a speaker apparently without accent has in our society and this is confirmed by some answers given by students. To discuss about this we did the third question that says Você gostaria de soar como um nativo? Se sim, Qual é o seu interesse em adquirir tal habilidade?.We found that 93,3% of them believe that sounding like a native speaker brings to them some privileges as we can see in this affirmation“Sim, soar como um nativo possibilitaria melhores oportunidades de emprego”(Vanessa).The other student said “Sim, interesse profissional, com essa habilidade eu poderia tentar empregos fora do país….”(Clara)and another said“Sim… para praticar intercâmbio e por ser uma ferramenta útil nesse mercado de trabalho…” (Ricardo).Through these answers we can clearly realizethat they see in learning English a possibility for a better job, that is, knowing English and speaking as better as they can, they probably will have a greater chance to be as high as possible in the job market. In this same question, we found the answer “Sim, pois quem fala com sotaque é geralmente discriminado” (Luís).This student is worried about the discrimination towards the accent, so this answer confirms the prejudiced belief toward the accent, that is, if you do not speak as a native so you do not speak English correctly. The students also believe that if we have an accent we are treated in a different way, that is, we are not engaged in that powerful society and this was confirmed by a student’s answer that says “Sim, porque nas viagens você não seria tratada como turista”(Ana). We can still perceive that to speak a foreign language has became a symbol of power, as Barcelossaid“this seems to be an attempt to be empowered, to gain status, to identify with the powerful group” (BARCELOS, 2003, p.12). As we saw in the last student’s answer, to be treated as a tourist is uncomfortable, being a tourist means that we are not from that country, that is, we are there but we do not

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belong to that place and this is also a reason to explain the desire to sound like a native speaker. Then if we speak as a native, if our speech sounds as a native, your chances of belonging to an advantage and privileged society are greater than a person who does not sound like a native speaker. It seems still that the nonnative speaker does not want to be treated differently when they go abroad, because maybe this attitude can to hurt their identity. It seems that even speaking that language they do not get feel them as a part of this society because their accent are different from the native. The forth question was about How you would feel if someone said that you sound like a native speaker and 93,3% answered that“Sentiria muito preparada em falar inglês, ficaria muito contente, uma vez que quanto mais próximo da fala do nativo melhor o domínio do idioma”(Daniela). The others students also said “Muito bem, porque significa que eu estaria dominando bem a língua” (Sérgio) and “Muito orgulhosa, pois significa que aprendi muito bem a língua inglesa” (Marina) and all the answers were looked like to that, once that they believe to command some language is when your speech is like a native. Another student showed another side of this discussion and said “Eu adoraria, porque ninguém iria criticar minha fala…” (Carolina). Here she/he probably means that sound like a native speaker is a sign that she/he has the perfect ability and nobody needs to correct her/him, because to sound like a native is reach the highest skill in command a language and if reach it you can correct the others, but they can not correct you. Finishing our discussion, the last question was “Você acredita que aqui no Brasil se aprende inglês sem sotaque? Por quê?”We found that about 34% believe that it is possible to learn English without an accent, about 12 % did not know to answer and about 54% believe we do not learn English without having an accent as we can see in this answer “Não. A língua portuguesa tem sotaques diferentes em várias regiões do Brasil” (Clara), so in each Brazilian’s region there will be a lot of varieties of spoken English because the Brazilian accent will always be present in the speech. There were another answer like “Não, acho que deve haver no início da aprendizagem, um misto de sotaque por não haver uma referência” (Betânia). This student makes reference to the native speaker as a norm, because if you are not in contact with a native you won’t have a model to follow, so your speech will have your accent. In another answer a student said “Não, porque é muito difícil adquirir o sotaque se você não está no país de origem” (Guilherme). Thus, they believe that if 521

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they are not in the environment in which you can not speak to learn that language, you probably will keep your mother accent. Another student also said “Não, pois a forma de pronunciar e dizer as palavras iria diferir dependendo de cada pessoa” (Sérgio) and this make us to think about identity because each person talks in a different way, so the accent will always be present in the speech and it will also define who we are and the place we belong to. During the focal group Anasaid “Dificilmente alguém consegue romper com essa questão do sotaque do país de origem… é raríssimo. Eu tenho a experiência da minha irmã… ela morou 10 anos no Canadá, ela quando voltou, o sotaque dela todo mundo ficava perturbando ela com o sotaque. Ela não perdeu o sotaque, diminuiu um pouco… um sotaque meio de ‘poRta’ que ela tem e ela fala que isso incomoda ela pelo fato dela quando chega lá as pessoas dizem ‘mas que sotaque é esse?’ então eu acho que de fato eu acredito que é muito raro alguém perder o sotaque até mesmo os norte americanos que a gente convive aqui o cara tá sempre falando uma coisa que por melhor que ele fale português a gente sabe que ele não é brasileiro”. Through this affirmation we can conclude that “everybody has an accent” and it “is tied in our self and our identity” (BARCELOS, 2003, p. 13). We can observe that students often develop a feeling of subjugation in relation to that language and to that country, more specifically in relation to the United States as we can see during the focal group. They believe that they must learn English because that country is the world potency and as we are an underdeveloped country, so we have to submit ourselves to their domination and it happens through the fact that we have to learn their language. We can see this when theCarolinaalso said “os americanos são bem arrogante… eles são… eles se sentem superiores se acham a potência porque vieram de um lugar que é super… nós somos os subdesenvolvidos e eles já são desenvolvidos”.It is because of this belief of subjugation that Barcelos alerts, one more time, that the teacher has to be prepared to explain to the students that there is no subjugation between the languages. As a teacher, we have to help our students fell more comfortable with their language and their accent, because they have to be aware about the diversity of accents and languages. Through the results, we can realize the belief that there is a native speaker as a norm that the nonnative speakers want to reach. We can also see that some students agree that we learn a language that is not spoken and written correctly, the Brazilian English, what confirms the prejudice toward the accent. Students and teachers have to aware about the wide range of English speakers and this diversity

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of English spoken around the world have suggested that there is no correct or incorrect English, since it is a spoken by a variety of people in different countries. Final considerations We could see during this article that students have a negative attitude towards the accent. Students believe that they will learn the original English if they go to England or United States, mainly because of their economical power and their technological development. Students also think that they will learn English if they have contact with the native speaker, because just through the contact you will learn the correct pronunciation. It means that we do not learn the whole English, that is, we learn a piece of it that can help us in our very poor communication with the foreign speakers. Through some answers, we could see that the students see in learning English a possibility to get a better job. The students also believe that if you have an accent you are treated in a different way, that is, like a tourist and this means not be engaged in a powerful society. Then if we sound as a native, wehave chances of belonging to a privileged society are greater than a person who does not. We could also realize that about 54% believe we do not learn English without an accent, because we do not have the environment where this language is spoken and if you are not in contact with a native you won’t have a model to follow, so your speech will have your accent as well. We can still observe that students often develop a feeling of subjugation in relation to that language and to that country, more specifically in relation to the United States, because of its economic power. As a result we can see some problems during the teaching and learning process, once some teachers are not prepared to help students in this complex subject. Teacher has to explain to the students that there is no subjugation between the languages, because they have to be aware about the diversity of accents and languages. Despite of prestige and status that a speaker without an accent seems to have, English keeps being English even though the wide variety of accent, since we can establish communication. We do not need to try to eliminate our identity, our accent to speak English correctly.

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REFERENCES

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão

USING BLOGS IN THE EFL CLASSROOM: STUDENTS' AND TEACHER'S PERCEPTIONS

Doris de Almeida Soares

Introduction

A

weblog (or 'blog') is an “online journal that an individual can continuously update with his or her own words, ideas, and thoughts” (CAMPBELL, 2003). Because of its interactive and public nature, language teacher worldwide have been exploring the potential of this tool as a learning environment. Among the reasons which have led teachers to experiment with blogs, the following may be seen as the most relevant: a) an opportunity to develop reading and writing skills, b) the element of fun it can add to the learning tasks, c) the potential of a real and broader audience to students’ productions and d) its potential for social interaction. Having this in mind, I created a class blog for my group of pre-intermediate teen students at an English language school in Rio de Janeiro, Brazil. This article presents some Exploratory Practice I carried out with this group and discusses my students’ reflections on the use of blogs to engage them in the learning process1. Blogs and language learning According to Bella (2005) “a Weblog, also called a blog, is an easily created and updateable Website that allows people to publish to the Internet instantly” (n.p.) even if they do not have any knowledge of HTML programming. In its simplest form, as Bartlett-Bragg (2003) defines it, “a blog consists in entries written by a

The complete study can be found in SOARES, DORIS DE A. Understanding class blogs as a tool for language development. Language Teaching Research, vol. 12, no. 4, p. 517-533. 2008. .

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single author and presented in reverse chronological order” (n.p.). These are often hyperlinked to other sources or Websites and can focus on class content or on student interests, depending on instructional purposes. Anybody with access to the Internet can read blog entries and leave comments on what they have read. Attracted by these interactive and public aspects of blogs, teachers worldwide have been exploring the potential of this tool as a learning environment.Most platforms also offer the possibility of uploading PowerPoint presentations, photos and slide shows, audio and video resources, which makes blogs even more attractive. In terms of authorship, Campbell (2003) presents three different types of blogs that fit pedagogical purposes: the tutor blog, run by the class teacher; the learner blog, run by each student in the group individually; and the class blog, run by teacher and students collaboratively. Having studied the different types of blogs for learning contexts, I decided to create a class blog for my group of nine 14/15-year-old pre-intermediate students in the language school where I taught general English, in Rio de Janeiro, Brazil. The main features of this type of blog are described in the next section of this paper. The class blog The class blog is a joint effort between students and teacher. It may therefore be seen as a way to foster a feeling of community between the members of a class (CAMPBELL, 2003; MCDOWELL, 2004; STANLEY, 2005). This is especially true if learners are involved and sharing information about themselves and their interests, as well as responding to what others are writing. To Stanley (2005, n.p.), this kind of blog is best used as a collaborative discussion space, an extra-curricular extension of the classroom, encouraging students to reflect more in depth, in writing, on the themes touched upon in class. This can be done at home, by asking students to perform a given writing task, or collaboratively in a computer room, by pairing students off and asking them to carry out the tasks. These may vary in nature and will depend on the reasons for having the class blog. For example, according to Bella (2005) and to McDowell (2004) class blogs can be used as discussion boards. If a discussion ends due to time, the students who have not had the chance to contribute or who are reticent to participate can join in on the conversation in the blog by writing comments or replying to existing ones. 526

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Besides, as Campbell (2003, n.p.)notes thatmessages, images, and links related to classroom discussion topics and thoughts on a common theme assigned for homework can be posted by learners at their own discretion. Campbell (2003, n.p.) also mentions that the class blog may be useful for facilitating project-based language learning. To the author, “learners can be given the opportunity to develop research and writing skills by being asked to create an online resource for others”. Moreover, they can work together to produce and edit collaborative texts, since all the members of a class blog are given permission to write and manage posts. That is, anyone can edit the posts published by anyone else in the group. This makes room for peer correction and feedback, which are highly important in the development of critical reading and writing skills. Perhaps the greatest advantage of using blogs in the language class is that the Internet makes it possible to have several groups of learners interacting all over the world. Therefore, the walls of the classroom tumble down and the world becomes a virtual room, where a student in Brazil, for example, can interact with a student in Japan in real time, if they wish. In this interaction, they can not only practice their foreign language skills but also, and most importantly, share cultural knowledge, feelings and thoughts. The learning experience becomes more fun and concrete as it involves an authentic use of the target language for real communication. Creating our class blog and my initial puzzles First, I tested some platforms and chose Motime, which seemed simple to use. In class, I proposed the creation of the blog and the students readily accepted the idea. We named our blog and collaboratively wrote a welcome message to our visitors. We also took pictures to create a slide show to be embedded in the blog. Then I sent my students an email inviting them to become blog members. In doing so, any of them couldpost and upload materials. My aim was to foster autonomy and independence. The first posts were compositions (a mini saga and a recipe) which I typed onto our page. I also sent an email to an international community of practice called the Webheads informing them about our blog so that they could leave comments there. The first visitors were teachers in Argentina, Canada, Venezuela and The USA. The students were thrilled when I opened the blog in class and realized they

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had real English speakers reading their texts. As a follow-up activity, I asked them to reply to the comments at home and to prepare a short biography. Some weeks went by but the students did not seem to have replied to the comments and only two of them had posted their biographies. Besides, only one student had become a member. The others reported having problems with passwords or not having received my invitation, problems which I tried to solve with them either before or after class time. At this point, I started to wonder why they always asked me to open the blog in class and allow them some time to check the new posts/comments and express their opinions about them but did not write replies at home. Besides, I could also notice that the ones to leave comments were mostly teachers, not language students. This situation triggered my desire to understand my own students’ view on the use of our blog as a language learning tool and to know how other students worldwide were reacting to the use of blogs. This understanding seemed important to me because, as stated by Allwright (1996: 2), “[…]without some understanding of why things happens in a certain way in the classroom, teacher have no sound basis for deciding to repeat the idea, to adapt it, or to abandon it”. Therefore, I needed to know why they were so motivated to read the blog in class but gave little attention to it at home. Did my students see the blog as a learning tool? If so, why did not they use it more often? Why did not they reply to the posts? Was this typical behaviour of my students or was this happening in other contexts as well? These were issues I needed to have some understanding of before assessing the success or failure of my project. Exploring my students’ views on our class blogs According to Allwright (1996:1)“[…]teachers should aim at developing an understanding of what is happening in the classroom without implementing activities which, in the end, will get in the way of teaching”. Therefore, the author suggests the use of practitioner research known as Exploratory Practice (ALLWRIGHT, 2003), which is based on the principle that teachers can collect information about a topic they wish to investigate while students are actively involved in a language learning activity. This can be achieved by designing Potentially Exploitable Pedagogic Activities (PEPA’s). Allwright and Hanks (2001) say that we should identify the sort of activities which might be useful for data collection purposes without losing their 528

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value as learning activities. Teacher can, therefore, plan discussions, role-plays, reading and writing activities and so on to foster students to use the target language while they focus their attention on the issue the teacher and /or the learners wish to understand more deeply. As regards my puzzles, I wanted to know if my students saw the blog as a learning tool that enabled them to get in touch with students from other contexts and that fostered the use of written language to express themselves. To do so, I decided to design my PEPA as a class discussion focusing on three questions:a) Why do we have a blog?, b) Does it help you to improve your English? c) How motivated are you with the blog? Since the students had already had the opportunity to prepare new posts, both in text format and in PowerPoint format (a travel log), I believed there were ready to reflect upon our work so far. From the discussion I learned that all my students understood we had a blog to practice English and to interact with other speakers. My students also said that, according to their understanding, the blog was, indeed, a learning tool because it helped them to learn new vocabulary and it encouraged them to do research and to read and write more in English. Besides, it was an interactive way to learn as they could talk to people all over the world. However, they were not very motivated because of their lack of free time to visit the blog at home and the technical problems they had faced to become members and to post messages. In fact, many of them preferred to send their materials to me via email so that I could do the posting, which was not what I had in mind when I set up the blog. I wanted them to work independently from me but this did not happen as I had expected. In the meantime, the more blogs I visited, the more puzzled I was by the fact that, regardless of the country, a tendency seemed to emerge. Despite the high statistics registered in the visit counts, I could notice a low number of replies to the posts, something which mirrored the situation in my context. In order to try to understand these occurrences better, I prepared an online survey, which was completed by twelve practitioners who use blogs with their students in Sudan, USA, Ukraine, Ecuador, Taiwan, Chile, Brazil, Portugal and Argentina.

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From their answers, I learned that most of them worked with blogs for personal reasons and that students were rewarded for taking part in the blog, which matched my context. About students’ behaviour, the results showed that only half the teachers had most of their students writing posts/replying to posts and that not many of them visited the blog at least once a week. By having access to this type of information, I could understand that, perhaps, I should not worry so much about the fact that my students were more interested in reading the posts than in commenting on what they had read as this seemed to be occurring in other contexts as well. Upon learning this, I decided to design a second PEPA to check if my students would enjoy working with the blog more actively, that is writing posts and replies during class time. This new PEPA was divided into two parts. First, my group had a hands-on exercise in which they had the opportunity to use the computers in the lab and, in pairs, and fulfill the following tasks: PART 1: ACTIVITY IN THE MULTI MEDIA CENTRE 1) Visit our blog. Is there a post for you? Reply to it. 2) Read your friends’ travel logs. Which one do you like best? Reply to it. 3) Do you like celebrities and music? Visit my Basic 5 blog, and choose one artist you like. Read the post and write a comment in pairs. 4) Visit one of the other blogs on the sidebar. What do you think of it? Would you like to leave a comment there? Why/ why not? After completing this task, we went back to the classroom and had a reflection activity, first in pairs, then with the whole class, based on the following questions: PART 2: LET’S REFLECT ABOUT THIS ACTIVITY! a) What’s your opinion about this activity? b) If you had time during our lessons, would you like to do it again? c) Do you feel more motivated to work with blogs at home? This PEPA revealed that all my students enjoyed working in the multimedia centre. Their engagement in the activity was also noticeable during my monitoring as I could see that some of the students resorted to the language dictionary link available for them in our blog to look up words they did not know while they produced their texts collaboratively. There were also instances of peer feedback and peer correction during text production. Besides, some of the students made

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oral comments about the posts they had read and even suggested their peers replied to the same posts. Back in the classroom, they also stated that they were more motivated to use our blogs at home now. I guess the interaction that took place during the activity could have been a strong motivational factor to make them see working on the blog as fun. Above all, they told me they would like to have this type of activity as part of our lessons and they wanted to advertise their blog to other classes at my branch as well. From puzzlement to understanding With this research I came to understand two things. Firstly, it was naive to believe that just because my students were computer users they would be able to learn how to work with the platformquickly. Therefore, to soften the impact technical problems may have on their willingness to work, I could have taught them basic operations such as how to write posts and upload materials. Second, there was no strict relationship between the amount of posting done and the value my students gave to the blog. In fact, they enjoyed having it and they could perceive it as a learning tool. Therefore, factors such as lack of time and technical problems should also be taken into account when assessing the validity of using blogs. This was revealed in our first PEPA and showed me that my students were working on something they enjoyed. The fact that they would like to work with the blog in class (second PEPA) also helped me to see that perhaps my students would profit from investing more class time in blogging. The understanding my students and I have gained from this experience will certainly pave our way for new incursions in the world of blogs in education.

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INGLÊS PARA FINS ESPECÍFICOS: O ENSINO DE INGLÊS PARA NEGÓCIOS PELA PERSPECTIVA DO PROFESSOR

Elisa Mattos de Sá

Introdução

O

ensino de inglês para negócios tem crescido muito devido a demandas mais específicas de alunos que lidam com situações profissionais nas quais a língua comum é o inglês. Como consequência de um mundo cada vez mais globalizado, para esses alunos tornou-se necessário não apenas saber se comunicar em inglês de um modo geral, mas realizar o trabalho também nessa língua. O ensino de inglês para negócios existe exatamente para auxiliar esses alunos no cumprimento de suas tarefas profissionais em inglês. O professor de inglês para negócios é uma peça fundamental do ensino dessa modalidade de inglês. Como professora de inglês para negócios e consultora pedagógica em uma escola exclusivamente voltada para alunos do meio empresarial, orientei professores e acompanhei aulas durante 5 anos1 e dessa experiência surgiu meu interesse em entender melhor as práticas de ensino de inglês para negócios, especialmente pela perspectiva do professor. Esse interesse me levou a realizar entrevistas com professores de inglês para negócios no intuito de compreender melhor a identidade desse profissional e suas práticas pedagógicas no contexto brasileiro, como fez Bereczky (2009) para o contexto húngaro. O presente trabalho, portanto, é um recorte dos dados coletados para minha pesquisa. Este artigo baseia-se na apresentação de mesmo nome realizada no I Simpósio Sobre Ensino de Línguas Estrangeiras do CEFET/RJ, e segue a organização da apresentação, estando organizado em cinco seções. Após essa introdução, apresentarei o inglês para negócios (público, contexto e práticas de ensino) ba-

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De 2007 a 2012 na Authentic English Business Language Center, em Belo Horizonte/MG.

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seando-me na atual literatura sobre o assunto. Na terceira seção, apresentarei as principais informações da entrevista realizada com um professor de inglês para negócios. Na quarta seção refletirei sobre excertos da entrevista, nos quais a perspectiva do professor sobre seu fazer pedagógico pode ser observada. Concluo o artigo com algumas observações acerca da atuação de professores de inglês para negócios de um modo geral. O ensino de inglês para negócios Como uma modalidade de ensino da língua inglesa que lida com necessidades específicas de alunos do meio profissional, o inglês para negócios é considerado parte do chamado inglês para fins específicos, ou ESP (English for Special Purposes), e possui especificidades referentes ao contexto profissional, pois está centrado em situações de trabalho. Segundo Donna (2000) e Frendo (2005), o inglês para negócios é o inglês usado nas empresas, nas situações profissionais, e é ensinado para adultos ou que já trabalham ou que estão se preparando para trabalhar no meio de trabalho. No Brasil, o ensino de inglês para fins específicos tem sido em grande parte direcionado ao chamado inglês instrumental, ou seja, ao desenvolvimento de habilidades de leitura na língua inglesa. Deve-se frisar, no entanto, que o termo ESP vai muito além do ensino de inglês instrumental e engloba diversos segmentos de ensino de língua inglesa, como o inglês acadêmico, voltado para as habilidades de escrita de gêneros acadêmicos, ou o inglês para turismo e hotelaria, orientado para profissionais desse meio. Por estar centrado em situações de trabalho, o inglês para negócios envolve aplicação mais imediata da língua (DONNA, 2000, p. 6), a qual varia conforme as necessidades dos alunos, resultando, assim, em um maior envolvimento entre professor e aluno, uma vez que é a partir das demandas do aluno que o professor organiza suas práticas de ensino. Frendo (2005)e Ellis & Johnson (1994) listam as principais necessidades dos alunos como: a) comunicativas (habilidades linguístico-comunicativas, linguagem usada no trabalho); b) pedagógicas (contexto de ensino, estilo de aprendizagem do aluno etc.); e c) corporativas (nível organizacional, relação aluno-empresa-professor). A especificidade lexical tem-se mostrado como outra importante característica do inglês para negócios (BARTON, BURKART & SERVER, 2010, p. 10). O voca534

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bulário de inglês para negócios é bastante particular, e, segundo Barton, Burkart & Server (2010), é compreendido por: a) vocabulário geral usado para descrever tendências econômicas e reuniões; b) vocabulário especializado usado em uma área de trabalho específica; e c) blocos lexicais, ou expressões idiomáticas, verbos frasais, colocações específicas da linguagem de negócios. Em termos de metodologia de ensino, Barton, Burkart & Server (2010) afirmam que a metodologia mais adotada para o ensino de inglês para negócios é a abordagem comunicativa. Frendo (2005) e Donna (2000) defendem uma combinação de métodos para o ensino de inglês para negócios. Como professora de inglês para negócios, concordo com Frendo e Donna, mas tenho observado que são os princípios da abordagem comunicativa que têm orientado as práticas de ensino de inglês para negócios no Brasil (SÁ, 2011, p. 47). Para não haver confusão, é importante mencionar que qualquer segmento específico do ensino de inglês envolve o ensino dessa língua, e não significa a criação de uma nova metodologia, como asseveram Hutchinson & Waters (1987). Ou seja, do ponto de vista metodológico, ensinar inglês para negócios é antes de tudo ensinar inglês. O ensino de inglês para fins específicos não significa gerar uma metodologia específica. O que muda é o foco – o que ensinar, para quem e em quais condições. A entrevista Como já mencionado, este trabalho é um recorte de um projeto maior, originado de meu interesse em compreender melhor a identidade do professor de inglês para negócios e suas práticas de ensino. A literatura sobre inglês para negócios, embora importante, não consegue capturar a realidade brasileira do ensino dessa modalidade de inglês. Veremos que apenas uma parte das práticas descritas na literatura corresponde à realidade brasileira. Por essa razão, realizar entrevistas com professores de inglês para negócios pareceu-me essencial, pois são esses profissionais que podem falar com mais propriedade sobre seu fazer pedagógico, sua identidade e sua realidade profissional. Atualmente, meu trabalho conta com três entrevistas realizadas com professores de inglês para negócios. Cada entrevista tem uma média de 45 minutos de duração. As entrevistas foram feitas com base nas diretrizes de Wengraf (2001) para entrevistas semiestruturadas, e são baseadas no roteiro de Bereczky (2009), 535

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sempre realizadas na língua materna dos entrevistados. Bereczky (2009) realizou um estudo piloto sobre a identidade e as práticas de ensino do professor de inglês para negócios na Hungria. O trabalho dessa pesquisadora, em especial seu roteiro de entrevista2, constitui minha orientação inicial para a coleta de dados. Para este trabalho selecionei a primeira entrevista realizada. O professor entrevistado será chamado de R3. e possui 18 anos de experiência no ensino de inglês, 11 dos quais voltam-se para o ensino de inglês para negócios. R. é nativo da língua inglesa. Sua formação como professor de inglês para negócios fundamentou-se no tempo de experiência e no estudo da língua inglesa. O professor também possui grande interesse pela área de negócios e trabalha exclusivamente com o ensino de inglês para negócios. A perspectiva do professor Seguindo a organização da apresentação no Simpósio, esta seção divide-se em duas subseções. A primeira trata da perspectiva do professor quanto a seus alunos, e a segunda volta-se para o ponto de vista do professor quanto às práticas de ensino de inglês para negócios e sobre o que significa ser um professor de inglês para negócios. Os alunos e o material O professor entrevistado ensina profissionais de empresas, alunos provenientes desse meio, e utiliza material elaborado especificamente para o ensino de inglês para negócios. R. indica uma demanda por aulas de inglês para negócios, citando que em geral adultos procuram essa modalidade de ensino: I teach people from companies… professionals, and all the material that’s used, that I use, that’s used here in the school is Business English material. […] as a result of the demand […] the demand from that public, from that group is generally Business English. O roteiro pode ser lido, em inglês, em: . Embora o professor não tenha exigido anonimato, para preservar sua identidade, apenas a inicial de seu primeiro nome será usada. 2 3

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Como vimos na seção 2, para Donna (2000) e Frendo (2005), os alunos de inglês para negócios são aqueles profissionais que já estão trabalhando em uma empresa, exatamente como relata o professor. A maioria da demanda por aulas, segundo R., vem de empresas. Ellis & Johnson (1994) citam que parte da demanda por aulas de inglês para negócios vem de cursos preparatórios na faculdade. Essa não parece ser a realidade do Brasil, país que conta com cursos de idiomas em grande parte fora das faculdades e voltados para o ensino de inglês geral, e não é a realidade do professor entrevistado. Embora a literatura sobre o ensino de inglês para negócios não discuta materiais específicos de inglês para negócios, há crescente elaboração e publicação de livros didáticos direcionados para essa modalidade de ensino de inglês. R. menciona o material como parte de ser professor de inglês para negócios e como material adotado por seus alunos. O professor e o ensino Para R., o professor de inglês para negócios é antes de tudo um professor de inglês, devidamente preparado para o ensino dessa língua, o que envolve não apenas o conhecimento da língua e o conhecimento didático, mas também o conhecimento sobre o meio profissional: […] the Business English teacher has to be an English teacher. And, secondly, they need to have this insight into the business world.

R. afirma que um conhecimento das práticas do mundo empresarial, ou do meio de trabalho de seus alunos, é vital para o professor de inglês para negócios. Percebemos no relato de R. que o professor de inglês para negócios deve ir além dos conhecimentos linguísticos e didáticos, e deve possuir ou buscar adquirir conhecimentos de mundo, especialmente do meio de trabalho: […] to be a Business English teacher, a good Business English teacher, I think it’s essential that people have an insight into business, so that they can deal with people who work in that business environment, company environment and understand where they’re coming from, what they are talking about, and be able to discuss on their level, what’s going on in their area, in their company, in the market. 537

Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares As a Business English teacher, we have to identify problems that people have, and know where to go to find good material that we can use to help people resolve those problems and read about the elements of the language they have difficulty with, do exercises related to those difficulties, I think it’s very important for people […] to know when to leave the material, or put the material aside for a time, and concentrate on something specific, a gap that the student has in their English.

Essa necessidade de conhecimentos do meio profissional está diretamente relacionada às necessidades comunicativas e ao contexto de trabalho dos alunos. Para R., é importante que o professor de inglês para negócios consiga interagir e trocar informações relacionadas à realidade do aluno. Nesse sentido, confirmamos o que Donna (2000) argumenta sobre a relação professor-aluno no ensino de inglês para negócios: realmente há um maior envolvimento entre professor e aluno, exatamente para que o professor conheça e possa atender às demandas (mais específicas) de seus alunos. As demandas, como evidenciado no relato do professor, podem estar relacionadas também à linguagem e não apenas a um conhecimento da situação de trabalho dos alunos, o que é esperado, considerando-se que o professor de inglês para negócios é acima de tudo um professor de língua. Por mais que seja importante possuir outros conhecimentos, específicos do meio de trabalho, o professor deve, antes de tudo, dominar a língua em ensino – a língua é seu objeto de trabalho. Quanto ao uso de material, R. informa-nos que o material de inglês para negócios é muito bem preparado, facilitando o ensino, mas que é preciso adaptá-lo às situações reais de aplicação da língua, ou seja, às situações de trabalho do aluno: Nowadays, we have the material ready. […] we always have to take the context out of the book and adapt it to the real situation that the person experiences in their company. To be a Business English teacher, the person really needs to have an interest in the area, or to have experience working the corporate world… and to have an insight in to the corporate world… to be able to talk to people on a level where they can exchange information about companies, not just being stuck with the material that’s in the books.

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Parte do conhecimento do mundo empresarial sobre o qual R. fala associa-se a essa necessidade de aproximação com a realidade do aluno, de adaptação do material didático. De fato, para aquele aluno que precisa se comunicar em inglês no meio de trabalho, serão as demandas comunicativas desse contexto que orientarão o ensino – e não necessariamente o conteúdo programático do livro didático, por exemplo. Percebemos, portanto, que o ensino de inglês para negócios, no contexto brasileiro mencionado pelo professor entrevistado, é gradual e deve ser refletido e reavaliado de acordo com as necessidades e o progresso dos alunos. Considerações finais Com este artigo, baseado na apresentação de mesmo nome realizada no I Simpósio sobre Ensino de Línguas Estrangeiras do CEFET/RJ, procurei refletir sobre o ensino de inglês para negócios que, como parte do chamado English for Specific Purposes, possui peculiaridades que orientam sua instrução. A reflexão aqui apresentada, realizada através de excertos de uma entrevista feita com um professor de inglês para negócios, buscou explicitar a perspectiva do professor quanto ao ensino dessa modalidade de inglês. A perspectiva de R. quanto ao que significa ser um professor de inglês para negócios mostra-se consonante com as reflexões de Barton, Burkart & Server (2010). Para essas autoras, o professor de inglês para negócios é um especialista em sua área – ele entende tanto de ensino quanto das especificidades do meio de trabalho. Para R., com quem concordo, o professor de inglês para negócios é antes de tudo um professor e deve estar capacitado para o ensino de inglês. Ele deve possuir conhecimentos específicos do meio empresarial, ou deve procurar adquirir esses conhecimentos, mas ele é, de fato, um professor. As práticas de ensino de inglês para negócios, como vimos, ultrapassam o material didático: o professor deve procurar aproximar-se do mundo de seus alunos, de sua realidade, estabelecendo, assim, maior proximidade com o aluno e buscando entender a fundo suas necessidades de aprendizado. As necessidades do aluno realmente caracterizam as práticas de ensino de inglês para negócios, fazendo dessa modalidade de ensino de inglês para fins específicos algo particular de cada contexto de ensino.

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O USO DO GLOBAL ENGLISH CORPORATE LEARNING SERVICE™ COMO FERRAMENTA PARA O DESENVOLVIMENTO DA AUTONOMIA DE APRENDIZES DE INGLÊS PARA NEGÓCIOS

Elisa Mattos de Sá

Introdução

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ste artigo baseia-se na apresentação de mesmo nome realizada no I Simpósio Sobre Ensino de Línguas Estrangeiras do CEFET/RJ. Seguindo a mesma organização da apresentação, e organizado em cinco seções, este artigo reflete sobre o uso do Global English Corporate Learning Service™ como um possível ferramenta para o desenvolvimento da autonomia de aprendizes de inglês para negócios. Como discutido em outros momentos após o Seminário (SÁ, 2012a, p.2), a autonomia tem sido um dos focos de discussão e pesquisa no ensino de inglês. A maior parte desses estudos, no entanto, está centrada no ensino de inglês geral e poucos estudiosos tem se dedicado à promoção da autonomia no chamado inglês para fins específicos e, dentro deste, no inglês para negócios, que tem sido bastante procurado nos últimos anos, mas ainda é negligenciado nas pesquisas acadêmicas (SÁ, 2011a, p.43), sejam essas pesquisas voltadas para o assunto autonomia ou não. Essa foi uma das minhas motivações para a apresentação no Seminário e na escrita deste artigo. Após esta introdução, a noção de autonomia norteadora deste trabalho será apresentada. Na terceira seção, o Global English será apresentado tal como foi utilizado pelos aprendizes nos anos de 2010 e 2011. Na quarta seção os percursos de aprendizado de dois alunos de inglês para negócios serão apresentados, de forma resumida, mas buscando-se uma reflexão sobre o uso do Global English nesse trajeto como promotor da autonomia. Este artigo é, então, encerrado com algumas conclusões acercada utilização do Global English no desenvolvimento da autonomia.

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Autonomia A autonomia do aprendiz de línguas, neste caso do inglês, pode ser definida como uma habilidade a ser construída no processo de ensino-aprendizagem. Para se ter maior clareza sobre o papel da autonomia no ensino-aprendizagem, é preciso especificar a natureza dessa habilidade, de onde ela parte, como ela se configura e a que ações ela se refere. Ou seja, faz-se necessário saber o que significa “autonomia” no contexto de ensino de inglês. Segundo Benson & Voller (1997), a autonomia era antes pensada como a capacidade que os alunos tinham de estudar sozinhos. Mas, se pensarmos mais criticamente, estudar sozinho não significa ser autônomo. A autonomia, como uma capacidade ou habilidade do aprendiz, deve se manifestar em diversos momentos do processo de aprendizagem e não se refere apenas àqueles momentos nos quais o aprendiz se encontra só com seus estudos. Feita essa observação, notamos a necessidade de uma reconceptualização da noção de autonomia. Podemos, assim, passar a vê-la como a capacidade de desenvolver e aplicar a reflexão crítica, de tomar decisões, de ser ou tornar-se independente no processo de ensino-aprendizagem. De acordo com Benson & Voller (1997), a autonomia pode, de fato, estar relacionada situações em que os alunos estudam por si, sozinhos, mas ela é melhor entendida como um conjunto de habilidades que podem ser aprendidas e aplicadas pelo aprendiz, ou, em outras palavras, como o exercício de tomada de responsabilidade pelo próprio aprendizado. Para Little (1981), aprendizes autônomos são aqueles que assumem a responsabilidade por seu processo de ensino-aprendizagem, que praticam a reflexão crítica, que tomam decisões próprias e que são independentes. Holec (1981), em consonância com as demais reflexões, admite que a autonomia é a habilidade que os aprendizes colocam em prática quando assumem a responsabilidade por seu próprio percurso de aprendizagem. Quando se fala em autonomia dos aprendizes não se pode deixar de falar da autonomia do professor e da concepção de ensino adotada por ele. Os papéis do professor e dos alunos devem estar alinhados a uma concepção de ensino que promova a autonomia, pois é somente através da relação professor-aluno que a autonomia poderá ser desenvolvida. A relação entre o professor e os alunos está diretamente relacionada à concepção de ensino adotada pelo professor. 542

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O professor, nessa perspectiva, deve ser tão autônomo quanto seus alunos e precisa atuar como um facilitador. Ele não detém o conhecimento – ele promove a construção do conhecimento e envolve seus alunos nesse processo, ensinando-os a aprender. Essa é sua concepção de ensino – a construção colaborativa do conhecimento. E é isso que Wenden (1991) afirma sobre a autonomia: aprendizes que foram bem sucedidos em seu aprendizado são aqueles que aprenderam a aprender, ou seja, aprenderam a aplicar estratégias de aprendizado, possuem o conhecimento e as atitudes sobre como aprender e usam essas habilidades de forma independente, flexível e com confiança. Para Kelly (1996), o ambiente no qual os alunos estão inseridos é de extrema importância para o desenvolvimento da autonomia: os materiais e o ambiente de ensino devem ser apropriados, relacionados à realidade dos alunos e não devem estar distantes de uma aplicação imediata do que foi aprendido. Essa visão associa-se e pode ser refletida no ensino de inglês para negócios. Segundo Donna (2000) e Barton, Burkart & Server (2010), o inglês para negócios está centrado nas situações de trabalho do aluno e requer aplicação mais imediata da língua, isto é, os aprendizes de inglês para negócios devem poder aplicar o conhecimento linguístico-discursivo construído nas aulas de forma mais direta, e esse conhecimento deve ser necessariamente relacionado à sua realidade. O ensino de inglês para negócios também exige que os aprendizes sejam autônomos em seu processo aprendizagem, pois eles precisam saber reconhecer suas necessidades e saber comunicar essas necessidades ao professor, o qual também deve buscar esse diálogo. É por meio desse diálogo (e da identificação dessas necessidades) que o conhecimento pode ser construído. Tal relação prevê uma maior aproximação entre professor e aluno, como afirma Donna (2000) e como relatado em Sá (2011a). Além disso, os materiais e o ambiente de ensino – ou o contexto de ensino – devem ser relevantes e apropriados às necessidades de aprendizagem dos alunos de inglês para negócios, como visto em Sá (2011a, 2011b). O Global English Corporate Learning Service™, como comprovaremos, não só se mostra como um ambiente adequado ao ensino de inglês para negócios como pode ser usado para promover a autonomia de aprendizes dessa modalidade de ensino de inglês.

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Global English Corporate Learning Service™ O Global English Corporate Learning Service™ é um serviço de ensino de inglês totalmente apoiado no ambiente virtual.É uma ferramenta de ensino à distância utilizada por mais de 300 empresas em todo o mundo. Normalmente adotado como principal fonte de aprendizado de alunos de inglês para negócios, em uma multinacional em Belo Horizonte, o Global English foi implementado como um complemento às aulas presenciais realizadas ou in-company, ou na Authentic English Business Language Center, uma escola de inglês para negócios. Como um suplemento das aulas presenciais, em geral de duração de 1 hora a1 hora e 30 minutos, individuais ou em pequenos grupos (de máximo de3 alunos porsala de aula), o Global English foi selecionado para um total de 8 horas mensais de estudo. As aulas presenciais somam em torno de 12 horas mensais de estudo e, junto ao Global English, os profissionais dessa multinacional possuíam um total de 20 horas mensais de estudo da língua inglesa voltada para suas necessidades de trabalho. O Global English é focado no desenvolvimento de habilidades linguísticas e comunicativas específicas do meio corporativo, distribuídas em 11 níveis, de iniciante a avançado. As atividades do serviço de ensino envolvem diferentes mídias (áudio, vídeo etc.) e simulações de situações reais de uso da língua. Cada aluno recebe um um plano de estudos personalizado para seu nível, adequado a suas necessidades e disponibilizado sem restrição de acesso(online e offline). Cada fase do plano de estudos possui um número de atividades em que as habilidades de listening, speaking, reading, writing, vocabulary, grammar e pronunciation estão integradas. Este artigo inclui alguns exemplos visuais do Global English, também adicionados à apresentação no Seminário, exatamente para que o leitor possa visualizar o serviço de ensino do modo como os aprendizes o utilizavam. Vejamos a seguir alguns slides de como a função comunicativa “identifying problems and suggesting solutions” era abordada e praticada no Global English em 2010, um dos períodos de observação mencionados neste artigo:

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Figura 1: conjunto de slides apresentando uma função comunicativa “identifying problems and suggesting solutions”

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A apresentação da função comunicativa inclui slides com informação visual e de áudio, e informações quanto ao uso das expressões constituintes da função e quanto ao padrão gramatical dessas expressões, como visto nas figuras anteriores. Todos os exemplos da função comunicativa relacionam-se a alguma situação de negócios. Após a apresentação, o aluno pode fazer exercícios referentes a essa função e suas expressões correspondentes:

Figura 2: atividade de prática das expressões da função comunicativa “identifying problems and suggesting solutions”

O Global English traz uma seleção de atividades para o aluno, mas é ele que decide por onde começar e quais atividades realizar. Como observamos, o estudo 547

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pode se iniciar em uma função comunicativa e prosseguir com atividades baseadas nessa apresentação dessa função. Mas o aluno pode começar seu estudo por atividades de prática de habilidades de listening, por exemplo. Vejamos um plano de estudo do Global English referente a 2011:

Figura 3: plano de estudos de um aluno do Global English

Percursos de aprendizagem Para este trabalho, decidi reportar minha observação de dois dos 10 alunos que ensinei, observei e orientei nos anos de 2010 e 2011 como professora de inglês para negócios e consultora pedagógica na Authentic English Business Language Center. Todos os alunos acompanhados responderam a um questionário sobre o uso do Global English no seu percurso de aprendizado e sobre como esse serviço de ensino de inglês se relaciona ao desenvolvimento da autonomia. Os questionários foram desenvolvidos e respondidos em português e continham perguntas como: Você se considera um aluno autônomo? Por quê? Você acha que o Global English tem contribuído para o seu aprendizado de inglês? Por quê? Como? Quais habilidades você tem desenvolvido no Global English?

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão Como você tem desenvolvido essas habilidades? Marque as respostas e justifique sua escolha logo após. Qual a sua opinião sobre o Global English?

Este artigo inclui minhas observações sobre o percurso de aprendizagem e a utilização do Global English como ferramenta para a promoção da autonomia dos dois alunos selecionados, além das considerações dos aprendizes quanto ao uso do Global English. Veremos a seguir essas informações. Aprendiz 1 A aprendiz 1, que chamaremos de D1., foi observada por 1 ano, de 2010 a 2011. Como analista financeira, ela precisava utilizar a língua inglesa em documentos e em interações dentro da empresa, mais especificamente em relatórios financeiros e em cursos de treinamento, presenciais ou não. Em vários momentos, o foco das aulas foi o desenvolvimento de vocabulário da área financeira e de habilidades comunicativas para acompanhar reuniões. A comunicação extraclasse com a aluna era toda realizada na língua alvo, em geral por e-mail. A aluna, de nível intermediário de proficiência em inglês, tinha duas aulas de 1 hora e 30 minutos por semana na escola, individuais, totalizando 12 horas mensais presenciais. O plano de estudo da aluna incluía 8 horas mensais de estudo pelo Global English, das quais apenas 1 hora se dedicava ao desenvolvimento de habilidades de conversação, e estava concentrado na linguagem utilizada em reuniões (para explicar uma questão, por exemplo) e em vocabulário geral de negócios. D. cumpria as 8 horas mensais previstas e realizava seu plano de estudo como esperado. Mas ela também passou a levar para as aulas presenciais dúvidas levantadas após utilizar o Global English. Essa atitude tornou a aula presencial mais produtiva e as questões mais complicadas passarama ser incorporadas às aulas. Foi então que comecei a prestar mais atenção ao uso do Global English por parte de meus alunos, através das discussões sobre o serviço de ensino com essa aluna. Podemos fazer uma associação entre o comportamento da aluna e sua atitude quanto ao seu aprendizado e o desenvolvimento da autonomia. A aluna, quando Para preservar a identidade dos aprendizes, utilizarei apenas as iniciais de seus nomes neste artigo. 1

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não conseguia resolver suas dúvidas provenientes do Global English, levava essas dúvidas para a sala de aula, em uma atitude pró-ativa. Essa ação, que só poderia partir dos alunos que utilizam o Global English (uma vez que os professores não têm acesso ao serviço de ensino), reconfigurou meu fazer pedagógico como professora, de forma bastante positiva – através da inclusão das dúvidas levantadas pela aluna pude entender mais suas necessidades de aprendizagem, algo muito importante no ensino de inglês para negócios, como já discutido neste artigo. Por meio do questionário supracitado, a aluna avaliou o Global English positivamente em relação a seu perscurso de aprendizado, mas fez algumas ressalvas. Para D., o Global English poderia ter mais recursos para o desenvolvimento das habilidades de fala e pronúncia. Além disso, a aluna mencionou a limitação de horas para as aulas de conversação. No que tange ao desenvolvimento da autonomia, a aluna se considera autônoma em seu processo de aprendizado, mas acredita que poderia ser mais, e acha que o Global English é um acréscimo ao seu percurso de aprendizado, mas acredita que o serviço de ensino de inglês não substitui – e não deve substituir – as aulas presenciais. Aprendiz 2 Até a data da apresentação no Seminário, o aprendiz 2, chamado G2., havia sido observado por 6 meses no ano de 2011. De nível pré-intermediário de proficiência em inglês, o analista de sistemas utilizava a língua inglesa em reuniões e teleconferências semanais, em documentos de comunicação interna, em cursos de treinamento, e em material e ferrramentas de trabalho, como apostilas e softwares, respectivamente. G. tinha duas aulas de 1 hora e 30 minutos por semana na escola ou in-company, realizadas com outro aluno de mesmo nível, mas diferente profissão, em um total de 12 horas mensais presenciais. O aluno também tinha 8 horas mensais de utilização do Global English e nossa comunicação extraclasse era realizada em inglês por e-mail e por telefone, visto que G. precisava desenvolver mais as habilidades de fala. Por ter um ritmo de trabalho extremamente atribulado, o aluno não cumpria as horas de seu plano de estudo personalizado no Global English, mas quando o Para preservar a identidade dos aprendizes, utilizarei apenas as iniciais de seus nomes neste artigo. 2

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utilizava, levava para a sala suas dúvidas, algo que se originou com a experiência da aprendiz 1 anteriormente relatada. A resolução em sala das dúvidas de G. não prejudicava seu colega, que se beneficiava das explicações e levantava outras questões, sempre pertinentes ao assunto discutido. Quando G. perdia alguma aula presencial, ele “compensava” essas faltas fazendo sua carga horária do Global English. Nos últimos meses antes do Seminário, o aluno passou a utilizar um novo elemento do Global English – os exercícios de pronúncia. Naquele momento, o Global English tinha sido reformulado, passando a incluir atividades de pronúncia, como podemos ver na figura a seguir:

Figura 4: atividade de pronúncia selecionada e feita pelo aprendiz 2

O aluno passou, então, a utilizar mais o Global English, levando para a sala de aula dúvidas também de pronúncia. Parte dessa experiência, especificamente o uso do Global English no estudo de sons individuais do inglês (de difícil assimilação por aprendizes brasileiros) foi relatada em Sá (2012b). Através das respostas ao questionário já mencionado, pode-se dizer que G. avaliou o Global English postiviamente, especialmente quando da adição das atividades de pronúncia, que tornaram o Global English uma parte mais concreta e 551

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regular de seu processo de aprendizagem de inglês. O aluno acha que poderia se dedicar mais ao Global English e às aulas de inglês, mas afirmou não ter o tempo necessário para uma dedicação mais pontual. Considerações finais Este artigo, baseado na apresentação de mesmo nome realizada no I Simpósio sobre Ensino de Línguas Estrangeiras do CEFET/RJ, refletiu sobre o uso do Global English Corporate Learning Service™ no ensino de inglês para negócios, mais especificamente no desenvolvimento da autonomia de aprendizes dessa modalidade de inglês. Com base nos percursos de aprendizado aqui relatados, podemos concluir que o Global English pode ser usado como uma ferramenta para o desenvolvimento da autonomia – especialmente quando utilizado em parceria com as aulas presenciais. Com a ajuda do professor, o aluno otimiza seu aprendizado, desenvolve em sala questões abordadas no Global English e aplica sua capacidade de autonomia. Podemos dizer que os alunos tornam-se mais autônomos com o uso do Global English porque dirigem seu próprio aprendizado – o Global English é feito para ser usado de forma independente, nos dois sentidos: independente de uma escola de inglês e com base na independência e autonomia do aluno, elemento essencial do ensino de inglês para negócios. Ao escolher a ordem de realização das atividades, o tempo de dedicação ao Global English e as habilidades que devem ser focadas, o aluno está tomando a responsabilidade pelo seu aprendizado, uma característica fundamental da autonomia.

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REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

BARTON, D.; BURKART, J.; SERVER, C. The Business English Teacher. Peaslake: Delta Publishing, 2010. BENSON, P. & VOLLER, P. Autonomy and Independence in Language Learning. London: Longman, 1997. DONNA, S. Teach Business English. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. HOLEC, H. Autonomy in Foreign Language Learning. Oxford: OUP, 1981. KELLY, R. Language counseling for learner autonomy: the skilled helper in self-access language learning. In: R. Pemberton et al. (eds.) Taking Control: Autonomy in Language Learning. Hong Kong: Hong Kong University Press, 1996. LITTLE, D. Learner Autonomy. 1: Definitions, Issues and Problems. Dublin: Authentik, 1991. SÁ, E. M. The Global English Corporate Learning Service™ as a tool for developing learner autonomy in Business English language teaching and learning. Comunicação apresentada no INTED 2012 – 6th International Technology, Education and Development Conference. Valencia, Espanha, 2012a. ______. Using technology in the acquisition and development of individual sounds by Brazilian learners of English – the case of the Global English Corporate Learning Service™. Comunicação apresentada no Iº Colóquio Internacional de Formação de professores de línguas estrangeiras: desafios da aprendizagem e do ensino. UFRJ, Rio de Janeiro, 2012b. ______. O professor de inglês para negócios: reflexos de uma identidade em construção.In:BELT – Brazilian English Language Teaching. Porto Alegre: ediPUCRS, 2011a. ______. Inglês para fins específicos: o ensino de inglês para negócios pela perspectiva do professor. Comunicação apresentada no I Simpósio sobre ensino de línguas estrangeiras – línguas estrangeiras e ensino: múltiplos contextos, múltiplos olhares. CEFET/RJ, Rio de Janeiro, 2011b. WENDEN, A. Learner Strategies for Learner Autonomy. London: Prentice Hall International, 1991.

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A INTERDISCIPLINARIDADENAS AULAS DE LITERATURA LATINO-AMERICANA

Fernanda Fernandes da Silva

Introdução

E

ste artigo objetiva trazer, primeiramente, a questão da importância da interdisciplinaridade em sala de aula para uma formação de qualidade dos alunos de E.M. Já no segundo momento, apontaremos como a interdisciplinaridade pode ser abordada nas aulas de literatura latino-americana, especificamente a partir de autores como Pablo Neruda (Chile, 1904-1973) e seus poemas selecionados: González Videlael Traidor de ChilieeHimno y Regreso e Mario Benedetti (Uruguai, 1920-2009)nas obras La Casa y El Ladrillo; Ciudaden que no Existo no Existoe Poemas Comunicantes que serão usados como uma justificativa metodológica, poisambas obrasapresentam um constante diálogo com a história de seus respectivos paísesdurante o século XX. Ao longo desse artigo, mostraremos que a partir da interdisciplinaridade pode-se desenvolver nos alunos do Ensino Básico a capacidade de identificar e de saber relacionara literatura e a história. A partir disso, acreditamos que o trabalho docente pode estimular o discente a construir um conhecimento integrado levando-o a alcançar uma formação de perspectiva mais completa e de qualidade. Tal metodologia de ensino pode ser vista de maneira positiva diante doprocesso de ensino-aprendizagem, pois se converte em uma atitude coerente, engajada e comprometida frente aos fatos da realidade educacional e pedagógica. (FAZENDA, 1993, p.52). As informações contidas nesse artigo são, não somente uma síntese, mas também uma retomada dos seguintes títulos: El Pensamiento y laExpresión Americana (2011); Poesia e Revolução na América Hispânica (2009); A Poesia de Dulce MaríaLoyonaz, AlfonsinaStorni e Magda Portal: o transformar das palavras e a busca da liberdade, do impulso, da explosão poética (2009); Um olhar sobre a obra poética Canto General de Pablo Neruda (2010).

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A importância da interdisciplinaridade Para Erika Zimmermann (2007, p.5) a interdisciplinaridade pode ser considerada uma “integração”, isto é, a fusão de conteúdos de diferentes disciplinas escolares. Porém, não se trata de uma simples tentativa de fundir disciplinas, mas de auxiliar os estudantes a estabelecer ligações de interdependência, de convergência e de complementaridade entre elas. Logo, podemos afirmar que a interdisciplinaridade é o diálogo entre duas disciplinas diferentes que são totalmente independentes e que servem para originar um conhecimento unificado. Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM) é importante que se expresse o compromisso com uma visão integrada do conhecimento, sendo a escola, uma permanente experiência de estabelecer relações entre o aprendido e o observado, construindo pontes entre teoria e prática, Brasil (2002, p. 86 apud ZIMMERMANN, 2007, p. 2).Assim, para Brasil (2002, p.25 apud ZIMMERMMANN, 2007, p.3) a interdisciplinaridadepode ser considerada necessária e importante para o estudo dos fenômenos sociais, econômicos, culturais e científicos atuais, reais e complexos por natureza. Ela emerge da realidade, associada aos problemas cotidianos e atuais, que podem ser de âmbito geral ou fazer parte do universo particular de uma escola, região ou comunidade. Considerando a velocidade e a quantidade de informações que chegam ao cidadão comum, a interdisciplinaridade é um princípio pedagógico importante para a formação dos estudantes. Ela os capacita a construir um conhecimento integrado e a interagir com os demais levando em conta que, em função da complexidade da sociedade atual, as ações humanas repercutem umas em relação às outras. (ZIMMERMANN, 2007, p. 3).

Desta forma, entendemos que nesta pedagogia existe uma real cooperação e troca de informações na sala de aula, aberto ao diálogo e ao planejamento. A fragmentação e a compartimentação das diferentes disciplinas não mais contarão, ou seja, o que será levado em conta é a unificação do conhecimento, segundo Silva e Augusto (2005, p.9). Segundo Erika Zimmermann (2007, p.11) a interdisciplinaridade também favorece as relações professor-professor e professor-aluno. O educador deixa a

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atitude individualista de conduzir o processo de aprendizagem para assumir uma atitude de diálogo, pois assim os colegas tornam-se parceiros em atividades coletivas, compartilhando responsabilidades na tarefa de educar e assumindocompromissos que são do grupo. O mestre torna-se mais aberto e amplia sua concepção deinterdisciplinaridade ao constatar, na prática, que as demais disciplinas não disputam o espaçona cabeça do aluno, mas podem ajudá-lo a compreender e explicar melhor o cotidiano. Portanto, é importante, ainda segundo a estudiosa, que os educadores tenham a responsabilidade de promover um ensinoorganicamente integrado, para que os estudantes adquiram as habilidades de investigar,compreender, comunicar e, principalmente, relacionar o que aprendem a partir do seucontexto social e cultural. Nessa perspectiva, a interdisciplinaridade é, sem dúvida, considerada como um dosprincípios norteadores das atividades pedagógicas do Ensino Básico Nacional. Literatura e o compromisso histórico-social: a interdisciplinaridade na obra poética de Pablo Neruda e Mario Benedetti Pablo Neruda é um autor chileno considerado modernoe em algumas de suas obras é possível trabalhar com a interdisciplinaridade, isto é, como foi dito no tópico anterior por Erika Zimmermann é realizável fazer uma “integração”, ou seja, a fusão de conteúdos de diferentes disciplinas escolares, neste caso entre a literatura e a história com o intuito de auxiliar os estudantes a estabelecer ligações de interdependência, de convergência e de complementaridade entre elas sem perder o foco da aula de literatura. A obra de Pablo Neruda que será trabalhada neste artigo será o Canto General, pois nela, o poetaconseguiu transformar a linguagem referencial para a simbólica em seu fazer poético. OCanto, publicado em 1950, é uma epopéia moderna da América Latina, que se divide em 15 partes. A obra, considerada como uma síntese da história do povo latino-americano éo registro da criação do homem que atravessa a era pré-colombiana, passa pela conquista, pelas lutas de emancipação e chega ao final da primeira metade do século XX, como lembra a pesquisadoraMariluciGuberman (2009, p.87). Segundo Macedo (2010, p.9), a obra poética Canto Generalé composta por diversos poemas e é tida como a mais política de Neruda. O autor através de suas

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poesias marcou profundamente a Modernidade, pois o livro surgiu num contexto histórico (século XX) muito conturbado no Chile, país de origem de Neruda, e nasceu como uma verdadeira arma contra as injustiças sociais e políticas da época. Com esse trabalho o poeta recebeu o prêmio Nobel em 1971 por exaltar a América, suas riquezas naturais, sua beleza, seus povos e suas histórias. O período histórico em que Canto General foi escrito é importante para uma melhor compreensão da obra, visto que é um livro sobre a história da América Latina e sua política e não apenas sobre sentimentos humanos. Canto General é um livro de poesia política. A musa do autor chileno não será mais uma bela mulher por quem ele escreverá versos regulares, contemplativos e apaixonados, tal como fez em seus primeiros escritos. A fonte de toda inspiração desta obra será a América. (MACEDO, 2010, p.12).

É importante salientar que a história da América Latina que será contada em Canto General, Pablo Neruda se propõe a trazer uma nova maneira de enxergar a história do Chile e de seus países vizinhos. O autor tratará de converter a maneira de enxergar a história em um épico, exaltando o povo a uma posição heróica. A obra questiona a História a todo o momento e propõe uma nova interpretação junto a fatos históricos desconhecidos ou negados pela história oficial. Tratando esse tema assim, o autor constrói uma imagem particular de sua nação e das demais nações da América Latina. Vale ressaltar também que na composição de Canto General, o poeta ao estabelecer uma relação próxima com a história (entenda-se aqui história como a ciência que estuda os fatos passados e suas relações com o presente), mostra assim outra face de sua multiplicidade artística. A história, segundo Macedo (2010, p.16) será transformada em matéria poética. Ora, usar a história é bastante diferente de usar invenções poéticas, uma vez que a história é um bem público, um produto coletivo cultural. A interpretação da história que há, é por certo, repleta de defeitos e observações partidárias, Neruda (re) conta esta história (oficial) a partir de uma visão político-artística, isto é, o autor faz uma transformaçãoda linguagem referencial para a simbólica. Podemos notar que os poemas a seguir fazem um diálogo com a História, porém vale lembrar que a interpretação histórica feita por Neruda não faz referência direta e exata da realidade histórica daquele momento, já que a visão do poeta não é somente política, mas também artística. 557

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No poema Canto General especificamente a parte dedicada a Videla é possívelestabelecer aquelas relações interdisciplinares. Segundo Macedo (2010, p.15), no fragmento devotado a Videla, “González Videlael traidor de Chile”, o presidente é fortemente acusado. Neruda, nessa parte, mostratoda sua indignação e não lhe faltou inspiração para escrever este extenso poema a Videla. Ele se expressa de modo cruel ao referir-se a esta e outras personalidades políticas, chocando assim muitos leitores. González Videla: el traidor de Chile (epílogo) – 1949 Si las antiguas cordilleras salieron los verdugos, Como huesos, como espinas americanas en el hirsuto lomo De una genealogía de catástrofes: establecidos fueron, Enquistados en la miseria de nuestras poblaciones. […] Gabriel González Videla.Aquí dejo su nombre, Para que cuando el tiempo haya borrado La ignominia, cuando mi patria limpie Su rostro iluminado por el trigo y la nieve, Más tarde, los que aquí busquen la herencia Que en estas líneas dejo como una brasa verde Hallen también el nombre del traidor que trajera La copa de agonía que rechazó mi pueblo. Nesse fragmento, o poeta denuncia a catástrofe infiltrada napopulação chilena: “De una genealogía de catástrofes: establecidos fueron,/ Enquistados en la miseria de nuestras poblaciones”. Neruda marca o nome de Videla, para que a população quando estivesse livre de toda a ditadura encontrasse em algum lugar o nome do traidor que rejeitou o seu povo: “Gabriel González Videla. Aquí dejo su nombre,/ Para que cuando el tiempo haya borrado[…]/ Hallen también el nombre del traidor que trajera/ La copa de agonía que rechazó mi pueblo.”Macedo (2010, p.15) afirma que é através do uso de substantivos como “verdugos”, “ ossos” e “espinhos” que Pablo Neruda se refere amargamente a Videla ao criar um ambiente hostil para falar do inimigo político e deixa claro o seu nome para que não haja outra interpretação. Podemos notar que o autor consegue transitar entre os fatos que ocorreram em seu país sem perder o foco poético.

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Já opoema “Himno y Regreso” (1939), que faz parte do capítulo chamado Canto General del Chileestá situado no momento em que Neruda retorna ao Chile depois de estabelecer relações políticas em favor dos refugiados da Guerra Civil Espanhola. Patria, mi pátria, vuelvohacia ti la sangre. Pero te pido, como a la madre elniño Lleno de llanto. Acoge esta guitarra ciega y esta frente perdida. Salí a encontrarte hijos por la tierra, Salía cuidar caídos con tu nombre de nieve, Salí a hacer una casa con tu madera pura, Salí a llevar tu estrella a los héroes heridos. Neruda se dirige a sua pátria dizendo que volta à sua terra natal com plenitude, com entrega. A figura do sangue utilizada representa justamente a vida, maximizando o conceito de completude. A relação apresentada nos versos, mãe-filho, trata da comodidade e conforto, pois, o chileno verdadeiramente conheceu outras nações, entretanto, para ele, nenhum lugar é como Chile. Ele clama ao Chile, pede que abrigue seu “rosto perdido”, parte do que mais caracteriza e que representa a individualidade. O poeta se vê sem um referencial, já passou por um longo tempo longe de sua pátria-mãe. Representado pela metáfora da figura pátria-mãe, constantemente presente em Canto General, o Chile aparece portanto, como a grande mãe e os chilenos são os seus preciosos filhos. “Ahora quiero dormir en tu substancia/ Dame tu clara noche de penetrantes cuerdas/ Tu noche de navío, tu estatura estrellada”. A necessidade de dormir outra vez no seio da sua nação desesperadamente é expressa através desses versos. O amor ao Chile, neste capítulo, é o tema central. Segundo Macedo (2010, p.31), a obra também trata de exaltara nação. Concluimos, portanto, que nas obras do autor Pablo Neruda, principalmente os poemas abordados nesse artigo, é possível trabalhar com a interdisciplinaridade. Notemos que Neruda consegue fazer um diálogo entre literatura e história integrando estética literária a fatos históricos. Também nas obras Montevideanos , La Casa y elLadrillo, Ciudad que no existo e “Poemas Comunivantes’’do autor Mario Benedetti, podemos estabelecer uma

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possível associação aos problemas cotidianos do Uruguai, isto é, as obras de Benedetti dialogam com a História de seu país de origem, o Uruguai. Assim como Pablo Neruda, Mario Benedetti, abordará a história de uma forma artístico-literária, de forma que podemos estabelecer vínculos entre sua “voz poética” e a realidade histórica do Uruguai da segunda metade do século XX. Mario Benedetti nasceu em Passo del Toro, no Uruguai, jornalista de formação, Benedetti participou do periódico Marcha.Mariopublicou artigos e ensaios, nos quais permeava uma dura crítica à situação histórica-social de seu país. Segundo o pesquisador Gabriel Poyes (2009, p.234) o autor uruguaio se dedicou à produção das mais diversas manifestações literárias, o que faz de sua obra um amplíssimo campo de estudo e sobre a qual começou seu trabalho de investigação a partir de um dos primeiros livros de contos de Benedetti: Montevideanos (1959). Para Poeys (2009, p.230), Benedetti na obra Montevideanos levará a carga histórica para seu conto combinando o labor literário à história do Uruguai. A modernidade uruguaia é o âmago da discussão que pretende elucidar a onda moderna que atingiu Montevidéu, no período das décadas de 1950 e 1960. Benedetti em Montevideanos perpassa esse período de declínio da áurea econômica uruguaia do início do século XX. Seus personagens atravessam uma época de transição, em que o capital que uma vez enriquecera a nação agora se concentrava numa minoria, que testemunha o surgimento de uma nova classe social: o escriturário. Os funcionários públicos que trabalham nas muitas repartições existentes no país representam metonicamente os cidadãos da República Oriental do Uruguai, que Benedetti afirmou em varias entrevistas ser a primeira repartição pública a torna-se independente, tamanha era a quantidade desses empregados. (POEYS, 2011, p. 230).

No conto Montevideanos, Benedetti descreve o lugar comum do típico uruguaio de classe média que vive em um país que passa por um período em que o hiato econômico diminui a diferença entre classes. Segundo Poeys (2011, p.231) ele ressalta o típico funcionário público e afirma que a partir dele surge uma nova classe média que se encontra inserida em um contexto altamente complexo e burocrático, que alimentará o consumo e ditará o ritmo do crescimento uruguaio.

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Segundo Guberman(2009, p.113),“a poesia de Mario Benedetti está marcada pelo exílio e pelo olhar de fora do poeta sobre a cidade de Montevidéu, composições poéticas que descrevem, simultaneamente, a cidade tranqüila e a cidade dizimada pela ditadura dos anos 70 e 80.” Logo, uma vez mais, podemos perceber que o autor faz uma interpretação da históriade seu país sem abrir mão de seu labor poético. Ainda segundo a estudiosa (GUBERMAN, 2009, p.114), o poema “La Casa y elLadrillo”, escrito na época do regime autoritário que predominava no Uruguai, tem o mesmo nome do livro que foi escrito entre 1976 e 1977.Em tal poema, Benedetti, tem o propósito de revelar ao mundo como era sua cidade, isto é, sua casa, e aborda sua saída para o exílio e para a incerteza do que lhe reservariam as cidades: […] cómo saber que las ciudades reservaban Una cuota de su amor más austero Para los que llegábamos Con el odio pisándonos la huella Cómo saber que nos harían sitio Entre sus escaseces más henchidas Y sin averiguarnos los fervores Ni mucho menos el grupo sanguíneo” Nesses versos, Benedetti fala da sua saída para o exílio e discorre sobre as angústias de se chegar em outras cidades impregnado pelo ódio que sentia ao ter que sair escondido da sua cidade de origem: “cómo saber que lasciudadesreservaban/ Para los que llegábamos/ Conelodiopisándonoslahuella” .O autor demonstra também que não sabia se as pessoas dessas cidades o dariam “abrigo”sem o identificar: “Cómo saber que nos harían sitio/ Y sinaveriguarnoslos fervores/ Nimucho menos el grupo sanguíneo” Assim, Benedetti, nesse fragmento, demonstra toda sua incerteza de não saber o que essas cidades reservavam para ele. Já na primeira estrofe do poema “La casa y elladrillo” nos versos “cuando me confiscaronlapalabra/y me quitaron hasta elhorizinte[…]”, notamosum sujeito poético durante a ditadura que o calou, arrancando-lhe sua liberdade de expressão.Essa repressão ditatorial dos anos 70 devastou não somente o Uruguai, mas também diversos países da América Latina. A voz coletiva foi silenciada, ou seja, a liberdade de expressão da população passou a não existir. 561

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Ainda de acordo comGuberman (2009, p.115),no poema “Ciudaden que no Existo’’ do livro La Casa y elLadrillo, o autor uruguaio divide a cidade entre o antes e o durante do regime autoritário: […] antes ahora antes ahora antes Cumplo con la absurda ceremonia De escindir mi ciudad en dos mitades En un rostro ritual y otro crispado En dos rumbos contrarios en dos tiempos. Na primeira estrofe desse mesmo poema, a voz do sujeito-lírico é a também voz de um povo que recorda com tons melancólicos e nostálgicos a cidade de Montevidéu antes do período ditatorial. Creo que mi ciudad ya no tiene Consuelo Entre otras cosas porque me ha perdido O acaso sea pretexto de enamorado Que amaneciendo lejos imagina Sus árboles y sus calles blancas […] A partir da estrofe dezessete, Benedetti muda o tempo da exposição do sujeito poético e, a partir dessa mudança, expõe o nome das vítimas e do líder do movimento revolucionário a fim da defesa dos direitos humanos. […] todo eso era antes porque ahora La calle es líber y es ibero Es hugo y heber y Susana Los ocho obreros Del paso molino Y nuestras marchas a los cementerios La calle es la sirena horripilante De un presidente que respira blindado Es una fila de hombres contra el muro

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La sangre de Sendic en las paredes gente que corre huyendo de la gente […] Neruda e Benedetti: as vozes comunicantes e conversacionais Os poemas comunicantes surgiram devido ao novo ambiente moderno marcado pelas rápidas e violentas transformações. A linguagem do jornalista, do propagandista e do político, já não eram suficiente para possibilitar uma visão da realidade à população, isto é, para comunicar. Essa tarefa exigiu a intervenção do artista, do poeta, do escritor. Com isso tornou-se necessária a representação da realidade que, constitui a natureza da arte, afirma Fischer (1969, p.87 apud ZOLETTI, 2009, p.119). Logo para Zoletti (2009, p.119), a função “comunicante” da arte tornou-se essencial, pois ajuda a população a entrar em contato com a realidade, assim, podendo transformá-la de acordo com o ponto de vista de cada um. Assim sendo, neste artigo, a abordagem didático-metodológica realizadaa partir desses poemas comunicantes tem o propósito de justificar que, na obra de Benedetti e também em Neruda, não somente a prosa apresenta a função de comunicar. A poesia também pode apresentar essa intenção, principalmente quando se trata da poesia latino-americana do século XX. Desta manerira, a linguagem utilizada como instrumento de execução da arte, desempenharia as funções de revelar a realidade, aderir a realidade e a de agir sobre ela, segundo Carnero (1989, p.256 apud ZOLETTI, 2009, p. 119). Tratava-se, portanto, de um momento em que as artes em geral apresentavam em sua essênciaum compromisso social que "exige que o artista abandone a subjetividade individualista para se ocupar de assuntos de dimensão coletiva" conforme afirmava Carnero (1989, p.258 apud ZOLETTI, 2009, p. 119). Segundo Zoletti (2009, p.119), Benedetti em seu artigo“La Realidad y lapalavra” (2000), trata da função comunicante do poema quando aborda o termo "poesia conversacional". Mario Benedetti ao questionar "e os poetas? Que fazem com a realidade?" Benedetti (2000, p.75 apud ZOLETTI, 2009, p.120), protesta contra a idéia de que o real esteja presente somente na prosa. Para ele, a realidade também se faz presente na poesia: […] a realidade parece ser o componente textual da poesia, e as palavras, meras replicas linguísticas dos fatos e coisas. A

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares realidade se converte em poesia segundo a interiorização do poeta, que sempre éresponsável pela eleição fragmentaria dos dados reais e da montagem final […] na poesia cabe tudo; 'em um poema cabem dados estatísticos, fragmentos de cartas editoriais de um jornal, piadas […] coisas que antes eram consideradas elementos próprios da prosa e não da poesia. (BENEDETTI, 2000, p. 77)(Tradução nossa).

Entendemos, a partir desse fragmento, a afirmação do autor de que o real também pode estar na poesia, pois para Benedetti a realidade pode se converter em poesia, pois nela cabede tudo, desde dados estatísticos a piadas. Segundo Zoletti (2009, p.120), o escritor e também ensaísta uruguaio confirma que esse fenômeno integrador entre prosa e poesia é chamado de "poesia conversacional". Para Benedetti essa poesia conversacional construiu uma ponte entre autor e leitor, isto é, o leitor pode responder os “chamados’’ do autor. É na poesia latino-americana que a realidade está melhor ligada a palavra cumprindo, portanto, aquela função comunicante, esclarecedora. Por fim, ainda segundo Zoletti (2009, p.120), a poesia conversacional surge a partir da união entre a realidade e a palavra/linguagem e que, estas formarão a poesia comunicante: esclarecedora e dotada de realidade, já que um texto origina-se tanto através das tensões internas do autor quanto através das tensões da realidade. Conclusão Ao tratar, portanto,da questão da importância da interdisciplinaridade nas aulas de literatura latino-americana a partir dos poemas selecionados:González VidelaeHimno al Regreso de Pablo Neruda;La Casa y elLadrillo,Ciudad que no Existo e Poemas Comunicantes,usado como justificativa de que as obrasde Mario Benedetti também informam, ambos poetas em suas obras transformam a história de seus respectivos países em matéria artística, isto é, eles dão um olhar artístico-literário para a realidade que vai se delineando ao longo do período moderno na América Latina. As obras de Mario Benedetti (e também as de Pablo Neruda) abordadas nesse artigo, também são possíveis provedoras de relações de interdisciplinaridade. Benedetti, em suas obras, sejam elas poemas ou contos, abre caminhos, tal como o 564

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faz Neruda, para se conhecer algo da história do Uruguai. Além do mais, o autor, ao produzir suas escrituras, realiza uma interpretação da história sem desconsiderar seu ofício artístico. Cabe ao professor, portanto, lançar mão desses “artefatos” literários/históricos ao trabalhar a interdisciplinaridade em sala de aula. Tal metodologia, de fato, levará o estudante do Ensino Básico a adquirir habilidades de investigar, compreender, comunicar e relacionar o que aprendem a partir de um contexto social e cultural. O processo de ensino-aprendizagem, portanto, passa a se definir comouma atitude coerente, engajada e comprometida frente aos fatos da realidade educacional e pedagógica.

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REFERÊNCIAS

GUBERMAN, Mariluci. El Pensamiento y la Expresión Americana. Rio de Janeiro: Laboratório Interdisciplinar Latino-Americano, 2011. ______. Poesia e Revolução na América Hispânica. Rio de Janeiro: Laboratório Interdisciplinar Latino-Americano, 2011. MACEDO, Anderson Lucas da Silva. Um Olhar Sobre A Obra Poética Canto General De Pablo Neruda. Maricá: USS, 2010. 38 p. Monografia. Curso de Letras, Universidade Severino Sombra, Maricá, 2009. POEYS, Gabriel Macedo. “A modernidade Latino-americana em Mario Benedetti” El pensamiento y la expresión americana. Rio de Janeiro, UFRJ, 2011. Pp. 229-238. SILVA, Ítalo Batista; TAVARES, Otávio Augusto de Oliveira. Uma pedagogia multidisciplinar, interdisciplinar ou transdisciplinar para o ensino/aprendizagem da física.Rio Grande do Sul: CEFET, 2005. ZIMMERMANN, Erika. A Reaproximação das Culturas. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Brasília, v. 7, n. 2, p. 16. 2007. ZOLETTI, Debora Ribeiro Lopes. A Poesia de Dulce María Loyonaz, AlfonsinaStorni e Magda Portal: o transformar das palavras e a busca da liberdade, do impulso, da explosão poética. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. 160 p. Tese (Doutorado). Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

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METODOLOGIAS LÚDICAS DE ENSINO: REPENSANDO O ENSINO DE ITALIANO COMO LE

Jefferson Evaristo do Nascimento Silva

N

ão é nenhuma surpresa ou novidade afirmar que as metodologias de ensino de Língua Estrangeira (LE) sofreram uma profunda mudança nas últimas décadas, conferindo ao processo de ensino-aprendizagem uma nova “roupagem”, dando-lhe novas características. Vivemos o período da predominância do Ensino Comunicativo de Línguas Estrangeiras (ECLE), método de ensino que estabelece como meta o ensino da competência comunicativa (RICHARDS, 2006, p.3).Neste sentido, podemos afirmar que estas novas metodologias podem, segundo o modelo de Krashen, serem consideradas como facilitadores do aprendimento de uma LE (Krashen, 1981), conferindo ao processo um caráter mais lúdico, ativo e interativo. Com este trabalho, pretendemos iniciar uma reflexão sobre o ensino em si, seguindo a uma análise sobre algumas atividades utilizadas em sala de aula que podem potencializar o nível de aprendizado sem fazer com que este seja cansativo ou entediante mas atrativo e motivador. Repensando o ensino Quando se começa a planejar um curso (considerando, é claro, que este é planejado), é um erro comum pensar apenas nos conteúdos a serem adquiridos. Planejar um curso passa a ser um “vou ensinar isso”, “vou ensinar aquilo”, sem muita preocupação com a forma como este conteúdo vai ser veiculado, com a metodologia empregada ou com as ferramentas que vão possibilitar que de fato o conteúdo sja aprendido. Quando isto é feito, ainda assim falta uma reflexão mais aprofundada sobre o que queremos fazer quando ensinamos. Ou, vendo por outro ângulo, o que ensinamos quando ensinamos? Uma das características da ECLE é a desconstrução da figura do professor como o “detentor de conhecimento”, aquele que sabe tudo sobre a disciplina e

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tem a função de passar para os alunos, que são meros “receptores”. Esta imagem é substituída pela de uma comunidade de interação, em que todos tem direito ao domínio da língua e o exercitam dentro deste grupo, em que os próprios alunos passam a ser também veiculadores da língua. Neste cenário, ao passo em que um aluno assume a função de “aluno”, involuntariamente assume também a de “veiculador” da língua. Este passa a ter um papel mais ativo no seu aprendizado, ajudando e direcionando o seu processo. Entendido o papel do aluno como construtor de sua própria língua, como agente ativo de seu aprendizado, chegamos ao ponto em que este passa a ter uma certa autonomia sobre aquilo que aprende, podendo assumir funções mais efetivas. Sobre isto, Bellanova nos afirma: O ensino através do “fazer lição” tem sentido e tem uma efetiva capacidade de formação na medida em que motiva, suscita e estimula o crescimento das capacidades de construçãocriação autônomas de cada aluno. O “fazer lição” assim entendido não é finalizado a conhecer-memorizar-repetir, mas ao saber conhecer-compreender-aplicar, porque somente esta metodologia promove a efetiva formação do aluno, tornando-o capaz gradualmente de aprender e fazer por si só.” (BELLANOVA, 1994, p. 33).

Aqui, é importante fazer a observação de que o que o autor entende por fazer lição (far lezione) ser diferente do conhecido Ensino por Tarefas. Para maiores referências sobre este método, aconselhamos uma leitura atenta de Richards e Rodgers (2003), em especial ao capítulo18. Neste trecho, Bellanova nos traz uma resposta imediata à iniciativa de colocar o aluno em uma posição central no seu ensino: o aumento da motivação por aprender, um estímulo e interesse maior pelo processo e a aquisição de uma autonomia que podem ser fundamentais no sucesso do curso. Numa segunda leitura, o autor nos aponta uma das diretrizes que em geral compoem todos os métodos comunicativos – o uso da língua como meio de atingir a Competência Comunicativa, como subsídio para a comunicação em situações reais de fala, com contextos variados e uso de formas adaptadas (linguagem formal e informal, por exemplo). Sabendo como utilizar a língua e não apenas a memorizando, os alunos podem efetivamente obter um nível de conhecimento linguístico que lhes permita atingir a tão sonhada Competência Comunicativa.

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Além disso, a interação que estas atividades favorecem permitem uma maior intensidade de uso da língua, a necessidade de se utilizá-la na prática e não apenas em diálogos pré-estruturados e fixos, a cooperação entre os alunos, que se ajudam e evoluem juntos, a segurança para arriscar e a sensação de serem importantes no seu processo de aprendizado são outras características que se agregam ao que já foi dito. Vejamos agora algumas atividades mais detalhadamente. A música como ferramenta didática Muito já foi dito acerca do uso da música no ensino de línguas. Diversos trabalhos associando estes dois elementos já foram escritos, o que nos permite conhecer uma vasta literatura já escrita sobre o tema e partir do que já foi dito e experimentado para buscar novas formas e usos para ela. Jaci Fernandes, professora da UFRJ, é um bom exemplo de literatura sobre o tema. Em um de seus diversos artigos, a autora afirma: A vantagem talvez mais evidente da eficácia da utilização dos textos de canções no aprendizado de línguas em geral, aqui neste estudo a Língua Italiana, é a facilidade para se abordar e transitar pela gramática, que, na maioria das vezes, o aluno rejeita porque lhe é, muitas vezes, apresentada de forma maçante. (FERNANDES, 2010).

Isto vai totalmente de encontro ao que afirmamos anteriormente sobre uma necessidade de modificar o antigo ensino de línguas e adaptá-lo ao contexto do ECLE. Uma das críticas que se faz aos métodos de ensino de línguas anteriores era o fato de eles serem pouco atrativos, repetitivos e descontextualizados. Procuramos então nos afastar deste rótulos – o que, por fim, nos aproxima de outros. Uma constante crítica que se faz quando falamos de didática lúdica ou atividades para o ensino é a de um afastamento do que se deve ensinar de fato, uma sub-colocação da gramática e de suas formas estruturais em favorecimento de uma diversão despropositada. A realidade, no entanto, é substancialmente diferente, uma vez que estas ferramentas são as próprias formas com as quais serão veiculados os conteúdos gramaticais. Não se trata de fazer com que a música se adapte ao que o professor quer, usando o “texto como pretexto”, mas de saber 569

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trabalhar com esta ferramenta e se utilizar dela de maneira eficaz, proveitosa, sem fazer, contudo, que ela seja um norteador de seu trabalho. A música não precisa trabalhar a favor do professor, mas o professor precisa saber trabalhar com ela. Um outro fato é que através desta ferramenta podem ser trabalhados outros pontos importantes para o ensino que não apenas os gramaticais, mas aqueles relativos à pronúncia, entonação e outros. Torresan (2000) cita: Chi ascolta un brano audioregistrato è in grado di percepire le componenti paralinguístiche della comunicazione (pronuncia, intonazione, timbro, velocità di eloquio) e di penetrare meglio le intenzioni psicologiche degli interlocutori. Quem escuta um trecho gravado è capaz de perceber os componentes paralinguisticos da comunicação (pronuncia, entonação, timbre, velocidade de eloquência) e de penetrar melhor nas intenções psicológicas dos interlocutores. (TORRESAN, 2000).

Ou seja, para além dos aspectos gramaticais, diversos outros aspectos podem ser facilmente trabalhados sem que percamos o foco do que é principal: o ensino da língua e a capacidade de comunicação efetiva. Paolo E. Balboni, um dos mais importantes autores italianos, que trabalha com diversas áreas da linguística, Literatura e do ensino de línguas a estrangeiros, reconhece o uso da música (ou, como diz, textos musicados) como uma eficaz ferramenta didática na introdução de aspectos literários, históricos e sociais, mostrando a importância da música não só para as aulas de “língua”, mas também de literatura, história ou outra disciplina qualquer. Balboni afirma: La canzone rappresenta una delle più diffuse forme di letteratura con cui i giovani sono a contatto – in molti casi, oltretutto, si tratta di poesia di notevole qualità letteraria: dunque, l’uso delle canzoni è pertinente anche ai fini di introduzione allo studio della specificità del testo poetico sia in italiano sia nelle lingue straniere. (BALBONI, 1994, p. 137).

A canção representa uma das mais difusas formas de literatura com que os jovens tem contato – em muitos casos, além disso, se trata de poesia de notável qualidade literária: Assim, o uso de canções é pertinente também aos fins de

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introdução ao estudo da especificidade do texto poético, seja em italiano ou nas línguas estrangeiras. Ainda assim, cabe uma ressalva quanto à utilização desta ferramenta. Para muitos professores ainda parece ser uma linha tênue aquela que divide o uso da música de forma proveitosa para o ensino do uso mecanizado, ineficiente e sem significado. Realmente, é algo preocupante, uma vez que, na linguagem popular, “o tiro pode sair pela culatra”. É preciso uma escolha cuidadosa, uma proposta metodológica clara e um objetivo a ser alcançado, seja a exposição de algum ponto gramatical, literário, histórico ou etc. A título de demonstração, seguiremos com uma dentre as possíveis propostas de uso. Exemplificando usos Para este exemplo, usaremos uma canção chamada “L’inquietudine” (A inquietação), de Nek, em que abordaremos o ensino de artigos definidos. Em língua italiana, são oito os possíveis artigos (singulares e plurais, masculinos e femininos), com incidência de seis nesta canção. L'inquietudine Quando il buio scende io mi siedo qui Libero la mente che va via e così Guardo l'universo sento il suo fruscio Sembra un manifesto dove sono anch'io Si distende su me una calma che va Oltre le cose oltre le attese Oltre me oltre noi Le mie difese Oltre le cose le mani chiuse Su di me quando c'è L'inquietudine È notte quando il vento muove la foschia Seguo i lineamenti della vita mia Il silenzio dentro non spaventa più Ai suoi rami appendo la malinconia Si distende su me questa calma che va Oltre le cose oltre le attese

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Oltre me oltre noi Le mie difese Oltre le cose le mani arrese Oltre me quando c'è L'inquietudine L'alba mi dipinge dice ancora si E le mie speranze le ritrovo qui Oltre le cose le lunghe attese Oltre me oltre noi Oltre l'immenso E quando ti penso in te mi anniento Sento che spazzi via L'inquietudine (4x) Escolhida a música e definido o objetivo a se atingir (o ensino de artigos), é hora de começar. Uma opção é começar ouvindo a música, sem que os alunos tenham a letra. Pode-se começar já uma discussão abstrata, sobre o que lhes parece serem os artigos, numa tentativa de identificação. Em seguida, já com a letra, passar a uma nova exposição dela, retomando a discussão sobre os artigos, fazendo com que os alunos possam refletir criticamente sobre a língua e formularem hipóteses. Tudo antes mesmo de que sejam oferecidas as explicações gramaticais, levando o aluno a dedutivamente aprender a língua. Não há necessidade de lembrar, é claro, que as deduções equivocadas precisam ser reordenadas e reformuladas pelo professor, sem que este imponha o conteúdo mas faça com que o aluno repense e chegue sozinho ao que se pretende. Outra opção é ouvir a música com uma letra “parcial”, em que sejam omitidos os artigos, para estimular a compreensão auditiva e a transcrição de fala. É possível ouvir a música diversas vezes, tantas quanto forem necessárias para que os alunos a compreendam. Neste cenário, os alunos deveriam completar a música com o que lhe falta para só então terem uma explicação mais formal sobre o assunto. Um outro possível cenário, mais voltado para aulas específicas de conversação, é o de criar situações de discussão sobre o que a música trata, como por exemplo iniciar uma discussão sobre o que o autor quer dizer com ela, formular o que o levou a escrever, quem é um possível interlocutor, quais seus sentimentos, sobre o que se fala e etc. Muitas são as hipóteses de uso.

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Como demonstrado, em uma única canção se exemplificam rapidamente três formas de uso completamente diversas entre si. Outras tantas poderiam ser formuladas com esta canção ou com outra, redimensionando seu escopo. Assim, pode-se arriscar dizer que as possibilidades de uso da música como ferramenta de ensino são praticamente infinitas, adaptáveis a quase qualquer contexto de uso. Conclusão Pretendemos com este pequeno artigo demonstrar a importância da utilização de diferentes ferramentas para a potencialização do ensino de línguas. Longe de representarem um “passatempo” ou uma distração apenas, elas podem se configurar como valiosas ferramentas didáticas, capazes de tornar as aulas mais atrativas e motivantes. O fato é que o limite de uso desta ferramenta são os próprios limites de criatividade do professor, são suas próprias limitações inventivas. Adaptando-se aos contextos, poderíamos dizer que as possibilidades de seu uso são praticamente infinitas, uma vez que as necessidades, demandas e objetivos são em número tão variado quanto o próprio número de turmas, alunos e professores: cada um destes pode (na verdade, deve) demandar um uso específico, uma forma própria de utilização que atenda àquilo que se deseja. Sabendo utilizá-la, estimulando a interação e motivação dos alunos, dando-lhes a capacidade de serem ativos em seu aprendizado e direcionando seu uso, o resultado não pode ser outro que não aquele de um rápido e eficiente desenvolvimento e aprendizado de uma segunda língua.

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REFERÊNCIAS

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O GÊNERO FICCIONAL E AS AULAS DE ESPAHOL E/LE

Jéssica Balbino da Silva

Introdução

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e acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), e com a Multieducação – documentos institucionais que orientam os professores do Município do Rio de Janeiro – o trabalho com línguas estrangeiras nas escolas públicas deve estar sempre baseado na leitura. De acordo com aqueles documentos, é fundamental que se estabeleça uma relação produtiva entre o ensino de LE e a função social que o seu conhecimento exerce na sociedade e “tal função está, principalmente, relacionada ao uso que se faz da língua estrangeira via leitura, embora se possa também considerar outras habilidades comunicativas […]” (Secretaria de Educação Fundamental, 1998, p. 9). Da mesma forma, para a Multieducação, “o ensino de línguas estrangeiras deve buscar a superação da leitura incidental e da linguagem informal que nossos alunos fazem cotidianamente, dando maior ênfase ao trabalho com o texto escrito” (Secretaria Municipal de Educação, 1996, p. 163-164). Segundo Rio e Leite (2011): […]foi pensando na função social da Língua Estrangeira (LE) na sociedade brasileira, nas condições de aprendizagem existentes e nas necessidades mais urgentes, que foram estabelecidos pelos PCN alguns objetivos para o ensino de LE, entre os quais, o de valorizar a leitura no processo de formação do indivíduo. Além disso, os PCN’s também propõem que sejam utilizados diferentes tipos1 de texto, como textos de humor (histórias em quadrinhos, anedotas), textos jornalísticos

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Aqui os autores consideram gênero textual (na concepção de Marcuschi) como “tipos” de texto.

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares (notícias, entrevistas, classificados, reportagens), textos publicitários, textos literários (contos, fábulas, poemas). Sendo este último objeto de análise deste trabalho, entre outros.

A presença da literatura e dos textos literários nas aulas de língua estrangeira passou, no decorrer da história da metodologia do ensino, por momentos de glória e de grandes crises. Nos anos cinquenta e sessenta predominou o ensino de línguas baseado no enfoque gramatica-tradução. A língua estrangeira, segundo Silva Junior (2009, p. 63), eraentão aprendida através da tradução de fragmentos ou de pequenas obras literárias, com a memorização de regras gramaticais, predominando as destrezas escritas diante das orais. De acordo com o pesquisador, com o passar do tempo, a partir da evolução das ciências linguísticas e da chegada e de introdução de programas estruturalistas, eliminou-se a presença da literatura do ensino de línguas. Nesse momento, acreditava-se que a literatura era ultrapassada e indevida para levar o aluno a aprender a comunicar-se numa língua estrangeira (LE), porque apresentava usos do sistema da língua bastante diferentes das necessidades comunicativas dos aprendizes e dos objetivos didáticos planificados. Nos anos oitenta, a literatura voltou a ser introduzida nos currículos através do enfoque comunicativo e das teorias de recepção do texto, pois a literatura é um componente a mais da competência cultural integrada no amplo conceito de competência comunicativa (SILVA JUNIOR, 2009, p. 63). Ainda segundo o autor, […] a questão é que muitas das vezes, quando se pensa em levar a literatura para sala de aula, alguns professores acabam associando-a aos clássicos ou, ainda, segundo análises dos currículos já desatualizados de suas universidades o que acaba provocando um rechaço no trabalho com a mesma, pois o grau de complexidade da língua, o objetivo estético com que são criadas as obras, e algumas vezes, a temática, nem sempre estabelecem contato com os conteúdos curriculares que trabalhamos normalmente em sala, nem são nada motivadores para os estudantes ou não coincidem com suas expectativas ou, ainda, com suas necessidades de aprendizagem. (SILVA JUNIOR, 2009, p. 63-64).

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Os professores acabam selecionando obras clássicas que não são “atraentes” para determinada turma, gerando certa recusa por parte dos alunos. Isto não quer dizer que os clássicos estejam desatualizados ou que não devam ser trabalhados, mas sim quetodo e qualquer texto selecionado deve ser, de alguma maneira, associadoà realidade cultural do estudante gerando, portando, uma receptividade maior por parte dos discentes. Apesar do valor e o papel que a literatura, hoje ameaçada (TODOROV, 2009), vem (re)assumindo nas aulas de E/LE, é possível perceber que o texto literário ainda vem sendo utilizado de maneira muito limitada, apenas como um pretexto para o desenvolvimento de atividades gramaticais ou como tema de conversação e de produção de escrita (SILVA JUNIOR, 2009, p. 64), sem nenhum tipo de vinculação positiva ao acesso ao conhecimento global, à cultura e à cidadania dos alunos. Os motivos que levaram para a realização deste trabalho foram as realidades de sala de aula tanto por parte dos professores que não lograram despertar nos alunos o espírito crítico para atuar na sociedade contemporânea (COSTA, 2008), como por parte dos alunos que não se sentem motivados a aprender uma nova língua e nem percebem a literatura como uma forma mais atrativa de aprendizado. Atualmente este tema é profundamente abordado por estudiosos da área, pois os textos literários precisam estar presentes em sala como material didático, “devido as suas características de gênero discursivo – informativo e cultural – e, além disso, como fonte ‘autêntica’ de estudos de mecanismos linguísticos que articulam uma língua” (SILVA JUNIOR, 2009, p. 64), mantendo viva a cultura e a história de outros povos e nações. Sendo assim, podemos afirmar, ainda de acordo com o autor, que esse tipo de gênero, mesmo que possua um caráter ficcional, possui inferências, tanto informativas como culturais, que podem ser levadas para sala de aula e trabalhadas com os alunos de uma forma mais lúdica e construtiva. Diante do panorama excludente da literatura nas aulas de E/LE, o professor deve estar atento ao uso dela como uma ferramenta metodológica representativa no processo de ensino-aprendizagem.O professor pode utilizar diversos documentos linguísticos e sinalizar, a partir deles, a riqueza e os aspectos estéticos presentes em textos de outras culturas, pois esse contato facilita a aprendizagem e contribui para a formação de uma visão critica por parte dos alunos (BRITO, 2008, p.182). Brito (2008, p.185) ainda afirma que “é necessário existir a reflexão profunda e os questionamentos por parte do professor. Ele deve ser, antes de tudo, crítico tanto em relação ao texto quanto ao seu trabalho. Cada texto se constrói pelas 577

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múltiplas leituras do autor e do leitor. Dessa interação é que resulta um aprendiz pensante e crítico.” Proposta para utilizar “donquijote” no ensino de E/LE A obra literária não é um meio de comunicar experiências particulares do autor e sim, um meio no qual ele executa tais experiências. O ponto em que se encontrou mais vividamente com o espírito hispânico foi quando Cervantes começou a escrever Don Quixote, em que acabou tendo uma experiência viva do que é a alma latino-americana em seus aspectos: o quixotesco e sanchopancesca. Estes estilos literários foram escritos durante o século XVI, e pode ser que uma das intenções do autor ao escrever esta obra seria mostrar aos leitores da época aspectos dos romances de cavalaria. De fato, Don Quixote oferece uma paródia das formações silvestres dessas obras, mas significa muito mais do que um discurso inflamado contra os livros de cavalaria. Devido à riqueza e complexidade do seu conteúdo e sua estrutura e técnica narrativa, o maior romance de todos os tempos suporta muitos níveis de leitura e interpretações tão diversas como uma obra de humor, considerando uma paródia do idealismo humano, uma destilação de amarga ironia, um hino à liberdade e muitos mais. Os livro de cavalaria, assim como Don Quixote, possuem como temas: aventuras fantásticas de um cavaleiro; lugares exoticos, amor idealizado de uma dama; riqueza argumental. E o estilo é sempre rebuscado e arcaizante. Don Quixote, que vive obcecado pelos livros de cavalaria, é lançado na aventura o que indica que desejava modificar sua vida, torná-la mais emocionante. O personagem oscila entre a sanidade e a loucura, o que é possível perceber no trecho abaixo: AVENTURA DE LOS MOLINOS - Don Quijote de La Mancha CAPÍTULO VIII Buen suceso que el valeroso Don Quijote tuvo en la espantable y jamás imaginada aventura de los molinos de viento, con otros sucesos dignos de felice recordación. En esto, descubrieron treinta o cuarenta molinos de viento que hay en aquel campo, y así como Don Quijote los vio, dijo a su escudero:

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– La ventura va guiando nuestras cosas mejor de lo que acertáramos a desear; porque ves allí, amigo Sancho Panza, donde se descubren treinta o pocos más, desaforados gigantes, con quien pienso hacer batalla y quitarles a todos las vidas, con cuyos despojos comenzaremos a enriquecer; que ésta es buena guerra, y es gran servicio de Dios quitar tan mala simiente de sobre la faz de la tierra. – ¿Qué gigantes? – dijo Sancho Panza. – Aquellos que allí ves – respondió su amo – de los brazos largos, que los suelen tener algunos de casi dos leguas. – Mire vuestra merced – respondió Sancho – que aquellos que allí se parecen no son gigantes, sino molinos de viento, y lo que en ellos parecen brazos son aspas, que, volteadas del viento, hacen andar la piedra del molino. – Bien parece – respondió Don Quijote – que no estás cursado en esto de las aventuras: ellos son gigantes; y si tienes miedo, quítate de ahí, y ponte en oración en el espacio que yo voy a entrar con ellos en fiera y desigual batalla. Y, diciendo esto, dio de espuelas a su caballo Rocinante, sin atender a las voces de su escudero Sancho le daba, advirtiéndole ante, que, sin duda alguna eran molinos de viento, y no gigantes, aquellos que iba a acometer. Pero él iba tan puesto en que eran gigantes, que ni oía las voces de su escudero Sancha, ni echaba de ver, aunque estaba y bien cerca, lo que eran, antes iba diciendo en voces altas: –No fuyades, cobardes y viles criaturas, que un solo caballero es el que os acomete. […](Ed.ALFAGUARA, 2004, p. 75). O texto acima é um dos famosos episódios das aventuras do nobre cavaleiro, em um dos seus acessos de loucuras e que pode, de fato, despertar o interesse nos alunos. Pode-se começar a aula com um momento de reflexão após a leitura do texto, é o momento de compartilhar opiniões, concordar com a/ou discordar da opinião do colega, argumentar em favor ou contra uma ideia. Uma possibilidade é realizar alguns questionamentos aos alunos para pensarem sobre a obra lida, como por exemplo: • No texto de Cervantes, podemos ver o ser humano com vícios e virtudes? • A leitura do texto possibilita dizer que Dom Quixote é religioso? Por quê?

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• O que há na fala de Dom Quixote que podemos relacionar com a vida das pessoas do nosso século? • Há, no texto, palavras ou expressões que não são utilizadas na língua espanhola atualmente? Os questionamentos levarão os alunos a pensarem e a buscarem as respostas no texto, podendo fazer inferências a partir dele, despertando assim o espírito crítico que muitas vezes não é explorado por parte dos professores dentro de sala de aula. O primeiro questionamento poderá ser respondido, quando o leitor perceber que Cervantes opta, realmente, pela apresentação de um ser humano com conflitos e mazelas, utopias e fracassos. No segundo questionamento, os alunos podem perceber o trecho em que Dom Quixote pede a Sancho que se ponha em oração. Essa atitude demonstra como Dom Quixote se relaciona com o sagrado, com a fé e, por fim, com a religião. A terceira questão revela que, mesmo na vida real, estamos sempre em busca de um super-herói que seja capaz de resolver os nossos problemas. O quarto questionamento será respondido ao percebermos que a expressão “no fuyades” é antiga. Na linguagem atual usamos “no huyáis”. Por fim, para responder a última questão proposta, os alunos precisam perceber que Cervantes apresenta Dom Quixote como um homem forte e valente, que não tem medo de nada e, por isso, não reclama de dor. Porém Sancho é um homem comum, reclama de qualquer tipo de dor, não demonstrando vergonha ao expressar suas fraquezas. Enfim, esse é apenas um exemplo de que tipo de reflexão pode ser realizado a partir da leitura de um texto literário, no qual se pode perfeitamente trabalhar questões, gramaticais, vocabulário, compreensão leitora e escrita (um ótimo exercício para isso é fazer um resumo do texto). Tal reflexão, é lógico, não precisa –nem deve– excluir os elementos gramaticais que compõem os textos, o que pode ser ainda mais produtivo em termos de observação de estruturas da língua, já que no texto literário tais estruturas muitas vezes são usadas de maneira incomum – como no caso das palavras antigas- e/ ou exploradas ao máximo em sua capacidade expressiva. Andrade (2009, p.61) afirma que “o raciocínio tende a se enriquecer em aula com a deriva e o mistério do diálogo com os alunos, por isso os resultados da atividade, é claro, não serão sempre os aguardados.” O professor deve estar pronto

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para divergências em pensamentos e dar espaço para que os alunos possam expor suas opiniões e não achar que isso “atrapalha” a aula, pois, segundo Italo Calvino, o confronto entre textos de autores nacionais e estrangeiros é fundamental para que possamos “entender quem somos e aonde chegamos”. (CALVINO, 1993, p.16). Considerações finais Quando se trabalha com literatura, ao mesmo tempo ensina-se a língua pela linguagem assumida, já que as práticas culturais incluem as práticas do discurso na sociedade; e, a literatura, como parte dessa construção social, não se desassocia da língua no processo ensino/aprendizagem, pois a literatura representa tanto o cultural como o social. (BRITO, 2008, p. 184). É necessário salientar a importância que educadores têm em selecionar textos literários que atendam às expectativas dos alunos. A leitura literária não deve ser somente um meio de entretenimento, de que o professor se utiliza como ferramenta para o ensino da língua estrangeira, porém cabe a ele (professor), problematizar os aspectos identitários que se apresentam. (BRITO, 2008, p.185). Cabe então, ao profissional da educação, reflexionar a respeito de sua prática pedagógica, despertando no aluno o gosto pelos textos literários hispânicos, permitindo o desenvolvimento do aluno como sujeito que infere, reflete e avalia, sendo esse o primeiro passo para a formação de um leitor crítico, objetivo maior do uso da literatura.

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REFERÊNCIAS

TODOROV, Tzvetan. A Literatura em Perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. BRITO, Sara Araújo. Identidade(s) Multicultural(is) latino-americana(s) ensino/ aprendizagem de espanhol como língua estrangeira: a contribuição da geração Mcondo. Niterói: Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2008. 260f. ANDRADE, Antonio. “Literatura e Ensino de E/LE.” In: Estudos hispânicos: Língua, Literatura, Ensino, Pesquisa. Rio de Janeiro: APEERJ, 2009. SILVA JUNIOR, Antonio Ferreira da.“O trabalho com contos na sala de aula de E/ LE: um relato de experiência.”In: Estudos hispânicos: Língua, Literatura, Ensino, Pesquisa. Rio de Janeiro: APEERJ, 2009. CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. RIO, Tatiana Lopes del, LEITE, Vânia Vieira. O uso do texto literário nas salas de Espanhol/ LE. Propuestas para trabajar el Quijote en el aula. CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. San Pablo (Brasil): ALFAGUARA, 2004.

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ADEQUAÇÃO CURRICULAR: DA AULA DE ESPANHOL COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA AO EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO NO BRASIL

Katia Celeste Dias Henriques

Introdução/justificativa

D

urante meu curto, contudo, intenso percurso como professora, a princípio, em turmas do primeiro segmento do ensino fundamental e, atualmente, no segundo segmento do ensino fundamental e no ensino médio, em turmas do ensino regular e da educação de jovens e adultos (EJA), foi possível observar e vivenciar os inúmeros problemas existentes no sistema educacional. Com base em minha vivência profissional, me propus a elaborar este projeto como início de uma pesquisa de Doutorado, mas, principalmente, como fruto de pensamentos, reflexões, experiências, aprendizado e questionamentos que foram surgindo no decorrer de minha atuação como professora e educadora. Mais do que um projeto, este trabalho me permitirá refletir, pensar e repensar minha prática educativa e, assim, modificá-la de modo a atender os objetivos dos meus alunos e transformar minha atuação para alcançar uma melhoria na educação. O objetivo deste trabalho é apresentar, de forma geral, alguns problemas existentes na educação, porém, dando ênfase àqueles que impedem ou dificultam que os conteúdos trabalhados nas aulas de espanhol como língua estrangeira de escolas estaduais do Rio de Janeiro sejam adequados àqueles propostos nos documentos oficiais que regem a educação e, consequentemente, exigidos no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e nas provas de vestibular para ingresso em cursos universitários. Os professores conhecem os documentos e leis que regem a educação? A formação inicial desses professores lhes proporciona uma visão abrangente do sistema educacional e lhes oferece meios para atuar e transformar as situações que apresentam acentuada dificuldade? Deve-se seguir o que os documentos

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propõem como direcionamento para a educação ou o ideal é atender às necessidades do aluno? O aluno deve ser preparado para o mercado de trabalho ou seria mais importante desenvolver nele senso crítico e formá-lo como cidadão? As indagações suscitadas continuam sem resposta, contudo, com este trabalho, pretendo não apenas encontrar soluções (se é que isso será possível), mas, principalmente, transitar pelo discurso de estudiosos de forma a não apenas ecoar as vozes desses autores, e sim, utilizar as ideias apresentadas por eles para reflexionar e transformar minha prática educativa. Aprender uma Língua Estrangeira (LE) se tornou algo fundamental para entender e conviver com os avanços do mundo atual. Empresas e Universidades apresentam como pré-requisito aos profissionais e futuros universitários que almejam adentrar o mercado de trabalho ou o universo acadêmico o conhecimento de pelo menos uma LE. Assim, adequar os conteúdos trabalhados em sala de aula àqueles exigidos no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e nas provas de vestibular torna-se imprescindível, mas, ao mesmo tempo, passa a ser, muitas vezes, a única funcionalidade de se aprender LE nas escolas. A competitividade do mundo moderno e a busca crescente por melhores condições de vida impulsionam o indivíduo a aprender mais e de forma consciente. Contudo, a educação não pode ser vista apenas como instrumento de realização pessoal, mas deveria ser, principalmente, uma forma de despertar no aluno consciência crítica, possibilitando-lhe refletir e analisar seu aprendizado e o mundo ao seu redor, formando não apenas um aluno, e sim, um cidadão. Os conteúdos trabalhados nas aulas de espanhol como Língua Estrangeira nas escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro, atualmente, não estão de acordo com aqueles exigidos para a realização das provas de vestibular e do ENEM. Uma forma de tentar amenizar e, inclusive, eliminar alguns problemas que incomodam os profissionais da educação, impedindo que os alunos tenham uma educação de qualidade é ter consciência de que soluções devem ser buscadas e um dos caminhos é conhecer a leis e os documentos oficiais – Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, 1996), Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998, 1999), Orientações Curriculares do Ensino Médio (OCEM, 2006) e Currículo Mínimo da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro (2011, 2012). Muitas vezes a adequação dos conteúdos não ocorre por falta de orientação aos professores por parte da gestão escolar, por uma formação precária dos futuros profissionais ainda na Universidade ou pelo não conhecimento dos documentos oficiais que regem a educação.

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É cada vez mais importante o papel da educação no desenvolvimento da sociedade. Os avanços tecnológicos e as transformações no mercado de trabalho estão mais recorrentes o que impulsiona o aluno a estar preparado para ingressar neste mercado tão exigente. A educação deveria estar centrada não somente na transmissão de conhecimento, mas, principalmente, na formação de cidadãos conscientes e capazes de refletir, tomar decisões, expressar-se, pensar e atuar como sujeitos de transformação na sociedade. Definição do projeto Tema Espanhol como segunda língua: adequação dos conteúdos ensinados no ensino médio de escolas públicas estaduais àqueles propostos nos documentos oficiais e exigidos no ENEM. Problema Os conteúdos ensinados no ensino médio de três escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro estão de acordo com os propostos pelos documentos oficiais e com os exigidos no ENEM? Hipótese Os conteúdos trabalhados nas aulas de espanhol do ensino médio de três escolas públicas de Itaboraí – RJ não estão de acordo com aqueles exigidos para a realização da prova do ENEM, o que impede que os alunos compreendam e obtenham êxito nessa prova, o que, consequentemente, dificultará seu ingresso em uma Universidade. Muitas vezes a adequação de conteúdos não ocorre por falta de orientação aos professores por parte da direção das escolas, por uma formação precária dos estudantes e futuros professores na Universidade ou pelo não conhecimento do conteúdo dos documentos oficiais. Assim, os professores trabalham nas aulas o que acreditam ser mais importante ou interessante para os alunos, não adequando os conteúdos trabalhados àqueles propostos nas leis e documentos, nem aos exigidos nas provas de vestibular ou no ENEM.

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Objetivos (geral e específicos) Geral Comprovar se existe adequação curricular entre os conteúdos exigidos no ENEM e propostos nos documentos oficiais àqueles ensinados nas aulas de espanhol como língua estrangeira no ensino médio em três escolas estaduais de Itaboraí – RJ. Específicos Identificar os obstáculos educativos no ensino do espanhol como segunda língua, especialmente, aqueles referentes à adequação de conteúdos. Analisar se os professores trabalham nas aulas de espanhol do ensino médio de escolas estaduais os conteúdos propostos nos documentos oficiais. Descobrir se os professores recebem uma formação inicial adequada para trabalhar o espanhol como segunda língua, objetivando um bom desempenho dos alunos nas provas de vestibular e no ENEM. Analisar como ocorre a intervenção docente na construção de conhecimentos relevantes dos alunos. Investigar se as competências e habilidades desenvolvidas nas aulas de espanhol são semelhantes àquelas propostas nos documentos oficiais. Analisar a relação entre os conteúdos desenvolvidos na escola e sua necessidade para que os alunos estejam preparados para o ENEM. Metodologia

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Formação de professor

Literatura: ensino e aprendizagem

SCHÖN (2000) CELANI (2001) PAIVA (2003, 2005) DAHER (2006)

FREIRE (1981, 1989) MOITA LOPES (1996) DUTRA E MELLO (2004) BOURDIEU (2009)

Documentos referentes à educação brasileira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional(1996) Parâmetros curriculares nacionais (1998, 1999) Orientaçõescurriculares para oensino médio(2006) Currículo Mínimo (2011, 2012)

Currículo

LIBÂNEO (2004) BRANDALISE (2007) MOREIRA (1999, 2008) SILVA (1999, 2008)

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Procedimentos A pesquisa prevê o trabalho com sujeitos, tanto para a observação das aulas como para a aplicação de questionários e entrevistas semi estruturadas e avaliação dos resultados. Para tal, se contará com a elaboração e aplicação de entrevistas como instrumentos e procedimento de coleta de dados. (DAHER, 1999). Será elaborado um roteiro de pontos que deverão ser observados nas aulas de espanhol. A busca de informações se dará, também, através de entrevistas que serão realizadas com profissionais da educação e alunos do ensino médio de três escolas estaduais de Itaboraí – RJ. Meus principais objetos de coleta de informações serão os professores que me permitirão entender qual a sua visão em relação aos conteúdos trabalhados nas aulas e sua adequação com aqueles exigidos no ENEM. Conclusão Pretende-se, com a presente pesquisa, abordar a questão da relação entre os conteúdos trabalhados nas aulas de espanhol como língua estrangeira em escolas estaduais do Rio de Janeiro e aqueles propostos nos documentos oficiais e os exigidos no ENEM. Para tal, investigar a formação do professor e seu conhecimento sobre as leis e documentos oficiais que regem a educação será o ponto de partida. Desse modo, pretende-se verificar se os professores seguem tais orientações na escolha dos conteúdos que serão trabalhados nas aulas de espanhol como língua estrangeira ou se tal escolha se justifica por outros motivos. Muitas vezes, o professor trabalha em sala de aula os conteúdos que lhe parecem mais interessantes ou apenas ensina a língua com base em tradução de frases soltas e aspectos gramaticais. Em sua maioria, os professores reproduzem a forma como aprenderam a língua em sua formação inicial, sem praticar uma reflexão de sua ação para construir e reconstruir novas formas de ensino-aprendizagem. Tal postura mostra diferenças entre o ensino de espanhol nas escolas estaduais do Rio de Janeiro, já que não existe um norteador nesse trabalho. Assim, em 2011, foi elaborado o Currículo Mínimo do Estado do Rio de Janeiro com apresentação de propostas e atividades, um documento que norteará o ensino de línguas estrangeiras nas escolas da rede estadual de ensino. 587

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REFERÊNCIAS

BORTONI-RICARDO, S. M. 2008. O professor pesquisador: introdução à pesquisa qualitativa. São Paulo: Parábola. 135p. (Série Estratégias de Ensino, n. 8). BOURDIEU, Pierre. “Esboço de uma teoria da prática”. In: NOGUEIRA, M. A. Bourdieu & a Educação. 3ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. BRANDALISE, M. A. T. & TERNEIRO, M. O. V. “Currículo e práticas pedagógicas: implicações na formação de professores.” In: BRANDALISE, Mary Ângela Teixeira (org.). Currículo e Práticas Pedagógicas. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2007. p. 13-26. BRASIL. Lei Nº. 11.161, de 05 de agosto de 2005. Dispõe sobre o ensino da língua espanhola. Diário Oficial da União, Brasília, DF. Disponível em: . ______. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996. ______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental: língua estrangeira. Brasília: MEC/SEF, 1998. ______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais: Ensino Médio: Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília. MEC/ SEMT, 1999. ______. Orientações curriculares para o ensino médio. Linguagens código e suas tecnologias. Brasília: MEC, 2006. CELANI, M. A. A. Ensino de línguas estrangeiras: ocupação ou profissão? In: LEFFA, V. J. (Org.). O professor de línguas: construindo a profissão. Pelotas: Educat, 2001. p. 21-40. DAHER, M. D. C. F. G. “A LDB e a legislação vigente sobre o ensino e a formação de professor de língua inglesa”.In: STEVENS, C.M.T e CUNHA, M.J.Caminhos e

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Colheitas: ensino e pesquisa na área de inglês no Brasil. Brasília: UnB, 2003. p. 53-84. ______. Enseñanzas del español y políticas lingüísticas en Brasil. Ensino do espanhol e políticas linguísticas no Brasil. Revista Hispanista, Niterói, n.27, 2006. Disponível em: . ______. “Quando informar é gerenciar conflitos: a entrevista como estratégia metodológica.” Revista The ESPecialist. São Paulo: LAEL PUC/SP, v. 19, 1999, p. 287- 304. DUTRA, D.P.; MELLO, H. “A prática reflexiva na formação inicial e continuada de professores de Língua inglesa”. In: ABRAHÃO, M.H.V.(Org.). Prática de ensino de línguas estrangeiras: experiências e reflexões.Campinas: Pontes, 2004. FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 5 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1981. ______. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989. GOVERNO do Estado do Rio de Janeiro. Secretaria de Estado de Educação. Currículo Mínimo 2012 - Língua Estrangeira. Disponível em: KANASHIRO, D.S.K.Do ensino médio ao superior: que ponte os une? Um estudo de provas de Vestibular de língua espanhola. 2007, Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em . KLEIMAN, A. e MORAES, S. E. “Leitura e interdisciplinaridade: tecendo redes nos projetos da escola”. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003. In: Kanashiro, D.S.K. Do ensino médio ao superior: que ponte os une? Um estudo de provas de Vestibular de língua espanhola. São Paulo, 2007. Disponível em . LIBÂNEO, J. C. Organização e gestão na escola: teoria e prática. 5 ed. Goiânia, Go: Alternativa, 2004. MOITA LOPES, L.P. da (1996) Oficina de lingüística aplicada: a natureza social e educacional dos processos de ensino/aprendizagem de línguas. Campinas: Mercado de Letras. (Coleção Letramento, Educação e Sociedade) 192 p. 589

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------. Fotografias da linguística aplicada no campo de línguas estrangeiras no Brasil. DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada. vol.15 special issue, São Paulo, 1999. Disponível em . MOREIRA, A. F. B.; SILVA, T. T. (org.). Currículo, cultura e sociedade. Cap. 1, p. 7-37. São Paulo: Ed. Cortez, 1999. MOREIRA, A. F. B. (org.). Currículo: política e práticas. Campinas: Papirus, 2008. PAIVA, V.L.M.O. “O Novo Perfil dos Cursos de Licenciatura em Letras”. In: TOMICH, et (Orgs.). A interculturalidade no ensino de inglês. Florianópolis: UFSC, 2005. p.345-363. Disponível em: . SCHÖN, Donald A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Tradução de Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed Editora, 2000. SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica: 1999.

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A IMPORTÂNCIA DAS COLOCAÇÕES NO ENSINO DE VOCABULÁRIO DE INGLÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA

Leila Maria Taveira Monteiro

Um fenômeno e sua conceituação

T

odas as línguas, de um modo geral, possuem frases e construções mais ou menos fixas, não necessariamente idiomáticas. Em inglês, essa constatação é particularmente verdadeira, talvez pelo fato de que a maioria das palavras abarca diversos significados, alguns bastante diferentes, outros, apenas tenuamente distintos. Na literatura, esses grupos de palavras ou coocorrências recebem variadas denominações, entre essas, colocações, termo adotado para o foco deste estudo. A investigação da colocabilidade entre palavras pode se desenvolver a partir de uma abordagem estatística, ou fraseológica. A primeira aborda a distribuição numérica da coocorrência de itens lexicais, em um determinado contexto, como em Sinclair (2003). Esse tipo de levantamento está, preferencialmente, relacionado à Linguística de Corpus, disciplina que se tornou fortemente associada ao uso de computadores para fins de coleta e análise de dados linguísticos. A segunda vertente, a fraseologia,tem seufoco voltado para o estudo dos diferentes tipos de combinação entre palavras, sua tipificação e convencionalidade, como em Cowie (1998) e Howarth (1998). Segundo Wray (2002, p.7), as primeiras observações registradas, a respeito de um possível grau de constância entre palavras, remonta a meados do século XIX, quando John Hughlings Jackson (1835-1911), neurologista britânico, pesquisou pacientes afásicos e sua aparente capacidade para produzir segmentos linguísticos fixos, como textos religiosos, expressões de cumprimento e rimas, habilidade que não demonstravam na produção de unidades novas da fala. O conceito de colocabilidade e o termo colocação foram introduzidos pelo linguista inglês John Rupert Firth (1890-1960), em seu trabalho Modes of Meaning de 1957, no qual defende que parte do significado de uma palavra está ligado a

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outras que a acompanham (Tagnin, 1999, p.26). Embora o pesquisador tenha influenciado sua geração e cunhado a frase: “Você deve julgar uma palavra por sua companhia.”1, sua contribuição, nessa área, foi negligenciada por várias décadas. Esse aparente desinteresse pode ter se originado da ausência de uma definição clara, por parte de Firth, que se limitou a ilustrar o conceito com exemplos, mas, do mesmo modo, pode se dever às restrições práticas, à época, para a realização de estudos textuais (Berry-Roghe, 1973, p. 103). Desde então, diversos pesquisadores têm buscado conceituar o fenômeno da coocorrência, à luz de modernas teorias da Linguística Aplicada, e o estudo ganhou mais espaço com a crescente facilidade que os recursos de informática trouxeram para a busca de palavras em seu ambiente. Halliday, que foi aluno de Firth, recolocou a questão em pauta (1966)2 e, posteriormente, seus estudos em sociosemiótica (1978)3 tiveram um grande impacto, para a noção de como e por que realizamos determinadas escolhas discursivas. Para Halliday, o fenômeno da colocação é um elemento crucial para a análise do léxico, uma vez que traz informações probabilísticas importantes para o linguista, cujo interesse _ segundo o autor _ não está apenas no que sabemos sobre a língua, mas, igualmente, no que fazemos com e através dela. O enfoque no aspecto da combinação entre palavras foi, do mesmo modo, privilegiado por Saussure (1916-1966), que se referiu ao sequenciamento de elementos que dispensam análise individual e passam a funcionar como unidades integradas de significação. À época, essa abordagem foi temporariamente abandonada, sob a influência do conceito de competência gramatical de Chomsky (1965), e retomada, quando novas teorias, baseadas na competência comunicativa de Hymes (1972), passaram a ser o mote das pesquisas na área. No cenário atual, em oposição ao antigo enfoque descontextualizado, que deu origem às populares listas de vocabulário, advoga-se que o significado de uma palavra nova deve ser aprendido em seu contexto. A esse aspecto, alguns autores têm se referido como “ambiente/equilíbrio ecológico”, como em Sardinha (2000a,

“You shall judge a word by the company it keeps”. Cf. FIRTH, John Rupert. Modes of Meaning: Papers in Linguistics 1934-1951. London: Oxford University Press. 1957. Pp. 190-215. 2 HALLIDAY, Michael A. K. Lexis as a Linguistic Level. In: BAZELL, Charles Ernest; et al.(Eds.). In Memory of J.R. Firth. London: Longman.1966. 3 HALLIDAY, Michael A. K. Language as Social Semiotic. London: Edward Arnold. 1978. 1

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p. 51), para quem “[…] colocação é um tipo de padronização do léxico que diz respeito à associação entre palavras.” (ibid, p. 49). Essa percepção de conjunto facilitaria seu reconhecimento e lembrança, quando há necessidade de recuperá-las na memória, já que “[…] palavras tendem a ter uma estrutura altamente colocacional” (Souza, 2004, p.20). É certo que uma palavra isolada não deve ser vista como uma unidade vazia de conteúdo, pois carrega em si um significado intrínseco, moldado por suas participações em textos anteriores. Entretanto, ao mesmo tempo em que transmite sentidos previamente adquiridos, recebe de um diferente contexto um renovado potencial de significação que emana do novo ambiente e nele se completa. Nesse continuado movimento de troca, o significado exato, de qualquer item lexical, é determinado pelo contexto em que se encontra, ou seja, pelas palavras que o cercam e com as quais combina. Para Leffa (2000, p.17), a habilidade nessa delicada combinação é uma das competências mais difíceis de adquirir, principalmente nos aspectos produtivos da escrita e da fala, e um dos mais expressivos indicadores de proficiência por parte do aprendiz de língua estrangeira. Como resultado da falta de uniformidade nas investigações, é possível se encontrar uma ampla variedade terminológica, para rotular duas, ou mais palavras que são produzidas em sequência, sem (grande) esforço por parte do usuário. Para Weinert (1995, p. 182), as diferentes nomenclaturas _fórmula, língua pré-fabricada, língua para pronto uso, pedaços, unidades multivocabulares, expressões fixas, ou semifixas, e outras (formula, pre-fabricated language, ready-made language, chunks, multi-word units, fixed/semi-fixed units)_ referem-se, essencialmente, ao mesmo fenômeno. Assim como há divergências a respeito da nomenclatura mais apropriada, a natureza complexa e, ao mesmo tempo, fugidia, da combinalidade entre palavras dá origem a uma variedade de percepções teóricas.A partir da análise das principais definições encontradas na literatura, Partington(1998, p. 15-16), por exemplo, as classifica segundo três critérios, ou enfoques distintos: i) Enfoque textual: nesse caso, o fenômeno é definido com base na linearidade da língua, pois decorre da existência de um item lexical junto a outro em um texto. Essa é a posição em Sinclair (1991, p.170)4: “Colocação é a ocorrência de duas ou mais palavras, distantes um pequeno espaço de texto umas da outras.”. “Collocation is the occurrence of two or more words within a short space of each other in a text.” (Sinclair, 1991, p.170). 4

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ii) Enfoque psicológico, ou associativo: a definição se apoia na intuição linguística do falante, que, por meio de exposição, desenvolve a capacidade de escolher coorrências usuais na língua. Esse é o enfoque adotado por Aitchinson (2003, p.91) para quem: “Aprende-se o significado de uma palavra, provavelmente, ao se notar as palavras que vêm juntas.”5 O mesmo tratamento ocorre em Leech, (1974, p. 20)6: “O sentido colocacional consiste das associações que uma palavra faz, por conta dos sentidos das outras palavras, que tendem a ocorrer em seu ambiente”. (iii) Enfoque estatístico: essa abordagem é a preferida por aqueles que transitam na área da Linguística de Corpus, como em Moon (1998, p. 26): “O fenômeno da colocação denota coorrências que se repetem de forma frequente, ou são estatisticamente significativas, haja, ou não, laços semânticos especiais entre os itens colocacionais.”7. Igualmente em Hoey (1991, p. 6), para quem “Colocação tem sido o nome dado à relação que um item lexical tem com itens que aparecem com maior probabilidade do que o mero acaso em seu contexto (textual)”8. Posteriormente, Hoey (2005, p. 4) avaliou o conceito unicamente estatístico como limitado e insatisfatório, por não esclarecer sobre o fenômeno em si, ou o seu propósito, e passou a definir colocação como “[…] uma propriedade do léxico mental de um indivíduo”9. A variedade de critérios se origina da falta de regras que expliquem o mecanismo da colocabilidade. Benson (1989, p. 4) destaca a imprevisibilidade do fenômeno e defende que: “Colocações deveriam ser definidas não apenas como ‘combinações recorrentes de palavras’, mas como ‘combinações arbitrárias recorrentes de palavras.”10 (itálico nosso). Na interpretação de Wanner (2004. p.

“Word-meaning is probably learned by noting the words which come alongside”. (Aitchinson, 2003, p. 91) 6 “Collocational meaning consists of the associations a word acquires on account of the meanings of words which tend to occur in its environment.” (Leech, 1974, p. 20). 7 “Collocation typically denotes frequently repeated or statically significant co-occurrences, whether or not there are any special semantic bonds between collocating items.” 8 “Collocation has been the name given to the relationship a lexical item has with items that appear with greater than random possibility in its (textual) context.” (Hoey, 1991, p. 6-7). 9 “[…] a property of the individual’s mental lexicon.” Hoey (2005, p. 4) 10 “Collocations should be defined not just as ‘recurrent word combinations’, but as ‘arbitrary recurrent word combinations’” (Benson,1989, p. 4) 5

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98), uma colocação é uma combinação de itens lexicais, de natureza binária e lexicalmente restrita, não regida por regras universais de restrição semântica. O autor ilustra a natureza idiossincrática do conceito, com a colocação inglesa usual para significar um chá forte, com muita cafeína: “strong tea” e não “*powerful tea”, embora ambos os adjetivos (strong/powerful) possam ser traduzidos como “forte”. Tagnin (1989, p. 82), para quem colocabilidade é “o aspecto que caracteriza a forma peculiar de expressão numa dada língua”, combina os critérios citados por Partington (op.cit.) e define colocações como “uma combinação lexical recorrente, não idiomática, coesa, cujos constituintes são contextualmente restritos e de coocorrência arbitrária.” (Tagnin, 1999. p. 41). Em obra posterior (2002, p.193-4), a autora distingue entre fórmulas ou colocações, as quaisdefine como “palavras que coocorrem em freqüência maior do que caso se tratasse de uma combinação aleatória” e expressões idiomáticas, que conceitua como “[…] expressão cujo significado total não corresponde à soma dos significados individuais de seus componentes.”. Essa distinção é, igualmente, defendida por Bahns (1993, p. 57), que avalia colocações como palavras que refletem seu significado intrínseco, frequentemente utilizadas juntas, de forma natural, com diferentes graus de ligação e peso psicológico, como, por exemplo, “blow a trumpet” (tocar trompete). Já, expressões idiomáticas são conceituadas como relativamente imutáveis, cuja tradução não reflete os significados distintos de seus componentes, como a expressão “to be on cloud nine”, que significa “estar muito feliz”, e nada tem a ver com a tradução literal, algo como “*estar na nuvem nove”. Encerrando o debate sobre o tema da conceituação, acreditamos que, a despeito das diferentes possíveis abordagens, seja correto afirmar que o fenômeno da colocabilidade se refere à maneira como as palavras se combinam em uma língua, de forma recorrente e arbitrária. Quando produzida de modo apropriado, essa delicada combinação gera um texto que soa natural, ou seja, não causa estranheza ao falante nativo. Um fenômeno e sua categorização O uso da tecnologia aprofundou a discussão acerca do melhor caminho a se adotar para a análise e a classificação de coocorrências. Para Sinclair (2003), a falta de um critério consensual deve ser solucionada, através do levantamento de corpora, baseado em medidas estatísticas, que espelhem a frequência de uso, 595

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processo que, como já mencionado, tem sido imensamente facilitado pela popularização do computador. Howarth (op.cit., p.26) reconhece a contribuição da informática, mas faz importantes restrições a uma abordagem meramente quantitativa que, a seu ver, não considera as sutis gradações de significado e os aspectos psicológicos envolvidos na questão da colocabilidade. O pesquisador argumenta que esse tipo de análise não leva em conta o fator da competência e destaca que processos que se baseiam unicamente na frequência correm o risco de apontar uma relevância, equivocada, de combinações altamente transparentes (que exemplifica com have children), frequentes, apenas, em função do tópico específico da amostra analisada. Como solução, o autor defende a necessidade de um sistema de categorização após o estabelecimento de propriedades distintas. Para tal, acredita ser preciso uma análise criteriosa, que considere a existência de tipos fraseológicos diversos. Essa categorização tipificaria os itens lexicais combinados segundo características intrínsecas à sua própria natureza, considerando-se a observação de diferenças entre a produção de nativos e não nativos. Em decorrência, Howarth (ibid, p.27) cria uma proposta de classificação hierárquica de segmentos fraseológicos que leva em conta a forma interna das combinações, sua função externa, especificidade semântica, restrições sintáticas e o maior ou menor grau de comutabilidade dos itens lexicais envolvidos. Dessa forma, os elementos se colocam sobre um contínuo que se estende de combinações livres a idiomas puros, passando por combinações restritas e idiomas figurativos. Segundo a conceituação sugerida por Howarth (ibid. p.28), as combinações livres, localizadas em um dos extremos do contínuo, consistem de elementos usados em seu sentido literal, que aceitam livre substituição. Já as restritas apresentam um dos componentes usados em sentido figurativo e têm uso mais limitado, como o nome sugere. Idiomas figurativos têm um sentido metafórico e uma interpretação literal, ao passo que idiomas puros se encontram no extremo oposto das combinações livres. Esses são os mais opacos, pois não se pode deduzir seu significado, considerando-se o sentido isolado de seus componentes, os quais não aceitam permuta. Embora defenda a necessidade de uma tipificação, Howarth reconhece que dificuldades importantes estão envolvidas na aplicação das conceituações propostas. Não se pode delimitar, com segurança, a divisão entre uma e outra categoria, já que o critério de comunicabilidade é significativamente sujeito a interpretações 596

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pessoais e componentes psicológicos. O posicionamento de uma colocação pode, ainda, alterar-se, adquirindo um maior, ou menor grau de convencionalidade. Essa transformação ocorre, quando, ao ser reiteradas vezes utilizada por uma comunidade linguística, a expressão se consagra pelo uso, ou o movimento contrário pode ocorrer, quando a combinação perde força e deixa de fazer parte do elenco de itens convencionais da língua. A despeito da reconhecida dificuldade em se estabelecer um critério consistente de tipificação, a proposta de um construto evolutivo reflete a busca por um modelo de análise, aplicável aos diferentes níveis do fenômeno colocacional, e tem sido sugerida por outros autores. Benson, Benson e Ilson (1997) distinguem três diferentes graus de coesão: no menos acentuado estão as combinações livres, quando as palavras podem ser encontradas separadamente, combinadas com diversas outras, e não se constituem por si só em itens lexicais. Nesse caso, a gramaticalidade é a única restrição à diversidade de combinações. No extremo oposto, encontram-se as expressões idiomáticas, totalmente fixas, e que não espelham o significado das palavras individualmente. Entre esses extremos se situam as colocações propriamente ditas. As colocações, localizadas no meio do contínuo, são os itens que acreditamos apresentar maior dificuldade para o aprendiz, por não serem totalmente livres nem, tampouco, completamente fixas. São sequências que funcionam segundo uma relação de parceria que permite a combinação com outras palavras. É comum que os alunos se ressintam, por exemplo, da falta de regras que regulem o uso dos verbos “do” e “make”, ambos traduzidos como “fazer”. Sem nenhum critério lógico aparente para o aprendiz, diz-se “make a visit”, mas “do a favour”. Para isso, embora possa se tentar certa padronização de conceitos, não há regras a seguir, é preciso que o aluno memorize, praticamente, caso a caso. As expressões idiomáticas equivalem aos idiomas purosde Howarth (op.cit.), por apresentarem um alto grau de opacidade no seu sentido: “kick the bucket” não quer dizer “chutar o balde”, como a tradução literal poderia levar a crer, mas “abandonar, desistir, deixar de lado possíveis consequências ruins”, e “take up a course” não significa “apanhar, pegar um curso”, mas “frequentá-lo”. Sinclair (1991, p.109-10) qualifica essa gradação com os termos, princípio da livre escolha e princípio idiomático. O primeiro determina que a parceria entre as palavras ocorre a partir de uma possibilidade quase ilimitada de escolhas por parte do usuário, restritas apenas pelas regras da gramaticalidade da língua. O

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segundo diz respeito à construção textual, iniciando-se pelo uso de unidades idiomáticas pré-fabricadas que, embora pareçam analisáveis em elementos distintos, constituem um todo de significado. Para o autor, ambos os princípios se articulam e se alternam, de forma dinâmica, no processo de construção de um texto coerente e coeso. Lewis (2000, p.8) propõe uma abordagem semelhante de gradação e classifica o fenômeno de coocorrência segundo um espectro que abrange três categorias distintas: colocações livres, colocações relativamente fixas, que permitem um número limitado de combinações e as totalmente fixas,unidades lexicais consagradas e que, por não permitirem alteração em seus sequenciamentos, configuram-se como expressões idiomáticas. Para o autor, unidades muito fortes, como “drug addict” (viciado em drogas), podem ser, até mesmo, consideradas palavras compostas (Lewis, ibid, p. 31). A despeito das diferentes nomenclaturas e critérios de classificação propostos, a noção de coocorrência entre unidades lexicais e o termo colocação ganharam, definitivamente, visibilidade nos estudos da área. O conceito de combinalidade entre palavras e sua importância para o aprendiz de língua estrangeira tem se refletido de modo decisivo na criação de materiais e na sugestão de abordagens instrucionais, resultando em uma crescente percepção do tema por parte de educadores e professores da área. Um fenômeno e a sala de aula de língua inglesa Mais recentemente, o significativo consenso sobre a conveniência de tratamentos instrucionais para o ensino e o aprendizado de vocabulário, a partir da noção de colocabilidade,assumiu uma terminologia particular e uma nova dimensão com os estudos de Hill (1999) e Celce-Murcia (2001). Os autores cunharam, respectivamente, as expressões competênciacolocacional e competênciaformulaica, parase referirà necessidade de uma proficiência no tocante à combinação de palavras. No cenário específico de aquisição de língua estrangeira, a necessidade desse tipo de competência é destacada por Sardinha (2000b, p. 51), para quem: “A observação de padrões é tida como de suma importância no ensino de língua estrangeira, pois a sensação de ‘naturalidade’ na fala ou na escrita depende em grande parte do emprego de padrões.”

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Uma possível relação entre competência colocacional e fluência é, igualmente, vislumbrada por outros autores: Louro (2001, p. 61), por exemplo, acredita que “[…] conhecer e usar as colocações resulta em fluência na comunicação.” e Hill (op.cit., p.5) defende que a naturalidade e a velocidade da fala de falantes nativos se devem, em grande parte, ao conhecimento de porções fixas da língua: “quando não conhecem as colocações, que expressam, exatamente, o que querem dizer, os alunos criam enunciados mais longos que aumentam a probabilidade de novos erros.”11. Para Porto (1998), as falhas da abordagem estrutural, que não encontrou um meio de permitir a utilização criativa das regras gramaticais, e as limitações da abordagem comunicativa, que disponibiliza um vasto repertório sem tornar o aprendiz gramaticalmente competente, podem ser solucionadas por um equilíbrio a ser alcançado com o uso de sequências formulaicas, termo que aqui utilizamos, de modo abrangente, como em Schmitt e Underwood (2004), e Boers (2006). Para Porto (op. cit.), esses “blocos” de sentido, incluindo aspectos estruturais, como voz passiva e orações condicionais, permitem ao aprendiz maior fluência, mesmo nos níveis iniciantes, contribuindo para a sensação prazerosa de competência linguística, ao facilitar a progressiva sofisticação de recursos fraseológicos. Pensar a língua, a partir desse enfoque, significa priorizar o papel das unidades lexicais, principalmente daquelas que acontecem em sequência, como é o caso das colocações. Conclusão O processo de aquisição de vocabulário se caracteriza pelo seu potencial de crescimento e aprofundamento continuado, seja em língua materna ou estrangeira. No segundo caso, o uso proficiente do léxico se torna ainda mais complexo e penoso. Curiosamente, apesar de o senso comum, a tradição e a literatura valorizarem o conhecimento de um vocabulário rico e criativo, e a despeito de diversas abordagens instrucionais destacarem a importância do aprendizado de palavras novas, a questão lexical tem sido, em geral, estigmatizada como subproduto de tratamentos que priorizam a gramática, ou outras habilidades linguísticas.

“When students do not know the collocations which express precisely what they want to say they create longer utterances which increase the likelihood of further errors.” (Hill, 1999, p. 5). 11

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Na concepção de Farghal e Obiedat (1995), contudo, a fronteira entre sintaxe e léxico é muito mais sutil e menos relevante do que, a princípio, se acredita. Em decorrência, os autores sugerem a existência de um contínuo dinâmico, que vai da linguagem pré-construída, moldada por padrões sintáticos, a um extremo oposto, onde o vocabulário leva a língua a modelos totalmente originais e o sentido potencial se realiza a partir do contexto. Parece-nos que essa fluidez entre léxico e gramática estabelece uma posição conciliatória que reflete de modo realista a contínua interação entre ambas as dimensões linguísticas. Acreditamos, igualmente, que o enfoque em blocos significativos da língua, resultantes do fenômeno da colocabilidade entre palavras, oferece um caminho seguro e potencialmente efetivo na área de ensino de língua estrangeira por proporcionar uma ponte entre o domínio gramatical e a esfera do léxico. Avaliamos, que uma abordagem indireta para o ensino de sequências lexicais tem se provado insatisfatória, na medida em que há limites, para o que se pode esperar de técnicas fundamentadas em aprendizado incidental, particularmente no que diz respeito a colocações e expressões idiomáticas. Em consequência, advogamos um tratamento intencional, continuado e sistematizado, para o ensino e o aprendizado do vocabulário, com foco especial no aspecto da coocorrência entre palavras, objetivando levar nossos alunos ao desenvolvimento de uma proficiência linguística caracterizada pela naturalidade e pela efetividade no processo comunicativo da língua alvo.

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O ENSINO DE INGLÊS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA): UMA PROPOSTA PARA UM CURSO NA MODALIDADE DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA (EAD) Lídia de Andrade Ribeiro Ramos Maria Filomena Correia do Rego

Introdução

O

ensino da língua estrangeira, aqui entendida como o inglês, tem merecido pouco destaque no currículo escolar. A carga horária de dois tempos semanais e a falta de uma gestão na maioria das escolas que acompanhe e dê prosseguimento nas séries subsequentes ao trabalho desenvolvido nas séries iniciais faz com os alunos adquiram apenas noções fragmentadas de aspectos da língua. Se no ensino regular esse é geralmente o quadro que se apresenta, na Educação de Jovens e Adultos, a situação é ainda pior. Na EJA, a questão do tempo para aprender a língua é ainda mais crucial, uma vez que, por razões de natureza sócio econômica, esse público tem grande dificuldade de frequentar a escola assiduamente. Acrescente-se a isso a inadequação da maioria dos materiais didáticos para o ensino de inglês na EJA, muitos deles ainda com foco apenas no ensino das estruturas linguísticas. O objetivo deste artigo é apresentar uma proposta para o ensino de inglês na educação de jovens e adultos (EJA), na modalidade de Educação a Distância (EaD). A proposta está inserida em um projeto desenvolvido pela Faetec em parceria com o Cederj cujo objetivo é oferecer a educação básica aos alunos que buscam qualificação profissional nos Centros Vocacionais Tecnológicos (CVTs) da rede Faetec. Esse projeto se iniciou com o Ensino Fundamental em 2009 e teve prosseguimento com o Ensino Médio em 2011. Os cursos são na modalidade semipresencial, onde 40% da carga horária são compostos por encontros presenciais e os restantes 60% são cumpridos à distância. O curso se apoia em um tripé constituído pelo trabalho da tutoria, pelo material impresso e por um ambiente virtual de aprendizagem (AVA). 604

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A proposta pedagógica: O que é importante ensinar? O status do inglês vem se alterando nas últimas décadas. Ao se transformar em uma língua franca, o inglês passa a ser uma ferramenta de comunicação que possibilita o acesso a informações e ao conhecimento produzido pelos mais diferentes povos e culturas. Hoje o idioma é mais usado por falantes não nativos do que por falantes nativos (GRADDOL, 2006, p.110). Esse quadro também deve influenciar os materiais de ensino. Hoje em dia não faz mais sentido se focalizar tanto os hábitos culturais dos ingleses ou as gírias e expressões coloquiais do inglês americano, por exemplo, já que o inglês se tornou a língua de todos, uma língua multinacional (LEFFA, 2002). É nesse contexto que situamos a relevância do ensino do inglês na EJA. A Proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos elaborada pelo MEC destaca que: O ensino de Língua Estrangeira tem {…} um papel importante na formação interdisciplinar dos alunos jovens e adultos, na medida em que contribui para a construção da cidadania e favorece a participação social, permitindo que ampliem a compreensão do mundo em que vivem, reflitam sobre ele e possam nele intervir. Por outro lado, o desenvolvimento linguístico dos alunos ajuda-os a aperfeiçoar a leitura e a escrita, bem como a compreender as estruturas linguísticas e discursivas – inclusive da língua materna.

Portanto, o ensino da língua estrangeira tem por objetivo contribuir para o letramento do aluno em sentido mais amplo. Além das razões apontadas pelo MEC, cumpre destacar o fato de que a leitura não só desenvolve a competência linguística como também proporciona a realização de novas aprendizagens (SOLÉ, 1998, p.21). A competência leitora em inglês possibilita aos jovens e adultos a inserção no mercado de trabalho e a progressão nos estudos. Haja vista que algumas empresas utilizam em seus processos seletivos testes que visam a avaliar a compreensão de textos nessa língua. e o Exame Nacional do Ensino Médio, que hoje em dia é utilizado para possibilitar o ingresso às universidades, também apresenta questões em que o aluno deve demonstrar habilidades de leitura em língua estrangeira. Essas são algumas das razões que justificam a opção pelo ensino da leitura nessa proposta de trabalho com a EJA. 605

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Ensinar leitura é auxiliar a conduzir processos cognitivos, pois a leitura é um processo eminentemente cognitivo, e a relação entre linguagem e cognição pode nos ajudar a compreender tal processo. De acordo com Senna (2000): Sendo a linguagem a faculdade de atribuição de juízos a conhecimentos, a leitura é a habilidade – derivada da linguagem – através da qual o indivíduo aplica seus juízos para compreender a experiência. Portanto, a leitura subentende duas partes: (a) a busca de equivalências entre a situação de mundo e os juízos já construídos pela linguagem do indivíduo e (b) a fixação propriamente de um dos juízos que possa satisfazer a situação analisada. As partes (a) e (b) da leitura são, respectivamente, o “processo de leitura” e seu produto: a interpretação pessoal da experiência.

Com base nessas premissas, um curso de leitura deve contemplar temas que façam parte da realidade dos alunos para que eles possam usar seu conhecimento de mundo e construir sentidos para os textos. No caso do aluno da EJA, não se deve ignorar o conhecimento adquirido de maneira informal pela experiência de vida. Kleiman (1989, p. 13) postula que: A compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização do conhecimento prévio, o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto. É porque o leitor utiliza justamente diversos níveis de conhecimento que interagem entre si, a leitura é considerada um processo interativo. Pode-se dizer com segurança que sem o engajamento do conhecimento prévio do leitor não haverá interação.

O ensino de leitura em uma língua estrangeira envolve o ensino do uso de estratégias, uma vez que o aluno não domina ainda o código linguístico. Estratégias ativam processos cognitivos e ajudam a construir os sentidos dos textos. Segundo Marcuschi (1999), “A produção de sentido é o resultado de atividades cognitivas mediadas pela experiência organizada socialmente em regime de coprodução.”

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Ao ter como meta o desenvolvimento de habilidades de leitura, a ação pedagógica tenderá a enfatizar tanto o processo cognitivo do aprendiz quanto o conteúdo de ensino. O público alvo Ao elaborar materiais de ensino, os autores não devem ignorar as características do seu público alvo. Escrever aulas para Jovens e Adultos é diferente de se escrever para crianças ou adolescentes, por exemplo. Como nos lembra Bakhtin, o papel do outro é fundamental na elaboração do enunciado: O papel dos outros para os quais o enunciado se elabora […] é muito importante. Os outros, para os quais meu pensamento se torna, pela primeira vez, um pensamento real (e, com isso, real para mim), não são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação verbal. Logo de início, o locutor espera deles uma resposta, uma compreensão responsiva ativa. Todo enunciado se elabora como para ir ao encontro dessa resposta. O índice substancial (constitutivo) do enunciado é o fato de dirigir-se a alguém, de estar voltado para o destinatário. (BAKHTIN, 2002, p. 320)

Nessa proposta pedagógica, como já mencionado, as aulas são destinadas a classes de Jovens e Adultos. Sabe-se que não há homogeneidade em grupos de pessoas, mas pode-se traçar algumas características comuns a esses sujeitos. De acordo com Oliveira (1999): Embora frequentemente constituindo dois subgrupos distintos (o de “jovens” e o de “adultos”), tal grupo se define como relativamente homogêneo ao agregar membros em condição de “não crianças”, de excluídos da escola e de pertinentes a parcelas “populares” da população (em oposição às classes médias e aos grupos dominantes), pouco escolarizadas e inseridas no mundo do trabalho em ocupações de baixa qualificação profissional e baixa remuneração.

A autora aponta ainda alguns traços comuns à maioria das pessoas que constituem esse grupo de aprendizes. Esses traços devem ser levados em conta pelos autores de materiais didáticos.

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares Assim, por um lado podemos arrolar algumas características do funcionamento cognitivo geralmente associadas aos jovens e adultos de que tratamos, tais como pensamento referido ao contexto da experiência pessoal imediata, dificuldade de operação com categorias abstratas, dificuldade de utilização de estratégias de planejamento e controle da própria atividade cognitiva, bem como pouca utilização de procedimentos metacognitivo (OLIVEIRA, 1995 apud OLIVEIRA, 1999).

No início do projetofoi feita uma pesquisa baseada em um questionário aplicado aos alunos inscritos, com o objetivo de traçar um perfil desse público. De um total de 378 inscritos distribuídos por oito unidades de ensino, sendo seis no Rio de Janeiro e duas na Baixada Fluminense, responderam à pesquisa 221 alunos, o que corresponde a 58%. Sintetizamos a seguir os dados mais relevantes (PERFIL DO ALUNO EMEJA, 2011). (1) 60% dos alunos são do sexo feminino; (2) 33,5% estão na faixa etária entre 31 e 40 anos; (3) 23,5% estão na faixa etária entre 41 e 50 anos; (4) 53% interromperam os estudos há mais de 10 anos; (5) 49% se afastaram dos estudos por motivo de trabalho; (6) 29% se afastaram dos estudos por motivos familiares; (7) 73% trabalham; (8) 48% não têm vínculo empregatício; (9) 29% trabalham até 12 horas por dia; (10) 52% alegaram a ascensão social como motivação para o retorno aos estudos; (11) 29% alegaram exigência do trabalho como motivação para o retorno aos estudos; (12) 67% têm computador em casa; (13) 71% usam e-mail; e (14) 80% usam algum tipo de rede social. Pode-se constatar, pelo resultado da pesquisa, que o perfil do aluno EJA desse curso muito se assemelha ao perfil traçado por Oliveira (1999). Com relação ao item “excluídos da escola”, constata-se que a “exclusão” se deve mais a razões sócio econômicas do que a uma ação da escola em si. 608

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A organização dos módulos: a temática como ponto de partida Nessa proposta de ensino, a língua estrangeira é apresentada a partir de textos autênticos de diversos gêneros, que abordam temas de interesse dos alunos jovens e adultos. Os temas apresentados visam a provocar questionamentos ou trazer informações úteis, ajudando-os assim a construir sentidos para os textos em inglês e ao mesmo tempo contribuir para a formação da cidadania ao provocar a reflexão sobre questões da atualidade. Os temas das aulas dialogam com outras disciplinas contribuindo para a interdisciplinaridade. Os módulos são organizados atendendo a certos eixos temáticos. Assim, o módulo 1 tem por foco o tema da cultura e da identidade. As aulas privilegiam textos sobre a cidade do Rio de Janeiro apresentando seus aspectos turísticos e culturais; sobre o cinema como expressão cultural e artística e sobre questões como a distribuição de água, o saneamento básico e o lixo. O módulo 2 trata da qualidade de vida. O trabalho, a alimentação, a importância da atividade física, o lazer e o papel das redes sociais na cena contemporânea são questões abordadas nesse módulo. Por fim, o módulo 3 trata da sustentabilidade, da ciência e da tecnologia, trazendo questões sobre turismo e sustentabilidade, as questões ambientais vistas pela ótica do cinema e da mídia, questões climáticas tais como o aquecimento global suas possíveis causas e consequências; as fontes de energia alternativa e a discussão sobre consumo sustentável. Ao se expor o aluno a textos inseridos em contextos significativos, abrangendo diversos temas e gêneros, favorece-se também a aquisição de um vocabulário básico na língua inglesa que servirá de ponto de partida para novas aprendizagens. As estratégias de leitura são apresentadas nas aulas iniciais e trabalhadas durante todas as demais aulas. Os aspectos linguísticos e discursivos são introduzidos a partir de exemplos dos textos, e sempre que possível relacionados à sua função no gênero textual. As aulas na EaD contam com a colaboração de diversos atores: os conteudistas responsáveis pela proposta pedagógica, os revisores dos textos e os designers instrucionais que são incumbidos de organizar os conteúdos dentro de um padrão que seja atraente para o aluno. Normalmente cada curso segue um padrão ou template fixo. Como a grande maioria dos cursos na EaD tem o foco no conteúdo, daí os autores nessa modalidade serem chamados de conteudistas, tivemos que adaptar

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o “design” do curso para se adequar às etapas de uma aula que tem por objetivo desenvolver habilidades de leitura. Todas as aulas desse curso seguem as seguintes etapas: 1) Meta 2) Objetivos 3) Pré-requisitos (quando houver) 4) Introdução 5) Desenvolvimento dos núcleos conceituais 6) Elementos periféricos (verbetes, explicação, curiosidade, multimídia) 7) Atividades e respostas comentadas 8) Resumo 9) Referências bibliográficas 10) Leituras recomendadas Assim, na introdução procura-se ativar os esquemas dos alunos em relação ao tema da aula, acionando os seus conhecimentos prévios e levando-os a fazer previsões e inferências sobre o texto. Na seção relativa aos núcleos conceituais, considera-se se o texto como ponto de partida para as demais atividades. Iniciando-se com atividades de skimming e scanning levando o aluno a identificar as ideias centrais bem como localizar informações específicas no texto. Em seguida os aspectos linguísticos são apresentados a partir da sua função no texto. Ao final da aula o aluno é direcionado para uma atividade de pós-leitura na seção Leituras Recomendadas. As aulas na EaD são textos multimodais,pois além do texto escrito apresentam imagens, verbetes, links para vídeos e músicas e para outros textos. Todos esses recursos fornecem input que contribui para a aprendizagem da língua. As formas de interação na EaD: a mediação da linguagem Os Parâmetros Curriculares Nacionais (LÍNGUA, 2012, p. 72) destacam o caráter sócio interacional do ensino e aprendizagem, ao ressaltar que: De acordo com essa perspectiva, aprender exige a “co-participação social”, ou seja, o engajamento dos participantes no processo conjunto de construção de conhecimento, mediado pela linguagem. A linguagem é concebida como o instru610

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mento simbólico que auxilia no desenvolvimento de novos pontos de vista sobre o mundo. Uma vez que na EAD as interações entre professores e aprendizes não ocorrem face a face, essas interações devem ocorrer, sobretudo por meio da escrita dos materiais de ensino. A linguagem na EaD merece uma análise mais detalhada, a ser desenvolvida em outros trabalhos, pois ela se constitui no fio condutor do processo de ensino e aprendizagem. A voz do professor deve se fazer presente no texto da aula. A linguagem é dialógica, em tom de conversa informal. Frequentemente o professor dirige-se ao aluno por você. Ao se dirigir ao aluno por você, interpela-o e obriga-o a se posicionar no discurso, estabelecendo com ele uma relação dialógica. O uso da primeira pessoa é uma evidência da presença do professor na cena enunciativa. Ao se enunciar o locutor/professor instaura o seu interlocutor/aluno na cena e estabelece a situação espaço-temporal do discurso – o “aqui e o “agora”. As marcas da dêixis, o uso de advérbios de lugar e de demonstrativos, bem como os elementos de oralidade são também recursos linguísticos bastante utilizados e que indicam proximidade, pois, uma conversa pressupõe em princípio que os interlocutores estejam situados face a face. Isto pode ser comprovado pelos exemplos a seguir extraídos das aulas (REGO e ALEXANDRISKY, 2011). O que faz um emprego ser bom? Pense nisso. Será que você concorda com o autor do texto? Após ter saído do MAC, você poderia responder algumas perguntas? Estou curiosa para saber alguns detalhes sobre o museu. Pode ser? Sempre é bom ver imagens do Rio de Janeiro. Dê só uma olhada nestas paisagens. São lindas, não são?

Ao conduzir a aula, o professor o faz em tom amigável, valendo-se muitas vezes de argumentos persuasivos como forma de criar um efeito de empatia e envolver o aluno mantendo-o interessado . Conforme postula Ducrot(apud CHAREAUDOU, 2009, p. 202), a argumentação tem por ‘função “orientar” a sequência do discurso e, portanto, representar uma maneira de agir sobre o outro (interlocutor ou destinatário)’.

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Seguem alguns exemplos extraídos das aulas a título de ilustração: Como você se saiu? Tenho absoluta certeza de que você se saiu muito bem. Não se preocupe se você cometeu erros em alguns exercícios. Não desanime, pois quem é que não erra?Você sabe que aprendemos muito com nossos erros quando os percebemos e analisamos. Continue estudando e o progresso virá junto.

Nessas aulas o esforço persuasivo torna-se ainda mais necessário se considerarmos as características do público da EJA, sujeitos divididos entre a vontade ou a necessidade de voltar aos estudos e as dificuldades inerentes à sua condição sócio econômica. Considerações finais Com essa proposta pretendemos provocar uma reflexão sobre a possibilidade de se desenvolver um trabalho com a língua estrangeira que venha contribuir para o letramento do público da EJA em sentido amplo. Ao se procurar desenvolver as habilidades de leitura em inglês, enseja-se também o desenvolvimento da autonomia do aluno para novas aprendizagens, uma vez que saber ler em uma língua franca favorece o acesso a conhecimentos produzidos por outros povos e culturas. A modalidade de EaD por outro lado, proporciona aos alunos da EJA flexibilidade do tempo para estudo, tendo em vista que as questões familiares ou de trabalho os impedem muitas vezes de frequentar a escola em horários fixos. Acrescente-se a isso o fato de que na EaD, o suporte das Tecnologias da informação e comunicação (Tics) com todas as suas possibilidades, também favorece novas formas de interação bem como o desenvolvimento de outros letramentos.

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REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BRASIL.Proposta curricular para a educação de jovens e adultos: Segundo segmento do ensino fundamental: 5ª a 8ª série, Ministério da Educação. SEF, 2002. CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2009. GRADDOL, David. English Next. 2006. Disponível em . Acesso em 25 ago. 2012. KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 12 ed. (2009). São Paulo: Pontes, 1989. LEFFA, Vilson J..Teaching English as a multinational language. The Linguistic Association of Korea Journal, Seul,Coreia.v.10,n.1,p.29-53,2002. LÍNGUA Estrangeira. 2012. Disponível em: proposta curricular/segundo segmento/vol2_linguaestrangeira.pdf. Acesso em: 9 ago. 2012. MARCUSCHI, L. A. Aspectos linguísticos, sociais e cognitivos na produção de sentido. Revista do GELINE, Recife, ano 1, n. 1, 1999. OLIVEIRA, M. K de. Letramento, cultura e modalidades de pensamento. In: KLEIMAN, A. (org.). Os significados do letramento. Campinas: Mercado das Letras, 1995. ______. Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem. Revista Brasileira de Educação, Caxambu, p. 59-73, set. 1999. PERFIL DO ALUNO EMEJA. Rio de Janeiro:FAETEC/CECIERJ.2011.Mimeo. REGO, M. F.C.; ALEXANDRISKY, M. T. Inglês vols. 1 e 2 .In: EMEJA: Ensino Médio para Jovens e Adultos. Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2011. SENNA, L. A. G. Letramento ou leiturização? O sociointeracionismo na Linguística e na Psicopedagogia. In: CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL, 12. Anais do 12o Congresso de Leitura do Brasil. Campinas (SP): Associação de Leitura do Brasil, 2000, p. 3203-25. SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. Porto Alegre:ArtMed,1998. 613

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“YES, WE CAN!”: (RE) CONSTRUINDO A AUTOESTIMA DOS ALUNOS NA AULA DE LÍNGUA INGLESA ATRAVÉS DE PRÁTICAS DE LETRAMENTO CRÍTICO

Luciana Amorim Pereira Patrícia Helena da Silva Costa

Introdução

A

o elaborarmos nosso planejamento de aulas, nós professores consideramos alguns aspectos como conteúdos, metodologia, objetivos, etc. Porém, em que momento as expectativas dos nossos alunos em relação a nossa disciplina se tornam um elemento importante? No que diz respeito ao ensino de Línguas Estrangeiras, o que os levam a quererem aprender outro idioma? Geralmente, a resposta a essa pergunta está relacionada à aquisição de status social, pois acredita-se que a pessoa que domina uma determinada língua estrangeira apresenta-se como um indivíduo culto, com melhores oportunidades no mercado de trabalho. Devido a essa exigência social, em muitos casos, nossos alunos constroem barreiras em relação ao aprendizado da língua estrangeira, entendendo o idioma como algo distante e impossível de ser alcançado. Diante disso e motivadas pelas falas de nossos alunos, nas quais identificamos um sentimento de incapacidade em relação ao aprendizado da Língua Inglesa, elaboramos esta atividade, realizada com nossos alunos de duas turmas de Projeto de Aceleração, provenientes de duas escolas da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, na qual trabalhamos a questão da autoestima através de práticas de letramento crítico, possibilitando aos nossos alunos reflexões e questionamentos acerca deste assunto. A atividade consistiu na exibição do filme Legally Blonde (Legalmente Loira) e posterior discussão sobre a obra cinematográfica. O filme conta a história da jovem Elle Woods. Bonita, loira, formada em moda, presidente de fraternidade, vencedora de concursos de beleza e namorada de um dos rapazes mais cobiçados da cidade. Quando ela pensa que está prestes a

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ser pedida em casamento, seu namorado termina a relação, com a justificativa de que sua ida para a faculdade de Direito de Harvard fará com ele precise de uma companheira mais séria e comprometida com o futuro. Desprezada pelo homem que ama, Elle chega à conclusão de que a única maneira de recuperar o seu namorado é indo para Harvard também. A escolha desse filme se deve pelo fato da personagem principal enfrentar situações de discriminação, preconceito e superação que muitas vezes estão presentes no cotidiano de nossos alunos. Além de possibilitarmos uma discussão a respeito das questões que envolvem a autoestima, nossos objetivos também incluem o trabalho com alguns aspectos gramaticais da Língua Inglesa como a ampliação do vocabulário dos alunos na língua alvo através da introdução de alguns adjetivos, a conjugação do verbo “to be” no presente simples na forma afirmativa e a apresentação dos pronomes pessoais em Inglês. O presente artigo se propõe a detalhar a atividade desenvolvida com os nossos alunos. Sendo assim, iniciaremos com a revisão teórica dos principais conceitos que norteiam a nossa visão de trabalho. Em seguida, apresentaremos o contexto em que a atividade ocorreu. Feito isso, partiremos para os procedimentos e métodos utilizados com os nossos alunos. Após o detalhamento da atividade, passaremos a descrição e análise dos dados gerados durante as aulas dedicadas a esse trabalho. Para finalizar, faremos algumas considerações a respeito da atividade de um modo geral. Aporte teórico Na primeira parte da revisão teórica desse artigo iremos abordar a relação existente entre o ensino de Língua Estrangeira e a autoestima dos alunos. Para tanto, utilizaremos os aspectos trazidos por Rajagopalan (2009) no que diz respeito à posição em que os discentes se colocam quando se trata do aprendizado de um novo idioma.Em seguida, traremos os conceitos de letramento abordados por Kleiman (1995) e Soares (2001) a fim de determinarmos a visão de ensino-aprendizagem de Língua estrangeira que norteia o nosso trabalho. Em Soares (2001), a autora faz um levantamento sobre o surgimento da palavra letramento, além de tratar das dimensões individuais e sociais que envolvem o termo. Por sua vez, Kleiman (1995), com base nos estudos de Street (1984), aborda os conceitos de letramento autônomo e letramento ideológico, também chamado de letramento crítico. 615

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O ensino de língua estrangeira e a questão da autoestima A questão da autoestima é algo que permeia o contexto educacional. A todo instante, na sala de aula, alunos são desafiados a (re) construírem a sua autoestima diante daquilo que lhes é ensinado. Professores, a todo o momento, ouvem falas como: “Isto é muito difícil para mim”; “Não consigo”; “Não preciso aprender essa matéria, pois nunca vou usar isso na minha vida”. Percebe-se, então, que há um enorme obstáculo entre o aluno e aquilo que o professor lhe ensina. Quando se trata do ensino de uma língua estrangeira, parece que o obstáculo é ainda maior. Os docentes ouvem de seus alunos a clássica pergunta: “Se eu não sei a minha própria língua, como vou aprender uma língua estrangeira?”. Uma vez que aquilo que é estrangeiro sempre representou prestígio, é possível que os alunos venham construir barreiras em relação ao aprendizado de uma nova língua, fazendo com que o novo idioma seja algo distante e inatingível. Dessa forma, os estudantes sentem-se diminuídos em sua autoestima, criando em si mesmos um complexo de inferioridade. Hoje, o que se vê nas salas de aula de língua estrangeira são alunos sentindo-se diminuídos em sua condição linguística. Isto se dá devido a antigas práticas em que “a língua estrangeira e a cultura que a sustenta sempre foram apresentadas como superiores às dos discentes”. (RAJAGOPALAN, 2009, p. 68). Devido ao mundo globalizado de hoje, tende-se a uma nova visão do que seja verdadeiramente uma língua estrangeira. Os meios de comunicação permitem o contato entre línguas distintas e o diálogo entre culturas. Isto pode colaborar de forma significativa a redefinir o propósito do que seja aprender uma língua estrangeira, em que o aluno possa ser capaz de dialogar com outras culturas, outros conhecimentos em diferentes formas de pensar e agir. No contexto educacional, a língua estrangeira não pode ser compreendida somente como um componente da grade curricular. De acordo com Rajagopalan (2009, p. 69), “aslínguas são a própria expressão das identidades de quem delas se apropria”. Portanto, torna-se necessário promover reflexões acerca do aprendizado de uma língua estrangeira de forma que o aluno possa (re) construir sua autoestima e desfazer as barreiras que este mesmo tem construído.

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Letramento: origens e definições Dando início à discussão em torno do termo letramento, o primeiro ponto que merece destaque é a origem da palavra. Letramento é a versão para o Português da palavra em Inglês literacy. No Cambridge Dictionaries Online1 literacy significa “the ability to read and write” que em Português quer dizer “a habilidade de ler e escrever”. Ao buscarmos o adjetivo correspondente ao substantivo literacy, chegamos a literate, “able to read and write”, cuja tradução é “capaz de ler e escrever”. Assim, se letramento é a habilidade de ler e escrever e uma pessoa letrada é aquela capaz de ler e escrever estamos falando de algo que vai além de saber ler e escrever, ou seja, de ser alfabetizado. Após tratarmos brevemente da origem da palavra letramento, cabe agora abordarmos os motivos que levaram ao surgimento do termo. Temos em Soares (2001) uma possível explicação: […] só recentemente passamos a enfrentar esta nova realidade social em que não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do escrever, saber responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente – daí o recente surgimento do termo letramento […]. (SOARES, 2001, p. 20).

Para compreendermos melhor a nova realidade a que a autora se refere, iremos utilizar as duas principais dimensões do letramento propostas por Soares (2001): a dimensão individual e a dimensão social. Na dimensão individual a leitura e a escrita são um conjunto de habilidades linguísticas e psicológicas essencialmente pessoais. Essa visão de letramento considera o mesmo como um atributo pessoal, “uma tecnologia ou conjunto de técnicas usadas para a comunicação e para a decodificação e reprodução de materiais escritos ou impressos […].” (GRAFF,1987a, apud, SOARES, 2001, p. 66). Em contrapartida, a dimensão social entende que o letramento não é simplesmente um conjunto de habilidades de leitura e escrita, mas é, antes de tudo, uma

Disponível em: Acesso em: 06 jan. 2012

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prática social. Neste sentido, letramento é visto como o uso dessas habilidades em contexto social. Assim como em Soares (2001), cujas concepções de letramento são contempladas por dimensões individuais e sociais, também em Kleiman (1995) encontramos estudos que corroboram as duas facetas que compõem esse fenômeno. Com base em Street (1984), a autora apresenta dois modelos de letramento que, assim como os propostos anteriormente, relacionam-se de maneira complementar: os modelos autônomo e ideológico. O modelo autônomo, tal qual a concepção individual, vê o letramento como uma forma de progressão social. As habilidades de leitura e escrita são, sobretudo, os caminhos para se chegar ao sucesso escolar. É importante ressaltar que o termo autonomia, de acordo com Kleiman (1995, p. 22), “refere-se ao fato de que a escrita seria, nesse modelo, um produto completo em si mesmo, que não estaria preso ao contexto de sua produção para ser interpretado […]”. O modelo ideológico, também chamado de modelo crítico, se assemelha muito à dimensão social proposta por Soares (2001). Aqui, o letramento também é entendido como prática construída social e culturalmente e que, por isso, não pode ser desvinculado das crenças, tradições e valores que perpassam todas as esferas sociais. Seguindo os passos de Kleiman (1995), que se baseou nos estudos de Street (1984) ao tratar dos modelos de letramento, iremos utilizar as concepções do mesmo autor a fim de apresentar a visão de letramento que norteará o nosso trabalho a partir de agora. Assim como Street (1984, p. 97), compreendemos que o letramento “é mais do que somente a tecnologia na qual ele se manifesta. É um processo social, no qual tecnologias socialmente construídas são usadas para propósitos sociais específicos”2. Sendo assim, o conceito de letramento crítico irá embasar o nosso trabalho e a nossa visão de ensino-aprendizagem de Língua Estrangeira, mais especificamente de Língua Inglesa. No que diz respeito ao ensino desse idioma, entendemos que o mesmo não pode ser considerado somente do ponto de vista estrutural, no qual todas as atenções são voltadas para a produção de enunciados de acordo com a norma padrão, mas também do ponto de vista social, no qual o ensino do idioma é contextualizado e inserido no cotidiano dos alunos.

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Tradução nossa.

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Contexto de trabalho O trabalho foi realizado em duas turmas, Aceleração 2 e 3, de duas escolas da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro. Ambas as turmas pertencem ao Projeto Autonomia Carioca, realizado em parceria com a Fundação Roberto Marinho, cujo objetivo é promover a aceleração de estudos e corrigir a defasagem idade-série. O Aceleração 2 é formado por alunos oriundos do 6° ano do ensino fundamental com defasagem idade/ano de escolaridade, enquanto que o Acelera 3 constitui-se de alunos do 7º e 8º anos do ensino fundamental, também com o mesmo tipo de defasagem. Cada turma possui cerca de 30 alunos, com aulas ministradas por um professor regente (Professor I) responsável por trabalhar todas as disciplinas curriculares, exceto Língua Estrangeira (Língua Inglesa) e Educação Física, cujas aulas são de responsabilidade de um professor específico da área. O professor regente utiliza materiais elaborados a partir da Metodologia Telessala3, ao passo que o professor de Língua Inglesa pode utilizar os recursos sugeridos pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME), que vão de propostas de atividades a livros didáticos, além de também poder produzir o seu próprio material, uma vez que a Língua Estrangeira não é contemplada pela metodologia em questão. Procedimentos metodológicos A atividade pedagógica foi distribuída em 4 aulas de 1h40min cada, realizadas nos dias 9, 16, 23 e 30 de novembro de 2011. Para a realização da mesma, foram utilizados notebook, data show, etiquetas de papel, fita adesiva, slides, o filme Legalmente Loira e um worksheet. O conteúdo das etiquetas, dos slides e o worksheet encontram-se nos anexos desse artigo. A fim de gerar os dados das aulas, foram empregados notas de campo e gravações de áudio das aulas. No primeiro dia da atividade, foram distribuídas, em uma mesa, as tiras de papel com adjetivos. Os alunos escolheram os adjetivos que os melhor representam Nas salas de aula que fazem uso dessa metodologia, utilizada em todos os projetos da Fundação Marinho, os alunos assistem às teleaulas ao mesmo tempo em que têm atividades específicas, desenvolvidas para que concluam os seus estudos. 3

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e fixaram as “etiquetas” na parte da frente da blusa utilizando fita adesiva. Feito isso, eles justificaram as escolhas, explicitando os motivos que os levaram a selecionar determinadas palavras. Após essa discussão, os alunos retomaram a escolha de adjetivos, porém não para eles mesmos, e sim para alguns personagens do filme, cujas figuras foram expostas em slides. Divididos em grupos, os alunos falaram sobre diferentes personagens do filme, antes de assisti-lo. Mais uma vez, eles explicaram as escolhas, o que gerou uma nova discussão. As informações referentes às escolhas e justificativas serão descritas e analisadas posteriormente. O segundo dia foi dedicado à exibição da obra cinematográfica. Com duração de 1h36min, o filme foi exibido com áudio em Inglês e legendas em Português. Devido à extensão dessa parte da atividade, preferiu-se não realizar nenhuma outra etapa, a não ser a exibição do filme. Já no terceiro dia, logo no início da aula, os alunos fizeram, oralmente, um breve resumo do filme. Em seguida, mostraram-se novamente os slides com os personagens, para que os alunos pudessem rever os adjetivos que haviam sido escolhidos na primeira aula. A partir daí, questionou-se as opiniões anteriores dos alunos e solicitou-se que eles repensassem a discussão do primeiro dia. Nesse momento, os alunos utilizaram o conhecimento que eles tinham dos personagens antes e depois do filme. Cabe ressaltar que essas questões também serão descritas e analisadas mais adiante. Em seguida, o trabalho foi voltado para o trabalho com a Língua Inglesa. Através das imagens dos personagens do filme, os alunos foram apresentados, na língua alvo, aos adjetivos que eles haviam escolhido. Feito isso, os alunos escreveram frases, em Inglês, sobre os personagens do filme, partindo dos exemplos fornecidos pelo professor (She is intelligent; He is charming; etc). Ao final dessa tarefa, as frases produzidas pelos alunos foram corrigidas, a fim de esclarecer as possíveis dúvidas dos discentes. No quarto e último dia de aula da atividade, os alunos receberam umworksheet com questões mais específicas sobre os temas abordados pelo filme. Após a explicação dos exercícios, os alunos foram encorajados a trabalhá-los em grupos. Em seguida, o professor pediu que os alunos contribuíssem com as suas respostas, para que uma nova discussão pudesse ser encaminhada sobre os aspectos do filme que mais chamaram a atenção dos alunos e suas relações com os adjetivos que eles escolheram para si mesmos. A seguir, teremos a descrição e análise dos dados gerados durante os 4 dias em que a atividade foi desenvolvida. 620

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Análise dos dados No que diz respeito ao primeiro dia da atividade, no momento em que os alunos escolheram os adjetivos que os melhor representavam, os discursos mais produzidos foram: Aluna 14: “Eu me acho inteligente porque tiro boas notas.” Aluno 2: “Ah, professora, eu sou esperto. Eu pego rápido as coisas.” A distinção de gênero justifica-se pelas diferenças encontradas nas falas das meninas e dos meninos. Enquanto as meninas ressaltaram a inteligência, os meninos deram preferência à esperteza e em raros momentos utilizaram o adjetivo “inteligente”, apontando, assim, para uma divergência entre “ser inteligente” e “ser esperto”. Apesar de os objetivos desse trabalho não incluírem a separação das falas dos meninos e das meninas, acreditamos que esse também é um aspecto que merece atenção, principalmente no que diz respeito às práticas de letramento nas quais os alunos estão envolvidos, assunto que iremos abordar mais adiante. Já ao falar sobre os personagens do filme, os quais eles ainda não conheciam, os alunos deram atenção à aparência física, escolhendo adjetivos como “bonito(a)” e “charmoso(a)”. Após assistirem o filme, a visão que os alunos tinham sobre os personagens sofreu alterações. Dessa vez eles optaram por ressaltar o caráter e as atitudes, selecionando palavras como “honesto(a)” e “responsável”. Além disso, acrescentaram o adjetivo “determinada”, ao falarem da personagem principal do filme, como veremos a seguir. Podemos dizer que a mudança de opiniões depois do filme já era esperada, devido ao fato dos alunos não possuírem nenhuma informação prévia dos personagens e também pelos assuntos abordados pelo filme, que motivaram uma reflexão a respeito das situações representadas na obra cinematográfica. O trabalho com o worksheet nos forneceu a oportunidade de aprofundar os temas trazidos pelo filme. Ao serem questionados sobre o personagem com o qual mais se identificaram, as falas mais recorrentes produzidas pelos alunos foram:

A fim de manter a identidade dos alunos em sigilo, os mesmo foram nomeados “Aluna(o) 1 e 2”. 4

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Aluna 1: “Eu sou determinada, igual a personagem principal.” Aluno 2: “Eu escolhi o namorado dela (da personagem principal) porque sou charmoso como ele.” Mais uma vez, encontramos uma diferença de escolhas entre meninas e meninos. As alunas se aproximaram mais das atitudes da personagem principal, que durante todo o filme lutou pelo o que queria: a princípio, o objetivo era reconquistar o namorado, porém, com o desenrolar da estória, ela se esforça para mostrar que também pode ser uma brilhante advogada. Ao se identificarem com Elle Woods, podemos entender que as meninas se consideram pessoas determinadas, seja na vida amorosa, seja na profissional. Em relação aos meninos, a aproximação ocorreu por outros caminhos. Mesmo reconhecendo que o namorado de Elle Woods não apresentou uma atitude correta, os meninos destacaram as qualidades físicas do personagem, e por consequência, as deles mesmos. Ao discutirem a respeito das questões sobre autoestima presentes no filme e a sua relação com o cotidiano dos alunos, o discurso mais encontrado entre os discentes foi: Aluna 1: “Ah, professora, eu nunca parei pra pensar sobre isso.” Aluno 2: “Dependendo da situação eu tenho uma alta autoestima.” Nesse momento, abrimos espaço para que a turma trouxesse as suas experiências para a sala de aula e, com base no que assistiram no filme, refletissem sobre a sua própria autoestima. Enquanto que a maioria das meninas relatou nunca terem se dedicado a pensar sobre o assunto, os meninos destacaram as situações em que apresentam alta autoestima. Na maioria das situações mencionadas, eles descreveram momentos em que estão juntos dos amigos e os que vivem dentro da escola. Algumas meninas também lembraram fatos como o de serem “zoadas” por outros colegas da escola por jogarem futebol. Uma delas chegou a dizer que sua autoestima é elevada durante a prática desse esporte, atividade que, de acordo com ela e outros alunos da turma, desempenha muito bem. Porém, o sentimento muda quando outros alunos a discriminam por ser uma menina que joga futebol. Percebemos aqui, como a vida escolar é marcante na vida dos alunos, o que é totalmente compreensível, já que eles passam a maior parte do tempo dentro da instituição educacional. Outra esfera social também muito presente é a relação

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com os amigos, tanto na escola, quanto nas proximidades de suas residências. As diversas práticas de letramento nas quais os alunos se engajam, como por exemplo, a escola ou em casa com os amigos, trazem reflexos que se mostram relevantes não só na formação acadêmica do aluno, mas também no que se refere à construção da sua autoestima, influenciando assim, a maneira dos alunos enxergarem a si mesmos e aos outros. Ao se sentir incomodada pelos comentários dos colegas a respeito do esporte que pratica, a aluna admite passar por momentos de baixa autoestima. Momentos esses que sempre se repetem, já que ela os vivencia na escola. Trazendo esse dado para a postura da turma em relação ao sentimento de incapacidade perante o aprendizado de Língua Inglesa, podemos dizer que há uma tendência de que essa baixa autoestima se estenda às aulas de Língua Estrangeira, diminuindo assim, a confiança dos alunos a ponto de eles dizerem que Inglês é muito difícil e que eles não conseguem aprender a língua. Quando Rajagopalan (2009) fala sobre o estranhamento, a distância que existe entre os alunos e a Língua Estrangeira, no nosso contexto específico a Língua Inglesa, é necessário que investiguemos a origem desse sentimento, ou seja, em quais práticas sociais os alunos estão engajados e como elas interferem na visão de mundo dos alunos. Ao compreendermos que “quem aprende uma língua nova está se redefinindo como uma nova pessoa” (RAJAGOPALAN, 2009, p. 69) devemos nos lembrar também que essa “nova pessoa” já possui a sua bagagem, as suas próprias experiências, que continuam fazendo parte desse “novo indivíduo”, que se (re) constrói a todo momento, seja na escola ou em casa com os amigos. Considerações finais Ao finalizarmos essa atividade pedagógica, percebemos o quanto é importante darmos espaço a esse tipo de discussão em sala de aula. Nosso objetivo, em nenhum momento, foi o de mudar completamente a forma como nossos alunos enxergam o aprendizado de Língua Estrangeira, ou fazer com que Inglês se tornasse a disciplina favorita deles. O nosso intuito era propor aos discentes uma oportunidade de unir o aprendizado da língua alvo à reflexão do que acontece ao seu redor, de fatos que por fazerem parte do seu dia a dia também são responsáveis pelo que são e pensam.

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Sendo assim, propusemos aos alunos a oportunidade de (re) construírem a sua autoestima, não somente em relação ao aprendizado da Língua Inglesa, mas também no que diz respeito às práticas sociais nas quais estão engajados em seus cotidianos. Acreditamos ter sido possível mostrar aos alunos que ser inteligente, esperto(a) ou determinado(a) não se trata apenas de tirar boas notas, mas também de olhar para si mesmo e dizer: “Yes, I can speak English!”.

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REFERÊNCIAS

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ARTES VISUAIS COMO RECURSO DIDÁTICO EM AULAS DE LÍNGUA ESPANHOLA

Lusimar dos Santos de Andrade

A

partir de uma série de problemas apresentados por estudantes do Ensino Médio, como falta de atenção, dificuldades de assimilação e déficit no coeficiente de aprendizagem, e pela maioria das escolas a eles destinadas, como carência de material diversificado para as aulas –pensamos que nossos alunos, a maior parte das vezes, não se sentem incentivados a aprender o idioma estrangeiro e isso acaba provocando um certo bloqueio inicial que, se não for revertido logo, pode também levar o professor a perder seu estímulo para a aplicação de suas aulas. É fato comprovado que o ensino de um componente curricular de forma isolada, fragmentada, hoje já está ultrapassado. Nesse sentido, nada melhor do que uma abordagem interdisciplinar, que auxilie o aluno a perceber que a Língua Estrangeira, (aqui nos dedicaremos ao Espanhol), pode estar presente em seu dia-a-dia, fazendo parte de seu cotidiano, e não que continue a entender o aprendizado do Espanhol, como segunda língua, apenas como “mais uma matéria do currículo”. Ao mesmo tempo, entendemos que desenvolver uma competência comunicativa requer, entre outras coisas, não somente aprender estruturas gramaticais e armazenar uma grande gama lexical, mas também discernir variadas situações discursivas nas quais elementos que constroem o sentido - o significante - dirigem a compreensão do emitido pelo falante. Para esse desenvolvimento é relevante compartir, de alguma forma, o universo da comunidade cuja língua o estudante está aprendendo, com a sua própria cultura. Considerando-se, assim, que aprender línguas é também aprender cultura, observamos que, por sua vez, aprender cultura é apreender os múltiplos significados da língua. Sabendo-se que o Mundo contemporâneo se caracteriza pela forte presencia da comunicação visual. E que esta é a forma mais antiga de informação registrada

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da humanidade. Analisamos que o uso de artes visuais, em particular a pintura, como recurso didático para o ensino de língua estrangeira, neste caso, o espanhol, é um grande aporte para tornar nossos alunos mais ricos culturalmente; e dar-lhes a oportunidade de, através da arte, apreender diferentes momentos históricos, diferentes movimentos e linguagens artísticas, e perceber semelhanças e diferenças no modo de ver de viver de cada povo. A pintura sempre foi uma abstração, desde as covas de Altamira até Picasso, passando por Velázquez. Perante os fanáticos do realismo, eu disse muitas vezes que a realidade nunca esteve na pintura, mas que unicamente se acha na mente do espectador. A arte é um signo, um objeto, algo que sugere a realidade do nosso espírito. (LOPERA; ANDRADE, 1995, p. 7). Constatamos também que os Planejamentos Curriculares Nacionais (PCNs), no que dizem respeito à Arte, afirmam que: “Aprender arte envolve, basicamente, fazer trabalhos artísticos, apreciar e refletir sobre as formas da natureza e sobre as produções artísticas individuais e coletivas de distintas culturas e épocas” (PCN/Arte, 2000, p.15, apud Ferreira, p.14). Entretanto, para a presente proposta de análise, direcionada ao ensino de LE/E em sala de aula, não caberia a realização de trabalhos artísticos por parte dos estudantes, portanto ampliaremos o enfoque na apreciação e leitura de produções artísticas individuais que ofereçam, tanto ao aluno quanto ao professor, suportes para uma maior interação entre cultura e língua espanhola. Mas não basta, para uma melhor assimilação do conteúdo ensinado sobre uma outra cultura, apenas a pura e simples exposição de conteúdo. Torna-se importante sua contextualização e sua interdisciplinaridade. Quanto a esta última, reuniões entre professores de LE/E e demais matérias curriculares podem oferecer meios para a aplicação conjunta pedagógica de conteúdos significativos, desenvolvidos a partir das classes de LE/E. A contextualização, geralmente, permite aos estudantes uma maior assimilação de conteúdos por aproximações e semelhanças, ou mesmo por comparações e diferenças fundamentais de aspectos culturais entre o país de língua materna e aquele do qual se aprende o idioma como segunda língua. Embora isso possa parecer difícil a alguns professores, faz-se necessário que se compreenda a importância do problema e que uma das possíveis soluções dependerá muito da integração do ensino da Língua Estrangeira com as demais áreas do conhecimento, pertinentes ao currículo das escolas. Outro fator também 627

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importante será a busca, por parte do professor, de inovações metodológicas, de novos recursos áudio visuais que estimulem nos estudantes o querer aprender não somente uma nova língua, um novo idioma, mas também uma nova cultura. E isso se posiciona de acordo com os PCNs quando explicam que, ao conceber-se a aprendizagem de LE de uma forma articulada, em relação à competência linguística de seus componentes, torna-se necessário dar importância às questões culturais. A aprendizagem passa a ser entendida, então, como recurso de ampliação cultural. Ao conhecer outra(s) cultura(s), outra(s) forma(s) de encarar a realidade, os alunos passam a refletir, também, muito mais sobre a sua própria cultura e ampliam sua capacidade de analisar o seu entorno social com maior profundidade, tendo melhores condições de estabelecer vínculos, semelhanças e contrastes entre a sua forma de ser, agir, pensar e sentir e a de outros povos, enriquecendo a sua formação. (PCNs, Ensino Médio, 2000).

O grande desafio é o de levar o professor a se sentir confortável para trabalhar as propostas didáticas disponíveis nos manuais atuais, e/ou, então, desenvolver projetos próprios e interdisciplinares tanto quanto lhe permitam a imaginação e a criatividade. Ainda pertinente com as reflexões anteriores, nos questionamos: como podemos, enquanto professores de LE/E e não como professores especificamente de artes, trabalhar os possíveis diálogos entre a pintura e o ensino da língua? Qual a possibilidade de um projeto de trabalho envolvendo o ensino da língua estrangeira dialogando com a pintura? A pintura, é um dos elementos primordiais das Artes Visuais, se constitui em um recurso autêntico, flexível e com enorme caráter lúdico, que possibilita a esse novo tipo de professor, mediante uma adequada exploração didática, criar contextos de uso da língua acrescido dos conteúdos históricos e culturais presentes nas obras de diferentes artistas espanhóis e hispano-americanos. Esse recurso, com o uso da pintura artística contextualizada em seus aspectos históricos e sociais, torna-se de grande valor para o desenvolvimento da competência comunicativa e lingüística, a partir de um trabalho integrado com outras disciplinas. Porque não podemos negar o valor das artes visuais como elemento de integração entre o ensino de história, literatura, artes, informática, matemática e

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tantas outras áreas do conhecimento humano. Podemos, sim, explorar essa interdisciplinaridade possível, ensinando a apreender novos conceitos. O importante é que o aprendizado seja essencial e aceito por todos: professores e estudantes. Segundo o que Francisco Moreno Fernández descreveu em “El contexto social y el aprendizaje de una L2/LE” (p. 287), a interpretação dos processos de aprendizagem a partir de uma perspectiva social e cultural vem de longe. Um dos mais brilhantes antecedentes, segundo ele, é o das teorias do psicólogo Lev S. Vygotsky, nas quais afirmou que o conhecimento não é um objeto que se transmite de indivíduo a indivíduo, e sim algo que se constrói por meio de operações e habilidades cognitivas que se induzem na interação social. Acrescenta também que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores tem lugar, primeiro, no plano social e, posteriormente, no plano individual. A transmissão e a aquisição de conhecimentos e padrões culturais se produzem quando, por meio da interação, se chega a interiorização, entendida como processo intra-psicológico. Partindo desta perspectiva teórica, a aquisição de segundas línguas não poderia entender-se como independente do meio social em que se produz e seria a interação a que permitiria que o processo se complementasse. Porém, essa aplicação deve ser bastante clara e consciente por parte do professor, pois ele como representante/falante oficial em sala de aula, da Língua Estrangeira ora ensinada, também responsável pela proposição de contextualização cultural entre seus aprendizes, fomentando redes de interação subjetivas, será também (ele, o professor enquanto indivíduo) o exemplo primordial a influir no aprendizado de seus alunos. De acordo com este pensamento, encontramos Joaquín Díaz-Corralejo Conde que nos ensina que todo professor deve estar consciente da complexidade do ato didático e da influência que exerce nas escolhas metodológicas do ensino da Língua Estrangeira. Por isso, afirma, “a consciência profissional é uma exigência epistemológica, psicológica e didática.” (CORRALEJO. 2005, p. 249). Portanto, e baseados no que nos dizem os PCNs, torna-se fundamental pensar o ensino e a aprendizagem das Línguas Estrangeiras Modernas no Ensino Médio sob a constante ótica de competências abrangentes e não estáticas, nem isoladas, uma vez que uma língua é o veículo de comunicação de um povo por excelência e é, através de sua forma de expressar-se, que esse mesmo povo transmite sua cultura, suas tradições, seus conhecimentos. Daí, então, a prioridade do enfoque destaanálise em desenvolver alguns pontos relativos às Artes 629

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Visuais, mais especificamente à Pintura, como diálogo aplicado em sala de aula, no propósito de aprimoramento do ensino/aprendizagem de L2/LE, aqui objetivamente ao ensino da língua espanhola. Também pensamos de forma semelhante a Ana Mae Barbosa, quando a pesquisadora nos chama a atenção para o fato de que a interculturalidade, a interdisciplinaridade e a integração das Artes e dos meios como modos de produção e significação são elementos que nos fazem desafiar os limites, buscando em novas fronteiras e territórios rearticular nossa visão de mundo e de nós mesmos(BARBOSA, 2005, p. 41).Conceitos estes que podem ser transpostos por o trabalho em sala de aula, no ensino de língua estrangeira (LE/E), quandopensamos em desafios maiores que o estudo apenas lingüístico, direcionando nosso enfoque também para as questões culturais que permeiam o uso de qualquer idioma, buscando assim possibilidades de facilitação no ensino e aprendizado do idioma não materno. Entre as muitas definições e interpretações sobre o que é a interculturalidade, nos parece muito significativo, para uma melhor compreensão do que expomos nesta monografia, o que disse o prof. Leonardo Caravana Guelman, na introdução ao livro Interculturalidades (Guelman, L. & Rocha, V., 2004, pp. 11-12), que transcrevemos a seguir: “O diálogo se coloca então, para nós, como um desafio. […] Como, então, deslocar de seu contexto uma manifestação cultural espontânea? Trabalhar com interculturalidade é necessariamente trabalhar com essas desterritorializações? […] Podemos vislumbrar soluções, alternativas? Ou deveríamos abandonar idéias restritas de cultura e velhos vícios de lidar da mesma forma com o que é diferente? Essa seria uma boa solução. Mas como operacionalizá-la? Como articular setores e agentes em torno de uma política intercultural, mesmo em situações de guerras culturais, na tentativa de despertar para a atual necessidade de trocas culturais? Elas são necessárias porque vivemos uma realidade de destruição das relações humanas e consequente enfraquecimento da humanidade como unidade. Nesse contexto, podemos pensar em uma ecologia das relações, ou seja, em orientar as relações para um caminho dialógico e ecológico (circular), onde prevaleçam interesses heterogêneos, mas com o interesse consensual e homogêneo do diálogo como base dessas relações. Se quisermos falar em interculturalidades e, mesmo, promovê-las – pois elas tanto são um caráter da cultura como podem ser estimuladas -, temos que concentrar nossas forças nas possibilidades de soluções que uma atitude de mediação nos traz; atuar levando

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em consideração a memória de cada grupo, seus desejos, a importância de seus ritos e, principalmente, suas perspectivas com relação ao outro e às interações inevitáveis, espontâneas ou induzidas, com diferentes olhares e pensamentos”. Desta forma, e tendo como suporte teórico-pedagógico o livro O ensino de artes e de inglês: uma experiência interdisciplinar, da doutora em Artes e arte-educadora Ana Amália Tavares Bastos Barbosa, exemplificamos, como atividade interdisciplinar para ser utilizado no ensino de LE/E, com alunos do Ensino Médio, um trabalho de múltiplas leituras sobre o quadro “Tres de mayo en Madrid”, pintado pelo español Francisco de Goya y Lucientes, terminado em 1814.

Tendo como referência o que expusemos anteriormente, entendemos que ao serem aplicados elementos de artes visuais no ensino de LE/E (como já explicitamos, o elemento aqui é a pintura), o professor terá um campo enorme de possibilidades para o tratamento de temas transversais, assim como, para a manutenção do direcionamento da atenção dos estudantes em sala de aula. Elegemos para esse projeto de trabalho um dos mais significativos e conhecidos pintores mundiais - Francisco de Goya y Lucientes, nascido na Espanha e que bem retratou, em muitos de seus quadros, aspectos da história política e social de seu país natal.

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O professor que orienta o processo deve ter também não só o domínio da disciplina, mas, principalmente desenvolver a percepção de como pode realizar o trabalho de múltiplas leituras sobre o quadro, naturalmente, sem criar situações forçadas, mas sim elos entre universos apenas aparentemente distintos. Entendemos que outras disciplinas podem se beneficiar também. Para isso, o fundamental é manter a mente aberta para a criatividade. O trabalho proposto, como exemplo, consiste, no âmbito da interdisciplinaridade, em buscar as possíveis leituras sobre “Conflitos sociais da atualidade e violência” de acordo com as seguintes disciplinas: Artes Plásticas, Filosofia, História, Geografia, Sociologia e Língua Espanhola. Para isso, tomamos como ponto de partida para leituras e aportes o já referido quadro de Goya, por ter sido produzido, pelo pintor, como uma homenagem às vítimas da Guerra da Independência, ocorrida na Espanha entre 1808 – 1814. A pintura intitulada “Tres de mayo en Madrid” faz parte de uma série. Também utilizamos, como referencial de estudo para os alunos, dois textos em língua espanhola, aproveitando desta forma aplicações da estrutura gramatical e lexical da língua afim. O primeiro, uma biografia sobre o pintor, extraído do site espanhol na Internet “Vidas y Biografías”; e o segundo, sobre a pintura selecionada, utilizamos o texto, escrito por Maria Victoria Romero e Emílio Quintanilla e encontrado em seu livro “Para ver y para hablar – 50 obras de arte español”: Aplicação prática: 1) Projeto de caráter interdisciplinar com o título “Conflitos sociais da atualidade e violência”. 2) Público alvo: uma turma de 2º ano do Ensino Médio. 3) Duração: em torno de 60 dias(16 aulas da língua espanhola). 4) Objetivo geral: conscientizar alunos, professores, escola e comunidade, sobre a necessidade de desenvolver sentimentos de respeito mútuo, justiça, diálogo e solidariedade, valores referenciados no princípio da dignidade do ser humano. E assim contribuir na formação do aluno para a prática cidadã, propondo atitudes que o encaminhe para uma melhor valorização das condutas humanas, possibilitando a autonomia moral e condições para a reflexão ética. A culminância desse projeto vai fomentar no aluno a oportunidade não só de praticar a oralidade e aprofundar alguns conhecimentos estruturais da língua espanhola, como também cumprir um papel muito importante na educação que é a

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formação da cidadania. Por meio dessas aulas ele (o aluno) será levado a refletir e interpretar aspectos sócio-culturais espanhóis e de seu país natal, será estimulado a desenvolver atitudes de respeito e a vivenciar experiências que despertem a sensibilidade e a descoberta de valores estéticos no próprio processo de aprendizagem. Considerações finais Desta forma, entendemos que trabalhar com pintura, a partir de suas possíveis leituras, em aulas de LE/E, ou conjuntamente em projetos interdisciplinares, é um desafio motivador e criativo tanto para alunos quanto para professores. Em nossa análise, constatamos que o desafio do professor, ao promover mudanças internas de atitude, assumindo uma postura comprometida em reelaborar o trabalho pedagógico, é determinar o que ele próprio irá ensinar e como avaliará o envolvimento, o progresso e a participação, tanto seu quanto de todos os seus alunos. Porém, acreditamos que essas mudanças estruturais produzirão alunos mais motivados, uma vez que, quando estes se interessam por um assunto, costumam refletir sobre ele, envolvendo-se e buscando novos conhecimentos. Assim, concluímos que as técnicas e procedimentos desenvolvidos em salas de aula, no ensino de língua estrangeira, já não podem, como se fez durante décadas (especialmente durante a vigência dos enfoques situacional e audiovisual), privilegiar somente o trabalho com as quatro habilidades básicas – leitura, compreensão, expressão escrita, bem como a expressão oral – mas sim articulá-las com outras atividades que desenvolvem as habilidades de compreensão e interpretação de si e do outro. Essa demanda, tratada de modo mais completo com temas transversais, visa a que, no processo educativo, os estudantes adquiram autonomia no processo de construção de sua cidadania, com a consequente inserção de si mesmos no âmbito étnico, no de suas comunidades e dessas em um contexto maior, o das sociedades globalizadas e informatizadas.

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REFERÊNCIAS

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A INTERAÇÃO SOCIOCONSTRUTIVISTA NOS CHATS COMO PRÁTICA DE LEITURA E ESCRITA NO ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA

Márcia Verena Firmino de Paula

Introdução Percebe-se a grande influência das novas tecnologias no ensino de línguas estrangeiras. Inserir os alunos dentro de uma prática de ensino cuja abordagem comunicativa perpassa os recursos midiáticos parece mostrar um caminho mais dinâmico e moderno dentro de um contexto sociointeracional. De modo que o educando possa conhecer, apreender e praticar os conteúdos apresentados nos diversos campos de sua formação e de sua vida como cidadão. Logo, como forma de interação em grupo, a escolha do chat como gênero digital agregador nas aulas de língua estrangeira implica na motivação das trocas de experiências, na percepção de elementos linguísticos em Língua Estrangeira que podem ser trabalhados, a fim de que o sujeito possa aperfeiçoar o léxico, a estrutura e a formação de palavras (na língua materna). Possibilitando o exercício da síntese na demanda da velocidade na escrita (para elaboração de mensagens curtas e objetivas), além de promover a rapidez na leitura para identificação das temáticas abordadas. A mediação do professor, nesse contexto, é de extrema importância. Deve-se expor o conteúdo e facilitar a comunicação escrita, construindo um conhecimento articulado para, então, se ter um feedback positivo acerca do processo. Portanto, o objetivo desta pesquisa visa no desenvolvimento de um plano de aula articulado com foco em uma abordagem construtivista, a fim de utilizar recursos modernos para que a aprendizagem se torne algo motivador para o aluno.

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A abordagem construtivista como método de ensino A abordagem construtivista baseia-se em um método que desperta a motivação do aluno, levando-o a pensar e refletir por ele mesmo, se tornando crítico e criativo. Nessa Concepção, o aluno constrói o próprio conhecimento com a mediação do professor. No entanto, o ato de aprender se faz inteiramente essencial aos fatos cotidianos. O educando coloca em prática tudo aquilo que ele aprende no ambiente escolar no seu próprio contexto, interagindo com o mundo, no mundo e para o mundo. Sendo assim, a aprendizagem é de natureza sociointeracional, pois aprender é uma forma de estar no mundo social com alguém, em um contexto histórico, cultural e institucional. Assim, os processos cognitivos são gerados por meio da interação entre um aluno e um participante de uma prática social, que é um parceiro mais competente, para resolver tarefas de construção de significado/conhecimento com as quais esses participantes se deparem. (PCNS LÍNGUA ESTRANGEIRA, 1998, p.57). O processo de construção e o próprio conhecimento são extremamente importantes. Com isso, o educador é responsável por auxiliar o discente nesse processo, incentivando-o a desenvolver a criticidade e a reflexão sobre tudo aquilo que está sendo ensinado a ele, mostrando, também, a real utilidade das coisas e a sua funcionalidade no mundo. De forma que ele seja autônomo e responsável pelo próprio aprendizado para, constantemente, exercer as suas práticas sociais. […]a filosofia cartesiana propunha a existência de um sujeito autônomo, identificável pela sua capacidade de pensamento e de consciência, contribuindo, portanto, inevitavelmente para a (re)construção dos conhecimentos. (MACHADO & MATENCIO, 2006, p. 179). É por meio do experimento, da vivência que se fixa o conhecimento. Ele acontece espontaneamente sem qualquer pressão. Ao perceber o real sentido das coisas, pode-se concluir que descobrindo sozinho ou interagindo com as pessoas, tudo o que é construído é válido desde que se tenha discernimento na aplicação de suas escolhas no momento certo. A importância do uso do gênero digital chat como instrumento no ensino da língua estrangeira

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Aprender uma segunda língua pode não parecer agradável para muitos alunos, ainda mais, se essa aprendizagem for de forma monótona e desmotivadora. O ensino de LE exige um conteúdo diversificado nos dias de hoje. Além disso, requer profissionais articulados e motivadores no processo de aquisição de uma segunda língua. Tendo em vista as seguintes importâncias da LE: • É a porta de acesso ao mundo, ingresso na sociedade da informação; • O estudo de outra língua reforça a materna; • Conhecer mais um idioma aumenta a cultura do aluno. Deve-se observar com mais cautela os conteúdos que se devem ensinar os métodos mais interessantes e as ferramentas/recursos atualizados dentro da realidade do aprendiz, a fim de que ele esteja mais motivado e satisfeito com o que está construindo: “Na aprendizagem de Língua Estrangeira, os enunciados do parceiro mais competente ajudam a construção do significado, e, portanto, auxiliam a própria aprendizagem do uso da língua.”(PCNS LÍNGUA ESTRANGEIRA, 1998, p. 58). O gênero digital chat A escolha do chat como gênero digital mostra um recurso com característica mobilizadora e agregadora visando o trabalho em diversas situações educativas, a fim de possibilitar a prática da habilidade de síntese, de resumo porque requer velocidade na escrita para a elaboração de mensagens curtas e objetivas em um espaço determinado de tempo. Desta forma, esse recurso também pede certa rapidez na leitura para poder identificar as temáticas que são abordadas, simultaneamente, durante a(s) conversa(s). Evitando-se assim, repetições desnecessárias, uma vez que a sala de bate-papo apresenta opções de visualizar históricos passados. Nos chats, por se tratar de conversação por escrito em tempo real e em meio eletrônico, observam-se, no plano do contexto, situações dialogais e polilogais, implicando ora dois agentes, ora mais de dois agentes – nas conversas em aberto – quando mais de duas pessoas trocam ideias. Podemos observar nesse plano, uma imbricação entre a modalidade oral e a escrita, uma vez que o gênero em estudo é produzido por escrito, com alguns traços característicos da fala. (COSCARELLI & RIBEIRO, 2011).

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De acordo com as autoras, o chat, que é uma ferramenta da internet,pode ser interpretado como um gênero digital híbrido por possuir traços de oralidade e de escrita. Dentro desta perspectiva, os sujeitos da interação passam a utilizar recursos da linguagem que, na maioria das vezes, se distancia das características formais da escrita/fala ocorrendo, assim, a informalidade e espontaneidade do discurso oral cotidiano. Eis algumas características dos chats: • Conversa em tempo real; • Possibilidade de utilização de recursos audiovisuais, por exemplo, fotos e sons; • Interlocutores espacialmente distantes; • Marcação por escrito de recursos paralinguísticos (risos, Zzzzzzz); • O interlocutor é coprodutor do texto. O objetivo do chat é desenvolver no indivíduo habilidades da comunicação digital através da interação, estimulando a troca e a cooperação entre as pessoas envolvidas nessa interface. Com isso, cria-se a oportunidade de contar as narrativas de cada sujeito de modo a compartilhar as suas experiências e motivações neste espaço. Considerações finais Os integrantes da sociedade são preparados para a participação na vida social. Atualmente, percebe-se a necessidade de uma prática educativa mais flexível, dinâmica e é através de novas técnicas de ensino que a aprendizagem se torna muito mais presente na realidade do aluno. Com o surgimento das novas tecnologias, a possibilidade de novas adaptações culturais se torna cada vez maior, com isso a bagagem cultural que o aluno carrega fora da escola faz com que professores/educadores discutem e apresentem aos seus alunos a viabilidade da comunicação oral e/ou escrita através da cibercultura. Baseado na definição de LÉVY (1999, p.147), de que mundo virtual é “aquele que é acessível por meio de uma rede e infinitamente aberto à interação, à transformação e à conexão com outros mundos virtuais (on-line).”, o sujeito não está mais preso a uma estrutura linear de informação. O referido plano de aula enquadra-se na dimensão social de letramento na qual a prática da leitura e da escrita está ligada à interação entre os sujeitos, a fim de utilizar os conhecimentos apreendidos nos propósitos pessoais de cada um. 639

Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares

A escola deve incentivar o uso das mídias eletrônicas na prática das habilidades de leitura e escrita, de forma a proporcionar novos tipos de saberes aos educandos para que eles possam possuir discernimento na decisão do que pode ser aproveitado ou não com esses conhecimentos e o que esses podem agregar para as suas vidas.

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REFERÊNCIAS

BRASIL.Secretaria de Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Estrangeira– Terceiro e Quarto Ciclos. Brasília: MEC, 1998. COSCARELLI, Carla Viana; RIBEIRO, Ana Elisa (Orgs.). Letramento digital: aspectos sociais e possibilidades pedagógicas. 3ª Ed.Belo Horizonte: Autêntica, 2011. ENSINAR COM INTERNET. Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2011. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo. Ed: 34, 1999. MACHADO, Anna Raquel; MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles (Orgs.). Atividade de Linguagem, Discurso e Desenvolvimento Humano/ Jean-Paul Bronckart. Campinas: Mercado das Letras, 2006. (1ª Reimpressão, 2009). 259p.

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CINEMA NA SALA DE AULA: FERRAMENTA PODEROSA NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA

Margareth de Souza Pinto

Proposta pedagógica

N

este artigo escolhi o cinema como ferramenta no processo ensino-aprendizagem de Língua Estrangeira Moderna, particularmente em aulas de Língua Espanhola, por considerar o cinema um dos meios mais eficientes e eficazes no processo educacional, oferecendo ao professor a oportunidade de abordar e debater aspectos sociais, históricos, políticos e culturais, além de desenvolver o espírito crítico dos alunos e, ainda, despertar o interesse por obras literárias. […] Trabalhar com o cinema em sala de aula é ajudar a escola a reencontrar a cultura ao mesmo tempo cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo no qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores sociais mais amplos são sintetizados numa mesma obra de arte. Assim, dos mais comerciais e descomprometidos aos mais sofisticados e “difíceis”, os filmes têm sempre alguma possibilidade para o trabalho escolar. (NAPOLITANO, M. .2009, p. 12).

O professor deve estar em busca contínua de diferentes meios de motivação para despertar o interesse de seus alunos pelos conteúdos estudados em sala e também encontrar estratégias para desenvolver o gosto pelas diferentes literaturas que nem sempre estão a seu alcance. A partir daí, é importante convencer os alunos de que assistir a filmes pode ser extremamente divertido, ainda que seja em sala de aula e com propostas de atividades pedagógicas. Do mesmo modo como temos buscado criar, nos diferentes níveis de ensino, estratégias para desenvolver o interesse pelas literaturas, precisamos encontrar maneiras adequadas

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão para estimular o gosto pelo cinema. Nesse caso, gostar significa saber apreciar os filmes no contexto em que eles foram produzidos. Significa dispor de instrumentos para avaliar, criticar e identificar aquilo que pode ser tomado como elemento de reflexão sobre o cinema, sobre a própria vida e a sociedade em que se vive. (DUARTE, R. 2009, p. 72).

Como escolher um filme Uma das razões para projeção de um filme na sala de aula é o entretenimento; porém, o principal objetivo do professor deverá ser a utilização de filmes como apoio no processo ensino-aprendizagem, ou seja, o uso do cinema para aproximar a sala de aula do cotidiano, das linguagens de aprendizagem e comunicação da sociedade urbana, além de introduzir novas questões no processo educacional. A partir do momento em que o professor se propõe a utilizar o cinema como apoio pedagógico em suas aulas, deve levar em consideração alguns fatores muito importantes. Em primeiro lugar, o professor deve considerar seu público-alvo, ou seja, com que faixa etária vai trabalhar e escolher um filme adequado para diferentes níveis escolares. Em seguida, traçar o objetivo que pretende alcançar, fazendo os seguintes questionamentos: qual o conteúdo que se quer explorar? Como associar o conteúdo em sala com o filme assistido? Como interagir com os alunos para trabalhar o filme em sala? […] Ao escolher um ou outro filme para incluir nas suas atividades escolares, o professor deve levar em conta o problema da adaptação e da abordagem por meio de reflexão prévia sobre seus objetivos gerais e específicos. Os fatores que costumam influir no desenvolvimento e na adequação das atividades são possibilidades técnicas e organizativas na exibição de um filme para a classe; articulação com o currículo e/ou conteúdo discutido, com as habilidades desejadas e com os conceitos discutidos; adequação à faixa etária e etapa específica da classe na relação ensino-aprendizagem. (NAPOLITANO, M. 2009, p. 16).

Finalmente, buscar um filme que seja compatível com as diretrizes estipuladas pelo professor. 643

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Como assistir Existem, ainda, em algumas escolas públicas, alunos que não têm condições financeiras de frequentar uma sala de cinema; portanto, pela falta de hábito, não conhecem outros filmes que não sejam os “enlatados” impostos pelos canais de televisão.É interessante, então, criar um clima diferente da sala de aula para gerar expectativas nos alunos. Se possível, fazer a projeção em outro ambiente e que seja o mais parecido possível a uma sala de cinema. Sem dúvida será já o primeiro passo para o bom andamento da atividade. Em seguida, o professor deve preparar o aluno para o que vai assistir, destacar os pontos importantes os quais devem prestar atenção. De nenhuma maneira o professor deve interromper o filme durante a projeção para dar explicações, pois isso distrai o aluno, ele perde a concentração e o interesse pela história. A tendência é que o aluno (e mesmo o professor) reproduza uma certa situação psicossocial trazida pela experiência na sala de projeção (ou na sala caseira de vídeo) para a sala de aula. Portanto, é preciso que o professor atue como mediador entre a obra e os alunos, ainda que ele pouco interfira naquelas duas horas mágicas de projeção. As primeiras reações da classe podem ser de emoção ou tédio, envolvimento ou displicência. As diferentes expectativas e experiências cotidianas dos alunos ao assistirem aos filmes será o primeiro passo em relação à atividade “cinema na sala de aula”. (NAPOLITANO, M. 2009, p. 14-15).

Ao final de cada projeção, o professor deverá promover discussões sobre a história central da película, fazendo com que os alunos emitam suas opiniões, coloquem suas dúvidas e levantem questões socioculturais, interagindo com outras disciplinas ao enfocar aspectos históricos, políticos, sociológicos, filosóficos, culturais e literários. Como trabalhar o filme em sala de aula Quando se trata de aula de Língua Estrangeira, temos um leque de opções de atividades pedagógicas.

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O professor deve fazer sua escolha considerando o número de alunos em cada uma de suas turmas. Numa sala de Ensino Médio, por exemplo, temos cem minutos semanais (dois tempos por semana) em cada turma apenas. É evidente que não há tempo suficiente para projeção de um filme inteiro. Como sugestão pode-se fazer da seguinte maneira: projetar o filme em capítulos – parece estranho, mas os alunos tornam-se tão interessados que, muitas vezes, mencionam que só foram aquele dia para não perder o filme, pois não teriam a maioria das aulas e tinham intenção de faltar, o que não o fizeram para não perder parte da história. Esse procedimento leva alguns dias de aula; entretanto, não se pode esquecer de que está sendo desenvolvida uma atividade pedagógica como outra qualquer; portanto, é uma aula normal onde serão abordados vários aspectos da matéria de Língua Estrangeira. Ao final, se promoverá o debate, sempre inserindo o tema no contexto de sala de aula e se desenvolverá uma tarefa e/ou exercício e/ou teste, a critério do professor. Caso o professor não tenha tempo suficiente ou não possa ocupar o espaço de projeção por mais tempo, uma outra opção é passar apenas uma cena do filme e trabalhá-la como melhor lhe convier. Um exemplo que pode ser citado é o filme “Carmen”, de Carlos Saura. Começa-se explicando que “Carmen” é a história da obra de Bizet, adaptada pelo diretor espanhol Carlos Saura. Mostra-se apenas a cena “La Tabacalera”para exibir aos alunos. Explicamos que a cena é um ensaio de balé e o tema é a briga na fábrica de charutos envolvendo a cigana Carmen e as outras mulheres que trabalham na fábrica. A partir dessa cena do filme, passam-se aos alunos aspectos típicos da cultura espanhola, como a dança flamenca, incentiva-se a busca do aluno para ver o filme integralmente e coloca-se o aluno em contato com clássicos da literatura. O expectador deve ter acesso a informações que lhe permitam identificar o contexto em que o filme foi produzido: país de origem, língua de origem, nome do diretor (acompanhado de dados biográficos), ano de lançamento, premiações, repercussão (faz parte da lista dos mais vistos?), significado que tem para o cinema local e / ou mundial (se é considerado um clássico, se é inovador do ponto de vista técnico ou temático, se é fundador ou integra uma escola ou movimento cinematográfico) e assim por diante. (DUARTE, R. 2009, p. 76).

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Outra sugestão de como o professor pode fazer uma atividade diferenciada com filmes é escolher previamente alguns títulos, ler as sinopses para suas turmas, fazer uma votação e cada turma elege o que deseja assistir – esse tipo de escolha é uma forma bastante interessante de motivação, pois a escolha vinda dos próprios alunos aumenta o interesse pela aula, além de despertar a curiosidade pelas outras histórias apresentadas nas diversas sinopses e, consequentemente, fazendo com que eles vão buscar por conta própria esses filmes em locadoras, baixar da internet, etc. Considerações finais O professor deve ter sempre em mente que o cinema como apoio pedagógico é importante, porém o uso constante de projeções em sala de aula acaba tornando-se enfadonho, empobrece as aulas e o objetivo traçado não é alcançado. O ideal seria passar de um a três filmes por ano, no máximo. De modo algum, o professor deve projetar um filme, apenas por projetar, sem trabalhar seu conteúdo, sem preparar previamente alguma atividade pedagógica. É importante que, ao final da exibição, promovam-se atividades escritas e/ou orais, testes ou quaisquer outros tipos de atividades criadas pelo professor. Ao terminar a exibição e iniciar o debate, o professor não deve nunca ser o primeiro a dar sua opinião, nem monopolizar a discussão; deve cumprir o papel de moderador. O cinema, além de grande entretenimento, pode ser um profundo aliado dos professores quando usado como atividade complementar em sala da aula. O que não se pode esquecer é que devemos usá-lo como recurso didático, de modo algum para substituir as aulas; assim, teremos uma ferramenta poderosa no processo ensino-aprendizagem.

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REFERÊNCIAS

NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula.São Paulo, Contexto, 2009. DUARTE, Rosália. Cinema & Educação.Belo Horizonte, Autêntica, 2009.

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CHAVO DEL 8: EL HUMOR ACERCANDO CULTURAS

Michele de Souza dos Santos Fernandes – ¿Como se le ocurrieron los diferentes personajes de su programa? – Cada uno tuvo un origen. El Chavo por ver tantos niños pobres que hay en el mundo, y el conjunto de personas que lo rodeaban era un mundo en pequeñito1 Roberto Gómez Bolaños

Es común caminar por las calles de las grandes ciudades de Brasil, como Río de Janeiro o San Pablo y ver a niños, jóvenes o adultos usando camisetas con frases, como “Não há trabalho ruim, ruim é ter que trabalhar” o “A vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena” o entonces “Se quiser vir a ser alguém, devore os livros”. Eso demuestra que pese a tanto tiempo, Chavo y sus compañeros de la vecindad siguen vivos en el imaginario del brasileño, más aún, el chiquillo del barril ha creado una legión de aficionados de todas las edades que se ríe con chistes repetidos y se conmocionan con situaciones bastantes previsibles. El Programa de televisión Chaves (como se tradujo Chavo al portugués) hizo naceruna verdadera chavesmaníaen Brasil (KASCHNER, 2006). Lo interesante de todo eso es que tal programa forma parte de la programación de la televisión brasileña desde la década de los 80. Sorprende, principalmente, si llevamos en cuentael modo de presentarse de la cultura humorística brasileña, la que privilegia chistes machistas, de connotación sexual o de menosprecio a las minorías de una manera general (negros, rubias, homosexuales, etc.).Chavo del 8, por el contrario, pese a que es un programa vuelto al público adulto, no posee tales características. Su humor es designado por muchos estudiosos del tema como blanco. (Ibidem).

Entrevista a Roberto Gómez Bolaños realizada el 17 de Mayo del 2002 por CNN en Español. Disponible en: .

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Además del humor diferente del que predomina en los chistes brasileños, se podría cuestionar cómo un programa mexicano obtuvo tanto éxito por lo menos para un público específico de la televisión brasileña, si llevamos en cuenta que son culturas distintas, con valores, creencias y modos de vida igualmente distintos. En este trabajo nos propusimos observar elementos de aproximaciones entre las culturas brasileña e hispana, concentrándonos en el análisis del programa mexicano Chavo Del 8, creado por Roberto Gómez Bolaños en la década de 1970 y difundido en Brasil por la emisora SBT bajo el título Chaves. La elección del género se justifica por el significativo número de seriados hispanos en la televisión brasileña. Tenemos claro que el proceso de identificación entre el seriado y el público brasileño es fruto de diversos factores, entre ellos el papel fundamental del traductor que se utiliza de estrategias para mantener el humor en la lengua de llegada. Sin embargo, es necesario observar que tal trabajo se torna menos dificultoso si hay compartos culturales entre las dos lenguas. Por eso, sin despreciar otros aspectos que involucran la traducción de humor, nuestro objetivo en este trabajo es poner de relieve y analizar los elementos culturales que favorecen el acercamiento entre las dos lenguas-culturas (AGAR, apud ROSAS, 2003)2. Chavo del 8: los orígenes Chavo del 8 es una creación de Roberto Gómez de Bolaños. El programa estrenó el 20 de junio de 1971, en el canal 8 de la emisora TIM, de México. En 1973, empezó a ser exhibido y a ser grabado en el canal 2, la emisora de televisión Televisa – de mayor éxito y estructura – extendiéndose por gran parte de los países de América Latina. Alcanzó gran éxito, y se tornó el número uno de la televisión humorística de México y de los demás países de Latinoamérica, llegando a límites inimaginables a un programa que surgió de un sencillo sketche. El programa llega a Brasil en 1984, por casualidad. Silvio Santos, el dueño de la emisora brasileña TVS - actual SBT -, recién fundada en 1981, quiso ahorrar e innovar, invirtiendo poco para el patrón televisivo. Pasa, entonces, a importar

El término lenguas-culturas es de Agar. Lo utilizamos en nuestro trabajo por creer que lengua y cultura caminan siempre juntas, es decir, no se disocian. 2

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telenovelas mexicanas a partir de un acuerdo con la emisora Televisa. En una de las remesas, vinieron lotes de dos seriados como regalo. Así, junto con la telenovela mexicana negociada entre las emisoras estaba Chavo del 8 y El Chapulín Colorado. A pesar de creerlos de mala calidad, TVS lo mandó para el doblaje, para posteriormente exhibirlos y testar la aceptación del público. De este modo, en 1984 Chaves – como se le tradujo aquí – estrenó en la emisora dentro del programa infantil del payaso Bozo y fue transmitido los lunes, miércoles y viernes. Pese al hecho de que se trataba de una producción precaria, presentó buenos resultados de audiencia. Considerados grandes tesoros de audiencia de la emisora, los 162 episodios comprados en 1984 de Televisa siguen siendo trasmitido, una vez que el fiel público brasileño – aficionado de la serie - sigue asistiendo a las historias de Bolaños aunque sean reprises. La vecindad y su carácter sociológico Roberto Bolaños declaró en entrevista que se inspiró en datos de su propia realidad para la creación del programa. De hecho, sabemos que gran parte de los problemas que forman parte de la realidad mejicana forman parte de cualquier país latinoamericano en mayores o menores proporciones. Así que al decir que las desigualdades de México están de cierto modo expresas en el escenario, en las hablas y en los trajes de los personajes decimos que también reflejan las desigualdades sociales de otros países de Latinoamérica, como Brasil. Si los problemas sociales presentados en el programa, como la pobreza, la deshonestidad, el desempleo, la marginación, el consumismo son temas que se presentan en Brasil y en México a la vez, podemos tomar las temáticas y la propia concepción del escenario pobre y sucio como elemento que acerca las dos lenguas culturas – la brasileña y la mejicana – y facilita el trabajo del traductor y la identificación con el público consume el seriado traducido. Respecto a la concepción del programa, hay teóricos que defienden que la vecindad es un microcosmos – micro mundo –, es decir, es la propia representación de la vida cotidiana de las capas más pobres de una sociedad. De hecho, el espacio de la vecindad hace acordar a las casas de vecindad que se popularizaron en México en la década del 70. Éstas eran construcciones que se resumían

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a conjuntos de apartamentos unidos por pasillos, escaleras y patios,en los que el puente con la calle se hacía a través de una gran puerta casi siempre cerrada (fig.1; fig. 2).

Fig. 1

Fig. 2

La comparación entre las vecindades y las construcciones de las capas menos favorecidas de Brasil no resulta difícil, ya que en nuestro país entre los diversos tipos de construcciones colectivas populares, existe una que se acerca demasiado al modelo mejicano: “o cortiço”(fig.3).

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Fig. 3

No hay datos concretos acerca del origen de estas construcciones, con todo, se sabe que en el siglo XIX ya había una preocupación con esta forma de organización habitacional, que crecía rápidamente en los grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro. La vivienda colectiva está bien caracterizada en la obra de mismo nombre, de Aluisio Azevedo: Noventa y cinco casinhas comportou a imensa estalagem. […] as casinhas do cortiço, à proporção que se atamanhavam, enchiam-se logo, mesmo sem dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande avidez em alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para gente do trabalho. (ALUISIO AZEVEDO, 1999, p. 25-26).

Pese a alguna diferencia estructural, las dos construcciones poseen como características marcadas el público que lo habita. Aunque en niveles distintos de pobreza, “os cortiços”(fig.2) y las vecindades (fig.3) todavíareciben personas de las capas más pobres de la sociedad, además, son casas de alquiler, unidas en bloques alrededor de un patio. Estas construcciones colectivas revelan un acercamiento cultural, que posibilita que el público brasileño reconozca en la vecindad del Chavo un elemento de su propia realidad. La vecindad del seriado es donde ocurren las peleas, los amores, las bromas, los engaños, los alborotos y la resolución de todos estos hechos que suelen formar parte de todos los episodios. Esto es un dato importante a medida que nos

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deja claro que la vecindad suple casi todas las necesidades de sus habitantes, que rara vez salen de allí. “Os cortiços” también tenían la misma dinámica, por lo menos en sus primeros años, ya que los espacios colectivos aportaban un sentido más familiar, dónde casi todo era colectivo: el tendero, el tanque y los espacios de ocio. Como en la ficción, su espacio también ya ha sido escenario de peleas y enfrentamientos. Los personajes y sus estereotipos Vimos en el apartado anterior que la creación del espacio de la vecindad del Chavo del 8 tuvo que ver con un dato de la realidad social de México - la existencia de las vecindades. Asimismo los personajes también pueden ser pensados bajo una perspectiva social, una vez que todos representan los tipos reales que están al margen de las sociedades o que son vistos como minorías desvaloradas - mujeres, niños, profesionales decadentes, mayores, desempleados. Son estereotipos de las grandes masas marginadas de México, de Brasil o de cualquier país que las posea(fig.4).

Fig. 4

Los personajes infantiles transmiten una visión muy crítica del mundo de los niños con sus sueños, sus pesadillas, sus miedos y de la relación que establecen con los adultos. Además, a través de Chavo, Chilindrina, Quico, Ñoño, Paty, Popis y Godinez, es posible conocer un poco más acerca de las imperfecciones de la naturaleza humana.

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Estos personajes se componen con tamaña riqueza de detalles que en algunos momentos el público se olvida de que son adultos interpretando niños. Tal caracterización va desde los trajes, pasando por el aspecto físico hasta llegar a los gestos constantemente repetidos. Finalizan esta personificación los errores característicos del habla infantil. El hecho de que los personajes sean estereotipos, facilita la transposición del chiste de la lengua-cultura mejicana a la lengua-cultura brasileña, haya vista que los tipos son fácilmente encontrados en cualquier cultura, ya que cada pueblo tiene referente para su humor (IZQUIERDO, 2007, p. 1). El Chavo (fig.5), por ejemplo, en cuanto a su aspecto sociológico, representa la clase más baja de una sociedad. Vive como un pordiosero, pues aunque tenga casa, pasa el día por los patios de la vecindad a búsqueda de oportunidades de ganar dinero – recogiendo botellas para el dueño de la tienda de alimentos, vendiendo periódicos y revistas viejas, trabajando en el restaurante de Doña Florinda, aprendiendo el oficio de zapatero con Don Ramón, o contando con la caridad del prójimo para que pueda cesar su hambre. Pese a que tiene la oportunidad de estudiar, no vive como los demás compañeros de clase y vecinos, puesto que la realidad le resulta más cruel: está solo. Lo que le permanece es la inocencia de niño y el sueño de un día tener juguetes como los de su amigo Quico. Sin embargo, aunque su historia sea dura, la conmoción es rápidamente sustituida por el humor y por el carisma del chico del barril.El creador e intérprete del personaje, Roberto Gómez Bolaños, ya declaró acerca de su dulce niño: “O Chaves é um garoto que carece de muitas coisas, mas tem um tesouro que é a vida, e passa uma mensagem de otimismo” (BOLAÑOS apud. KASCHNER, 2006: 62).

Fig.5 654

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Quico (fig.6), en cambio,tiene un carácter de chico mimado. Y eso se confirma, a través de una entrevista concedida por Bolaños3, en la cual atribuye la inspiración de la creación de este personaje a un chico que conoció. Individualidad y egoísmo también están entre sus rasgos, ya que sólo piensa en sí y no le gusta prestar sus juguetes, con los que suele causar envidia a sus compañeros, principalmente a Chavo.

Fig. 6

Don Ramón (fig.7), por su vez, desempeña el estereotipo del pícaro, tipo muy representado en la literatura mundial, visto como el individuo perezoso, desocupado, que sobrevive de la astucia y de sus trampas – único modo con que puede ascender socialmente –. Nada posee y no se esfuerza para lograrlo, cuenta con la solidaridad ajena más que con su propio esfuerzo, pretendiendo siempre lograr un modo ilícito, de corto y fácil camino para obtener lo necesario para un determinado instante; vive por vivir, estático, sin objetivos o ganas de luchar por conquistas, dejándose llevar por el movimiento natural del paso del tiempo, por la suerte en sus trampas, y pensando solamente en las juergas. Se puede ver en esta actitud de Don Ramón -de ocio como principio - cierto tono crítico al trabajo en el escenario capitalista, principalmente entre las capas media y baja de la sociedad, donde se trabaja cada vez más y se gana cada vez menos.

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Disponible en: .

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Fig.7

Don Ramón, a pesar de adulto, tiene alma y características de niño, como la falta del comprometimiento con la vida y cierta tolerancia con los juegos y bromas. Con comportamiento nada coherente con sus ideas, intenta enseñar a los chicos a fin de que se comporten de manera educada y moral aunque no tenga moral para dar consejos y sea mal ejemplo por sus actitudes. Sin embargo, logra redimirse por los buenos valores y mensajes que les trasmite, usando frases de efecto. Consideraciones finales El éxito del programa Chavo del 8en Brasil, por lo menos entre un público específico, está en la identificación. Nos reconocemos en cada escena de pobreza extrema, de violencia contra niños, de desempleo, de mujeres jefes de familia, de lucha por la sobrevivencia. El Chavo y los demás personajes son el retrato fiel de la marginación y de la pobreza latinoamericana. Sin embargo, con tonos de humor, Roberto Gómez Bolaños consigue tratar de temáticas duras y exponer realidades nada bonitas de verse. Es cierto que no podemos menospreciar los aspectos lingüísticos que involucran la traducción del seriado; las intervenciones del traductor son fundamentales en el proceso. Con todo, lo que nos saca la voz y nos conmociona son las imágenes de la vida real que hablan por sí solas.

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REFERENCIAS

AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. 34ªed. São Paulo: Ed. Ática, 1999. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da língua portuguesa. 3ª ed., Nova Fronteira, 1993. Em fascículos no jornal O Dia, 1997. ______. Miniaurélio Século XXI Escolar: O minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. IZQUIERDO, Carmen. Traducción del humor. Texto mimeografado, 2007. KASCHNER, Pablo. Chaves de um sucesso. Rio de Janeiro: Senac Rio, 2006. ROSAS, Marta. Tradução de Humor: transcriando piadas. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. DVD “O Melhor do Chaves”. vol. 2.Rio de Janeiro: Amazonas Filmes (distribuidora), 2005. DVD “O Melhor do Chaves”. vol. 3.Rio de Janeiro: Amazonas Filmes (distribuidora), 2006.

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LEIO, LOGO EXISTO: A LEITURA E OS GÊNEROS TEXTUAIS COMO INSTRUMENTOS DE AÇÃO NO MUNDO NAS AULAS DE INGLÊS PARA O ENSINO MÉDIO

Patrícia Helena da Silva Costa

Introdução

C

omo muitos professores de língua inglesa, minha experiência profissional teve início em um curso livre de idiomas, cuja abordagem de ensino utiliza gêneros textuais, motivando o meu interesse em estudar o assunto. Ao ingressar no curso de Especialização em Ensino de Línguas Estrangeiras no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ), tive a certeza de que a minha pesquisa seria sobre gêneros textuais, mas ainda não havia decidido qual aspecto iria abordar. Finalmente, com as aulas do segundo curso de pós-graduação, Letramento(s) e Práticas Educacionais, também no CEFET-RJ, veio o conhecimento que faltava para que eu pudesse dar início à minha pesquisa: as concepções sobre letramento1. Ao pensar a respeito das práticas de letramento no ensino de língua inglesa, a primeira situação que me chamou a atenção foi o contexto relativo ao ensino médio, devido à tendência dos professores em enfatizar a habilidade da leitura através de uma abordagem instrumental2. Após o contato com os documentos oficiaisnorteadores das práticas pedagógicas do ensino de línguas estrangeiras para o ensino médio, e ao relacionar essas leituras com o conhecimento que eu já havia adquirido sobre gêneros textuais,

Este conceito será abordado em mais detalhes na fundamentação teórica deste artigo. Como podemos ver em Carvalho (2005), a abordagem instrumental se configura como o ensino de língua estrangeira focado em uma habilidade específica, dependendo das necessidades dos alunos. Assim, dentre as habilidades que podem ser desenvolvidas estão a leitura, a escrita, a oralidade e a compreensão auditiva. 1 2

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surgiram algumas questões que mereceram atenção durante o desenvolvimento da pesquisa: como as situações do cotidiano estariam presentes na aula de língua inglesa para o ensino médio? Que atividades auxiliariam no cumprimento da função social da língua inglesa, ou seja, para a formação integral dos alunos como cidadãos, e também para o preparo do aluno para o mercado de trabalho/vestibular? Que atividades de leitura em língua inglesa contribuiriam para uma formação mais reflexiva, crítica dos alunos? A fim de formular possíveis respostas às problematizações do parágrafo anterior, sugiro o emprego dos gêneros textuais como uma possibilidade de conduzir um trabalho docente de maneira histórica, social e culturalmente situada. Percebe-se também a tendência de práticas de letramento crítico durante as aulas de inglês para o ensino médio, ao invés de uma prática descontextualizada do meio em que a leitura ocorre. Após a introdução dos aspectos que originaram a pesquisa, cabe, agora, descrevermos como o presente artigo será organizado. Iniciaremos com o aporte teórico que embasou o trabalho. Sendo assim, iremos abordar: a) as concepções de letramento; b) os documentos oficiais norteadores do ensino de língua estrangeira no contexto brasileiro; c) o conceitode gêneros textuais; d) as características do ensino de inglês instrumental e e) a aplicação de gêneros textuais no ensino de inglês instrumental. Em seguida, trataremos do contexto de pesquisa e metodologia, da interpretação dos dados obtidos, e, nas considerações finais, falaremos, de modo geral, dos resultados encontrados. Aporte teórico Letramento: origens e definições3 Dando início à discussão em torno do termo letramento, um aspecto que merece destaque é a origem da palavra. Letramento é a versão para o Português da palavra em Inglês literacy. No Cambridge Dictionaries Online4 literacy significa “the ability to read and write” que em Português quer dizer “a habilidade de ler e escreExtraído de SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. 4 Disponível em: . Acesso em: 6 jan. 2012. 3

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ver”. Ao buscarmos o adjetivo correspondente ao substantivo literacy, chegamos a literate, “able to read and write”, cuja tradução é “capaz de ler e escrever”. Assim, se letramentoé “a habilidade de ler e escrever” e uma pessoa letrada é aquela “capaz de ler e escrever”, estamos falando de algo que vai além de ser alfabetizado. Após tratarmos brevemente da origem da palavra letramento, cabe agora abordarmos os motivos que levaram ao surgimento do termo. Soares (2001) aponta para o fato de que “só recentemente passamos a enfrentar esta nova realidade social em que não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também[…]saber responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente – daí o recente surgimento do termo letramento(…)” (SOARES, 2001, p. 20). Para compreendermos melhor a nova realidade a que a autora se refere, iremos utilizar as duas principais dimensões do letramento propostas por Soares (2001): a dimensão individual e a dimensão social.Na dimensão individual a leitura e a escrita são um conjunto de habilidades linguísticas e psicológicas essencialmente pessoais. Essa visão de letramento considera o mesmo como um atributo pessoal, “uma tecnologia ou conjunto de técnicas usadas para a comunicação e para a decodificação e reprodução de materiais escritos ou impressos (…)” (GRAFF,1987a, apud, SOARES, 2001, p. 66). Em contrapartida, a dimensão social entende que o letramento não é simplesmente um conjunto de habilidades de leitura e escrita, mas é, antes de tudo, uma prática social. Neste sentido, letramento é visto como o uso dessas habilidades em contexto social. Assim como em Soares (2001), cujas concepções de letramento são contempladas por dimensões individuais e sociais, também em Kleiman (1995) encontramos estudos que corroboram as duas facetas que compõem esse fenômeno. Com base em Street (1984), a autora apresenta dois modelos de letramento que, assim como os propostos anteriormente, relacionam-se de maneira complementar: os modelos autônomo e ideológico. O modelo ideológico, também chamado de modelo crítico, se assemelha muito à dimensão social proposta por Soares (2001). Aqui, o letramento também é entendido como prática construída social e culturalmente e que, por isso, não pode ser desvinculado das crenças, tradições e valores que perpassam todas as esferas sociais. Seguindo os passos de Kleiman (1995), que se baseou nos estudos de Street (1984) ao tratar dos modelos de letramento, iremos utilizar as concepções do mesmo autor a fim de apresentar a visão de letramento que norteará o nosso 660

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trabalho a partir de agora. Assim como Street (1984, p. 97), compreendemos que o letramento “é mais do que somente a tecnologia na qual ele se manifesta. É um processo social, no qual tecnologias socialmente construídas são usadas para propósitos sociais específicos”5. Os documentos oficiais norteadores do ensino de língua estrangeira Publicados em 2000, os Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio (PCNEM) resignificam a função do ensino de línguas estrangeiras, destacando a relevância social desta disciplina. De acordo com o documento, aprender línguas estrangeiras vai além de compreender e produzir enunciados corretamente. É importante propiciar aos alunos os conhecimentos necessários para que eles possam desenvolver a sua competência comunicativa6, isto é, para que eles estejam aptos a se comunicar de maneira adequada em diversas situações do cotidiano. Os parâmetros abordam também o caráter pragmático do ensino médio, pois, ao falarmos em formação integral, incluímos o preparo para o mercado de trabalho que, segundo os PCNEM, não pode ser descartado, pois “torna-se imprescindível incorporar as necessidades da realidade ao currículo escolar de forma a que os alunos tenham acesso, no Ensino Médio, àqueles conhecimentos que […] serão exigidos pelo mercado de trabalho” (BRASIL, 2000, p. 27). Em 2002, foram publicados asOrientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais(PCN+). Já na introdução, o documento apresenta a direção a ser dada nas aulas de língua estrangeira ao salientar que “o foco do aprendizado deve centrar-se na função comunicativa por excelência, visando prioritariamente a leitura e a compreensão de textos verbais orais e escritos – portanto, a comunicação em diferentes situações da vida cotidiana”. (BRASIL, 2002, p. 94).

Tradução minha. De acordo com Salomão (s.d), competência comunicativa é um termo cunhado pelo linguista Dell Hymes (1976) em reposta às teorias do linguista Noam Chomsky (1965) sobre a competência linguística dos falantes de uma língua. Chomsky (1965) considerava a competência o conhecimento das estruturas e das regras de uma língua, enquanto que o desempenho seria o uso da língua em situações reais de comunicação. Hymes (1976), porém, apontou para a necessidade de se incorporar a dimensão social ao termo competência, ampliando-o, assim, para a noção de competência comunicativa. 5 6

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A fim de sistematizar o trabalho com a leitura, o documento sugere a seguinte organização: desenvolvimento da estrutura linguística, aquisição de vocabulário e leitura e interpretação de textos. É importante ressaltar que os dois primeiros itens só terão significado se trabalhados a partir do último. Sendo assim, é o trabalho com textos que determinará os conteúdos gramaticais e o vocabulário a serem desenvolvidos no ensino médio. Em 2006, temos a publicação das Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM). Temos, pela primeira vez em um documento oficial destinado ao ensino de línguas estrangeiras no contexto brasileiro, a aplicação do conceito de letramento. Tal aplicação manifesta-se de maneira bastante abrangente no que diz respeito às práticas docentes dessa área do conhecimento, sugerindo aos professores as habilidades a serem trabalhadas no ensino médio e também de que forma essas destrezas podem ser desenvolvidas à luz das teorias de letramento. O texto também nos chama a atenção para o fato de algumas escolas focarem o trabalho com a leitura no terceiro ano do ensino médio como preparo para o vestibular. Contudo, “essa opção não deve desconsiderar o caráter da leitura como prática cultural e crítica de linguagem, um componente essencial para a construção da cidadania e para a formação dos educandos” (BRASIL, 2006, p. 111). Gêneros textuais Desde o início deste artigo, temos apontado para o fato de a língua estar presente em todas as situações do nosso cotidiano. Deste modo, não se pode trabalhar com linguagem sem considerar as atividades sociais nas quais nos envolvemos diariamente, pensamento este compartilhado pelos estudiosos nos quais iremos nos basear. Para Bakhtin (1997), a língua é utilizada em todas as instâncias da atividade humana. De acordo com o estudioso, é através de enunciados, orais e escritos, que os participantes das esferas sociais se utilizam da linguagem. Neste sentido, os enunciados são “unidades da comunicação verbal” (BAKHTIN, 1997, p. 268), já que os integrantes dessas esferas “trocam enunciados constituídos com a ajuda de unidades da língua – palavras, combinações de palavras, orações” (IDEM). É nos enunciados que a língua se manifesta, pois “o enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas” (BAKHTIN, 1997, p. 280). Desta forma, podemos dizer que cada esfera da atividade humana 662

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produz os seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os seus gêneros textuais, ou gêneros do discurso. Portanto, podem-se entender os gêneros textuais como formas maleáveis de manifestação da língua, pois cabe a eles atender às demandas das várias situações do nosso cotidiano, como por exemplo, fazer um pedido de uma pizza por telefone, elaborar um currículo para uma entrevista de emprego, escrever um poema, recitar um poema, etc. A presença dos gêneros textuais no nosso cotidiano é tão marcante que Bakhtin (1997) compara a aquisição dos mesmos com o aprendizado da língua materna. Para o linguista, os gêneros chegam até nós da mesma maneira que a nossa língua nativa, ou seja, no nosso dia a dia. Tal é a importância dos gêneros textuais, que Bakhtin (1997) os considera fundamentais para a comunicação verbal, a ponto de afirmar que sem eles a comunicação seria inviável. Dialogando com Bakhtin (1997), Bazerman (2011) aponta para o fato de que “os textos organizam atividades e pessoas”. Neste sentido, podemos dizer que as práticas sociais das quais participamos são organizadas por meio de textos que nos são familiares, que de alguma forma já fazem parte do nosso dia a dia. Faz-se necessário que ajamos conforme as situações determinem e de forma que todos reconheçam o que estamos fazendo, ou seja, é necessário utilizarmos enunciados típicos em circunstâncias típicas. Ao considerar os gêneros como oriundos dos processos sociais, Bazerman (2011) os compreende como “fenômenos de reconhecimento psicossocial” e que, portanto, não podemos definí-los apenas como um conjunto de textos. É fundamental entendermos que o nosso conhecimento de mundo, as nossas experiências de vida mudam a todo instante, e com eles se modificam também as situações e os gêneros. Daí vem a relevância em se considerar o sistema de atividades sociais nas quais os gêneros estão inseridos, ou seja, “focalizar o que as pessoas fazem e como os textos ajudam as pessoas a fazê-lo, em vez de focalizar os textos como fins em si mesmo” (BAZERMAN, 2011, p. 35).

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Inglês instrumental Para melhor compreendermos os objetivos da abordagem instrumental, cabe, aqui, um breve apanhado histórico7. Feito isso, falaremos, sucintamente, do desenvolvimento do inglês instrumental no contexto brasileiro. O fim da Segunda Guerra Mundial em 1945 gerou uma era de enorme expansão científica, técnica e econômica. Essa expansão criou um mundo dominado por duas forças, tecnológica e comercial, cujo progresso demandou uma linguagem internacional. Por várias razões, principalmente pelo poder econômico dos Estados Unidos durante o pós-guerra, este papel coube ao Inglês. Com o idioma se tornando a língua internacional da área tecnológica e comercial, criou-se uma nova geração de aprendizes que sabiam exatamente porque estavam aprendendo a língua estrangeira. A visão era de que o Inglês requisitado por um grupo particular de aprendizes poderia ser identificado através da análise das características linguísticas dos seus campos de trabalho ou estudo. “Diga-me para que você precisa do Inglês e eu lhe direi o Inglês que você precisa” se tornou o lema do inglês instrumental. Para os propósitos deste artigo, devemos ater nossas atenções na principal característica do inglês instrumental: o fato de ser uma abordagem voltada ao ensino/aprendizado de línguas na qual todas as decisões a respeito de conteúdo e método são baseadas nas razões dos alunos em aprender. Partindo para o contexto brasileiro, a história dessa abordagem está intimamente ligada ao Projeto Nacional de Inglês Instrumental da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).Muitos fatores contribuíram para a necessidade de criar um centro de excelência em inglês instrumental. Dentre eles, está o grande número de professores universitários de várias partes do país que estavam fazendo o mestrado em Linguística Aplicada na PUC-SP e que mostraram um forte interesse nesta abordagem devido ao fato de não se sentirem confiantes ou até mesmo bem preparados para oferecer cursos de Inglês especializados para os diversos departamentos de suas universidades.

Com base em HUTCHINSON, T.; WATERS, A. English for Specific Purposes: a learning centred approach. Cambridge: Cambridge University Press. p. 6-19, 1987. 7

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Muitas foram as contribuições deste Projeto para o ensino de língua inglesa. Dentre elas, podemos citar a criação de uma metodologia para o ensino e aprendizagem de leitura no país. Essa metodologia enfatiza o uso de textos autênticos8, o ensino e aprendizagem de estratégias de leitura com o objetivo de habilitar os alunos a lidar com textos escritos em inglês em um curto período de tempo, já que muitos dos cursos eram oferecidos em um ou dois semestres. Gêneros textuais no ensino de inglês instrumental: uma proposta de aplicação De acordo com Ramos (2004), gêneros textuais “são um recurso pedagógico poderoso” (p.116). Através deles, os professores podem estar a par dos discursos que os alunos necessitam compreender e produzir, ou seja, o que eles precisam fazer linguisticamente. Além disso, auxiliam a investigar por que um texto é do jeito que é a partir do contexto em que se realiza. Tendo em mente essas considerações, apresentamos a proposta de Ramos (2004) que a divide em três fases, sendo a primeira delas denominada “apresentação”. Esta etapa se desmembra em dois conceitos: a “conscientização” e a “familiarização”. A “conscientização” envolve a investigação do contexto do gênero a ser trabalhado, ou seja, o seu local de circulação, as justificativas para que ele ocorra em determinado lugar e como isso é feito, quem o produz, quem o recebe, os seus propósitos, etc. Já na “familiarização” é possível identificar o conhecimento que o aluno possui sobre o gênero em questão e também fornecer informações que ele ainda não tenha. A segunda fase, chamada “detalhamento”, partindo da perspectiva mais geral presente na fase anterior, trabalha questões mais específicas como a organização das partes que compõem o gênero e suas características sistêmicas, ou seja, o seu vocabulário e gramática. Assim como na fase de “apresentação”, a terceira etapa, a de “aplicação”, se divide em dois momentos: a “consolidação” e a “apropriação”. Primeiramente, o aluno é exposto a muitos exemplos do gênero trabalhado anteriormente através de atividades diversas que permitam a solidificação da aprendizagem. Em seguida, o aluno tem a oportunidade de se apropriar

8 De acordo com Fontana (2004), trata-se de materiais escritos, de natureza diversa, veiculado socialmente, para atender um propósito. Como exemplo, podemos citar: artigos de jornal, revistas, poemas, propagandas, embalagens, recibo de cartão de crédito, menu de restaurantes, bulas de remédio, etc.

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do gênero em questão, ou seja, de produzi-lo efetivamente, colocando em prática todos os aspectos abordados nas outras duas fases. Contexto de pesquisa e metodologia Os dados foram gerados a partir da observação de cinco aulas de Língua Inglesa, nos dias 13 e 20 de setembro, 11, 18 e 25 de outubro do ano de 20119, de uma turma do 1° ano do ensino médio de um colégio de aplicação da rede estadual, localizado no município do Rio de Janeiro. Participaram do levantamento das informações a professora regente do grupo, seus alunos e mais duas professoras de Língua Inglesa do nível de ensino em questão10. Nesta instituição de ensino, as turmas do 1° ano do ensino médio são denominadas 1A, 1B, 1C e 1D, sendo que durante as aulas de língua estrangeira os alunos são agrupado em 1A/1B e 1C/1D. Essa divisão ocorre através da escolha que os alunos fazem dentro das 20 vagas ofertadas por cada uma das línguas: Espanhola, Francesa e Inglesa. O grupo participante da pesquisa foi o 1A/1B cujas aulas, ministradas em Língua Inglesa, ocorreram às terças-feiras de manhã em dois períodos de 50 minutos cada, das 8h40min às 9h30min e após o intervalo das 10h00min às 10h50min. Através de uma pesquisa qualitativa de base etnográfica11, foram observadas cinco aulas de Língua Inglesada turma 1A/1B, em datas especificadas anteriormente. Os dados foram gerados através da utilização de um questionário, entrevistas, notas de campo e gravações de áudio, instrumentos recorrentes neste tipo de pesquisa. Entretanto, devido às características deste artigo, iremos voltar nossas atenções para a análise das aulas observadas.

Devido à semana de avaliações e eventos esportivos ocorridos na instituição, as observações precisaram ser interrompidas entre os meses de setembro e outubro. 10 Ainda que o trabalho monográfico tenha sido direcionado somente ao grupo regido por uma das professoras, a participação da equipe de Língua Inglesa do ensino médio foi pertinente, uma vez que, de acordo com a professora da turma observada, as decisões sobre a abordagem e os materiais empregados em sala de aula são pensadas em conjunto e compartilhadas entre todos os docentes. 11 De acordo com Moita Lopes, este tipo de pesquisa consiste em uma “descrição narrativa dos padrões característicos da vida diária dos participantes sociais (professores e alunos) […] na tentativa de compreender os processos de ensinar/aprender línguas” (MOITA LOPES, 1996, p. 88). 9

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Análise dos dados Das cinco aulas observadas, iremos direcionar a nossa análise para os dias 20 de setembro e 11 de outubro de 2011, pois esses dois dias possuem os momentos mais relevantes para a presente pesquisa. Iniciaremos, então, a nossa discussão a respeito da aula ministrada em 20 de setembro, pautada em folha de exercícios distribuída aos alunos com o intuito de trabalhar os seguintes aspectos: topic, subject, source e text-types, respectivamente, tópico, assunto, fonte e tipos de texto. O material é composto por uma lista com exatos trinta e oito gêneros textuais em Inglês e Português. O exercício consiste em relacionar os gêneros nas duas línguas, determinando, assim, o equivalente em Português das palavras em Inglês. Ao enumerá-los, a professora está dizendo a seus alunos que os gêneros podem ser contabilizados, quando na verdade essa é uma característica dos tipos de texto, sendo eles pertencentes a cinco categorias12: narração, argumentação, exposição, descrição e injução. A atividade presente no Anexo I ocorreu da seguinte maneira: os alunos, alguns individualmente, outros em duplas, tentaram encontrar a tradução das palavras na lista, relacionando os termos em Inglês com os seus equivalentes em Português. Durante a execução do exercício, um dos alunos apresentou dúvidas em relação ao termo “pichações” ao apontar para o fato de que não era possível encontrar o equivalente em Inglês, o que acarretou o seguinte diálogo com a professora: Aluno P: “Professora, não tem pichações aqui.” Professora: “Yes, there is. Graffiti is pichações.” Professora: “The word is in English that we use in Portuguese.” Aluno P: “Grafite é diferente de pichação.” Professora: “What’s the difference?” Aluno P: “No grafite o cara deixa uma mensagem. Pichação, não. Pichação é um negócio rabiscado.” Professora: “Mas a palavra já está em inglês. But in English there is no difference.” Aluno P: “A parede do meu quarto é grafitada, não é pichada.” Professora: “But I’m sorry, according to the definition…” Devido aos propósitos desta pesquisa, não iremos nos ater a essas categorias. Para maiores informações sobre tipos textuais, segue a sugestão bibliográfica de Marcuschi (2002): WERLICH, E. 1975 (1973). Typologie der Texte. Heidelberg: Quelle & Meyer. 12

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(A professora, então, lê a definição da palavra em um dicionário):“Words or drawings people portray in a wall.” (E continua):So, that’s what I’m saying. Sometimes it happens. Saudade, for example, we don’t have a word in English. Se somarmos a atividade proposta pela professora e a sua postura durante os questionamentos do aluno, veremos que os propósitos da docente se basearam somente em aspectos lexicais, focando na tradução dos termos, ignorando, assim, o uso da língua em situações reais de uso. Sendo assim, podemos compreender o desfecho da conversa transcrita anteriormente, na qual as questões trazidas pelo aluno são desconsideradas em detrimento de aspectos linguísticos sem nenhuma relação com a utilização dos termos grafite e pichações em contextos sociais. Após trabalhar os conceitos da aula do dia 20 de setembro, a professora propôs a aplicação dos mesmos na aula do dia 11 de outubro. O material (Anexo II), composto por dez textos e que aqui foi limitado aos dois primeiros, foi distribuído aos alunos para que eles identificassem o tópico, o assunto, a fonte e o tipo de texto.Observamos aqui o emprego de gêneros textuais como panos de fundo para a aplicação dos conceitos trabalhados previamente. Assim como na aula anterior, os gêneros foram desvinculados de seus propósitos comunicativos, sendo apresentados como ilustração de tópico, assunto, fonte e tipo de texto. Considerações finais Desde o início deste trabalho, apontamos para a natureza interpretativa do mesmo e, consequentemente, a ausência de julgamento em relação à prática docente observada. Entretanto, a fim de delimitar os objetivos desta pesquisa, fez-se necessário nos posicionarmos perante as concepções de língua, de letramento e de gêneros textuais que nortearam as nossas reflexões. Contextualizar as práticas de leitura através do uso dos gêneros textuais faz sentido a partir do momento em que os entendemos como instrumentos de ação no mundo. Agimos através da linguagem não somente para que uma mensagem seja produzida, ou seja, agimos no sentido de que não basta nos preocuparmos somente com o que está sendo dito ou escrito, mas também levamos em consideração para quem se diz ou se escreve e os propósitos que nos levam a reproduzir certos enunciados.

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Retomando Bakhtin (1997), que defende a visão de que sem os gêneros textuais a comunicação verbal seria inviável, e estendendo esse raciocínio para as aulas de língua estrangeira, apontamos para o fato de que sem os gêneros o ensino da língua acaba por ignorar a natureza dos enunciados, reproduzindo práticas pedagógicas nas quais a linguagem é trabalhada de forma abstrata, tornando superficial não só o trabalho com o idioma, como também a formação dos alunos.

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REFERÊNCIAS

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DIÁLOGO ENTRE O LETRAMENTO LITERÁRIO, AS LITERATURAS HISPÂNICAS E UMA LICENCIATURA DE ESPANHOL

Raquel de Castro dos Santos

O

diálogo entre as literaturas hispânicas e a Licenciatura de Português-Espanhol torna-se fundamental, nos dias de hoje, pois uma das preocupações dos documentos atuais (Parecer nº 5 CNE/CP/2006 e Resolução nº 1 CNE/CP/2002, por exemplo) acerca da educação superior é formar futuros docentes preparados para o mercado de trabalho no mundo contemporâneo. Devido a essa consideração, espera-se que todas as instituições superiores de ensino de Português-Espanhol possibilitem que o licenciando obtenha, em sua formação acadêmica e profissional, respaldo para sua prática docente futura, que é, circunstancialmente, efetiva, concomitantemente, aos estudos universitários. Como aluna da Especialização Ensino de línguas estrangeiras – Ênfase em Língua Inglesa e Espanhola, realizo uma pesquisa sobre a licenciatura do curso de Licenciatura em Português-Espanhol de um Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro e as suas literaturas hispânicas. Esta pesquisa iniciou-se após momentos reflexivos sobre a minha formação docente e minha formação acadêmica desde, para ser precisa, como aluna da graduação do referido curso até o momento atual, em que sou aluna de pós-graduação e de uma nova graduação. A reflexão sobre a Licenciatura de Espanhol e suas Literaturas Hispânicas torna-se assaz importante, já que do âmbito microestrutural passa ao macroestrutural, auxiliando não somente minha prática docente e acadêmica, mas, também a demais interessados e engajados no ensino de Espanhol. Desde minha experiência como aluna de graduação, até o momento atual, percebi, em muitos casos, a aversão com as Literaturas Hispânicas, e demais literaturas como literatura brasileira, literatura inglesa etc., por parte dos alunos e o isolamento das disciplinas em relação à prática docente do aluno em formação. Assim, mostrou-se realmente necessário pesquisar sobre as Literaturas Hispânicas e a Licenciatura de Espanhol dentro da conjuntura atual. 672

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A questão principal tornou-se a seguinte: Por que as literaturas hispânicas, e a literatura em geral, são escamoteadas por muitos, alunos e professores, no sistema educacional do curso superior de espanhol, e de Letras em geral? Apesar de existirem disciplinas, de fato, na grade, condizentes ao ensino de Literaturas, seja em relação à literatura espanhola ou hispano-americana, como demais literaturas representantes de demais línguas, o prestígio e o reconhecimento do campo das literaturas na formação do futuro docente não apresentam um certo grau satisfatório. Muitos alunos apontam para a língua espanhola, ou seja, para a língua estrangeira, como seu foco para o bacharelado e para a licenciatura. E colocam as literaturas hispânicas no patamar de disciplinas a cumprir os requisitos, às vezes, básicos para a aprovação ou para não diminuir o rendimento escolar do período. Muitas vezes, a identificação com as literaturas hispânicas ocorre devido ao cultivo pela arte como prazer estético (como deleite e contemplação) ou devido à simpatia e adoção por determinada crítica literária. Mas, o que é feito com o texto literário? E ainda: estarão os licenciandos com a oportunidade de ter nas literaturas hispânicas, presentes no fluxograma, um apoio para sua futura prática docente na Educação Básica? Essas perguntas sinalizam uma preocupação para o ensino e para a aprendizagem da Literatura na Licenciatura em Espanhol, na medida em que, apesar das reformulações curriculares terem acontecido, na prática, a ponte entre a Licenciatura em Letras e o licenciando de Espanhol encontra-se ainda interditada e intransponível para a reflexão e prática docente, para propor a construção concreta de um percurso satisfatório entre a Licenciatura em Letras e o licenciando em relação à literatura. Em decorrência das aulas da graduação de espanhol (entre os anos de 2000 e de 2004), através de um caráter crítico e reflexivo, percebo que as aulas das disciplinas referentes às literaturas hispânicas se baseavam em passar conhecimentos gerais (de cunho biográfico, como os escritores de determinada época, de diferentes fases literárias, com suas características comuns, e de enfatizar certos escritores em virtude da consideração canônica de sua representação literária da época), mas não havia uma preocupação docente universitária pela transposição da literatura para a sala de aula, ambiente no qual os licenciandos se deparariam quando formados. Nas aulas referentes à língua, tampouco havia uma prática efetiva que visasse à prática docente dos futuros licenciados. Inclusive, não havia uma prática que unisse a língua à literatura. E, na única disciplina mais voltada para a prática, a articulação entre a teoria e a prática da literatura não foi intensi-

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ficada. Ademais, não havia qualquer disciplina optativa que abordasse o diálogo entre prática docente e as literaturas hispânicas no ambiente escolar. No entanto, essas constatações estão presentes e podem ser vistas ainda hoje em dia, através das entrevistas concedidas pelos professores da mencionada Instituição de Ensino Superior. A partir dos questionamentos suscitados pela relação entre as literaturas hispânicas e a Licenciatura de Espanhol de uma Faculdade de Letras, espero articular a pesquisa com o letramento literário, a fim de que haja um diálogo que vise, na diversificada formação do licenciado, uma prática docente diferenciada da literatura. Assim, o objetivo central será trazer o letramento literário para a prática docente de formação de professores de espanhol, com a finalidade de superar estigmas, frustrações e preconceitos referentes às literaturas hispânicas no âmbito universitário. O letramento literário visa à prática social do texto literário. O pesquisador, professor e coordenador do Programa de Pós-graduação do Cefor, Rildo Cosson, em Letramento literário: teoria e práticas, em uma abordagem do letramento literário para aula de literatura na língua materna, diz que o “[…] Letramento literário é uma prática social, e, como tal, responsabilidade da escola.” (2009: 23) Assim, como prática social, o letramento literário pode ser vinculado à prática profissional da formação docente, para o aluno de um curso da licenciatura, futuro professor de nível básico, por propiciar que o licenciando em formação adquira parâmetros para sua formação acadêmica e profissional com o intuito de fazer das literaturas hispânicas uma prática social de ensino e aprendizagem e não disciplinas estanques que se preocupem com o saber acadêmico desvinculado de sua futura prática docente. E o licenciando poderá encontrar assim uma relação entre as literaturas hispânicas e sua prática docente. Isso se apresenta como objetivo prático quando o licenciando se indaga qual é a funcionalidade das literaturas hispânicas para sua vida acadêmica ou profissional. O letramento literário é um processo no qual convergem o atual ambiente do licenciando, a faculdade, e o futuro ambiente de trabalho, a escola. Com o objetivo de traçar um panorama atual pertinente à licenciatura de Espanhol e às literaturas hispânicas, apresento o seguinte desenvolvimento metodológico: os procedimentos bibliográficos de caráter documental com a análise dos documentos oficiais referentes à educação básica e à reforma curricular, visando às mudanças decorrentes no currículo da Licenciatura, à relação entre as litera-

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turas hispânicas, a prática docente e o currículo da Licenciatura de Espanhol, à apresentação da grade curricular, assim como, a grade de estágio; a entrevista concedida por dois informantes, dois professores de literaturas hispano-americanas que atuam na instituição de ensino superior, escolhidos devido ao tempo de experiência. As perguntas selecionadas apresentam-se em dois blocos: o 1º condizente à formação e prática docente e o 2º referente às literaturas hispano-americanas e a Licenciatura. Dentre as perguntas selecionadas, podem ser apresentadas as seguintes: Formação e prática docente: Como define o conteúdo programático do curso superior de Espanhol da instituição em que trabalha? Quais mudanças na estrutura deste curso superior são perceptíveis, enfaticamente, nesta última década? Literaturas hispânicas e Licenciatura: Qual relação acadêmica e docente se estabelece entre sua prática docente e as literaturas hispânicas? Pode relatar, sucintamente, sua trajetória com as literaturas hispânicas? Como se dá o ponto de encontro entre as literaturas hispânicas e a formação do licenciando? Diante da articulação entre a Licenciatura em Espanhol e as Literaturas Hispânicas, a questão da prática docente permanece em posição de destaque como meio pelo qual o professor e/o aluno estabelecerá sua relação com a literatura e a prática docente de fato. Diante disso, apresenta-se a seguinte pergunta: como se dá propriamente a relação entre a Licenciatura em Letras e as disciplinas de Literaturas Hispânicas (Espanholas e Hispano-Americanas)? A ementa das disciplinas está de acordo com a nova demanda para a Licenciatura? O que fazer quando as Literaturas Hispânicas são vistas como empecilho à aprendizagem (e ao ensino) do espanhol no contexto universitário? Como se apresenta o licenciando na ótica do docente universitário na Licenciatura em Espanhol em relação às literaturas hispânicas na nova conjuntura? Essas perguntas deverão ser analisadas com a consideração de que os respectivos projetos de cada instituição estão ainda em um momento de transição. A partir do conhecimento de base documental, entende-se que deveria haver um diálogo entre a Licenciatura e as disciplinas de Literaturas Hispânicas. Porém,

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essa relação ainda é inexistente. A Licenciatura (com suas disciplinas) ainda não se mostra integrada à pratica docente do mercado de trabalho, nem há uma mudança de postura frente à literatura, no sentido de articular a literatura à prática docente de sala de aula; há Licenciaturas que fazem essa integração de maneira insuficiente, pois as Licenciaturas em Espanhol se encontram em um momento de uma longa transição. As mudanças em relação às literaturas das línguas estrangeiras foram amenas, se comparadas à antiga grade curricular, já que, em determinados casos, a mudança deu-se em acrescentar um período letivo a mais na atual grade, como se todo problema fosse resolvido assim, ou desmembrou-se uma disciplina com nova nomenclatura ao longo dos períodos. A dificuldade de adequação à nova demanda perpassa a não articulação entre Licenciatura e bacharelado, em relação às literaturas hispânicas, a não revisão das ementas, ou melhor, a indisponibilidade em oferecê-las a qualquer interessado para consulta, até a não apresentação do projeto do curso. Portanto, uma nova postura faz-se necessária a fim de propiciar maior articulação entre as Literaturas hispânicas e a licenciatura. Até o presente momento da pesquisa, não foi possível obter as novas ementas das disciplinas nem o projeto de curso desta instituição de Ensino Superior pesquisada.Finaliza-se com a constatação de que é necessário que haja mudança no modo como são articuladas as Literaturas Hispânicas e a licenciatura, a fim de propiciar ao licenciando uma formação acadêmica e profissional dialógica com o momento atual.

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REFERÊNCIAS

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ENTRE A LICENCIATURA EM LETRAS E O LICENCIANDO DE ESPANHOL: POR QUAIS VEREDAS CAMINHAM AS LITERATURAS HISPÂNICAS?

Raquel de Castro dos Santos

Introdução/justificativa

N

essa caminhada pela Especialização, sinto-me regozijada por ter a oportunidade de estudar e escrever um projeto fruto das experienciações, problematizações, ensinamentos e aprendizagens presentes ao longo de minha vida acadêmica e profissional. Além do mais, um projeto que me permite reflexionar sobre minha prática educativa e mobilizar meu senso crítico para a melhoria da educação. Ao longo de minha vida acadêmica percebi o quanto a literatura é rechaçada nos meios acadêmicos apesar de que há na grade da graduação disciplinas referentes às literaturas hispânicas. A identificação acontece, em certos casos, pelo cultivo do gosto pela arte como deleite e contemplação ou oriundo de um viés de crítica literária. Mas onde e como estará a relação da literatura presente na grade curricular da Faculdade de Letras (ou Instituto de Letras) e o seu ensino efetivo no sistema educativo básico público e privado? As indagações suscitadas fornecem uma preocupação panorâmica do ensino e da aprendizagem da Literatura na Licenciatura em Espanhol, na medida em que, apesar das reformulações curriculares terem acontecido, na prática, a ponte entre a Licenciatura em Letras e o licenciando de Espanhol (e, provavelmente, de outro idioma qualquer) encontra-se interditada e intransponível para a reflexão e prática docente, favorecendo, assim, que haja o nado contra a correnteza, no sentido de que não há nenhum, ou quase nenhum, ou muito pouco, ou insuficiente resguardo e respaldo para a construção concreta de um percurso satisfatório entre a Licenciatura em Letras e o licenciando em relação à literatura. Satisfatório não no sentido de plenitude e magnitude, mas, sim, de propiciar ao aluno licenciando meios para que o bloqueio entre a literatura e sua formação acadêmica e profissional seja quebrado. 678

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No meu percurso como aluna de Letras, como licenciada em Espanhol e licencianda em Francês de uma universidade pública, percebi que há uma barragem entre a literatura e o aluno. E, muitas vezes há um alheamento total do licenciando e licenciado para com a literatura. Presenciei casos em que os alunos falavam que não viam funcionalidade da literatura para sua prática profissional futura docente. E, contudo, conseguiam enxergar uma função do ensino de língua materna, o português, ou de língua estrangeira, tradicional ou não. Ou, pelo menos, sentiam-se confortáveis por poder tirar da língua esquemas prontos e fechados de uso, como senhores detentores do saber. Apesar de que a literatura, em si, não possui a funcionalidade com fins que se apregoa em campos tecnicistas, pode-se almejar que ela sirva na prática educativa como fonte primária de reflexão neste mundo atual em que a velocidade das informações mostra-se cada vez mais veloz e diversificada. Quando aluna de espanhol, percebia que as aulas das disciplinas referentes às literaturas hispânicas se baseavam em passar conhecimentos gerais (de cunho biográfico, como os escritores de determinada época, de fase literária, com suas características comuns, e de enfatizar determinado escritor em virtude da consideração canônica de sua representação literária da época), mas não havia uma preocupação docente universitária pela transposição da literatura para a sala de aula, ambiente no qual os licenciandos se deparariam quando formados. Nas aulas referentes à língua, tampouco havia uma prática que visasse à prática docente dos futuros licenciados. Inclusive, não havia uma prática que unisse a língua à literatura. Já, como aluna de Francês, da Faculdade de Letras, percebi, na aula de um docente, uma articulação entre a língua ensinada e a prática docente, no sentido de que atividades, que iam sendo trabalhadas pelo professor universitário, iam sendo dimensionadas, referidas, pelo mesmo, à nossa futura prática em sala de aula. Ainda, o professor trazia texto literário para a aula de língua francesa com a finalidade de tradução. Essa atividade sempre se mostrou significativa, pois com o texto surgia um universo reflexivo, de pensar a língua estrangeira e a materna, além de apresentar a nós, alunos, um amálgama de usos da língua. No entanto, não foi verificado, nem em outros casos, a transposição da literatura para a prática docente em sala de aula. O projeto intitulado “Entre a Licenciatura em Letras e o licenciando de Espanhol: por quais veredas caminham as literaturas hispânicas” foi originado a partir

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de elucubrações sobre o ensino de literatura, principalmente das literaturas hispânicas, também divididas entre literatura espanhola e literatura hispano-americana, já que o foco de uma graduação em Letras é, muitas vezes, a língua, materna ou estrangeira. O lugar da literatura fica, portanto, escamoteado, em um segundo plano. Essa questão nos faz levantar a seguinte pergunta: Por que a literatura ocupa um lugar marginal na Licenciatura em Letras? Devido ao escamoteamento da literatura no âmbito da Licenciatura em Letras, há os alunos e ex-alunos que saem da Faculdade sem querer ministrar aula em Literatura, adquirem ojeriza e, simplesmente dizem não gostar, simpatizar, apreciar e/ou, até mesmo, consideram-na uma disciplina difícil e impraticável, segundo minha percepção de acordo com a convivência e diálogos informais traçados com demais licenciados e licenciandos de Letras. E, inclusive, alguns apontam para a didática do professor de literaturas da graduação/licenciatura como ponto negativo de sua visão sobre o ensino e aprendizagem de literatura. A partir dos questionamentos suscitados pela relação entre as literaturas hispânicas e a Licenciatura de Espanhol de uma Faculdade de Letras, espero articular a pesquisa com o letramento literário, a fim de que haja um diálogo que vise, na diferenciada formação do licenciado, uma prática docente diferenciada da literatura. Assim, o objetivo central será trazer o letramento literário para a prática docente de formação de professores de espanhol, com a finalidade de superar estigmas, frustrações e preconceitos referentes às literaturas hispânicas no âmbito universitário. Definição do projeto Tema Estudo da relação e problematização entre as literaturas hispânicas e a formação do professor de Espanhol no contexto da Licenciatura em Espanhol de uma Instituição Pública de Ensino Superior do Estado do Rio de Janeiro, com base no letramento literário proposto por Graça Paulino (2010) e Rildo Cosson (2009). Problema Diante da articulação entre a Licenciatura em Espanhol e as Literaturas Hispânicas, a prática docente permanece em posição de destaque como meio pelo

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qual o professor e/o aluno estabelecerá sua relação com a literatura e a prática docente de fato. Diante disso, como se dá propriamente a relação entre a Licenciatura em Letras e as disciplinas de Literaturas Hispânicas (Espanholas e Hispano-Americanas)? Essas disciplinas estão de acordo com a nova demanda da Reforma Universitária e do Parecer do CNE/CP 2002? O que fazer quando as Literaturas Hispânicas são vistas como empecilho à aprendizagem (e ao ensino) do espanhol no contexto universitário? Como se apresenta o licenciando na Licenciatura em Espanhol em relação às literaturas hispânicas na nova conjuntura? Hipótese A partir do conhecimento da proposta da Reforma Universitária, entende-se que deveria haver um diálogo entre a Licenciatura e as disciplinas de Literaturas Hispânicas. Porém, em alguns cursos de Letras em Licenciatura de Espanhol, essa relação ainda é inexistente. Há Licenciaturas (com suas disciplinas) que ainda não se mostram integradas à pratica docente do mercado de trabalho, nem da mudança de postura frente à literatura, no sentido de articular a literatura à prática docente de sala de aula, ou fazem essa integração de maneira insuficiente, pois as Licenciaturas em Espanhol se encontram em um momento de uma longa transição. As mudanças em relação às literaturas das línguas estrangeiras foram amenas, se comparado à antiga grade curricular, já que, em determinados casos, a mudança deu-se em acrescentar um período letivo a mais na atual grade, como se todo problema fosse resolvido assim. Portanto, uma nova postura frente às Literaturas Hispânicas poderia trazer um novo olhar sobre o tema e a prática na Licenciatura. Objetivos (gerais e específicos) Gerais Investigar o papel do formando de Espanhol nesta conjuntura atual; Averiguar a prática docente oferecida pela Faculdade na Licenciatura de Espanhol em relação ao ensino de literaturas hispânicas.

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Específicos Problematizar o ensino das Literaturas Hispânicas na Licenciatura; Verificar a relação entre as disciplinas da Licenciatura e o mercado de trabalho do futuro professor de Espanhol; Propor um olhar diferenciado para as Literaturas Hispânicas na Licenciatura através do conceito de letramento literário. Ou seja, apresentar o letramento literário como forma de unir as literaturas hispânicas à prática docente. Metodologia Formação de professor

MENDONÇA (2003) RODRIGUEZ (2004) ALVAREZ (2006) PARAQUETT (2009) DAHER, SANT’ANNA (2010)

Literatura: ensino e aprendizagem

Documentos referentes à educação brasileira

Letramento literário

JUNGER (2005) SANTOS (2005) MARTIN (2005) MÜLLER (2008) LEAL (2011)

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) Parâmetros curriculares nacionais (1998, 1999) Resolução nº 1 CNE/CP/2002 Resolução nº 2 CNE/CP/2002 Orientações curriculares para o ensino médio (2006)

COSSON (2009) PAULINO (2010)

Procedimentos A pesquisa baseia-se numa primeira parte de cunho bibliográfico em que a formação do professor de Espanhol, a literatura e seu ensino e aprendizagem, o sistema educativo de nível superior e o letramento literário serão problematizados, bem como se darão os procedimentos da etapa bibliográfica documental com a análise dos documentos oficiais da educação brasileira, visando às mudanças decorrentes no currículo da Licenciatura, à relação entre as literaturas hispânicas, à prática docente e o currículo da Licenciatura de Espanhol, à apresentação da grade curricular, assim como, a grade de estágio. Posteriormente, serão feitos os procedimentos da etapa qualitativa. Para a análise qualitativa, será feita entrevista com dois professores, do mesmo curso de Português-Espanhol, da Instituição Pública de Ensino Superior. Será

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feita a análise crítica dos dados levantados. A opção pela análise qualitativa ocorre pelo fato de que aparecerão problemáticas importantes sobre a Licenciatura de Espanhol e as literaturas hispânicas, nos dados coletados dos discursos dos professores, para o desenvolvimento da pesquisa. Por fim, se iniciará a escrita da monografia. Conclusão Com a presente pesquisa, pretende-se abordar a questão da relação entre as literaturas hispânicas e a Licenciatura de Português-Espanhol na conjuntura atual. Para tal, o letramento literário servirá como ponto de contato entre a prática docente e a prática acadêmica. Desse modo, pretende-se possibilitar o diálogo entre as disciplinas de literaturas hispânicas e a formação docente e acadêmica do aluno. Esta relação apresenta, por vezes, contradições, pois o licenciando, nem sempre, é formado, pela instituição superior, nas disciplinas referentes à literatura, para a atuação efetiva docente referentes às ditas disciplinas. Há casos em que há uma ruptura entre a teoria proposta pelas ementas, grade de horário, currículo da Licenciatura, e demais documentos, com a prática da sala de aula. Isso mostra uma dificuldade de determinadas instituições superiores a adequar-se às atuais exigências. Portanto, elucidar a correspondência entre as literaturas hispânicas e a Licenciatura de Português-Espanhol é de extrema importância por observar e analisar a situação vigente de uma instituição superior em detrimento das disciplinas obrigatórias de literaturas hispânicas e a formação docente e acadêmica do licenciando, através das entrevistas com dois professores da mesma universidade, ressaltando que a situação desta não significa que é abrangente para todas as instituições superiores do Rio de Janeiro, e, até mesmo, do Brasil.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ENSINO-APRENDIZAGEM DE E/LE NO CONTEXTO DA TERCEIRA IDADE: CONHECENDO O LICOM/LETI

Roberta Maranguape Olmos Coutinho Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Ronaldo Claudio de Araujo Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Angela Marina Chaves Ferreira Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

1. O Programa LICOM e seus projetos O Projeto Línguas para a Comunidade (LICOM) foi criado no início dos anos 1990 por Ato Executivo da Reitoria e, posteriormente, se tornou um programa (LICOM/IL-UERJ) do Instituto de Letras em 16 de junho de 2009, oficializado pelo AEDA 34 (Ato Executivo de Decisão Administrativa), também firmado pelo Reitor. O Programa Línguas para a Comunidade objetiva: (a) oferecer ensino global de línguas (materna e estrangeira), em nível básico, focalizando as 4 habilidades: compreensão oral, fala, escrita e leitura; (b) oferecer cursos de línguas (materna e estrangeira) para a comunidade fluminense; (c) facilitar as interações entre indivíduos e entre estes e o mundo através da língua estrangeira; (d) contribuir para o processo de construção de conhecimento com vistas ao aperfeiçoamento profissional e à atualização cultural; (e) proporcionar espaço de prática docente aos alunos do curso de licenciatura em Letras; (f) ampliar as possibilidades de estágios dos futuros professores de línguas, contribuindo para o aperfeiçoamento da formação do profissional em sua área de trabalho. Dentro do Programa LICOM, há projetos que nos interessam de maneira mais próxima: Projeto de Línguas para a Comunidade (PLIC) e Projeto de Línguas Estrangeiras para a Terceira Idade (LETI), com características distintas. O Programa

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LICOM/IL-UERJ tem um coordenador geral e cada um dos projetos (LETI e PLIC) conta com coordenadores, docentes efetivos da universidade, um para o PLIC e outro para o LETI. Cada curso de língua tem coordenadores/supervisores específicos para as diferentes línguas. Nosso objeto de estudo, o projeto LETI (Línguas Estrangeiras para a Terceira Idade), está destinado aos maiores de sessenta anos e oferece cursos de línguas estrangeiras modernas, a saber: alemão, espanhol, francês, inglês e italiano. Os cursos do LETI se estruturam em quatro níveis de um ano de duração cada1 e o público-alvo necessita haver concluído o ensino fundamental para pleitear uma vaga. Os alunos da graduação, bolsistas de Iniciação à Docência (ID), são responsáveis pela implementação das práticas docentes, sob a supervisão e orientação de um professor da UERJ. Usamos livro didático nos níveis 1, 2, 3, operando as devidas adaptações necessárias às especificidades do contexto, uma vez que não há (ao menos não se tem notícia) manuais didáticos de espanhol pensados diretamente para a terceira idade. No nível 4, entretanto, optamos por não usar livro e criar um material próprio, desenvolvido sob a supervisão e orientação da coordenadora do ILE, como dissemos acima. Pensado periodicamente, esse material se constitui de variadas atividades e abordagens com gêneros também variados, tentando uma maior aproximação às já mencionadas particularidades da faixa etária e os temas que desejariam desenvolver. 2. Espanhol no projeto de extensão O curso é promovido pelo Instituto de Letras da UERJ e faz parte do amplo leque de atividades da UnATI (Universidade Aberta da Terceira Idade2.), núcleo O módulo 4 é um grupo permanente, em que os alunos determinam por quanto tempo estarão vinculados a ele. 2 A UnATI surgiu de trabalho do Professor Piquet Carneiro que, em 1980, criou um Centro de Convivência voltado para estudos sobre o idoso, no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE). Desse trabalho, que envolveu faculdades e institutos da UERJ, foi criada em 1993, a Universidade Aberta da Terceira Idade (UnATI), programa vinculado ao Instituto de Medicina Social (IMS), uma “microuniversidade temática” (unati.uerj.br). Em 1996, a UnATI passa a ser um Núcleo da UERJ, reconhecido pelo colegiado da universidade.Está estruturado a partir de um conjunto de metas, em que as ações de ensino, pesquisa e extensão estão contempladas (FERREIRA, 2011). 1

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da UERJ voltado para atender aos maiores de sessenta anos. O curso Espanhol para a Terceira Idade vem sendo redefinido pelos seus coordenadores ao longo do tempo, visando à adequação às necessidades bastante específicas do público a que atende. Destacamos os objetivos mais significativos, sob dois focos, em relação ao aluno LETI e ao bolsista ID: (1) Em relação ao aluno da terceira idade: Geral: propiciar ao aluno domínio de habilidades básicas em língua estrangeira, inserindo-o em novas culturas. Específicos: exercitar aspectos cognitivos (memória, raciocínio, atenção), sem descartar os aspectos afetivos; ampliar sua visão de mundo, resgatando conhecimentos prévios; inseri-lo nos debates contemporâneos da sociedade. (2) Em relação ao graduando UERJ: Geral: propiciar uma oportunidade real de iniciação às práticas da docência. Específicos: proporcionar alternativas para a experimentação de estratégias variadas no ensino de línguas estrangeiras; construir e consolidar práticas pedagógicas com vistas à formação de uma identidade profissional. Com base em propostas que buscam levar aos alunos maiores de sessenta anos atividades compatíveis com suas necessidades e objetivos, procuramos realizar uma “via de mão–dupla” (FORPROEX, 2004), entre os saberes acadêmicos e as necessidades sociais. A parceria do IL com a Universidade Aberta da Terceira Idade (UnATI) propicia este fluxo (FERREIRA, 2011). 3. Diversos fatores no processo de ensino-aprendizagem O contexto de ensino-aprendizagem de um idioma é um somatório de muitos fatores, caracterizados de um modo geral por aspectos linguísticos, cognitivos, psíquicos, socioculturais etc. A idade dos aprendizes é um fator externo importantíssimo para a aquisição e processamento da linguagem, que determinará uma especificidade nas situações de ensino (CINTRA, 1983). Diz-se que quando o processo de aprendizagem se inicia na idade adulta estará “afetado por fatores como a semelhança e a dessemelhança entre a estrutura das mesmas e as culturas em jogo.” (SCLIAR-CABRAL, 1988 apud VENTURI, 2006 p. 123) e como defende Mackey (1972 apud VENTURI, 2006) quanto mais velho o aprendiz, menos possui flexibilidade para que novos automatismos sejam aprendidos.

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Por outro lado, a maturidade dos aprendizes produz neles maior desenvolvimento metalinguístico da língua, incluindo um aprendizado mais fácil e efetivo de léxico mais complexo, devido a uma maior experiência em L1 e, finalmente, uma maior consciência no emprego de estratégias de aprendizagem (VENTURI, 2006). Outro aspecto que se deve observar nessa faixa etária: a motivação. Rajagopalan (2003) observa que entre as motivações mais comuns dos aprendizes de uma língua estrangeira está o status que ela pode proporcionar, permitindo o acesso a uma vida melhor, ou seja, “subir na vida” (2003, p.65). No entanto, no caso da terceira idade, isso é diferente, pois não há uma motivação de crescimento profissional para o mercado de trabalho, status ou “seguir a moda”, ou seja, ditos fatores não influenciam totalmente na decisão de aprender uma segunda língua. A curiosidade, a afetividade, a sonoridade da língua que se deseja aprender, são características que, geralmente, os mais velhos utilizam para fazerem a opção pela língua que querem aprender. Além de tudo isso, é também necessário ter em conta o que Cantero (2008) observa quando apresenta algumas características comuns as idosos que podem (ou não) influenciar no processo de aprendizagem com a diminuição das funções cognitivas, a perda da memória, incidência de padecimentos reumáticos e cardiovasculares, as doenças crônicas, como o diabetes, etc. Segundo a autora, para os idosos, aprender uma língua se caracteriza como uma atividade ímpar, visto que sua memória e suas capacidades cognitivas estarão em processo de exercício. 4. Refletindo sobre a prática Estamos de acordo com Rajagopalan (2003) quando diz que é necessário saber dos alunos a razão pela qual querem aprender uma língua estrangeira, pois isso deve orientar todo o trabalho do professor em relação ao currículo com seus conteúdos e as metodologias que serão utilizadas. Nossa experiência no LICOM/LETI nos revelou também, além de outros pontos, uma heterogeneidade que ocorre dentro de um mesmo grupo. Há alunos de diferentes classes sociais, uns que já trazem um breve conhecimento da língua, devido a uma viagem que fizeram e outros que não tem nenhum conhecimento em relação ao espanhol. Como aponta Cintra (1983, p.145): “Dificilmente pode-se contar com classes homogêneas com relação a conhecimento, idade, interesses,

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etc.” Desse modo, se considera que os alunos possuem a mesma motivação, no entanto, características distintas que cabe ao professor identificar e considerar ao construir seus objetivos. A seleção do conteúdo (CINTRA, 1983) a ser trabalhado em sala de aula está diretamente relacionada a tais características. As estratégias desenvolvidas na prática diária não devem necessariamente desconsiderar o tradicionalismo (GÓMEZ, 2008), porém as atividades propostas precisam mostrar alternativas mais dialógicas, participativas, criativas e mobilizadoras que permitam ao aluno adulto idoso ter outra abordagem do conhecimento. Questões didáticas como a disposição dos conteúdos no quadro com letra grande e legível, a entonação do professor na hora de falar, respeitando o ritmo mais lento dos alunos, etc, são detalhes importantes que devem ser observados, pois podem tanto ajudar como dificultar todo o processo em andamento. Consideramos também importante a reflexão e adequação do material didático às necessidades e objetivos dos alunos, pois estes só aprendem o que é significativo. Caso contrário, possivelmente, não serão obtidos os resultados esperados. Levando-se em conta que a maioria das instituições de ensino se baseiam no uso desse instrumento (não só como instrumento, mas também como fim), esse aspecto se torna inegavelmente merecedor de atenção e reflexão. Por fim, mas não menos importante, nossa prática passa pela escuta e compreensão das “vozes dos alunos”. Para tanto, propiciamos a prática de um questionário de auto-avaliação3, construído com questões discursivas e de múltipla escolha. Preenchido a cada fim de módulo, ao final do ano, esse questionário nos permite recolher informações que nos são úteis em ações de replanejamento, porque são de caráter qualitativo e as respostas dos alunos apontam as direções, ou melhor, redireções, do trabalho da equipe do curso de Espanhol LICOM/LETI. Ao longo do questionário, surgem outras visões do aluno LETI sobre o curso e as propostas apresentadas. Dessa maneira, vamos observando que, para muitos deles, “é proveitoso conhecer uma língua estrangeira”; “os alunos devem escrever textos sobre cultura espanhola”; “aprendi muito e conheci novas pessoas”, entre outros depoimentos. Dessa forma, também sinalizam que é necessário mudar o O instrumento está sendo testado pela equipe, pois foi aplicado pela primeira vez em novembro de 2011. No anexo se encontra a reprodução do questionário e exemplos de respostas de alguns alunos. 3

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material didático4 ou ouvir mais canções e ver mais filmes, realizar mais atividades de conversação, etc. No cômputo geral, a amostra da voz do aluno da terceira idade nos dá a dimensão do acerto e do equívoco em grande parte de nossas proposições e nos permite verificar que os objetivos em relação ao alunado estão sendo alcançados: o resgate da memória, o convívio com os companheiros, o adentramento a um novo espaço, através de culturas pouco ou nada conhecidas, além de permitir sua inserção em debates da sociedade contemporânea. Conclusão Uma assertiva do educador Paulo Freire (1994) nos propicia pensar a dimensão que assume o curso Espanhol para a Terceira Idade: “ninguém aprende sozinho, e essa aprendizagem se dá através do mundo”. Assim, o LICOM/LETI procura contemplar o resgate do conhecimento de mundo do aluno e o respeito pela autonomia, um aspecto fundamental para o público-alvo. Visto que nosso trabalho tem como principal objetivo apresentar reflexões a respeito do ensino de espanhol para a terceira idade através de nossas experiências no LICOM/LETI, ramo com insuficiência de estudos e investigações, não há conclusões fechadas a se considerar. Entretanto, trazemos a discussão da necessidade de investigações mais profundas, levando-se em conta a demanda do público e a falta de propostas de material de ensino-aprendizagem adequados e preocupados com suas características próprias. Por fim, com base em todos esses aspectos de análise, desejamos propor possíveis caminhos para essa modalidade de ensino, esperando contribuir para futuras pesquisas direcionadas à formação de futuros professores em suas práticas didáticas.

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Os alunos usam um livro didático espanhol que, no momento, está sendo reavaliado

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Anexo: Questionário Curso de Español LICOM/LETI – Autoevaluación 2012.2.

Estimado alumno/a: Nuestra intención es que evalúes tu actuación en el curso de Español/LETI y se pueda mejorar lo que te presentamos hasta ahora. No estás obligado a idenTificarte si no lo deseas. Puedes elegir el español o el portugués para contestar las preguntas. NOMBRE:________________________________ CLASE:

________________________________

1 - ¿Cómo evalúas tu participación en clase a lo largo del período? ( ) insuficiente ( ) regular

( ) buena ( ) excelente

- ¿Qué dificultades has tenido? ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ - Teniendo en cuenta tu expectativa inicial, ¿lucraste con el curso? ¿Cómo? ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ - ¿Cómo evalúas tu profesor/profesora: su actuación? ( ) insuficiente ( ) regular

( ) buena ( ) excelente

las actividades propuestas por él/ella? ( ) insuficientes ( ) regulares ( ) buenas ( ) excelentes

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¿Qué sugerencias tienes para mejorar nuestro trabajo? ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ Este espacio es tuyo. Si tienes algo más a añadir a lo dicho, incluso con relación a este formulario, puedes decirlo aquí. ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________ (Adaptación de la propuesta de la Profa Cristina Junguer – Sector de Español)

OBS: Reproduzimos aqui somente exemplos de respostas para os itens discursivos (2, 3, 5 e 6). Ditos exemplos foram recortes de dois alunos diferentes (ambos do nível III), identificados aqui como A1 e A2: 5 (2) A1: Hablando en español. Si. Chat, ver películas, canciones. Interactuar con los compañeros de clase en hispañol. A2: Los verbos para mi son difíciles. (3) A1: Si. Puedo entender la lenguaje y puedo leer libros que quedan atrapados en la biblioteca de la universidad de acuerdo con mi nivel. A2: Si, aprender una nueva lengua e conquistar nuevos amigos. (5) A1: No mucho cambio para los profesores, como sucedió en esos tres años. No mucho cambio en el aula. Se pierde tiempo buscando la nueva habitación. A2: Que propongan más actividades de conversación. (6) A1: Felicito al hispanhol equipo. Mi agradecimiento y felicitaciones a todos los responsables de la biblioteca hispanhol. Excelente trato y cuidado que he recibido. A2: Considero nuestro horario terrible, principalmente para los de la tercera edad. 5

Reproduzidas da maneira como os alunos escreveram. Suas identidades foram suprimidas.

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REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICA:

CINTRA, Geraldo. Situações de ensino e metodologia. São Paulo: Unicamp, 1983. CANTERO, Lúcia Alvarado. Enseñanza de español como segunda lengua para adultos mayores: algunas consideraciones. Filología y Lingüística, 2008. (Disponible en: http://www.latindex.ucr.ac.cr/rfl014-07.php, acceso en 20/05/2011). FERREIRA, Angela Marina Chaves. Projetos de extensão de língua estrangeira: um olhar para os mayores. Anais XIV Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol, Org: FREITAS, Luciana Maria Almeida, Rio de Janeiro, http.//www.proac. uff/br/cbpe, p. 167 a 173. FORPROEX. Carta de Recife. XX Encontro do Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, 2004. Disponível em: http://www. mackenzie.br/fileadmin/Decanato_Extensao/Documentos/Microsoft_Word_-_Carta_de_Recife.pdf. Acesso em julho 2011. FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1994. GÓMEZ, Alejandra Paula. ¿Cómo construyen el conocimiento los adultos mayores? Foro Iberoamericano de Programas Educativos de Mediana & Tercera Edad. Universidad Nacional de Lomas de Zamora. Buenos Aires: 2001. Disponible en: . Acceso en 12 de junio de 2011. RAJAGOPALAN, Kanavillil. Língua estrangeira e auto-estima. In: Por uma linguística crítica. SP: Parábola, 2003. UNATI. Disponível em: http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php.Acessos (em agosto 2007 e julho 2011) VENTURI, Maria Alice. Aquisição de língua estrangeira numa perspectiva de estudos aplicados. São Paulo: Ed. Contexto, 2006.

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RECONOCIÉNDOSE CULTURAL E HISTÓRICAMENTE AL APRENDER/ENSEÑAR E/LE

Rogério Alexandre das Dores

Introducción

E

l objetivo de este trabajo es intentar mostrar que en el proceso de enseñanza/aprendizaje de idiomas, en las escuelas (públicas y/o privadas) y/o institutos, los profesores deben estar muy atentos al trabajar las cuestiones relacionadas a la cultura y la historia, ya que eso auxiliará en la formación de la identidad de sus alumnos para que se vuelvan individuos críticos. En ese proceso el profesor debe saber qué y cómo enseñar, sin valorar o disminuir lo aprendido de los pueblos, pensando que al instruir estará contribuyendo para la igualdad, transformando e incluyendo a sus alumnos en la sociedad. Podemos decir que una de las muchas funciones del profesor (y, por extensión, de la escuela) es desarrollar en los educandos competencias comunicativas en nivel de lengua materna y/o de lenguas extranjeras, a fin de promover la concientización y la (auto) crítica, buscando llevar al (re) conocimiento de otras culturas, de forma a deshacer visiones prejuiciosas sobre las formas y procesos de aprendizaje. Eso tiene que ver tanto con la selección de material didáctico y, por eso, con las actividades por él propuestas, como con su postura delante de la sociedad y de la cultura que representa. Dentro de esa forma de pensamiento, están sobrepuestos los conceptos de cultura, identidad e historia, conforme vistos y trabajados en los dominios de la Linguística Aplicada, principalmente en lo que dice respeto al desarrollo de diferentes estrategias para la enseñanza de idiomas. Cultura e historia son inseparables, ya que el aprendizaje se mezcla con la construcción de identidad. Enseñar/aprender idiomas muestra más de cerca a los involucrados en ese proceso un mundo multifacético y les presenta culturas y valores diferentes de sociedades que no se organizan igualitariamente y al experimentar todas esas

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posibilidades el alumno se comprenderá en su íntimo y trabajará discursivamente de forma más consciente y significativa. Kezen (2007) nos dice que la postura del profesor debe ser la de un pensante y no la de un mero reproductor de la ideología de que todo que es bueno viene de las afueras, pues él debe desconsiderar esa supervaloración, predominante en nuestra sociedad, y no enfatizar aún más la noción de superioridad de la cultura extranjera. Tal postura debería llevar los profesores a pensar en cómo los conceptos y aspectos de cultura son pasados a los estudiantes que aún están en el proceso de formación ideológica. La definición de cultura Definir ese término es algo bastante complicado, ya que podemos encontrar varios significados de acuerdo con cada región. Sin embargo, las ciencias sociales, especialmente la antropología, dicen que la cultura puede ser tomada abstractamente, como manifestación de un atributo general de la humanidad, o, más concretamente, como patrimonio propio y distintivo de un grupo o sociedad específica. (Diccionario Aurélio, 2004). Según Miquel e Sans (2004), la cultura es, antes que todo, una adhesión afectiva, un acumulo de creencias que tienen fuerza de verdad y que marcan, en algún sentido, cada una de nuestras actuaciones como individuos, miembros de una sociedad, por eso podemos dividirla en tres esferas. Así siendo el aspecto cultural incluye una serie de fenómenos variables pero clasificables que podrían agruparse del siguiente modo: La "cultura a secas" que sería algo así como un estándar cultural, la parte central del sistema cultural, o sea, el conocimiento operativo que todos los nativos poseen para orientarse en situaciones concretas, ser actores efectivos en todas las posibles situaciones de comunicación y participar adecuadamente en las prácticas culturales cotidianas. La "Cultura con mayúsculas" y la "Kultura con K" van reverter en el cuerpo central de la cultura, engrosando la zona del que es compartido por todos. Una determinada expresión literaria puede, por ejemplo, llegar a formar parte del acervo de la grande mayoría de los individuos, incluso de aquellos que no

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão son lectores habituales. Y es precisamente ese cuerpo central que da sentido al que podríamos llamar de dialectología cultural: las partes inferior y superior. (MIQUEL E SANS, 2004, p. 5-6).

Para mejor entender esa definición de cultura, el profesor tiene que estar bien preparado para que, al tratarla, no estereotipe el hablante nativo del idioma estudiado, reduciendo su cultura a rasgos específicos que no condigan con la complejidad y riqueza, que le es inherente a él. Stuart Hall (2005), nos dice que la identidad cultural nacional está constituida por las múltiples diferencias en su interior, teniendo como representación un dispositivo discursivo, como se fuesen generadas a partir de una única identidad, un único pueblo. No podemos olvidarnos de que no todas las culturas son iguales y, por eso, hay que tenerse el cuidado al expresarse, puesto que cada grupo social y cultural presenta una manera distinta de expresión linguística y cultural. El concepto de identidad De acuerdo con el diccionario Aurélio (2004), podemos definir identidad como conjunto de características propias y exclusivas de un determinado pueblo y/o persona o sea, es el aspecto colectivo de un conjunto de características por las cuales algo o alguien es definitivamente reconocible, o conocido. A partir de ese concepto, podemos decir que cada pueblo y/o persona presenta una identidad propia que es construida a partir del contexto sociohistórico en el que se produce, problemático en su concepción y de espinoso entendimiento desde nuestras incomparables formas de discurrir sobre la su realidad. Segundo Pennycook (1998, p. 23-25), “en todas las sociedades y culturas, las diferencias construidas a partir de género, raza, etnicidad, clase, edad, preferencia sexual, y otras distinciones conducen a las desigualdades opresoras”. Por eso, podemos pensar que el linguista aplicado pasó a tener como objetivo en sus investigaciones la ampliación de la visión de mundo, trabajando para que podamos cambiar la manera de actuar y pensar de una determinada sociedad. Siguiendo con el pensamiento de Pennycook (1998, p. 39), es importante comprender el individuo como múltiplo, contradictorio y construido dentro de los diferentes discursos, teniendo en vista que las sociedades tienen una estructura desigual y son dominadas por culturas ideológicamente hegemónicas, limitando

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las posibilidades de reflexión sobre el mundo en el que vivimos y también sobre la posibilidad de cambiarlo. La cultura, la historia y la identidade en el aula Es papel del profesor mostrarles a sus alumnos la importancia de esas tres tópicos (cultura, historia e identidad) en la vida de cada persona, considerando que enseñar / aprender un idioma no es exclusivamente un proceso de transmisión de variados aspectos gramaticales o discursivos, por más valiosos que sean. De esa forma, un dato relevante es buscar más información sobre la formación de un determinado pueblo, sus opiniones, su manera de vivir (social y políticamente), etc. Sabemos que trabajar ésos tópicos a través de textos escritos en clase es una tarea, a veces, muy aburrida pero podemos minimizar esa situación si utilizamos la música como recurso didáctico para conseguir más que la atención del alumnado. La música es usada en todos los segmentos de la sociedad y es un recurso que servirá para la motivación de los alumnos y dinamización de las clases, además de aumentar el interés de los mismos por lo estudiado, influyendo sobre su estado anímico, con relación a su formación erudita. Al analizar letras de músicas muchos profesores trabajan la competencia lingüística de sus alumnos ayudándolos a identificar y a expresar sus experiencias, observando la competencia de sus autores, tomada como referencia para el perfeccionamiento de la competencia de los estudiantes. Para Miquel y Sans (2004) si lo que queremos son estudiantes competentes no sólo desde una perspectiva comunicativa, es decir, que no tengan sólo conocimientos sobre, sino también que estos conocimientos le sirvan para actuar en todas las situaciones de uso de la lengua meta, ahí hay la necesidad incuestionable de abordar la competencia cultural como una parte indisociable de la competencia comunicativa. Por ello, la explotación de letras de músicas en las clases nos auxilia, en muchos casos, si observamos algunos criterios como: a) la posibilidad de labor en un universo textual conocido, a veces vivenciado por los alumnos, llevándolos a un aprendizaje significativo; b) garantía de abordaje interdisciplinar conectando, aún más, lengua, cultura e historia y c) oportunidad para la muestra de aspectos lingüísticos a partir de lo cultural y lo histórico presentados en las canciones.

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão No hace falta convencer a nadie del impacto que las grabaciones musicales en español tienen en el mundo y no sería demasiado aventurado afirmar que un significativo porcentaje de alumnos se acerca a aprender el español motivado por esta música. Por otra parte, la canción ha sido quizás trascendental en todas las fases históricas de la literatura en castellano y para el mantenimiento de la cohesión lingüística hispanoamericana.(JIMÉNEZ, MARTÍN, PUIGDEVALL, p. 131).

El profesor de idiomas debe ser capaz de motivar a sus alumnos, mostrándoles que aprender a hablar otros idiomas es no sólo saber utilizar la gramática o pronunciar algunas palabras, sino también desarrollar estrategias comunicativas para cuando estén en contacto con un hablante nativo. Miquel y Sans (2004) afirman que reivindicar la competencia comunicativa, la capacidad del estudiante de interactuar en situaciones de comunicación, implica un nuevo enfoque de la cuestión cultural. La enseñanza de una lengua extranjera, en nuestras escuelas (instituciones de enseñanza), han privilegiado la cultura considerada dominante, muchas veces no dando espacio a la cultura dicha periférica al no incorporar y valorar la expresión de los alumnos durante las clases, por buscar un ideal nativo en la comunicación oral, pudiendo venir a crear una barrera en el proceso de enseñanza/aprendizaje. Tal vez por eso los alumnos encuentren tanta dificultad para aprender, ya que, según la noción de identidad desarrollada por Hall (2005), podríamos pensar el alumno de hoy como sujeto postmoderno caracterizado por una identidad no unificada, segura o mismo completa. Así, podemos seguir afirmando como el autor que “las viejas identidades, que por tanto tempo estabilizaron el mundo social, están en baja, haciendo surgir nuevas identidades y fragmentando el individuo moderno, hasta aquí visto como un sujeto unificado”.(HALL, 2005, p. 7). Para Coracini (2003, p.147, 148), todo sujeto es dividido, heterogéneo y constituido de sus más recónditos deseos que pueden ser recalcados por la acción de factores sociales, responsables por interdicciones en el aprendizaje que sólo se muestra vía simbólico. Moita Lopes (2002) dice que en el discurso que presentamos nos mostramos empeñados con el otro (tanto en el modo oral como en el escrito), y que si analizado más a fondo molda lo que decimos. Entendamos, entonces, que es de esa forma como nos percibimos a la luz de lo que el otro significa para nosotros que 701

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somos identidades sociales construidas por medio de las prácticas discursivas en nuestra sociedad. Por tanto, no podemos simplemente decir que cada individuo tiene su propio discurso y que se constituye diferentemente de los que están a su alrededor, pues hay todo un contexto a ser observado dentro o fuera de la escuela (instituciones de enseñanza). Además de discutir cómo trabajar cultura e identidad en las clases, hace tiempo hay una discusión sobre cómo enseñar/aprender historia pues hacer la conexión entre los hechos históricos y la realidad de los alumnos no es una tarea muy fácil ya que los alumnos creen que no tienen nada que ver con eso y tienen aversión por ese conocimiento. Al intentar profundizar el conocimiento histórico de los alumnos percibimos que ellos lo menosprecian y no se perciben en él, entonces verificamos que existe un inconveniente bastante grave si consideramos que no habrá una formación ciudadana que consecuentemente interferirá en la construcción de sujeto crítico, justo y humano. Lo que queremos decir es que la historia es no solo responsable por la construcción de la conciencia crítica, sino también parte integrante, de ese proceso, que auxilia a los ciudadanos en la búsqueda por una vida digna, a partir del saber cómo funciona la organización de un país. Para conseguir unir esas tres materias debemos encontrar una metodología que no trabaje de forma cerrada, disociada de los contenidos, que antes proceda en acorde con los abordajes, con la intención de permitir la estructuración de los mismos, haciendo con que los estudiantes se reconozcan en lo estudiado. La música puede ser un excelente auxilio para la inserción de esos temas y dinamización de las clases por presentar informaciones culturales, identitarias e históricas de una sociedad. Debemos recordar que el ambiente escolar no es un lugar para la reproducción del discurso de la clase dominante sino para llevar a los involucrados en el proceso de enseñanza/aprendizaje de idiomas a la profundización de sus conocimientos científico y de mundo, llevándolos a comprender las vías para la valoración de su cultura, historia e identidad.

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Conclusión La enseñanza de lenguas extranjeras no puede privilegiar un abordaje que valore más o menos una u otra sociedad (cultura, historia e identidad), que certifique decisivamente sin dar lugar a dudas o presuponiendo las certezas, una enseñanza enyesada poco dice, aún cuando quiere decir mucho, eso es lo que ocurre con los extensos contenidos difundidos en las clases, que sólo enfadan a los alumnos, causándoles aversión a lo estudiado, comprometiendo en fin, todo un proceso. Observando la manera como enseñamos notamos que hay incompatibilidad con lo que el mundo nos presenta a los profesores y a los alumnos, eligiendo con frialdad los que pueden o no participar del proceso productivo. Los profesores tenemos el deber de mostrarles a los alumnos que el mundo es múltiple y que ellos son parte inalienable de esa gran confusión. Al aplicar esos conceptos con rectitud mezclamos todos los valores, mostrándoles que todos, sin distinción de etnia, preferencia sexual, edad, etc., tienen sus espacios salvaguardados, y sus contradicciones son observadas porque irrevocablemente ellos no son participantes secundarios del proceso de enseñanza/aprendizaje. Así, podemos decir que la lengua enseñada debe ser entendida como un instrumento de comunicación, que se aprende, aun sin ser consciente de ello, una serie de prácticas sociales y de valores culturales e históricos. Lo que, en consecuencia, debe quedar claro que jamás se llegará a potenciar en los aprendientes la competencia comunicativa en una lengua extranjera, si no se considera como uno de sus componentes básicos de la enseñanza, la competencia cultural/histórica.

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REFERENCIAS

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COMO INSERIR A LITERATURA NA SALA DE AULA

Tereza Cristina Filippo

C

omo se sabe, hoje não é mais possível dissociar o ensino de língua do de cultura nas aulas de L.E..É como uma só unidade, uma só moeda, onde não se separa a cara da coroa. Então, na sala de aula, quando a abordagem da língua se volta para o lado da cultura, esta é a oportunidade que temos para trabalhar tantos outros aspectos importantes do ensino de L.E. e, dependendo do assunto, vamo-nos encaminhando para a gastronomia, para a música popular, para a literatura popular, como os quadrinhos ou a literatura dos contos, poesias, romances ou ensaios literários, que em termos de literaturas hispânicas, é tudo vasto e fantástico, uma vez que se trata de uma língua para vários países e suas respectivas culturas. E, além disso, quando ainda hoje se fala em literatura com nossos alunos,a grande maioria acha tudo aborrecido ou não há interesse porque o desconhecido pode assustar ou paralisar. Ora, quebrar o gelo e a falta de interesse é uma das muitas tarefas do professor. Com jeito e muita paciência, quando se quer realmente, se chega lá. E, sob este aspecto, este trabalho é o relato de experiências que deram certo, ao longo de vinte e sete anos, como professora de língua estrangeira,destes, os dez últimos com o método comunicativo, que trago aqui, para dividi-las com outros colegas, porém não como quem tem uma receita única e infalível, mas sim, como algo que tem o propósito de ajudar a quem se interessar por obter mais informações ou uma luz, sobre aquilo que busque. Bem, literatura não se faz sem leitura. Isso é óbvio. Dessa forma, assim que meus alunos começam a obter um léxico maior, busquei apresentar-lhes textos de interesse geral. Inclusive, isso pode ser realizado, quando se tem a oportunidade de realização de provas orais, como é o caso do método comunicativo, porque aparentemente, esse método é escolhido por gente que prefere falar, mas que

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não quer ler, nem quer ouvir e, muito menos, estudar literatura.Mas, como já foi dito antes, devagar e sempre: este é o lema. E que assuntos de leitura interessante seriam estes, para um público tão heterogêneo e, na maior parte, adulto? Primeiramente, notícias do dia, retiradas de jornais eletrônicos, na língua estrangeira a ser trabalhada, sobre novidades em computação, ou então, política, turismo ou até mesmo alguma fofoca internacional, o que descontrai um pouco, provocando risos e boas oportunidades de se aumentar o léxico do aluno. Aos poucos, fui inserindo pequenos textos, pedindo a meus alunos uma leitura em voz alta e depois, através de perguntas relativas a estes, vou provocando-lhes a interpretação do que foi lido anteriormente. Desse modo, nos primeiros níveis, como sensibilização à leitura, trabalho um estudo astrológico, não um horóscopo diário, mas uma publicação que dá o perfil psicológico, as características, os pontos positivos eos negativos de cada signo, atendendo assim a uma das orientações do PCN para as LEM, quando recomenda a aproximação das situações de aprendizagem à realidade pessoal e cotidiana dos estudantes. E, sob este aspecto, quem não gosta de saber o que diz seu signo, em outra língua? Ao final da atividade, pergunto a cada aluno o que achou do texto, se se viu identificado, ou se houve diversão na leitura. Na grande maioria das vezes, os alunos concordam com as caraterísticas essenciais de seu signo e saem sorrindo, porque o terror da prova oral se desfez, fazendo-os sentirem-se mais leves. No segundo e terceiro níveis, começo com pequenos contos. Nessa questão, encontrei um livro pequeno, mas ótimo para esse fim, de Eduardo Galeano:Mujeres, publicado pela Alinza Cien. Galeano, que escreveu vastos volumes como Las Venas Abiertas de América Latina, hoje, se dedica a contos muito curtos, com pouquíssimos parágrafos como os contos de Mujeres, porque segundo ele, no mundo moderno já não se têm tanto tempo para a literatura como antes. E é verdade,ler o mesmo grosso volume por semanas já não é mais tão comum e às vezes é até impossível, é cansativo e o leitor pode abandonar a leitura, mas ler algo mais rápido, sim, o que não quer dizer que seja mais fácil escrever bem em poucas palavras. Prender a atenção do leitor em um ou dois parágrafos, com uma história inteira, com início, meio de fim, não é para qualquer um, mas Galeano consegue,

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como o faz bem neste interessante livro, que é uma coletânea de contos centrados em perfis femininos. Quando ofereço este conto, ou outro qualquer do livro para a leitura, vejo o encantamento dos alunos estampado em seus rostos e essa é uma experiência gratificante. A magia sai do conto e contamina quem o lê. É claro também, que a experiência de anos em sala de aula, me faz conhecer melhor o perfil de cada aluno, assim, busco, na medida do possível, um conto adequado para cada um deles e isso tem funcionado bem, pelo retorno que me dão ao responder minhas perguntas e quando formulam as deles. Ao término da prova ou da atividade, muitos alunos me procuram para fazer perguntas, querendo saber mais sobre o autore, quando viajam, me pedem títulos de mais obras desse, ou outro autor que lhes possa agradar, a fim de comprá-los lá fora, quando não encontram por aqui. Por outro lado, para equilibrar ou não saturar, também procuro variar o tipo de leitura e, desta forma, para o penúltimo nível, utilizo uma técnica diferente. Por um desses acasos da vida, ganhei meia dúzia de fichas com pensamentos filosóficos de Yogananda. Quando os li,resolvi trazê-los para minhas provas orais, embora isso também possa ser feito como uma atividade em classe e com qualquer outro tipo de texto, bem escrito e interessante para quem ler, disposto na forma de fichas, coladas sobre uma cartolina. Como o tamanho das fichas que recebi era do mesmo tamanho das cartas de um baralho, e esse formato é importante para a atividade a ser realizada, utilizei-as como quem lê cartas, num jogo adivinhatório, como o tarô, por exemplo. Embaralho as cartas, as abro na forma de um leque e peço para que o aluno escolha uma delas e a leia. Após, começo a interpretação do texto, formulandoperguntas que pedem suas respostas, em seguida, solicito que me façam perguntas sobre o mesmo e sempre termino perguntando-lhe se aquela determinada carta tem algo a ver com o seu momento de vida, se lhe acrescentou alguma coisa e, até hoje, não tive nenhuma resposta negativa. Normalmente se encantam com as palavras de sabedoria. “Por acaso, era tudo o que precisava receber ou ouvir, agora.” É o que mais escuto com esse exercício. E para o nível quatro, realizei outra atividade que deu certo e os próprios alunos pediram para repeti-la.

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Na verdade, como se tratava do último nível, procurei fazer uma prévia dos cursos de conversação. Este curso vem em seguida, para quem quer continuar estudando ou se aprofundar no estudo da língua, Essa atividade seria como um “gostinho de quero mais”. Pedi a cada aluno que fizesse a sinopse de um filme espanhol ou hispano-americano que desejasse, e que a dividisse com o resto da turma, assim, todos teriam a oportunidade de saber algo sobre o filme visto e, se quisessem, depois, cada um assistiria em casa os que mais lhe agradassem. Os outros alunos deveriam perguntaràquele que expôs, o que quisessem sobre o filme, após a leitura da sinopse, a fim de uma maior compreensão do que se tratava. Foi dado a cada apresentador dez minutos entre leitura de sinopse e perguntas dos companheiros, e a sala foi arrumada em forma de meia-lua para que todos se vissem. Foi tão bom que, quem faltou no dia, quando soube pelos colegas como a atividade transcorreu, me pediu para fazer sua apresentação, lembrando que em nossos cursos não existe 2ª chamada de prova. Este aluno queria mesmo assim participar da atividade e sentir a mesmasatisfação que os colegas tiveram ao apresentar “seu” filme. Uma outra atividade que temos no NEL é a nossa Feira de Cultura, onde os alunos de todas as línguas se apresentam uns para os outros. Há os que preferem cantar, trazer algum prato típico para que todos possam degustar uma gastronomia típica de cada cultura e há os que preferem declamar poemas. Para declamar, é possível fazê-lo individualmente, e o aluno pode escolher uma poesia que mais lhe agrade, ou em grupo. Desta forma, prefiro fazer um jograle, os poemas de Federico García Lorca são ótimos para isso, como é o caso doRomance Sonámbulo, ou o do Arbolé, arbolé, onde o mote do poema pode ser lido por todos. Outra atividade que os alunos gostam é trabalhar com quadrinhos. Com Mónica y su pandilla, ou Monica’s gang, aprendi que eles se divertem muito em conjunto, aumentam seu léxico e eu aproveito alguns ganchos para inserir novas noções de gramática. Digo aprendi, porque ensinar sempre é uma troca, eposso dizer,com tranquilidade, que também aprendo com eles. Além disso, há a gratificação de começarnossas aulas ouvindo-os falar da obra, e de autores como Bioy Casares, Cela, Octavio Paz, Perez-Reverte (que escreve no estilo de capa-e- espada) e outros mais.

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E, enquanto eles tentam expressar suas opiniões em espanhol, reparoemseus rostose concluo: É possível. É possível fazer desaparecer o mito de não gostar de ler, de não querer saber mais sobre outras literaturas porque elas são chatas. É possível fazer o aluno entender que conhecer mais o faz melhor, afina sua sensibilidade e o seu entendimento do mundo. É possível realizar muita coisa sem muito material sofisticado. É possível descortinar o encanto por uma língua não só pela música, mas pela literatura também e sua magia sempre pode envolver a quem se deixa envolver como no conto de Magda, de Galeano, in Mujeres: Entonces, las palavras le cuentan lo que ocorre y le anuncian lo que ocurrirá. Eduardo Galeano

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REFERÊNCIAS

GARCÍA de la CONCHA, Víctor. Antología Comentada de la Generacióndel 27.2ª ed., Colección Astral. ,Ed. Espasa Calpe. Madrid. 2000. Horóscopo Eterno. Fapa Editores, Barcelona, 2000. GALEANO, Eduardo.Mujeres. Aliaza Cien Editorial, Madrid, 1995. YOGANANDA, Paramahansa. Self-Realization Fellowship. (Fichas de Lectura). Los Angeles, 1978.

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ANÁLISE DE PROVAS DE CONCURSO PÚBLICO PARA PROFESSOR DE INGLÊS: DIFERENTES SABERES PARA O MESMO1

Thaís Duarte Passos Teixeira do Amaral CEFET/RJ

A (des)valorização do ofício do professor

O

vocábulo professor ao longo dos anos sofreu inúmeras transformações semânticas: de transmissor de conhecimentos passou a orientador da aprendizagem; de expositor de conteúdos a pesquisador de teorias de ensino; de profissão de prestígio a sinônimo de gozação. Tal fato ocorreu devido à acelerada globalização de idéias e conceitos que levam nossa sociedade e, principalmente, os alunos a deixarem de lado a concepção clássica do ofício de professor. Um dos fatores que contribuíram, também, para a depreciação da carreira de professor é a forma como esses profissionais têm sido preparados para o exercício do magistério. Como refere Sérgio Wagner de Oliveira (2009: 11), “há a necessidade de embasamento suficiente para o exercício da carreira docente, em qualquer nível”. Contudo, uma análise acerca das matrizes curriculares de alguns cursos de licenciatura plena nos levaria a certificação de que existem lacunas importantíssimas onde deveria haver formação específica e embasada. Atualmente, a função de professor é mais abrangente visto que engloba atributos concernentes a outras profissões. Lançando mão de algumas metáforas do professor propostas por Tony Berber Sardinha (2007: 73-79), é possível categorizar o trabalho docente como canalizador com base em sua função de transmitir ou passar conhecimento para o aluno; como jardineiro quando faz uso de um pouco de psicologia humanística a fim de conduzir seus alunos ao aprendizado; Título do pôster elaborado pela autora deste texto e pelas professoras Cristiane Carvalho de Oliveira e Luciana Pereira Chamarelli para apresentação no II Simpósio sobre Ensino de Línguas Estrangeiras- formação de professores de línguas estrangeiras: diálogos entre a universidade e a escola realizado pelo CEFET/RJ nos dias 06 e 07 de dezembro de 2012. 1

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o professor como construtor onde é preciso criar oportunidades para que o aluno construa seu conhecimento e, por último, mas não menos importante; o professor como showman, onde é preciso ser engraçado e criativo para que os alunos se mantenham motivados e interessados em aprender. A partir das idéias apresentadas acima, é possível perceber que a função de professor precisa ser revista tanto do campo teórico quanto do campo prático. Faz-se necessário que as instituições de ensino superior (IES) revejam como está estruturada sua base curricular e que tipo de profissionais têm se graduado. O processo de seleção de professores: uma linha tênue entre a qualidade e a necessidade Levando essa discussão a um nível mais prático, faz-se necessário que as instituições de ensino melhorem também seus métodos de seleção para o provimento do cargo de professor. Mais do que domínio de turma e disponibilidade de horário, é preciso procurar profissionais de qualidade e com embasamento teórico acerca da disciplina que lecionam. Surge então o impasse: como selecionar profissionais competentes e engajados com o ato de ensinar? Para muitos, essa questão seria respondida e sanada de forma muito simplória: através de concursos públicos. Entretanto, a questão está muito além da publicação de um edital de concurso. O cerne da questão consiste em repensar qual o perfil de profissional se faz necessário em sala de aula. Segundo Oliveira (op. cit., p.19), diz que “busca-se a pós-modernidade utilizando-se recursos, estilos e formas ultrapassadas”. Confirma-se essa afirmação com uma simples análise do estilo das questões e conteúdos cobrados em alguns exames de seleção. Apesar de oferecerem vagas para o mesmo cargo, é notória a diferença na elaboração dos exames avaliativos nos âmbitos municipal, estadual e federal. Muito além de conferir os conhecimentos léxico-gramatical e sistêmico-funcional de um professor, é de extrema importância que se analise quem de fato é esse indivíduo, que tipo de formação ele recebeu, como faz para dar conta de suas atividades (OLIVEIRA, op. cit., p.23). Deve-se pensar, também, se ele foi capacitado para atuar na função de professor ou se está pronto para ser um educador.

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Voltando a pensar sobre o formato em que são elaborados os exames de seleção, precisa-se levar em consideração se a banca examinadora está, de fato, capacitada a avaliar o perfil didático-pedagógico do candidato meramente com base nos resultados que este alcança no exame proposto pelo concurso público. Será que um bom professor se faz pela quantidade de questões que acerta em um concurso público ou por meio de sua forma de ministrar uma aula? Cremos que seja esse o ponto chave para que se (re) pense a seleção de professores para os âmbitos municipal, estadual e federal. Pesquisa, seleção e análise de exames de seleção para professores de Língua Inglesa em concursos públicos do Estado do Rio de Janeiro O interesse pelo tema deste trabalho surgiu após uma pequena discussão proposta pelo professor Antônio Ferreira2 durante as aulas da disciplina formação de professores de línguas estrangeiras no Brasil: perspectivas e desafios, ministrada como parte integrante do curso de pós graduação lato sensuEnsino de Línguas Estrangeiras oferecido pelo CEFET/RJ no ano de 2012. O formento para este trabalho foi à reflexão acerca dos conhecimentos que os IES têm oferecido aos seus alunos e, que de fato, tem sido cobrado nos exames de seleção de concursos públicos para o provimento do cargo de professor de Língua Inglesa. Por ser este um tema relevante e amplo fez-se necessário um recorte acerca das provas que seriam tomadas como referência ao trabalho. Partimos da proposta de trabalho apresentada pelo professor em sala de aula e traçamos paralelos com as realidades enfrentadas pela autora do texto bem como de suas parceiras de elaboração do pôster e colegas de classe. Como corpus da avaliação estabeleceu-se a análise das provas de seleção para o provimento do cargo de professor do Estado do Rio de Janeiro. A partir daí, fez-se um recorte mais amplo, resultando na escolha das seguintes provas: Estado/ SEEDUC (2009), Município/SME-RJ (2010) e IFRJ (2011). Os crivos para seleção de tais provas foram a necessidade e a relevância da análise de provas de âmbitos diferenciados: estadual, municipal

2

Doutor em Línguas Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/2010).

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e federal. Estabelecido o corpus para análise, partimos para a coleta de dados, ou seja, a (re) leitura das provas selecionadas à luz do que os editais de seleção propunham. A metodologia utilizada para a análise dos dados foi pautada em uma pesquisa quantitativa visto que o número e/ou porcentagem de questões destinadas a determinado tema foram a base para a elaboração dos gráficos conclusivos da pesquisa. Por ser essa uma pesquisa de caráter teórico-prático fora promovido um debate em sala de aula com o professor3 da disciplina bem como com os colegas de classe a fim de coletar experiências positivas e/ou negativas acerca das provas analisadas. O desenvolvimento da pesquisa ocorreu entre os meses de setembro e dezembro4 do ano de contando com importantes e valiosas contribuições para que ganhasse forma e aceitação. Após a finalização das etapas de seleção e levantamento dos dados, teve início o processo de análise dos dados obtidos e a elaboração dos gráficos que sintetizam o conteúdo cobrado nos exames de seleção dos âmbitos analisados nessa pesquisa. Com fins de aprofundamento e como pano de fundo para futuras discussões, buscou-se a organização de gráficos comparativos acerca do formato, e objetivos das questões propostas nas provas analisadas. Considerações finais O intuito de um trabalho deste feitio é oferecer subsídios para uma reflexão crítica acerca dos métodos e conteúdos ensinados nas IES e cobrados nos exames de seleção de diferentes âmbitos no Estado do Rio de Janeiro. Espera-se que os objetivos traçados sejam alcançados de forma a oferecer eventuais oportunidades de transformações que ajudem na seleção de professores para qualquer nível e qualquer âmbito que seja.

O já citado professor Antônio Ferreira da Silva Júnior. A referência destina-se à já citada disciplina Formação de Professores de Línguas Estrangeiras no Brasil: perspectivas e desafios. 3 4

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REFERÊNCIAS

GIORGI, M. C.;ALMEIDA, Fábio Sampaio de; DAHER, Del Carmen. Provas para seleção de docentes de LE: a construção de imagens discursivas de professor. In: II Congresso de Letras da UERJ - São Gonçalo, 2005, São Gonçalo. Livro de resumos e programação. São Gonçalo: Botelho Editora, 2005. V. Único. P. 55-55. ARANTES, Kássia Gonçalves. A formação do professor de línguas: de que esse processo não pode prescindir. In: Congresso Latino-Americano sobre Formação de Professores de Línguas (CLAFPL), 2006, Florianópolis. Congresso Latino-Americano sobre Formação de Professores de Línguas. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2006,pp. 194-195. SARDINHA, Tony Berber. Metáfora. São Paulo: Ed. Parábola, 2007, p. 73-78. OLIVEIRA, Sérgio Wagner de. Formação e trabalho de professores. Lavras: Ed. UFLA, 2009, p. 11-23 Professor docente I da Educação Básica-Inglês (Estado 2009). Disponível em: . Acesso em: 13 jan. 2013. Concurso público para o provimento do cargo de Professor I- Inglês (Município 2010). Disponível em: . Acesso em: 13 jan. 2013. Concurso Público para Provimento de Cargos de Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico. Edital nº 37/2011. Áreas: RJ-50/NI-51/NP-53- Inglês (federal 2011). Disponível em: . Acesso em: 13 jan. 2013.

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ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR E A IMPORTÂNCIA DO APRENDIZADO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA: UMA EXPERIÊNCIA COM PROJETO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA PIBIC-EM

Úrsula Maruyama CEFET/RJ

Introdução

A

língua estrangeira é imprescindível à integração do conhecimento acadêmico e um agente propulsor da divulgação científica. Historicamente, o apoio de Marie-Anne Pierrette Paulze que realizara a leitura e tradução de diversos documentos científicos ao marido, o cientista Antoine Laurent de Lavoisier1, foi fundamental ao seu trabalho de pesquisa no final do século XVIII. Mesmo em pleno século XXI, numa era pós-industrial, com a globalização e consolidação da internet para auxiliar os pesquisadores na comunicação e tradução de materiais, a barreira linguística ainda apresenta-se como obstáculo presente a alguns pesquisadores. Neste contexto, ao longo do desenvolvimento de um projeto para o Programa Institucional de Bolsas Científicas do Ensino Médio (PIBIC-EM) foi observada a importância do ensino de língua estrangeira com enfoque interdisciplinar na formação dos discentes. O projeto ‘Percepção acadêmica do conceito e processo de inovação’ foi inscrito no PIBIC-EM com a finalidade de pesquisar o conceito de inovação, assim como o seu processo de inovação no meio acadêmico, especialmente no âmbito da educação tecnológica. O projeto oficialmente conta com apenas um bolsista, no entanto, desde o início outros dois alunos candidataram-se com voluntários para desenvolver o projeto, formando uma pequena equipe de pesquisa e a estes estudantes foram atribuídas tarefas a fim de que pudessem contribuir de forma significativa ao projeto. 1

Considerado o pai da Química moderna.

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A estrutura do projeto de iniciação científica foi construída da seguinte forma:

Figura 1 – Estrutura do Plano de Pesquisa PIBIC-EM.

O intuito na separação do projeto por etapas e fases é introduzir gradualmente ao aluno ao universo da pesquisa científica para que estes consigam desenvolver suas habilidades naturalmente sem um ‘choque cultural’ ou imposição de ideias. O objetivo é que o ato de pesquisar seja construído ao longo do processo por meio dos diálogos entre professor e aluno, além das tarefas solicitadas pelo professor ao longo de todas as fases. A participação do aluno, assim como a sugestão de novas perspectivas é contínua. A comunicação é realizada abertamente e a geração de propostas de atividades é incentivada ao longo do projeto. Considerando esta estrutura, chega-se ao objeto deste trabalho: a etapa onde os alunos do projeto deverão entrar em contato com outros professores e pesquisadores para intercâmbio de ideias. Referencial teórico Ao utilizar o relato da experiência no projeto PIBIC-EM foi levado em consideração a proposição realizada por Becker: O saber não vem da prática, e sim da abstração reflexionante ‘apoiada sobre’ (porter sur) a prática. A prática é, por conseguinte, condição necessária da teoria, mas de modo algum sua condição suficiente. A prática tem toda importância que se pode imaginar, mas sem a teoria ela é cega e, por isso, incapaz de responder aos problemas novos que inevitavelmente hão de surgir e de introduzir transformações nela mesma. (BECKER, 2012, p.87).

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Portanto, antes mesmo de iniciar sua prática, os estudantes devem possuir algum conhecimento teórico acerca do tema que estão aprofundando e mais especificamente, neste caso, pressupõe que os alunos já detenham algum conhecimento prévio de língua estrangeira – na pesquisa em questão, a língua inglesa - para que sejam capazes de iniciar algum tipo de comunicação com outros pesquisadores. Destarte, complementa-se que “falar em interdisciplinaridade implica necessariamente contar com a abertura de cientistas formados nas ciências disciplinares das diferentes áreas do saber, dispostos a ingressarem no espaço do desconhecimento, das incertezas, das verdades provisórias e do diálogo.” (ALVARENGA et al., 2011, p.29). O enfoque ESP (English for Specific Purposes) como qualquer outra forma de ensino de idiomas, tem a preocupação precípua com o aprendizado. Assim, o cerne da questão utilizado por Hutchinson e Waters (1987) passa a ser o aluno e suas necessidades. O foco no aprendiz, em suas necessidades e interesses, teria uma influência significativa sobre a motivação em aprender e sobre a eficácia de seu aprendizado.Assim, também na visão destes autores: If language use in the classroom is to any way simulate real communication there must be discussion of the subject matter, and this will inevitably stray beyond the actual text being studied. […] We need to look at what the native speaker student brings to the target situation in terms of his total competence and then consider this in the light of what happens in the technical classroom in order to discover what elements of the total competence are exploited and activated in the target situation. (HUNTINGTON, WATERS, 1981, pp.56-59).

De acordo com Paulo Freire: “Não há educação fora das sociedades humanas e não há homens isolados” (FREIRE, 2011, p.83). Há a necessidade de comunicar-se para que a educação seja construída na sociedade, pela sociedade e para a sociedade. O que pressupõe que o enfoque ESP supracitado deve levar em consideração a sua representatividade no contexto sociocultural: The sociocultural view of learning previously outlined moves beyond the view of the teacher as an individual entity attempting to master content knowledge and unravel the hidden dimensions of his or her own teaching and views learning as

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares a social process. Rather than teaching being viewed as the transfer of knowledge, a socialcultural perspective views it as creating conditions for the coconstruction of knowledge and understanding through social participation.(BURNS, 2009, p.6).

Portanto, a interdisciplinaridade, utilizada como base na concatenação de teorias e ideias de diferentes áreas e linhas de pesquisa deve ser considerada conforme apresentada por Seipel: However, the key feature of successful interdisciplinary practice is not the disparity of the chosen disciplines. What demonstrates real interdisciplinary thinking is the use of each discipline as a valid source of knowledge in its own right and evaluable contribution to the discussion at hand.(SEIPEL, 1998, p.5).

Para completar a relação da interdisciplinaridade e do ESP, surge o critical exploration como método utilizado nesta pesquisa para abordar temas transversais - os quais os estudantes deveriam dialogar com a pesquisadora convidada ao participar de uma atividade complementar - que se desdobraria em tópicos a serem abordados ao longo dos seus projetos de pesquisa. Método Como apresentado por Larsen-Freeman “the choice among techniques and principles depends on learning outcomes” (2010, p.4). Enquanto Jordan acredita que: Many students, whose mother tongue is not English, already possess study skills to an advanced level in their own language. They may simply need help to transfer their skills into English and, possibly, to adjust them to a different academic environment. […] The students’ needs may differ according to the learning environment (JORDAN, 2009, p.5).

Nestas condições o Direct Method surge como alternativa para complementar o teste sobre a eficácia do ESP in loco com os estudantes, pois “teachers who use the Direct Method believe students need to associate meaning and the target language directly. […] Students speak in the target language a great deal and communicate as if they were in real situations.”(LARSEN-FREEMAN, 2010, p.29).

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A professora Elizabeth Cavicchi2 do Massachusetts Institute of Technology(MIT), ao apresentar um seminário no Brasil, foi convidada a participar de um passeio cultural com os três alunos do projeto PIBIC-EM pelo centro da cidade do Rio de Janeiro, a fim de que pudessem compartilhar ideias sobre suas pesquisas científicas. Considerando o fato de que a referida professora utiliza como prática de sua pesquisa a abordagem Critical Exploration, procurou-se utilizar um debate utilizando esta perspectiva com os estudantes brasileiros. Projeto PIBIC-EM

English for Specific Purposes

Interdisciplinaridade

Critical Exploration

Figura 2 – Esquema da relação das áreas consideradas nesta pesquisa

Como interpretar esta abordagem? E como ela poderá estar associada à interdisciplinaridade e ao ESP? Como nas palavras da criadora desta abordagem “Wonderful ideas do not spring out of nothing. They build on a foundation of others ideas” (DUCKWORTH, 2006, p.6). Assim, conforme já apresentado neste trabalho por Becker (2010), Eleonor Dukworth concorda que a inteligência não pode ser desenvolvida sem uma base ou fundação em que se possa pensar. A referida autora realiza uma analogia com a função do tradutor: When someone is interpreting from one language to another – even simultaneously – he does not do a mechanical input-

Para maiores informações acerca desta pesquisadora, favor consultar: http://web.mit.edu/Edgerton/www/IAP.html e http://www.eecs.tufts.edu/~cavicchi/publications.html. 2

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares output job. He listens to a big enough piece to grasp the sense of what is said and then puts that sense into words again, in a different language. He necessarily does a poor job if he is translating a topic he does not understand, even if he has boned up on the vocabulary (DUCKWORTH, 2006, p.17).

Assim Duckworth ressalta que “being aware of the various kinds of beliefs we want to develop can help us in our decisions about how to go about our job” (DUCKWORTH, 2006, p. 59). A sua abordagem critical exploration implicana utilização do segundo momento da maiêutica socrática3, numa perspectiva construtivista4, ao deixar os seus alunos desenvolverem suas hipóteses e as testarem por meio de experimentos. Cavicchi foi orientanda de Duckworth no doutorado realizado na Harvard University e desde então utiliza esta abordagem como sua prática de pesquisa (CAVICCHI, 2007; 2008; 2009; 2011). I found a central quality of teaching and learning lay not in having and making answers, but in evolving through exploring and in opening possibilities for development and understanding. (CAVICCHI, 2011, p.252).

Cavicchi utilizou a sua apresentação realizada no XXXI Symposium of the Scientific Instruments Commision5, ‘Stepping into the Past to Understand Time: explorations with astrolabes, clocks, and observation’ com o objetivo de iniciar os tópicos para debate sobre a pesquisa científica. Cinco pequenos diálogos entre os alunos e a professora foram gravados totalizando aproximadamente vinte minutos de conversa, os quais foram transcritos e estudados. Os detalhes acerca desta conversa e o diálogo entre esta experiência com a importância do aprendizado de língua estrangeira com base no ESP serão analisados na próxima seção deste trabalho.

Sócrates levava os seus discípulos a conceber, de si mesmos, por meio de questões simples, uma nova ideia, uma nova opinião mais complexa sobre o assunto em pauta. 4 Conforme os mentores de Eleonor Duckworth: Jean Piaget (1896-1980) e Bärber Inhelder(1913-1997). 5 Para maiores informações acerca deste evento: http://www.mast.br/sic_2012/index.html. 3

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Análise dos resultados I’m excited to be here to share from a seminar that I teach at MIT. As my students explore things, they imaginatively enter the past and collaboratively form relationships with time, history and each other.(CAVICCHI, SIC, 2012).

Os jovens estudantes apesar de empolgados com o encontro ainda estavam um pouco tímidos e preocupados com o vocabulário, porém, aos poucos encontraram formas de buscar escolher as palavras para expressar as suas ideias criativamente quando percebiam que havia ‘uma lacuna’ no seu vocabulário. Para registro foram codificados nos diálogos EC- Elizabeth Cavicchi; STD (estudante) 1,2,3 respectivamente. Da primeira conversa, foram escolhidas como exemplo as seguintes declarações: STD2 - “We Just create models…to see how it works…so in our minds, personally, I think in one form, STD 1 think another form that functions and STD3 a different form than we both (ours)…and functions too…and it’s the best part because we have different points of view on the same thing…and everything makes sense”. STD1 – “human really try to find and define models to live. It is a good way to show us that we can create our models, our views of one thing. So, we are different! Everybody has different thoughts and different views of the same thing. So, we can live without models… it is a good point of view…it is a good way to think… it is a very good way to teach…it is about innovation” STD2- “You learn and teach at the same time”. EC - “Exactly! […] It is the whole substance of what I’m trying to do in my teaching…you understand already […] and you say so beautifully!” Os alunos sentiram-se muito confortáveis com a professora, apesar da barreira linguística inicial, os jovens bolsistas se esforçaram para falar em inglês, expor seus pensamentos, angústias científicas e ideias acerca de projetos.

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Figura 3 – Encontro com a professora Elizabeth Cavicchi restaurante e museu.

O claro rapport observado entre a professora convidada e os bolsistas colaborou para que a comunicação fluísse de forma mais efetiva.

Figura 4 – Conhecendo o trabalho apresentado pela professora E. Cavicchi e debates.

No quinto e último bloco de conversa, percebe-se que os alunos já estão muito mais confortáveis e um complementa a ideia do outro, sem ficar preocupado com os erros gramaticais ou as dificuldades com a falta de vocabulário específico. Neste momento, o objetivo de utilizar o desenvolvimento da língua inglesa por meio do critical exploration foi atingido: STD3 – “a lot of people that think about university, it is not important, it is not interesting. So, but, I think the university has a lot of things that learning (meaning teaching) us … you know…because we have…we have use for other directions, and science, make a lot of things.” STD1 – I know people that say ‘study is not important…you know…’ I, I want to be an engineer, so I don’t have to study – hummm - Portuguese or History, or Philosophy, or Sociology, but they forget that, they forget, that – hum - when you think about Philosophy, about Sociology, about History, when you know where you are or where people were…you are working with your brain…”

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STD2- “you question things”. STD1 - “Yeah! You are questioned and you are studying and you are developing your thoughts! And – hummm- when you stop to see it, to realize that…this type of thing is important… ‘ok, I cannot work with this Philosophy or Sociology’, I don’t know, but it is important to our development, to understand the world, that we live…and it is the point. So, everything is important. Every knowledge is important. Because it will work, it will use it, it will be important to our lives.” STD3- “and our teachers always told us about the important (meaning importance) of studying a lot of disciplines [pergunta ao outro estudante: discipline?]… subjects…and the importance of study a lot of subjects…We never study just, just one discipline (meaning subject), like Portuguese or Physics, for example. But we have to study a lot of discipline because one day everything [“come se diz encaixar?”]” STD1 and STD2- “make sense”. STD3 – “it makes sense…one day… and teacher (Brazilian teacher’s name) always told us about this, you know, and [como se diz “percebe”?]” Brazilian teacher – “realize”. STD3 – “When you realize this, is something magnificent… you know… (sorrindo estusiasticamente)…because you this… but the…[“relação?”olhando para a colega] … the relation with other things…you know…if you learn other ‘yesterday’, one year ago, for example, thing…it’s magnificent!” STD2 – “we are not just people, we have minds, we have to think every time, every moment we are living we have to make a difference in our existence. Our mind is the mechanism that we have to learn about and the scientists today have so much questions about everything and… like scientists, a hundred years ago, we ever have that questions…is … will be ever the importance to our learning, to our people, to our minds…the question is the key of the learn”.

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Figura 5 – Contribuições no diálogo científico e troca de ideias na Casa França-Brasil

EC – “yeah!” STD1- “I think people these days just live, and don’t stop to think about why they live or why they have to do, or what they want to do, want to study, want to know…they just ‘ok’, I’ll study what I have or I’ll work with something and I’ll have children, and ok. I will take care of my, my, my – hum- my children, ok, I’ll live and I’ll be married and ok, that’s it. I will just work a lot to… for what? Why you will do it? Why will you live this way? Why people live this way? It is a very important question that I, I talked to [Brazilian teacher’s name], that now I’m asking me, everyday about it. Why? What I have to do? What I am? And it is a very difficult because now I don’t know what I want to do, or what I, why the world is in this way? And I just want to discover. Discover everything! Discover why, discover what, discover how and what I am in that. I really want to discover it. And everyday I read and I try to learn something that will be something good or something bad that you have to change it, to change it into something good. And… that’s it.” Conclusão O relato da experiência de como o ensino de línguas estrangeiras em diferentes contextos é necessário aos jovens pesquisadores, representa um ponto de inflexão para impulsionar uma nova perspectiva acerca do ensino de língua 726

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estrangeira. A abordagem interdisciplinar associada ao ESP e ao critical exploration, pode ser desenvolvida principalmente no âmbito da iniciação científica. Para participar de congressos internacionais e interagir com pesquisadores do mundo todo, é essencial que o aluno tenha, além da habilidade escrita, condições de compreender o que está sendo debatido e para argumentar no debate acerca de novas ideias. Atualmente, mesmo pesquisadores experientes encontram dificuldade em obter a desejada projeção internacional de seus trabalhos, pois não são fluentes na língua inglesa, utilizado como idioma padrão na maioria dos eventos internacionais. Portanto, este trabalho deixa como recomendação que sejam realizadas futuras pesquisas diversificando análises semelhantes e aprofundando neste tema que se apresenta como cada vez mais presente e necessário ao desenvolvimento científico-tecnológico brasileiro.

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REFERÊNCIAS

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UMA ANÁLISE DISCURSIVA DE ATIVIDADES LEITORAS DO LIVRO ESPANHOL SÉRIE BRASIL

Valdiney da Costa Lobo COLUNI – UFF

Introdução

O

constante e, na maioria das vezes, incontestável uso do livro didático em sala de aula, pode torná-lo um perigoso aliado do processo educacional. Seu frequente uso reforça a sua importância no contexto educativo e torna o seu conteúdo uma verdade absoluta. Esta se fortalece nos discursos das instituições que adotam os manuais, dos professores, que planejam as suas aulas de acordo com as sequências de unidades dos livros, e dos alunos, que foram “doutrinados” a percebê-los como detentores de todo o conhecimento. O livro didático cumpre um papel de poder dentro do sistema escolar, já que determina o que deve ou não ser ensinado, através da seleção dos conteúdos. Segundo Calvet (2007, 11) “…o poder político sempre privilegiou essa ou aquela língua, escolhendo governar o Estado numa língua ou mesmo impor à maioria a língua de uma minoria”. Acreditamos que esta escolha política, citada por Calvet a respeito da língua, acontece também em muitos exercícios de leitura dos livros didáticos de espanhol, que privilegiam uma determinada forma leitora que não considera os alunos em sua heterogeneidade. Para Grigoletto (1999, 84), “A tendência do LD é transformar qualquer texto em texto didático, pelo apagamento do contexto no qual o texto foi produzido originalmente […] e consequente desistoricização do texto”. A descontextualização e o apagamento histórico do texto contribuem para a elaboração de atividades produtoras do mesmo sob várias de suas formas. (ORLANDI, 2008). Desta forma, nosso objeto de estudo se configura na análise de atividades leitoras presentes no livro “Espanhol Série Brasil”, da Editora Ática. Verificaremos se os exercícios existentes neste manual levam à reflexão dos alunos como sujeitos

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que produzem múltiplos sentidos, atuando de acordo com a memória histórica (idem, 2001) e se as atividades propostas estabelecem uma conexão com o contexto cultural brasileiro (MOITA LOPES, 1996). Análise de atividades leitoras Nesta investigação, serão apresentados exercícios de leitura a partir do manual citado, e nosso objetivo é verificar de que maneira as definições de memória formal e histórica apresentam-se nas atividades leitoras daquele. As definições de memória formal e histórica (ORLANDI, 2004) serão importantes para este trabalho, pois poderemos averiguar qual a definição mais presente nas atividades propostas pelo livro didático. A primeira, parafrástica, baseia-se em exercícios de leitura que fazem com que o aluno seja somente um reprodutor do que está explicitado no texto, impossibilitando-lhe de dar sentidos. Na memória formal, incluem-se a “técnica de produzir frases e exercício gramatical que também não historiciza”. (Idem, 2004, 95). A definição de memória histórica relaciona-se com a polissemia. Segundo Orlandi (2001, 36) “a paráfrase representa o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado […] na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação”. A paráfrase encontra-se em consonância com a produtividade, e não com a criatividade, pois representa a variedade do mesmo. A criatividade relaciona-se com a polissemia, pois esta produz deslocamentos. É importante “criar situações para que o aluno, mesmo em LE, vivencie a pluralidade de significados de um texto, pois de cada texto resulta uma leitura diferente”. (CORACINI, 32, 2002). Por isso, a presença de um texto que valorize a memória histórica é imprescindível para que o discente produza múltiplos significados. A unidade número cinco do livro é sobre alimentação, e como primeira atividade o autor expõe um cardápio com pratos típicos da Espanha. Observamos, assim, que a realidade do aluno brasileiro não foi levada em consideração para a elaboração desta atividade, pois uma grande parte dos alunos que estudam a língua espanhola no Brasil não tem conhecimento prévio da culinária espanhola.

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Com relação à proposta da atividade “Analiza el menú, busca en el diccionario las palabras que no conozcas y dile a tu compañero qué te gusta y qué no te gusta. A presença da sentença “busca en el diccionario” pressupõe que no momento da atividade todos os alunos dispõe de dicionários para realizar a atividade, o que não é a realidade da maioria das escolas brasileiras. Na última parte do exercício, o autor propõe “dile qué te gusta y que no te gusta” aos alunos. Entretanto, deve-se observar que se muitos alunos não conhecem os pratos, torna-se incoerente propor-lhes esta pergunta. Observamos, ainda, que aquela encontra-se na memória formal, pois os alunos limitam-se a responder o que eles gostam ou não de acordo com o cardápio proposto no livro didático.“É justamente essa possibilidade que o LD nega ao aluno de LE ao fixar-lhe um caminho que o impede de historicizar os sentidos”. (GRIGOLETO, 1999,86). No livro do professor, como resposta desta atividade, está escrito “Respuesta Personal”. Porém, observamos que a resposta pessoal, que poderia possibilitar a multiplicidade de sentidos, não se torna possível pelo controle do enunciado proposto pelo autor, pois os alunos terão de dizer se gostam ou não de pratos previamente expostos no livro didático, e que muitos estudantes não conhecem. Verificamos, assim, que o autor não faz uma proposta que possa levar o aluno a uma resposta reflexiva e crítica a respeito da sua alimentação diária, e também não há nenhuma relação com os alimentos mais consumidos pelos brasileiros, os mais produzidos em nosso país. Desta forma, não há uma relação com a realidade brasileira, pois é importante “a preservação da identidade cultural brasileira do aluno, ou seja, uma exigência de se pensar a língua estrangeira de um ponto de vista que reflita os interesses do Brasil”. (MOITA LOPES, 1996, 42).

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A atividade a seguir é sobre um texto do “Gran Hemano”. É importante ressaltar que o aluno brasileiro está acostumado a este tipo de programa, que no Brasil é o “Big Brother”. Nosso objetivo é averiguar se as propostas de atividades leitoras deste exercício possibilitam ao aluno atuar como sujeito crítico, polissêmico. A primeira questão sobre o texto é de tradução de algumas expressões em língua espanhola, porém o autor propõe que os alunos as traduzam de acordo com o texto, inferindo os significados, sem o uso do dicionário. Este exercício permite que os alunos extraiam sentidos de algumas expressões. Entretanto, ainda que seja um exercício de reflexão sobre os significados, mantém os alunos “presos” ao contexto do texto. A segunda atividade pede para que aqueles completem o quadro, elaborado pelo autor, com informações presentes no texto. Observamos que esta atividade é controlada pelo autor, reproduzindo um discurso “autoritário […] tende para a paráfrase” (ORLANDI, 2008, 24). Ele elabora quatro perguntas para que os alunos

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possam completá-las adequadamente, de acordo com o texto. Através de questões com os pronomes “Cuántos” e “Qué”, o autor estabelece um controle das respostas dos estudantes, que, se estiverem corretas, serão as mesmas para todos, considerando-os de maneira homogênea, já que todas são encontradas no texto. O terceiro exercício proposto para o texto é a pergunta “¿Cuál de los personajes te parece más interesante?”, “Por qué?”. Ainda que os alunos escolham personagens diferentes, eles estarão sempre extraindo informações do texto. A “respuesta personal” que o autor propõe para esta questão não acontece de maneira que o aluno possa atuar polissemicamente, conforme a memória histórica, usa-se, então, apenas o conceito de memória formal, ou seja, o mais do mesmo (ORLANDI, 2001). Observamos que nas questões relacionadas ao texto “Gran Hermano” restringiu-se, a partir dos enunciados, a possibilidade de o aluno atuar polissemicamente. Não houve um questionamento sobre a construção de respostas baseadas na opinião dos alunos em serem vigiados vinte e quatro horas por dia, se eles gostariam de passar por uma situação como esta, quais os pontos positivos e negativos de tanta exposição dos indivíduos, se somos ou não vigiados constantemente. Estes questionamentos provavelmente incitariam uma postura reflexiva dos alunos. Acreditamos, também, que as atividades facilitadoras de múltiplos sentidos “devam ser orientadas na direção de tópicos que sejam realmente importantes, tendo em vista o contexto social brasileiro” (MOITA LOPES, 1996, 40). A cultura brasileira, a vida cotidiana do aluno, deve ser abordada em sala de aula a partir de uma visão crítica e reflexiva.

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Considerações finais Esta investigação teve como objetivo analisar algumas propostas de produção leitora presentes no livro Espanhol Série Brasil, confeccionado para o Ensino Médio. A partir desta análise, concluímos que os exercícios propostos no respectivo manual não promovem uma participação efetiva do aluno como um sujeito-leitor que historiciza e produz sentidos através de suas respostas. Buscamos, assim, a partir das atividades apresentadas no manual e analisadas nesta comunicação, demonstrar que a maior parte dos exercícios segue o conceito de memória formal. Comprovamos, então, que as atividades analisadas não possibilitam ao sujeito-aluno atuar no sentido da criatividade, de realizar uma ruptura. A análise feita foi no sentido de contribuir para que atividades leitoras, em que o aluno atue como sujeito reflexivo de suas respostas e não apenas reprodutor do que o texto didático apresenta, estejam mais presentes em livros didáticos de Língua Espanhola. Terminamos esta investigação com uma citação de Coracini, (2002, 33) que nos parece pertinente para uma prática docente reflexiva. Afinal, a continuar tudo como está, podemos nos perguntar como conseguir que cheguem ao segundo e terceiro graus alunos reflexivos, produtores de sentido se, desde o primeiro ano escolar, lhes dadas tão poucas oportunidades de atuação, participação e autonomia?

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REFERÊNCIAS

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A IDENTIDADE GLOBAL DO ADOLESCENTE NA TIRA CÔMICA GATURRO

Valdiney da Costa Lobo COLUNI – UFF

Introdução

N

osso objeto de estudo é a tira cômica argentina, Gaturro, do autor argentino, Cristian Dzownik (NIK), publicada diariamente no jornal “La Nación”, desde a década de 1990. Além disto, o autor também tem dez livros publicados com a recopilação das histórias. Estas dividem-se em vários temas, como: sala de aula, família, trabalho, festas e “Mundo Teens”. Este será o mais relevante para o nosso trabalho, pois analisaremos de que maneira o autor de Gaturro aborda o conceito de identidade adolescente, na sua obra, e como este conceito se contrapõe aos objetivos interculturais presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental. Nesta investigação, usaremos o conceito de "adolescente com características globais", comoo que consome da mesma forma que nos países do Primeiro Mundo (centrais), e que essa imagem de consumo adolescente, veiculada pelos meios de comunicação, passa a formar parte do estereotipo "adolescente contemporâneo". Assim, em geral, desconsidera as diferenças econômicas, sociais e históricas das classes médias dos países hispano-americanos. Ainda que nem todos os adolescentes argentinos e brasileiros compartilhem as evidências comportamentais e consumistas globais, uma parcela, ainda que minoritária, consome de acordo com o padrão global da sociedade de consumo contemporânea. Pois não se pode negar que “crianças e adolescentes, pródigos em aceitar novidades e influenciar o universo familiar, são alvos permanentes”. (MORAES, 2006, 38). A sociedade neoliberal, global e consumista produz mercadorias com rótulo de universais, consumíveis para adolescentes de qualquer parte do mundo. De

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acordo com Moraes (2006, 39) “os consumidores são visualizados em função de padrões similares de comportamento e estilo de vida. Em torno de símbolos desterritorializados (o jeans, o tênis, a pizza express…) agregam-se grupos sociais de diferentes continentes, países, etnias…” Sobre a identidade adolescente, pode-se observar que a sua realização global, através de uma sociedade juvenil universal, constitui-se em uma crença. Para exemplificar, tomamos como exemplo cinco tiras do “Mundo Teens”, de Gaturro. A identidade Global do Adolescente em Gaturro

Em primeiro lugar, fazendo uma análise dos objetos que se encontram no quarto, percebemos que se trata de uma “identidade adolescente” típica da classe média de uma cidade urbana. Isto se comprova por haver um computador, um videogame, uma guitarra, um armário cheio de roupas, uma raquete de tênis, uma luneta, etc. A presença destes elementos evidencia que a família abordada na historinha tem um bom poder aquisitivo, pois pode proporcionar ao seu filho todos os pertences “típicos” de uma classe média ou classe média alta. Entre os objetos já mencionados, presentes no quarto do menino, dois deles reafirmam que se trata de uma família com um bom padrão de vida; a raquete de tênis e a luneta, pois a primeira é o instrumento usado para a prática de um esporte de pessoas abastadas, e a segunda é um objeto de alto valor. 739

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Na historia, além de toda a imagem visual já descrita, há dois meninos vestidos com boas roupas, ambos de pele branca, olhando para um pôster de uma simples casinha no campo, que retrata uma paisagem bucólica e pastoril. Um menino pergunta ao outro: “Qué te parece el poster ahí? E o outro responde: “Rompe um poco la armonía del cuarto” A visão de adolescente, nesta tira, que o autor transmite é global, não havendo a presença de aspectos da cultura argentina. No mundo global, segundo Rodrigues (2000, 131) “nos quartos dos adolescentes de hoje, misturados aos jogos, aos brinquedos e a muita bagunça, estão esses aparelhos sofisticados, que, outrora, nem sequer eram cogitados como um bem familiar”. O adolescente, típico da era global, citado pela autora, é o mesmo reproduzido por NIK, na tira Gaturro. Ao considerar a existência de “muita bagunça” no quarto dos adolescentes, ele reafirma a visão estereotipada do adolescente pós-moderno.

Em se tratando dos personagens adolescentes da tira, eles possuem características globais. A personagem Luz é pré-adolescente e está a ponto de fazer 13 anos. Não é somenteno seu comportamento juvenil que ela é estereotipada, mas também nas vestimentas e no fato de portar um mp3. Isto se comprova através da definição de NIK para a personagem Luz “a Luz también le encanta la música (escucha mp3) le encanta combinar los colores de la ropa”. Neste sentido, Hall (2006, 75) afirma que “no interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a 740

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identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global…” Na tira acima, observamos que no primeiro quadrinho a mãe de Luz fala: “Luz está por cumplir 13, ya es uma adolescente. Tenemos que contenerla” A própria mãe reforça a conduta global da adolescente, como se o fato de já ser adolescente acarretasse numa etapa sempre difícil e complicada. No terceiro quadrinho, observamos um comportamento rebelde da jovem Luz, ainda que seus pais falem com carinho com ela. A menina diz: “Déjenme sola!No me toquen! No me hablen!Los odio!” Esta frase de Luz, figura o clichê da maneira de agir adolescente, e não se pode afirmar que seja comum a todos os juvenis. Zagury (1996, 30) afirma que crise não é sinônimo de grosseria ou desrespeito, e ressalta que “…a relação com o filho adolescente faz parte de um processo que se inicia nos primeiros anos de vida da criança.” No último quadrinho, depois da filha ter gritado com os pais, ela fecha a porta do quarto com força, e aqueles ficam sem reação, sentados no sofá. Além disso, não se verifica a presença do conceito de interculturalidade, porquepara Rodríguez (2002) uma sociedade intercultural é a que considera positivo o contato com outros povos, prevalecendo o intercambio. A tira reflete uma cultura global, no que tange ao comportamento adolescente, influenciado pela mídia, pela televisão que passou a ser responsável por ditar comportamentos, pois “as mudanças comportamentais, sugeridas através dos conteúdos dos programas, incitam não só as crianças, mas também os adolescentes a buscar novos métodos de vestir, dançar, falar, etc.” (RODRIGUES 2000, 138).

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Nesta tira, no primeiro quadrinho, averiguamos o adolescente Augustín jogando videogame e muito entretido em sua atividade, não se importando com o que seu pai está falando. A expressão facial do jovem denota satisfação e muita concentração, o que se reforça pelo fato de sua língua estar do lado de fora da boca. No quadrinho inicial, o pai de Augustín fala: “Augustín, te pasás horas y horas jugando com la playstation” O pai do menino usou a palavra “playstation”, percebemos, assim, a influência não só do comportamento do “teen” norte-americano, mas também a predominância de palavras em inglês, pois “playstation” é um videogame produzido nos Estados Unidos e vendido para todo o mundo, e na história o nome em inglês é usado como sinônimo de jogo eletrônico. A predominância dos nomes em língua inglesa não se limita ao “playstation”, já que no segundo quadrinho, quando o pai fala das atividades que o filho faz depois de jogar o jogo eletrônico, ele menciona três canais de televisão a cabo, originários dos Estados Unidos e que através da televisão paga, tornaram-se acessíveis de quase todas as partes do mundo. “Después te pasás horas y horas mirando el cartoon network, nickelodeon, disney channel…” Ainda podemos ressaltar a presença, no terceiro quadrinho, do verbo “chatear”, que tem a sua origem no inglês “to chat”, e que significa conversar com pessoas através de “chats”. Nas duas primeiras vinhetas, o autor trabalha com o conhecimento de mundo do leitor, pois é necessário que ele saiba que “playstation” é um videogame, ainda que a imagem o ajude a entendê-lo, e que “cartoon network, nickelodeon, disney

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channel”, são canais norte-americanos de televisão paga.. Observamos que o conhecimento de mundo, neste caso, está relacionado com conhecimento global, consumista e capitalista, pois o conhecimento que figura na tira, é o de uma cultural global, e não um mundo diversificado, pluricultural. Entretanto, a compreensão do nome do jogo eletrônico e dos canais de televisão torna-se simples para um brasileiro ou para um argentino, pois “77% das programações televisivas da América Latina provêm de conglomerados norte-americanos” (MORAES 2006, 46). Os produtos norte-americanos, no caso da tira; o “playstation” e os canais de televisão paga são consumidos em diferentes partes do mundo,porque os referidos nomes tornaram-se universais, com o advento da globalização. Desta maneira, Moraes (2006, 39) afirma que “os sentidos de pertencimento deslocam-se de lealdades nacionais e são delineados por centros gestores do consumo”. Augustín somente irá prestar atenção à fala do pai, no quarto quadrinho e quando o olha, no seguinte, se assusta, pois segundo o pensamento de Gaturro, o mascote da família, “hacía dias que no veía a un ser humano de verdad”. O autor corrobora o clichê de identidade única do adolescente, defendida pela psicologia do desenvolvimento, (ERIKSON, 1976) e mostra-o como alienado da sociedade e do mundo em que vive, preocupando-se muito mais com a sua diversão. Desta maneira, reforça-se ainda mais a visão global e estereotipada do adolescente, que se enquadra na lógica mercadológica de uma sociedade de consumo capitalista. É fato que a tecnologia faz parte do mundo dos adolescentes, através de celulares, computadores, medias players, etc. Porém, o que verificamos na tira acima é um uso exagerado desta tecnologia pelo adolescente, pois concluímos que ele gasta quase a totalidade das suas horas diárias jogando videogame e vendo televisão.

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No primeiro quadrinho desta tira, “Gaturro” afirma a sua amiga “Gateen” “ustedes las adolescentes se hacen drama por cualquier cosa”. Esta afirmação denota o seu pensamento a respeito da personalidade adolescente, que figura como global e única, pois quando o “gato” diz “ustedes, las adolescentes”, engloba a todas as juvenis. Na mesma vinheta, encontramos a imagem de “Gateen” com as mãos na bochecha dizendo estar “re-re-re angustiada”, ou seja, afirma estar extremamente angustiada, além disso, este desespero torna-se ainda mais acentuado para o leitor, pela imagem das lágrimas caindo de seus olhos. Na sequência, Gaturro diz para a sua amiga “pero con los problemas que hay en el mundo, con las dificultades que tiene la humanidad…vos, justo vos, te venís a quejar”. Esta afirmação ratifica o pensamento estereotipado de Gaturro sobre a adolescência, pois ao falar das dificuldades da humanidade e da queixa de Gateen, pressupõe que esta não tem nenhuma necessidade de queixar-se, por ser uma adolescente que não passa necessidades, gozando de privilégios, e, além disso, ele ressalta o fato dela não se importar com os problemas da humanidade, o que reflete a sua opinião acerca da juventude. No último quadrinho, Gateen diz: “¡Ah, claro que fácil! A ellos porque no les salió un granito en la mejilla” Esta frase de Gateen demonstra a irrelevância que os problemas da humanidade têm para ela, pois a sua preocupação é somente com o seu “problema”. O olhar estarrecido de Gaturro demonstra o seu espanto e reprovação diante da afirmação de Gateen, pois ele já sabia que ela não se importava com as mazelas do mundo, porém justificar isso porque ela tem “Un granito en la mejilla” seria o ápice da futilidade do pensamento adolescente.

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De acordo com a proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998, 65), “uma língua estrangeira dá acesso à ciência e à tecnologia modernas, à comunicação intercultural…” A comunicação intercultural, preterida pelos PCN, não se verifica, salvo em alguns aspectos lingüísticos, como os usos do “re” e do “vos” nas tiras do “Mundo Teens”, que apresentam uma visão global, monocultural do adolescente. Desta maneira, entende-se que NIK, em sua obra, reproduz a figura do que Dênis de Moraes (2006, 39) considera autor global, pois argumenta que esta figura “coincide com a de um escritor com aptidão para seduzir leitores […] sempre utilizando clichês do gênero, linguagem acessível…” Observamos, assim, que a identidade do adolescente argentino, construída através das práticas sociais, (HALL, 2006)não se realiza nas tiras cômicas do Gaturro, pois esta apresenta um olhar universal da adolescência, e não da diversidade, “que se assegura com intercâmbio e cooperação horizontal entre as culturas de povos, cidades e países”. (MORAES, 2006, 46) Desta forma, percebemos que as histórias não se encontram de acordo com a proposta de pluralidade cultural presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Considerações Percebemos, ao longo desta investigação, que a identidade cultural do adolescente demonstrada na tira cômica Gaturro é a mesma apresentada pela Psicologia do Desenvolvimento, que afirma que o ser humano já nasce com uma identidade formada, apenas desenvolvendo-a ao longo de sua vida. Este olhar sobre a identidade favorece aos interesses do sistema capitalista, pois pressupõe que todos os adolescentes, de qualquer parte do mundo, passam por uma fase em comum, seja de rebeldia ou de consumismo, desconsiderando, assim, a construção da identidade do adolescente a partir de práticas sócio-culturais, bem como as múltiplas diferenças presentes nas múltiplas identidades. Vale ressaltar que em nenhum momento pretendemos rechaçar o uso da referida tira na aula de língua espanhola, inclusive porque em nossa própria experiência docente podemos constatar que os alunos se interessam por estas, pois mesmo apresentando uma visão cultural globalizada, contrapondo-se à proposta de pluralidade cultural sugerida pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, é possível a realização de uma atividade de cunho cultural.

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Podemos, então, enquanto docentes, aproveitar o interesse dos estudantes, e usá-las em uma atividade cultural de reflexão, que os faça pensar se eles se reconhecem em alguns momentos nas histórias, pois a existência da globalização é um fato, e suas conseqüências, como os clichês e estereótipos, não devem ser negadas, mas sim debatidas na aula de espanhol. Ao trabalhar com os clichês e estereótipos, o professor e os alunos podem construir um espaço para uma discussão mais ampla a respeito da cultura local, negando que a globalização destrua o que é local, e que é este local o espaço privilegiado de trabalho para o desenvolvimento de uma atitude intercultural.

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EL APORTE DE LAS TIC A LA ENSEÑANZA/APRENDIZAJE DEL ESPAÑOL COMO LE

Valéria Jane Siqueira Loureiro UFS

Presentación

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n el proceso de enseñanza/aprendizaje del español como lengua extranjera los profesores encuentran un reto fundamental en el desarrollo de las destrezas comunicativas en la lengua meta en su práctica docente. Se sabe que el estudiante aprende las normas, las reglas y el funcionamiento de los elementos lingüísticos que forman parte de la lengua, entretanto la cuestión es cómo proporcionar un desarrollo del aprendizaje del E/LE que capacite a los estudiantes a comprender, a expresarse y a interaccionar en la lengua de forma consciente y autónoma (Kondo, 2002). Se demanda la relación entre la base teórica (gramática) a la práctica que debe adecuarse a las necesidades y expectativas del alumnado, pues se media las competencias lingüística, estratégica, discursiva y sociocultural. Así, el uso de las TIC se convierte en un recurso que fomenta tanto el aprendizaje de las competencias como la interacción en la lengua en la clase de E/LE, ya que se trata de una herramienta que por sus rasgos se basa en el intercambio de conocimiento e información. De esta manera, los profesores utilizan la tecnología que se coloca a disposición para recrear el material didáctico de una forma más ajustada a la concreta realidad de la clase, quiere decir, a las necesidades y expectativas de los estudiantes. Además de prepararse mejor para ofrecer estímulo e iniciativas a la enseñanza de la lengua extranjera, las TIC fomentan un cambio de perspectiva en el proceso interactivo profesor-alumno y alumno-alumno: la utilización de un otro recurso. Así siendo, los estudiantes de LE adquieren los mecanismos de la lengua española que les lleva a alcanzar la competencia comunicativa (Peris, 1998) y se

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abren otras perspectivas para el conocimiento de lengua, de texto y de mundo que les convierte en hablantes que interactúan en la actual sociedad del conocimiento y de la información. ¿Qué se entiende por enseñar la gramática de una lengua extranjera? A lo largo del tiempo, a pesar del surgimiento de las varias metodologías, todas contienen el análisis de perspectiva gramatical normativo. La gramática se presenta en todos los métodos, independiente del enfoque lingüístico en el que se incluya la concepción de qué es saber una lengua. Se sabe que, históricamente, la gramática realiza la descripción y la explicación del sistema de la lengua, que se ocupa de los elementos morfológicos y sintácticos de la lengua y que deja los sonidos para la fonética y el léxico para la semántica. Como señala Gómez Torrego (1998: 14): (…) según algunos gramáticos, la Gramática comprende sólo la Morfología y la Sintaxis; según otros, abarca también el plano fónico, es decir, el de los sonidos y los fonemas. (…) La Semántica, rama lingüística que se ocupa de los significados, no es una parte de la Gramática, pero se tiene en cuenta para el control de los procedimientos formales que se aplican en la Sintaxis y para la explicación de muchos fenómenos sintácticos (…)

Se trata de una concepción clásica de la gramática, sin embargo, se debe a ella que muchos métodos de fines del siglo XIX y durante todo el siglo XX recuperen los preceptos surgidos en la enseñanza/aprendizaje de las lenguas clásicas – gramática y traducción. En esta perspectiva la información nocional y meta-discursiva son los input más relevantes para adquirir la competencia gramatical o lingüística. En esta perspectiva de gramática, el estudio gramatical presenta un problema fundamental en el momento de responder a una concepción más amplia en relación a la enseñanza de lengua, que no sea simplemente la de un conjunto de reglas gramaticales de naturaleza nocional, sino que también sea un instrumento de comunicación. El análisis gramatical está a nivel de la sintaxis oracional y, por

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ello echa mano de todos los elementos de la lengua que implican un análisis a nivel del discurso o del texto. Hoy en día, enseñar gramática es bastante más que explicar reglas y normas morfosintácticas.Se exige detener en aspectos discursivos y pragmáticos, y ello no sólo por hacer los debidos honores a las nuevas corrientes metodológicas y lingüísticas, sino porque el papel desempeñado por la gramática actualmente es más amplio que la visión histórica después del concepto de comunicación y competencia comunicativa. De esta forma la enseñanza de la gramática se convierte en un componente más, indispensable, pero como son indispensables el elemento pragmático, el discursivo, el estratégico y el sociocultural. La propuesta del desarrollo de la competencia gramatical en que se tenga en cuenta la comunicación para describir y explicar la lengua, es decir, para explicar las reglas y normas del uso y funcionamiento, además de las del sistema e integre los distintos niveles de la lengua para que resulte de más ayuda a todos, tanto a quienes se dediquen a la enseñanza como a aquellos que se dedican al aprendizaje de una LE, se hace necesaria en el proceso de enseñanza / aprendizaje de LE. Para qué la enseñanza/aprendizaje de la gramática de una lengua extranjera En el proceso de enseñanza/aprendizaje de LE, los profesores le dan mucho prestigio a la enseñanza de la gramática en la clase, les ofrecen a los estudiantes un conocimiento reflexivo de las regularidades, reglas o normas características de una lengua extranjera que enseñan, llevándoles a los alumnos al desarrollo de la competencia lingüística1. No obstante, ello acarrea el detrimento del desarrollo de las habilidades discursivas, que es una de las destrezas en la que los estudiantes encuentran más dificultad en expresarse. En la historia de los diversas metodologías de enseñanza de LE, la relación entre lengua extranjera y la gramática siempre fue muy próxima. Hasta los años sesenta y setenta, los estudiantes aprendían reglas gramaticales y aplicaban estos conocimientos en traducciones directas e inversas. En los años setenta, los métodos audio-orales y audiovisuales encaran la enseñanza de la gramática La competencia lingüística se refiere a la competencia gramatical, a los conocimientos metadiscursivos que el estudiante posee sobre la lengua que aprende.

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volcada al desarrollo de la habilidad oral. Así, en la clase de LE el profesor se restringía a utilizar los contenidos lingüísticos-gramaticales enseñados en la práctica oral previa. Los ejercicios que se proponía resultaban repetitivos, puesto que se trataban de ejercicios de repetición de estructuras lingüísticas-gramaticales aprendidas oralmente en la forma escrita. Sin embargo, la gramática transformacional de Chomsky cuestiona los fundamentos teóricos de los métodos audio orales. En esta corriente, los alumnos crean su propia lengua en un acto de comunicación sea oral o escrito. Desde esta concepción de enseñanza/aprendizaje de lengua se destaca el enfoque comunicativo que propone un gran cambio en la forma de afrontar la gramática. Para el enfoque comunicativo, la habilidad de componer oraciones no es suficiente para que haya la comunicación oral o escrita que sólo tiene lugar cuando se utiliza para realizar una serie de conducta social como describir, narrar, argumentar, entre otras. A partir de este enfoque, se introduce la escrita desde el principio del aprendizaje y no de la adquisición de la lengua. Además, la expresión escrita no funciona sólo como refuerzo de lo aprendido de la “fase” oral, sino también su enseñanza parte del principio de que es una habilidad que tiene sus técnicas y estrategias propias distintas de la oral y que a la vez interacciona con esta y con las demás habilidades2. En la enseñanza de la gramática, desde la perspectiva de la competencia comunicativa3, no basta que los estudiantes sepan un conjunto de reglas y estructuras de la LE analizadas y organizadas conscientemente en un sistema, necesitan saber cómo funciona y se usa el castellano, en una gran variedad de contextos, niveles sociales e incluso ámbitos profesionales, para verificar los diversos usos y funciones del lenguaje. Así, la gramática explícita4, para un aprendiz, es importante, ya que es la encargada de monitorizar y por lo tanto puede ser una aliada a la hora de

La interacción de las habilidades en el proceso de enseñanza/aprendizaje de LE (Pilar Gómez Casañ y María del Mar Martín Viano. (1996: 45 – 48). 3 La competencia comunicativa incluye más competencias que la mera competencia lingüística, incluye también: la competencia sociolingüística, la competencia discursiva y la competencia estratégica. 4 Las reglas y estructuras de la LE analizadas y organizadas conscientemente en un sistema por el alumno. 2

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enfrentarse a la fosilización, la interferencia, entre otros problemas que surgen en el proceso de enseñanza/aprendizaje de LE, pero sin lugar a dudas cuando un estudiante se enfrenta de forma espontánea a la LE va a echar mano de su conocimiento implícito5. Cuando un alumno se comunica en la LE utiliza ambos conocimientos gramaticales – el explícito y el implícito. El aprendiz acude al conocimiento explícito que posee de la LE con la función principal es la de monitorizar, es decir, controlar que las producciones lingüísticas sean correctas y si no es así corregirlas. Cuando el aprendiz usa el lenguaje de forma natural, el conocimiento explícito juega un papel secundario y es el conocimiento implícito de la gramática el que rige formalmente los usos del lenguaje para la comunicación. Siendo así, la tarea del profesor de convertir las clases de E/LE en un espacio en el que no sólo se ofrezca estructuras gramaticales e informaciones metadiscursivas sobre la lengua, sino también que se proporcione actividades de tipo procesual – lectura y comprensión oral – y de tipo productiva – expresión oral y escrita – que lleve a capacitar al alumno para la comunicación, desde el punto de vista pedagógico se da a partir del momento que se dé importancia al proceso de adquisición la lengua. En el enfoque comunicativo, la importancia de darles a los estudiantes exponentes nocional y funcionales para que los capaciten para la comunicación, desarrollando las cuatro destrezas cumplen el objetivo de desarrollar las estrategias tanto de comprensión como de expresión en la LE. Hoy en día, tras haber superado la idea de que el aprendizaje de la gramática no llevaba a la adquisición de la LE, se asiste a la recuperación de la gramática y a la búsqueda de aplicaciones que den lugar a un proceso de aprendizaje-adquisición más completo, rico y eficaz en las aulas, aunque existan todavía carencias metodológicas. A partir de esta perspectiva la enseñanza de la competencia gramatical en la destreza escrita retoma su papel de monitorizar la producción, pero intentando incorporar los diferentes tipos de procesos y competencias6 necesarios para la enseñanza y aprendizaje de lenguas.

Conocimiento gramatical que es de naturaleza intuitiva o subconsciente y no se encuentra formulado como un corpus de reglas. 6 Además de la competencia lingüística o gramatical, se agrega las comunicativas: la competencia pragmática, la competencia discursiva, la competencia estratégica, la competencia sociocultural y la competencia cultural. 5

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La enseñanza de LE y las TIC Si repasamos los diversos enfoques metodológicos para la enseñanza de lenguas, podemos darnos cuenta de que se trata de una preocupación antigua, que se posiciona de distintas maneras de acuerdo con el concepto de lengua en que se basa teóricamente. La Gramática-Traducción se basaba en el principio que la lengua es una manifestación escrita y que su máxima expresión se presenta en la obra literaria. Siendo así, dominar una lengua significa conocer el vocabulario y las estructuras gramaticales, sólo así, uno manifiesta la competencia productora en la lengua (Pérez, 1992). En el siglo XIX surgen los movimientos de rechazo al método GramáticaTraducción. La necesidad de expresarse en lenguas extranjeras transfiere el enfoque de lo escrito a lo oral. De ahí provienen los avances en los estudios lingüísticos, principalmente de la Fonética, que proporcionan las bases teóricosmetodológicas para que se haga una descripción sistemática de las lenguas y, consecuentemente, una elaboración práctica para trabajar con las lenguas modernas, entre ellas el español. En esta perspectiva a semejanza de lo que pasa con los niños que adquieren la LM7, los estudiantes primero oyen, entienden y aprenden patrones orales del nuevo idioma y, solo después entran en contacto con la modalidad escrita. La estrategia de la repetición de estructuras gana importancia y la gramática pasa a figurar solo dentro de contexto de manera inductiva. Ese método audiolingual o audiovisual se extiende por la primera mitad del siglo XX, valora la lengua oral, según el modelo de uso de los hablantes nativos de la lengua meta, y la consideración de la escritura como su simple representación (Pérez, 1992). A partir de los años sesenta del siglo XX, el enfoque funcional y comunicativo de los idiomas, así como la constatación de que el simple estudio de estructuras no atiende a factores como creatividad y singularidad (Richards y Rodgers, 1998), genera un nuevo cambio. Lo refuerza el contexto socioeconómico, que demanda formación de adultos en lenguas extranjeras para su actuación e intercambio en

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En este trabajo la sigla LM significa lengua materna.

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el mercado común que se formaba. La competencia comunicativa pasa a ser, a contramano, el objetivo, con la necesidad del desarrollo de las cuatro destrezas y preocupación por el significado y los aspectos nocionales-funcionales (enfoque comunicativo). Actualmente, la preocupación comunicativa aún ocupa el escenario de la enseñanza/aprendizaje de idiomas, sin embargo otros elementos se suman: lectura, enfoque por tareas, sociointeracionismo. Se admite cada vez más la importancia de la variedad lingüística y cultural, la consideración de los objetivos de los estudiantes como fuente de la estructuración de los cursos, el concepto de lengua como marca de identidad, la posibilidad de estudios enfocados en la modalidad y destrezas específicas, según la finalidad buscada, la valoración de aspectos sentimentales y psicológicos. Las TIC y la competencia gramatical en la clase de ELE La TIC se trata del acrónimo de tecnologías de la información y de la comunicación. Vivimos en una sociedad donde las tecnologías ya forman parte de nuestro cotidiano desde la Revolución Industrial, sin embargo, a las que nos referiremos en este trabajo no son las tradicionalmente conocidas y si aquellas que nos permiten comunicarnos virtualmente, cuando se coloca un texto en la red este nos trae conocimiento para el cibernauta que lo busque. Dentro de las TIC, la internet es la que se hace más eco en la enseñanza/ aprendizaje de E/LE, pues casi todos los profesores han oído hablar de esta nueva herramienta y muchos quieren saber qué nos puede aportar la red a las clases y al proceso de enseñanza/aprendizaje de E/LE. Teniendo en cuenta que la internet se trata de una nueva herramienta aportada a la enseñanza de las lenguas, por ello presenta ventajas pero también limitaciones, puesto que es falso afirmar que este recurso convertirá las clases de lenguas en éxito total. Hay que decir que las ventajas y las limitaciones dela internet vienen determinadas por sus propias características como un medio de comunicación e información. El éxito de su uso en la enseñanza de E/LE dependerá de qué recursos se vaya a utilizar y para qué los vaya a utilizar. Se sabe que la internet es una fuente inagotable de material auténtico y real en español y de fácil acceso tanto para profesores como para estudiantes.

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La utilidad de este recurso se diferencia en función si se acude a la red para los estudiantes o para los profesores. Para los estudiantes es un buen medio para que ejerciten sus destrezas descodificadoras, tanto las escritas (lecturas de webs basadas en textos) como las orales (al escuchar emisoras de radio) o para que repasen la gramática a través de ejercicios de corrección automática, principalmente dedicados a la gramática y al vocabulario. Para los profesores funciona muy bien como un archivo de sugerencias didácticas, donde se puede compartir materiales y planes de clases. Las clases preparadas tienen ventajas cuando se refiere al hecho de que son gratuitas, son excelentes para improvisar una sesión y además se clasifican en función de las necesidades de los estudiantes, por ello está muy bien pautadas. Sin embargo presentan un inconveniente no se han diseñado las clases para un grupo en concreto por lo tanto puede ser que la clase no funcione con nuestro grupo. De ahí que los profesores tenemos que revisar los materiales antes de llevarlos al aula. A los profesores, todavía, la internet ofrece otra ventaja la de ser un recurso para la formación continua de los profesores una vez que se trata de un recurso para que cualquier profesional se mantenga al día en todo lo que se refiere a su especialidad. En especial, para los profesores de lengua extranjera, el docente puede contar con foros de debates y listas de distribución de noticias, informándose sobre congresos y encuentros, novedades bibliográficas e incluso sobre ofertas de trabajo. De todo lo relatado se puede considerar cómo es interesante para el profesor desafiar a sus aprendientes llevándoles a construir el conocimiento de forma conjunta en la clase. Así se desarrolla una clase donde la interacción profesor-estudiante y estudiantes entre si se plantea a través del intercambio de información y conocimiento mutuos. Teniendo en cuento lo que nos afirma García (2004:1070)“El aprendizaje constructivo implica que el aprendiente aprende la lengua construyendo e integrando los conocimientos nuevos en los ya conocidos y, por tanto, es él el máximo protagonista de ese proceso.” Para ello y por ello la internet se convierte en una herramienta de grande valía en el proceso de enseñanza/aprendizaje de E/LE.

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La relación texto e hipertexto en la internet y en la clase de E/LE En la internet localizamos texto, diversos textos, páginas y páginas que se basan sobretodo en la lengua escrita. Esto nos hace percibir que la mayoría de los contenidos presentes en la red son textos escritos, los mismos que se emplearon en los soportes llamados “tradicionales” que han modificado a lo largo de la historia (el papiro, el pergamino, el papel, entre otros). De esta manera, en la internet se puede encontrar un mundo de palabras que a veces se encuentran enlazadas de forma que si se quiere se puede saltar de un concepto a otro relacionado, tanto dentro de un mismo documento o página como entre páginas de una misma web como entre webs diferentes. Todo este enlace de palabras que se interrelacionan constituyen los hipertextos, así los saltos hipertextuales pueden ser casi infinitos. Por el rasgo de la hipertextualidad se hace posible enlazar cualquier tipo de contenido informativo que esté en el soporte internet pues una de sus características es que sea multimedio, en la red hay la posibilidad de caber todos los medios de transmisión de la información: texto, imagen, sonido, vídeo, entre otros. Los hipermedios permiten que se establezcan enlaces entre los distintos medios, así siendo se combinan la hipertextualidad y los multimedios. Los multimedios vienen utilizándose desde hace siglos para la enseñanza. En realidad, el profesor que aporta a la clase de E/LE unas fotocopias, un mapa, unas transparencias, unas diapositivas y un radiocasete ya realiza una clase multimedia, siendo así la novedad es la introducción de la informática, ahora solo se necesita un único aparato en el aula: el ordenador. En la historia de la enseñanza de lenguas en el siglo XIX, a partir del rechazo al método gramática-traducción, todos los enfoques metodológicos defienden la utilidad de las imágenes, del sonido y de todo el material visual y/o auditivo en el aprendizaje de una lengua extranjera. Todos los instrumentos que se puede utilizar con las TIC en las clases de ELE La inserción de las TIC, en especial, la internet nos trae varios instrumentos que podemos utilizar en las clases de español como lengua extranjera. Entretanto, hay que tener en cuenta un nuevo concepto que nos acarrea el uso del soporte internet que es la noción de Cibercultura que según Kenski (2007:134) se refiere

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al conjunto de técnicas (materiales e intelectuales), prácticas, actitudes, modos de pensar y valores que se desarrollan en el ciberespacio8. El Ciberespacio, palabra utilizada por primera vez por el autor de ciencia ficción William Gibson, en 1984, en la novela Neuromamcer, el ciberespacio significa para Kenski (2007:134) los nuevos soportes de información digital y los modos originales de creación, de navegación en el conocimiento y de la relación social proporcionados por ellos. Espacio que permite el flujo de informaciones y no se refiere al mundo físico. Así la globalización permite que el límite entre el tiempo y el espacio no exista como antaño. Hoy, gracias a las TIC, podemos acceder al contacto con otras formas de vivir, pensar, sentir, creadas por pueblos distantes geográficamente. En términos de investigación, hoy podemos, aunque no tengamos enciclopedias, tener acceso a la información de civilizaciones que ya han perecido en el tiempo, por lo tanto se puede hablar de la democratización de la información y del conocimiento. Además de la internet ser una fuente inagotable de material auténtico nos ofrece abundantes ejercicios de corrección automática (sobretodo dedicados a la gramática y vocabulario); proporciona una herramienta para la comunicación e interacción entre las personas que puede ser sincrónica mediante los chats, los chats de voz, la videoconferencia o aún las pizarras virtuales – comunicación en directo o en tiempo real – o asincrónica mediante el correo electrónico, los foros de debate, las listas de distribución de noticias o los foros auditivos; puede funcionar como archivo de sugerencias didácticas y como recurso para la formación continuada de los profesores. Consideraciones finales El estudiante de una lengua extranjera aprende las normas y el funcionamiento de los elementos de la lengua en el desarrollo de la competencia gramatical que, en general, forman parte del código escrito de la lengua. Por ello, la cuestión es cómo proporcionar un aprendizaje de la competencia gramatical en LE para que los alumnos sean capaces de comprender y manejar la comunicación y las reglas de uso de la lengua de forma consciente y autónoma. KENSKI, Vani Moreira. Educação e tecnologias: O novo ritmo da informação. São Paulo: Papirus, 2007, p. 134 (Glossário). 8

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La utilización de la internet como recurso en la enseñanza de lengua extranjera nos parece al principio ser todo solo ventajas, no obstante los materiales de la red, las páginas disponibles en la red, presentan algunas limitaciones que los profesores deben tener en cuenta a la hora de aplicarlos en la clase de E/LE y que vamos a destacar a seguir lo que realmente nos puede o no ayudar la internet. La internet no nos proporciona a los profesores un ahorro de trabajo puesto que hay que preparar muy bien las actividades para que el estudiante no se sienta perdido ante la pantalla del ordenador sin saber qué hacer. Además el profesor debe saber que trabajar con la internet es algo imprevisible, o sea, puede fallar. Las conexiones pueden fallar o estar muy lentas, las páginas y consecuentemente sus contenidos pueden desaparecer, entre otros inconvenientes. Por ello, el docente tiene que preparar material alternativo, por si algo falla. Otro punto para llamarse la atención es en cuanto a la calidad del material que se encuentra en la internet. Se sabe que las páginas pueden contener errores tanto formales como de contenido, por ello se debe revisar las páginas con las que vamos a trabajar con los estudiantes.Un error que se puede cometer es sustituir el libro didáctico por la internet. La internet es un sistema de publicación de textos que permite que llegue a muchas personas pero esta es solo una de las utilidades dela internet. Al mismo tiempo, la lectura en la pantalla del ordenador no es igual a la que se realiza sobre el papel, pues la hipertextualidad activa otros sistemas de recepción de texto escrito, por ello conviene seguir manejando libros de texto, revistas, periódicos, gramáticas, diccionarios o lecturas graduadas. Se puede concluir que la principal contribución de la internet está en lo que no se encuentra en los libros, quiere decir, como un recurso didáctico de lo que no nos ofrecen los libros: los medios de comunicación a distancia como el correo electrónico, los foros de debates o los chats; acceso a los ejercicios y los juegos de corrección automático, el acceso a la prensa y a la radio de cualquier país hispanohablante, entre otros. Así, se puede decir que la internet no es la solución para todas las dificultades y problemas que surgen en el proceso de enseñanza/aprendizaje, entretanto nos ofrece muchos recursos que se puede emplear para enriquecer las clases de E/LE. Tanto para los profesores como para los estudiantes la utilización de la internet en el aula provee la posibilidad de una nueva manera de comunicación e interacción en la navegación por la red que nos lleva a ampliar e intercambiar nuestro conocimiento e obtener información de difícil acceso.

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REFERENCIAS

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DA SALA DE AULA PARA A REDE SOCIAL: UMA EXPERIÊNCIA NO ENSINO DE INGLÊS COMO LÍNGUA ADICIONAL

Victor Brandão Schultz

Introdução

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ão é novidade afirmar que, para se tornar competente em uma língua estrangeira, o aluno precisa estar em constante contato com tal idioma; também é de conhecimento geral que a aprendizagem é propiciada quando o aluno a utiliza em práticas comunicativas cotidianas em comunidades de prática específicas. Esse importante vínculo entre aprendizagem de língua estrangeira e uso me motivou a criar uma comunidade virtual no site de relacionamento Orkut para que os alunos de uma de minhas turmas pudessem comunicar-se uns com os outros de modo assíncrono, extrapolando as quatro horas de aula semanais. Entretanto, apesar de minhas motivações pedagógicas, a comunidade virtual por mim concebida contou com pouca participação dos alunos. O presente trabalho objetiva refletir sobre essa experiência com o intuito de gerar entendimento sobre as formas de participação e negociação de sentidos desenvolvidas nesse espaço online, com vistas à exploração de seu potencial como ferramenta pedagógica em experiências futuras. Primeiramente, faço algumas considerações sobre a sala de aula tradicional, contrastando-a depois com as formas de participação típicas da Internet. Em seguida, empreendo o movimento analítico e, a partir deste, discuto possíveis estratégias para experiências futuras. A sala de aula tradicional Segundo Foucault ([1975] 2007), a escola é um exemplo de instituição que se organiza a partir do modelo panóptico, ou seja, basea-se em uma estrutura em

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que poucos (professores e funcionários) vigiam muitos (alunos) e, assim, exercem o poder disciplinar. As tecnologias utilizadas no poder disciplinar atuam na produção de “corpos dóceis” e educados, isto é, regem o uso dos corpos para deles obter a maior utilidade possível ao mesmo tempo em que diminui tanto quanto se pode sua força de resistência. Com o exercício dessa forma de poder, objetiva-se que, com o tempo, essas tecnologias levem o próprio sujeito disciplinado a exercer o poder disciplinar sobre si mesmo, ou seja, tornar-se o vigilante de si. Na sala de aula, os alunos costumam se organizar em filas, de modo que se evitam aglomerações desordenadas, que são mais difíceis de controlar; todos se sentam de frente para o professor, o único participante que, ao ocupar uma posição frontal estratégica, podendo ficar de pé (muita vezes sobre um tablado) e mover-se por todo o espaço, idealmente exerce vigilância constante sobre todos os alunos. Tal disposição espacial favorece a criação de um foco único de atenção: o docente. Desde o início do processo de escolarização, ensinam-se aos alunos modos apropriados de olhar (sempre para a frente), mover-se (por exemplo, segurar um lápis e se sentar de certa maneira) e dizer (preferencialmente, dirigir-se ao professor em linguagem respeitosa sobre tópico da aula). Na sala de aula opera, então, uma série de mecanismos e técnicas de confinamento e controle que docilizam os corpos e as mentes, ensinando formas específicas de agir, falar, interagir, julgar etc. No plano interacional, atua nessa direção o padrão iniciação-resposta-avaliação (IRA): o professor faz uma pergunta ou um pedido a um aluno, este responde e o docente avalia a resposta recebida, dando feedback positivo ou corrigindo o aluno (SINCLAIR e COULTHARD, 1975, apud GARCEZ, 2006). Esse padrão é amplamente adotado nas salas de aula das mais diversas disciplinas, sendo considerado eficiente inclusive em termos de otimização do tempo; com efeito, essa estrutura interacional é um dos aspectos que fazem com que uma aula seja reconhecida como tal. É evidente que, quando se adota uma abordagem comunicativa (cf. LARSEN-FREEMAN, 2000; RICHARDS e RODGERS, 2001), como é o caso da instituição em questão, as aulas não se limitam a esse padrão interacional, já que os alunos frequentemente trabalham em duplas ou grupos, de modo que se torna impossível para o professor vigiar e controlar a todos. Todavia, mesmo aulas ditas comunicativas costumam operar parcialmente dentro da lógica panóptica, da qual são exemplos a correção de exercícios e discussões envolvendo toda a turma, que

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muitas vezes seguem o padrão IRA mesmo quando o professor deseja que os alunos interajam uns com os outros. Disso podem resultar ideias de (1) dependência dos alunos em relação ao professor, (2) trabalho individual, e (3) não engajamento nas tarefas desenvolvidas. Primeiro, porque muitos estudantes tendem a depositar sobre uma “boa explicação” por parte do docente toda a responsabilidade pela aprendizagem. Segundo, porque mais do que participar de interações significativas, os alunos “falam sem dizer, ouvem sem escutar, trabalham em conjunto individualmente, desenvolvem rituais repetitivos sem perceber, movem-se em solos discursivos estáticos, ventriloquam sentidos sem refletir” (FABRÍCIO, 2007, p. 129), pois se envolvem em práticas orais de forma mecânica e ritualizada. A Internet e os novos letramentos A Internet opera cada vez mais a partir de uma lógica completamente diferente da sala de aula tradicional, implodindo o panoptismo. Na rede, desenvolvem-se formas de leitura, escrita e interação comumente chamados “novos letramentos”. Estes estão associados a um determinado repertório de sentidos que orienta os sujeitos em sua forma de ver o mundo e agir nele — formas cada vez menos confinadas ou controladas. Esse novo repertório, que Lankshear e Knobel (2007) chamam de mindset 2, compreende que há no mundo crescentes diferenças em relação ao passado, resultantes do fato de “as pessoas imaginarem e explorarem como o uso das novas tecnologias pode se tornar parte do processo de transformar o mundo em algo (mais) diferente de como ele atualmente é” (ibid., p. 34). Uma característica desse novo mindset é a inteligência coletiva (LANKSHEAR e KNOBEL, 2007): os usos das tecnologias digitais característicos do mindset 2 são baseados não em grandes quantidades de conhecimento enciclopédico de especialistas, mas em um repertório colaborativo — ninguém “detém” o conhecimento sozinho; este é construído no, pelo e para o grupo. A autoridade do “especialista” é, desse modo, distribuída, sendo algo coletivo disperso na comunidade. No que diz respeito à tecnologia digital, o mindset 2 corresponde à chamada Web 2.0. Esse termo, cunhado por Tim O’Reilly, refere-se a “um conjunto de tecnologias destinadas a dotar o usuário de um maior protagonismo na [Internet]. A Web 2.0 é um modo de conceber a Internet em que o essencial são as conexões entre os usuários” (ACÍN, 2006, apud ARRIAZU et al., 2008, p. 216). Como ex763

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plicam Arriazu et al. (2008), na Web 2.0 se desfaz a distinção entre produtores e consumidores. O princípio é que os usuários não apenas consumam o conteúdo produzido por uma instituição, por especialistas ou por seus pares, mas que, além disso, também produzam conteúdo eles mesmos. Esse novo usuário tem, então, um papel central, pois é corresponsável pelo desenvolvimento da inteligência coletiva. Os dispositivos caracterizados como Web 2.0 são justamente aqueles que pressupõem esse novo tipo de usuário; são exemplos a Wikipedia (http://www. wikipedia.org) as redes sociais. Davies e Merchant (2009, p. 5) fazem uma boa síntese da Web 2.0 ao postularem como suas características centrais presença, modificação, conteúdo gerado pelo usuárioe participação social. A primeira se refere a não apenas acessar determinado conteúdo de forma esporádica, mas a participar regularmente de uma comunidade, mantendo uma identidade ali e nela contribuindo periodicamente. Essa contribuição regular é o conteúdo gerado pelo usuário, da qual depende a inteligência coletiva. Modificação se refere tanto à alteração do conteúdo gerado por outros usuários quanto a um alto grau de personalização permitido pelas plataformas Web 2.0. Tendo em vista essa inexistência de um centro de controle na Web 2.0, a existência de inúmeros focos de atenção e a sua natureza profundamente interativa, não é surpresa que, como argumenta Martins (2009), aulas virtuais sejam menos centradas no professor, mesmo porque este não está sempre presente em ferramentas de comunicação assíncrona como o Orkut. Essa falta de copresença contínua também impede que o professor escolha quem será o próximo a falar, como ocorre no padrão interacional IRA, e torna improdutivo que os alunos somente se manifestem quando escolhidos pelo docente. Ao criar o componente online do curso, eu desejava utilizar essa cultura participativa que caracteriza o mindset 2 e a Web 2.0 para fazer com que meus alunos interagissem uns com os outros e tivessem mais contato com a língua inglesa fora da sala de aula. Contexto e metodologia de pesquisa Como já foi mencionado, o ambiente virtual de aprendizagem criado foi uma comunidade no site de relacionamento Orkut, cujo conteúdo somente era visível aos alunos. Esse ambiente virtual contou com sete tópicos de discussão, sendo

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seis relacionados a temas abordados em sala. Seis tópicos foram criados por mim e um pelo aluno Carlos1. A experiência, desenvolvida no segundo semestre de 2009, teve como participantes eu e os 13 alunos de minha turma de inglês de nível intermediário no projeto de ensino de línguas para a comunidade mantido por uma universidade pública da cidade do Rio de Janeiro. Os dados foram gerados a partir das contribuições feitas pelos participantes no ambiente virtual e das respostas destes a um questionário avaliativo aplicado no último dia de aula, que contou com 11 respondentes. O estudo é de caráter exploratório, com base qualitativa e interpretativista (cf. MOITA LOPES, 1994). Isso significa que não me proponho a descobrir “verdades” subjacentes ou a fazer generalizações válidas para outros contextos. Procuro, ao contrário, fazer uso dos dados para produzir uma compreensão possível sobre os princípios norteadores da interação em um contexto específico. Apesar do claro enfoque qualitativo, este estudo também conta com alguns dados quantitativos. Contudo, não se trata de utilizar estatísticas para produzir grandes generalizações e apagar os sujeitos sociais pesquisados e suas ações situadas: são, ao contrário, dados interpretados conjuntamente àqueles qualitativos. São números mobilizados não para totalizar, mas para complementar a base qualitativa e me auxiliar a dar conta do fato de estar analisando os atos de uma comunidade de prática, não de indivíduos isolados. Produzindo entendimento sobre os dados Interações online Primeiramente, gostaria de mencionar três tópicos semelhantes criados para discussão. Seus temas foram pirataria, pena de morte e amuletos da sorte, presentes no livro didático adotado no curso. Embora, ao criar os tópicos, minha intenção fosse que os alunos discutissem entre si, sem que eu precisasse atuar como mediador, houve apenas uma mensagem discente, bastante curta, publicada pelo aluno Carlos no tópico sobre pirataria:

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Para preservar a identidade dos alunos, todos tiveram seus nomes alterados para este trabalho.

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares I just use the internet on weekends, but I cant lie saying that I dont download songs on the internet x] I think that all of us who has Ipods or mp3 became instantly a downloader of songs in programs like kazaa, shareaza etc… but when we're talking about internet I think its something really difficult to specify what's piracy and what's not…

Um quarto tópico para discussão se intitulou “Adventures of a Gringa”, no qual publiquei um link para o blog de uma nova-iorquina que morou dois anos no Rio de Janeiro e comentava sobre as diferenças culturais entre Estados Unidos e Brasil. Na mesma mensagem, deixei também um link para um texto específico desse blog, no qual havia um amplo debate sobre uma propaganda da telenovela brasileira “Negócio da China” (exibida de 2008 a 2009) que a dona do blog havia considerado racista. Esse tópico foi criado porque choque cultural e estereótipos culturais eram temas abordados em uma das unidades do livro didático; além disso, supus que o blog, que continha diversos textos interessantes, fosse interessar aos alunos. Não obstante, mais uma vez o aluno Carlos foi o único a responder, deixando outra mensagem curta, incompatível com o nível de profundidade da discussão no blog. I dont think thats a kind of offense, you know…youre just beeing funny Japanese has small eyes and that's it! they should be proud and not think that everyone wants to make joke with bem because of this…

Assim como “Adventures of a Gringa”, propus o tópico “Public morality in Brazil” com a expectativa de que o interesse pelo tema fosse desencadear uma participação mais expressiva. Minha mensagem continha um texto homônimo publicado em um jornal inglês retratando o caso de uma universitária brasileira expulsa de sala pelos colegas por usar um vestido considerado excessivamente curto; o acontecimento em questão havia tido grande repercussão na mídia brasileira e vinha sendo comentado por muitas pessoas em suas interações cotidianas. Contudo, nenhum aluno publicou qualquer mensagem. O próximo tópico se intitulou “Gathering Storm” e foi concebido como uma primeira tentativa de trabalhar com letramento crítico. Depois de trabalhar uma parte do livro didático na qual se discutiu o casamento, mostrei em sala o vídeo de uma campanha americana contra o reconhecimento legal do casamento homossexual 766

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intitulada “Gathering Storm”, na qual se tenta utilizar o medo como forma de persuasão. Os alunos pareceram ter gostado de assistir ao vídeo, que consideraram engraçado, e demonstraram grande interesse em discuti-lo. Disse aos alunos, então, que a discussão sobre o vídeo ocorreria não em sala de aula, mas no Orkut. No mesmo dia, criei na comunidade um tópico com o vídeo da campanha e transcrevi alguns enunciados para que os alunos comentassem seus efeitos de sentido; meu objetivo era encaminhar uma reflexão sobre o uso estratégico dos recursos semióticos destacados. Apesar do interesse inicial, nenhum aluno participou da discussão online. No entanto, na aula seguinte, o aluno Roberto me entregou a atividade feita em uma folha de papel para que fosse corrigida. Isso indica que ele estava operando não a partir do mindset2, mas de parâmetros panópticos de ensino-aprendizagem. Minha interpretação é que, para ele, a aprendizagem legítima não passa por escrever no Orkut para ser lido pelos colegas de classe, mas por entregar a atividade em papel ao professor (“detentor” do conhecimento e da autoridade), de modo que os outros alunos sequer saberiam que ele a havia feito. Observa-se, então, o aluno mantendo a vigilância e o controle do professor como autoridade à qual cabe avaliar a produção discente. Comentarei agora uma estratégia que produziu resultados positivos. Nas aulas presenciais, era prática corrente que os alunos preparassem, em duplas, apresentações relacionadas a um dos temas gerais abordados durante o período letivo. Essas apresentações, que ocorreram ao longo do semestre, eram seguidas por discussões envolvendo toda a turma, moderadas pelos alunos-apresentadores. Inicialmente, os apresentadores recebiam feedbackde mim e de seus colegas ao final de sua apresentação; mais tarde, propus que todo o feedback referente às apresentações ocorresse online. Em todos os casos ocorridos nesse segundo momento, esperei alguns dias após a apresentação para que algum aluno iniciasse a discussão; como isso não ocorreu, eu mesmo criei um tópico para cada apresentação, nos quais deixei meus comentários e alguns erros no uso da língua inglesa para que a turma os explicasse e corrigisse na própria comunidade. Os dados a seguir mostram um trecho do tópico para comentários sobre a apresentação da dupla Guilherme e Lúcia.

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares José: Hello, I totally agree that Guilherme shoud speak a little more clearly. It was really difficult to understand him sometimes. Besides that, he was able to speak without much others problems. Lúcia's presentation was also good, she was able to control everyone in the end, so her presentation wouldn't take much longer, but i really think that she must practice her conversation a little more, sometimes she just hangs when trying to express herself. See ya Guilherme: As Victor and José said, it was hard to understand me when I started talking. I love talking and I see no problem in this kind of work; but, it was in english and I was afraid of making mistakes. I felt myself under pressure and this situation got me on my nervous. When you guys joined the work and it turned into "a conversation" I relaxed. Anyway, I can not find any other problem on my work. Lúcia was great. I have to say… she was better than I could imagine! She forgot the shyness and gave her best. I had seen her alone reading the papers and I thought: it is driving her crazy…I hope she speaks! For sure, she worked in order to give her best. Thanks guys for showing your points of view up. (Anyone is allowed to correct me if I make mistakes)

Como se pode observar, o aluno José comenta individualmente o desempenho de Guilherme e Lúcia, apontando aspectos positivos e fazendo críticas construtivas. Em seguida, Guilherme comenta a própria apresentação. É interessante notar que Guilherme inicia seu texto levando em consideração o que foi escrito por mim e por José (“As Victor and José said”) e que conclui sua mensagem deslocando o poder de controle do professor para distribuí-lo entre todo o grupo ao sinalizar que “qualquer um” (termo enfatizado por estar em negrito) pode corrigi-lo. Em resumo, parece ter havido no componente onlinea predominância da lógica panóptica, evidenciada pela participação pouco expressiva dos alunos no ambiente virtual e pela reflexão em papel entregue ao professor por Roberto. To-

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davia, o princípio de discussão encaminhado por Carlos em alguns tópicos e a participação de José e Guilherme no último excerto analisado mostram um tímido movimento de ressignificação do ambiente virtual de aprendizagem, configurando um discreto distanciamento de um repertório panóptico rumo a uma participação orientada pelo mindset 2. Não se trata de uma progressão linear, mas de uma oscilação que sugere, por um lado, a necessidade de renegociação de uma visão arraigada do processo de ensino-aprendizagem e, por outro, a possibilidade de mudança e alguns efeitos dos processos de negociação de sentidos nos quais meus alunos e eu nos envolvemos. Questionário

O questionário avaliativo, aplicado no último dia de aula, contou com 11 respondentes. Na primeira pergunta, solicitou-se que os alunos avaliassem, de 0 (nenhum) a 5 (extremo), seu interesse inicial pela comunidade no Orkut. A figura sintetiza as respostas dos alunos. Como se pode observar, a maioria dos alunos se mostrou bastante interessada na proposta, atribuindo a esse interesse valor 4 ou 5. Isso é coerente com o fato de, no questionário aplicado no início do semestre, todos os alunos terem dito que viam a Internet como um local válido para a aprendizagem de línguas e que estavam dispostos a participar de um espaço virtual de aprendizagem. Abaixo estão alguns comentários extraídos das respostas ao questionário aplicado ao fim do semestre: Faz com que eu tenha contato diário com a língua, o professor ou turma Alunos tímidos podem se expressar sem grandes problemas e alguns assuntos “não didáticos” e/ou fora do contexto do livro podem ser abordados 769

Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares Pois seria uma oportunidade de tirar dúvidas, e um estímulo para escrever Eu não tenho internet em casa e meus acessos são feitos do trabalho e da minha faculdade […] e em ambos os lugares é proibido o acesso ao orkut mas, para aquele que tem acesso diário, a ideia foi muito boa

Os dois primeiros depoimentos mostram alternativas ao panoptismo. No primeiro, nota-se uma valorização não apenas do contato com o professor, mas também da interação com colegas de turma; no segundo, aprecia-se a possibilidade de não regulação dos assuntos discutidos. Já a terceira mensagem parece indicar filiação a um modelo panóptico, uma vez que a comunidade é vista apenas como um local de esclarecimento de dúvidas, provavelmente com o professor. O último depoimento relata uma dificuldade significativa de acesso à Internet, sobretudo ao Orkut; esse tipo de relato foi recorrente nas respostas ao questionário. A segunda pergunta no questionário final foi: “Sua relação com a comunidade se modificou ao longo do semestre? Como?”. Dos 11 respondentes, 6 notaram mudanças em sua relação com a comunidade e 4 não o fizeram; em um dos questionários, a resposta não foi clara o suficiente para permitir sua categorização. Destaco duas justificativas: Entrei menos, conforme o tempo ia passando. A correria foi ficando intensa e acabei não tendo tempo para entrar Sim. Devido a necessidade de utilizá-la para completar as tarefas tive que me tornar ativo O primeiro depoimento mostra um dado recorrente nos questionários: a falta de tempo como explicação para a pouca participação. Já o segundo comentário, escrito pelo aluno José, mostra que algumas de minhas estratégias obtiveram certo êxito. Relacionando esse depoimento ao conteúdo publicado na comunidade, suponho que tenham sido produtivas duas estratégias: a de levar para o componente online o feedback das apresentações e a de, a partir de determinado momento, publicar na comunidade as propostas de temas para redação (os alunos deviam escolher uma entre duas ou três opções para escrever seus textos) em vez de informá-los em sala. Esta última foi adotada partindo do princípio de que, se os alunos tivessem que recorrer à comunidade para realizar tarefas associadas ao presencial (que costumam ser consideradas mais importantes), a quantidade

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de acessos tenderia a aumentar: uma vez que os alunos estivessem visitando a comunidade para saber os temas para redação, as chances de participação nas discussões online seriam, em tese, maiores. As próximas perguntas no questionário pediam que os alunos avaliassem sua frequência à comunidade e explicassem por que não a acessaram mais vezes. Quase metade dos respondentes (5 alunos) afirmou visitar a comunidade uma ou duas vezes por semana, enquanto os 6 disseram visita-la menos de uma vez por semana. Isso significa que havia muitos alunos lendo o conteúdo disponível sem nada produzir, mantendo, em alguma medida, a distinção tradicional entre leitores e autores e ignorando a importância do conteúdo gerado pelo usuário na Web 2.0. A última pergunta no questionário era: “Você acha que a ideia da comunidade deve prosseguir?”. Todos os respondentes afirmaram que sim, apresentando como justificativas os mesmos fatores apontados na primeira questão como responsáveis por seu entusiasmo inicial. No espaço destinado aos comentários adicionais, diversos alunos foram bastante enfáticos ao sinalizar a importância de um componente online no curso; alguns chegaram a sugerir que fossem criados ambientes para interação entre alunos de diferentes turmas da instituição. Discussão Analisando os dados gerados pelas contribuições dos participantes no Orkut e pelas suas respostas ao questionário, pude identificar entre meus alunos algumas das dificuldades que, segundo Salter (2000), apresentam-se com frequência em ambientes virtuais de aprendizagem. A primeira delas é o acesso limitado à Internet, mencionado por alguns alunos. Em alguns casos, essa falta de acesso se deu mais especificamente ao Orkut do que à Internet em geral, embora todos já possuíssem conta no referido site antes de a comunidade ser criada. Outra fonte de dificuldades apresentada por Salter que pode ter influenciado a participação de meus alunos é a extensão de comportamento passivo em sala de aula. Se as aulas presenciais ainda se organizam com base no panoptismo, é natural que os alunos tenham dificuldade de operar a partir de uma lógica tão diferente no ciberespaço. Há, na verdade, um conflito de perspectivas: de um lado, a sala de aula, frequentada para fins de aprendizagem, tem uma organização panóptica; de outro, a Internet, que não é normalmente reconhecida como um espaço de aprendizagem, opera com base na cultura participativa do mindset

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2. A dificuldade parece ser levar os alunos a operarem a partir do mindset2 no ciberespaço para fins de aprendizagem, ou seja, recontextualizar o processo de ensino-aprendizagem substituindo as estruturas de participação panóptica aquelas próprias dos novos letramentos. Já ciente dessa possibilidade, procurei, ao longo do semestre, propor durante as aulas presenciais rotinas interacionais que enfatizassem a interação entre os alunos e a distribuição dos focos de atenção e autoridade, produzindo efeitos positivos visíveis. Se essas novas rotinas tivessem sido propostas de maneira mais consistente desde o início do período letivo, talvez tivesse havido uma distância menor entre os modos de operar nos encontros presenciais e no ambiente virtual, propiciando uma participação mais efetiva dos alunos neste. Isso é ainda mais importante devido ao fato de os alunos chegarem a essa instituição com um histórico de anos de panoptismo durante o processo de escolarização, e muitos ainda participavam de práticas de letramento panópticas em seus cursos universitários. Associada a isso está a clareza insuficiente quanto às expectativas de participação. Segundo Salter (2000), é preciso que os estudantes saibam exatamente o que se espera deles: o tipo de interação desejado, o volume de mensagens com as quais devem contribuir etc. Embora essas expectativas possam parecer óbvias devido ao fato de os alunos já participarem de redes sociais, não o são: embora a plataforma tecnológica seja a mesma, os objetivos são diferentes, o que requer um processo de negociação e clarificação das regras de participação. Para isso, convém que se coconstrua conhecimento de princípio — termo empregado por Edwards e Mercer (1987) para aludir ao conhecimento que tem pontos explícitos de referência: os aprendizes precisam saber por que se está propondo o que está sendo proposto; do contrário, eles apenas obedecerão ao professor na realização de tarefas diferentes das tradicionais, sem que isso desenvolva sua iniciativa ou os torne aprendizes mais autônomos. Outra possível razão é a falta de retroalimentação da aula presencial pela comunidade. Em geral, a comunidade acabou sendo construída por todos os participantes (alunos e professor) como um mero apêndice da aula presencial. Assim como a aula presencial deu origem a atividades online, parece importante que atividades online gerem outras presenciais e que o aluno saiba que isso será prática comum. Do contrário, a mensagem construída pelos alunos a partir das ações do professor será a de que a aula presencial é o verdadeiro momento de aprendizagem, ao passo que o ambiente virtual é apenas um acréscimo, um “bônus” do qual se pode prescindir em caso de tempo escasso.

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Conclusão A análise dos dados exposta acima indica a existência de um reconhecimento parcial do ciberespaço como local de aprendizagem: por um lado, a importância desse espaço é reconhecida e enfatizada no questionário; por outro, essa importância atribuída à comunidade online não se traduz em participação efetiva. Parece haver aí uma convivência de referências panópticas com a lógica digital, por parte tanto dos alunos quanto de mim como professor. O simples fato de a comunidade ter sido criada e o entusiasmo dos alunos mostram uma nova lógica em operação, assim como a participação de Carlos, José e Guilherme; no entanto, a pouca participação dos outros discentes, minha posição de controle e a atividade entregue em papel por Roberto mostram a vigência de princípios panópticos. Para experiências futuras, pode ser útil buscar uma plataforma tecnológica que, diferentemente das redes sociais, possibilite maior facilidade de acesso, tendo em vista as dificuldades mencionadas por alguns alunos. Parece válido manter a estratégia de transferir completamente parte da rotina de sala de aula para o ambiente online, como o feedback sobre as apresentações e os temas a serem escolhidos para atividades de redação. Também seria vantajoso enfatizar em sala a corresponsabilidade dos alunos pela criação e desenvolvimento de novas discussões online. Ademais, parece muito importante que, na medida do possível, as aulas presenciais se afastem do panoptismo e incorporem as características do mindset 2 (cooperação, corresponsabilidade, criatividade e interatividade), o que pode facilitar que o ambiente virtual seja reconhecido como um espaço de aprendizagem e os modos de interação típicos dos novos letramentos sejam postos em prática também para fins educacionais. Atrelada a isso está a necessidade de coconstrução explícita de expectativas de participação e consciência dos ganhos para o processo de aprendizagem. As ações dos participantes (alunos e professor) indicam a existência de crenças norteadoras profundamente arraigadas; mudanças de crenças orientadoras como a que propus junto a meus alunos requerem um amplo e contínuo processo de negociação. É necessário que haja uma constante coconstrução de conhecimento de princípio; em outras palavras, os alunos devem saber que tipo de participação se espera deles e as vantagens desse tipo de participação para seu processo de aprendizagem.

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Mesmo todas essas estratégias, aliadas a tantas outras, não são garantia de sucesso, visto que há uma série de fatores envolvidos que extrapolam as rotinas de sala de aula e as crenças dos alunos. Além disso, os mesmos procedimentos podem ter alto grau de performatividade em uma turma e fracassar em outra. Portanto, a perspectiva de coconstrução e negociação de regras — processos para os quais não há prescrições gerais — deve estar sempre no horizonte.

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REFERÊNCIAS

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A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO NO CONTEXTO INTERDISCIPLINAR DE ESPANHOL SOB PERSPECTIVA DO DISCENTE

Andréa Cristina da Cruz Soares

Introdução/justificativa

O

bserva-se que a interdisciplinaridade é um tema cada vez mais crescente e pós- moderno, pois, sabe-se que, na atualidade, necessitam-se de vários saberes para a formação integral do indivíduo, sobretudo nesta nova ordem mundial instalada, em que a sociedade é muito mais veloz em processar informações. Assim, a interdisciplinaridade seria a mola capaz de dar conta das necessidades educacionais (LOPES, 2007). Este conceito tem se consolidado através dos tempos para atenuar as fronteiras existentes entre os diversos saberes, através da reciprocidade entre as disciplinas. O assunto não deve ser tratado simplesmente como um novo modismo, visto que, há muito já existe a preocupação em se desenvolver o indivíduo dentro do contexto de um saber global (universal). Ademais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 1996), por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), orienta que a interdisciplinaridade deve ser um instrumento da prática escolar para a compreensão e a solução de problemas a partir de diversos pontos de vista. O primeiro estudo sobre atividades interdisciplinares ocorreu na década de 60 (SOMMERMAN, 2006) e, desde então, têm se multiplicado as pesquisas sobre o tema através dos olhares de cientistas, educadores, professores, pesquisadores e, principalmente, entre estes dois últimos citados, os quais reflexionam constantemente sobre suas práticas pedagógicas (FAZENDA, 1994). Sob o foco destes olhares, já são bastante discutidas as dificuldades de se desenvolver um projeto interdisciplinar nas salas de aula. Para ultrapassar os percalços é necessário romper as barreiras de estruturas estanques, de programas totalmente conteudistas e da falta de tempo para se elaborar os projetos. Entretanto, acima das dificuldades

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são discutidos e relatados os benefícios que estes projetos trazem as nossas práticas educacionais, como a aprendizagem viva e dinâmica, a troca e a parceria. Este projeto de pesquisa se propõe a investigar como um ensino no viés da interdisciplinaridade possibilitaria um maior diálogo entre um aluno e outro e/ou entre o aluno e o mundo social em que está inserido, isto, porque possivelmente o situaria em um mundo real, menos abstrato e mais vivo, prático e concreto pois, seria através da troca de experiências que o indivíduo construiria seu conhecimento. Por este fato, esta pesquisa pretende contemplar a interdisciplinaridade a partir dos olhares dos alunos, os quais participarão de um primeiro projeto, em que as aulas serão ministradas pelo professor de Língua Espanhola e pela professora de Biologia, em um Centro de Ensino Tecnológico Federal na cidade do Rio de Janeiro. Nesta pesquisa, pretende-se observar e avaliar o discurso do aluno em relação a sua aprendizagem da Língua Estrangeira. O interesse em desenvolver esta pesquisa surgiu através da reflexão de minha prática pedagógica, quando passei a perceber a necessidade de me tornar uma professora pesquisadora. Este ser reflexivo, porém adormecido, foi despertado em mim logo que iniciei o curso de Pós-Graduação Lato Sensuem Ensino de Línguas Estrangeiras do CEFET/RJ. Dia após dia, em cada aula, passo a passo, em cada texto lido, a terra foi sendo adubada, a semente da reflexão foi plantada, regada, germinada e, consequentemente, crescia através do trabalho do agricultor (meu professor). O tempo foi passando e a semente se desenvolvendo… Em seguida, iniciaram-se as aulas sobre interdisciplinaridade e, após entrar em contato com os estudos, as palestras e os seminários ministrados nestas aulas sobre o tema, vislumbrei a possibilidade de aprofundar meus estudos neste campo de conhecimento, visto que reconheço que este trabalho de pesquisa me auxiliará no desenvolvimento de minha prática pedagógica. É indiscutível que existe a crescente necessidade de se desenvolver o conhecimento global do aluno com o intuito de formá-lo como sujeito ativo e questionador, o qual busca compreender o funcionamento do mundo e as novas tendências globalizadas. Logo, esta pesquisa pretende investigarde que forma este aluno equaciona o seu mundo, suas experiências intra e extra-escolares com as informações interdisciplinares que adquire durante suas aulas e, dessa forma, observar e relatar como ele percebe a construção de seu conhecimento através deste viés. Assim, serão observadas as aulas de Espanhol, as quais farão uma

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ponte com um tema trabalhado nas aulas de Biologia que foram ministradas no bimestre anterior. Definição do projeto Tema A construção do conhecimento no contexto interdisciplinar de Espanhol sob perspectiva do discente. Problema De que forma as aulas interdisciplinares de Espanhol poderiam contribuir para uma maior motivação do aluno em aprender uma língua estrangeira? Na perspectiva do aluno, após a implementação de aulas interdisciplinares, houve uma maior percepção do diálogo dos saberes? O diálogo entre as disciplinas facilitou a construção do saber do discente durante o processo de aprendizagem? Hipótese Verificar-se-á que um ensino no viés da interdisciplinaridade possibilita um maior diálogo entre os saberes pois, as aulas interdisciplinares conduzem o educando a um mundo dialógico, com mais sentido, mais vivo, prático e concreto dentro de um mundo de saberes que se relacionam e necessitam estar contextualizados. Ao evidenciar a coerência em se tratar um tema que colabora para a construção do conhecimento, confirmar-se-á que, através da troca de experiências e saberes, os alunos poderiam observar que as aulas interdisciplinares são um fator facilitador para o processo de construção do conhecimento.

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Objetivos Gerais Evidenciar a percepção do discente em relação às práticas interdisciplinares observadas durante o processo de construção de conhecimento nas aulas de Espanhol. Específicos Relacionar as práticas interdisciplinares aos seus pressupostos teóricos. Descrever o funcionamento do processo interdisciplinar na sala de aula. Compreender como o discente percebe o processo dialógico entre as disciplinas envolvidas no projeto interdisciplinar. Observar as aulas de Espanhol para avaliar a construção do conhecimento dos discentes durante as práticas interdisciplinares. Metodologia Fundamentação teórica A fundamentação teórica deste trabalho se pautará nas obras de Ivani Fazenda (1991, 1994, 1998 e 2003). A autoraé coordenadora do grupo de Estudos da interdisciplinaridade da PUC/SP (GEPI). Como defensora do trabalho interdisciplinar, compreendeque o recorte de conteúdos prejudica a compreensão da essência dos mesmos. Seus trabalhos expõem que práticas interdisciplinares seriam capazes de transformar as práticas pedagógicas pois, através do estímulo à parceria, às trocas intersubjetivas e ao próprio auto conhecimento, que fazem parte de uma atitude de se conhecer melhor, promover-se-ia a interação entre pares idênticos, anônimos e consigo mesmo, propiciando um perfeito movimento dialético e facilitando a apropriação de novos conhecimentos. Uma utopia passível de ser executada. Também será observada a obra de Vygotsky (1993,1998) pois, o autor aborda conceitos que são construídos pelos seres humanos a partir de suas vivências pessoais do dia a dia. O autor expõe a necessidade de dialogar com o mundo, com o novo e com o diferente, e também aborda a construção do conhecimento,

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que se promove pela interação entre pares. Para Vygotsky, os conceitos, assim como a consciência são construídos pelas relações sociais. Para este autor, a aprendizagem abarca tanto o aprendiz quanto o orientador pois, o ato de educar relaciona educador e educando através de suas ações sociais. Em Bauman (2000 e 2005), observarei o contexto social que envolve a modernidade, tratanto da necessidade de se questionar os fatores problemáticos contemporâneos que envolvem o homem pós-moderno na sociedade global. A pesquisa será interpretativista de base etnográfica (BORTONI-RICARDO, 2008), pois este método situa, relaciona e direciona o olhar do pesquisador ao contexto do grupo observado, levando em conta as impressões subjetivas de quem está pesquisando, introduzindo-o dentro do espaço social da sala de aula. A observação da turma servirá como guia para a análise dos dados. A metodologia desta pesquisa se define, também, como qualitativa (BORTONI-RICARDO, 2008) porque nos procedimentos para a geração de dados, não há necessidade de rigidez para divisão nas fases iniciais no que tange ao planejamento e às observações, pois os registros servirão de base para reflexão e análise. Em síntese, meu projeto de pesquisa está formado pelos seguintes eixos e teóricos: TEMAS

TEÓRICOS

Interdisciplinaridade

Fazenda (1991, 1994, 1998 e 2003)

O homem como ser social

Vygotsky (1993 e 1998)

Pós-modernidade

Bauman (2000 e 2005)

Instrumentos de pesquisa e procedimentos Notas de campo Diário de pesquisa para reflexão Gravação de aulas e de entrevistas Questionário qualitativo Durante as aulas serão feitas anotações e gravações sobre o comportamento e o desenvolvimento da turma e também serão gravadas algumas entrevistas com alunos e professores envolvidos no projeto. Ao final deste, serão feitas entrevistas com os alunos participantes do projeto, como também será proposto a estes sujeitos de pesquisa a participação, através de um questionário qualitativo. Os dados

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gerados serão triangulados juntamente com as reflexões do diário de pesquisa para a análise e a elaboração da monografia. Conclusão A pesquisa pretende apontar, através das respostas dos alunos nos questionário e entrevistas que serão pilotados, a observação que os educandos tiveram, após serem submetidos a um ensino pautado no viés da interdisciplinaridade. Observar-se-á se houve um maior diálogo entre os saberes e se as aulas interdisciplinares os conduziram a um mundo dialógico, com mais sentido, prático e concreto. A evidência, através dos olhares dos alunosse houve ou não uma significativa coerência em se pautar o ensino através do viés interdiscilplinar, colaborará para a troca de experiências e saberes desta prática pedagógica sob mais um ponto de vista, e não apenas os já conhecidos importantes argumentos de professores e pesquisadores. A relevante premissa de se outorgar voz ao aluno concretizar-se-á, não só em sala de aula, mas também em um projeto de pesquisa acadêmica.

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REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt.Modernidade Líquida. Trad. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. O professor pesquisador: introdução à pesquisa qualitativa. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. BRASIL/SEF. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Língua Estrangeira. Brasília: MEC/SEF, 1998. FAZENDA, Ivani.Interdisciplinaridade:um projeto em parceria. São Paulo: Editora Loyola, 1991. ______.Interdisciplinaridade: História, Teoria e Pesquisa. Campinas: Papirus, 1994. ______. Didática e Interdisciplinaridade. Campinas: Papirus, 1998. ______. Interdisciplinaridade: qual é o sentido? São Paulo: Paulus, 2003. JAPIASSU, H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976. LOPES, Claudia Maria. Episódios desafiantes enfrentados por uma professora de leitura ao preparar-se para mergulhar na interdisciplinaridade. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ/Rio de Janeiro. 2007. BRASIL/MEC/SEB. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2006. SOMMERMAN, Américo. Inter ou transdiciplinaridade? São Paulo: Editora Paulus, 2006. VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem. Tradução de Jéferson Camargo. São Paulo: Martins Fontes. 1993. 145. ______. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Versão organizada por COLE, Michael et alii tradução José Cipolla Neto et alii. São Paulo: Martins Fontes. 1998.

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PRÁTICAS DE LETRAMENTO E O PROCESSO DE ENSINO/ APRENDIZAGEM DE ESPANHOL EM SALA DE AULA

Angélica Teixeira da Silva

Introdução

A

o iniciar a minha formação acadêmica, tinha em mente que sairia da universidade com todos os conhecimentos e aportes necessários para um pleno trabalho docente, os quais me possibilitariam planejar aulas e aplicar atividades que levariam os meus alunos e a mim mesma à construção conjunta de novos conhecimentos. No entanto, ao observar as práticas em sala de aula em turmas regulares do ensino fundamental e médio, me deparei com uma situação totalmente oposta da que projetava, situação esta que pode ser ocasionada por diferentes fatores, desde a falta de infraestrutura no ambiente escolar até a falta de motivação por parte dos alunos e dos próprios professores. Portanto, a minha ideia de pesquisa surgiu a partir de observações feitas no meu estágio de Prática de Ensino, em um colégio estadual, e no meu trabalho como monitora em um colégio da rede particular de ensino. Através delas, pude perceber que o ensino de LE, e particularmente o de Língua Espanhola, tem sido dado de modo muito despreocupado com as reais necessidades dos alunos, ou seja, sem considerar o contexto social de ensino e o processo de interação entre os alunos e entre o professor e os alunos. Muitas vezes, os métodos e abordagens utilizados pelo professor acabam transformando os alunos em sujeitos passivos diante do conhecimento apresentado, o que reforça o sentido tradicionalista do professor como o único portador do conhecimento e do aluno como aquele que recebe e aceita o que lhe é passado, sem nenhum tipo de questionamento ou troca. Todas essas observações e considerações foram reforçadas ao analisar alguns planejamentos de aulas e livros didáticos utilizados em ambas as escolas, nos quais notei que a ênfase dada se baseava em um ensino tradicionalista, de

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análise unicamente gramatical, ou seja, de decodificação de códigos linguísticos (KLEIMAN, 1995). No caso do colégio público, isso se agravava pelo fato de existir um único volume de livro didático para uso em todo o Ensino Fundamental, ou seja, os mesmos textos e os mesmos conteúdos gramaticais em todas as séries. Acredito que o principal trabalho de um docente é a formação de cidadãos, mas para isso ele deve buscar um trabalho baseado na realidade dos mesmos, sempre buscando analisar o processo e o contexto em que ocorre o ensino, a fim de poder observar os pontos positivos e os que devem ser modificados. Partindo desse ponto de vista, buscarei fazer uma pesquisa na minha sala de aula sobre o processo de desenvolvimentos dos meus alunos e a construção conjunta de conhecimento nas atividades de leitura em língua espanhola. Nessa perspectiva, irei me orientar pelo pensamento de que, para a formação completa dos alunos, o docente deve incluir a abordagem sociointeracionista, inaugurada por Vygotsky (1987), segundo a qual todo o processo de aprendizagem está diretamente associado à interação dos indivíduos com o meio externo, fazendo parte deste não só os objetos, mas também os demais sujeitos desse processo. Buscarei levar à turma textos significativos e que abordem questões sociais relevantes, que levarão os alunos à reflexão, ao pensamento crítico e, através da interação, à construção de novos conhecimentos. Para fazer isso da melhor forma possível, tentarei apagar a ideia de que o professor possui respostas para tudo e é o único portador da verdade, enquanto que o aluno recebe tudo passivamente, sem ser incentivado ao questionamento. Assim, os meus alunos serão levados a entender que não existe uma verdade absoluta, mas sim conhecimentos conjuntamente construídos e constantemente questionáveis. Acreditando na importância da abordagem sociointeracional, irei me fundamentar no modelo ideológico de letramento, cunhado por Brian Street (1984), que enfoca a dimensão social, ou seja, o letramento como um evento ou realização social. Nesse tipo de letramento, alunos e professores interagem entre si e constroem, conjuntamente, significados para determinado texto, através da cultura e experiência de cada um.

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Definição do projeto Tema A importância da abordagem sociointeracional na construção de conhecimentos nas Práticas de Letramento Ideológico na sala de aula, segundo as concepções de Vygotsky (1987) e os aportes teóricos de Soares (2010), Kleiman (1995) e Grigoleto (1997). Problemas/perguntas de investigação Atualmente, o que se tem visto nas nossas escolas são práticas fundamentadas no modelo autônomo de letramento, modelo este proposto por Brian Street (1984) e analisado por Kleiman (1995), que considera a escrita como um produto já completo e neutro, que não depende de fatores contextuais e sociais. Assim, os textos utilizados já possuem um significado fixo, uma verdade absoluta, não permitindo aos alunos colaborar para a sua interpretação, dar a sua compreensão. Diante dessa situação: a) De que modo a abordagem sociointeracional favorece o processo de ensino-aprendizagem? b) As práticas educacionais pautadas pelo modelo ideológico de letramento realmente aumentam as possibilidades de aprendizagem dos alunos? c) As atividades propostas por mim ajudarão os alunos no seu processo de aprendizagem? d) Que reflexões podem ser retiradas das atividades de leitura baseadas em um processo de construção conjunta do saber? Hipóteses As atividades de leitura propostas pelo professor devem favorecer o desenvolvimento do aluno como cidadão crítico e formador de opiniões, além de motivá-los a estar sempre em busca de novos conhecimentos e a compartilhá-los com outros. Nesse sentido, o professor deve buscar trabalhar de modo condizente com esses objetivos, ou seja, de modo que possibilite aos alunos se envolverem no discurso e construírem, através da interação na sala de aula, novos e variados significados.

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A escolha da abordagem de ensino e dos materiais utilizados na sala de aula precisa ser feita a partir das reais necessidades e possibilidades dos alunos, ou seja, deve-se evitar um processo de ensino-aprendizagem descontextualizado e despreocupado com a sua função social. Essa escolha precisa respeitar as características de cada contexto de ensino e as individualidades dos alunos, tanto com relação à idade e ao nível de conhecimento prévio como aos aspectos sociointeracionais. O professor, através do seu trabalho com textos e atividades adequadas, deve levar o aluno a entender que, muito mais do que informativo, o ensino de línguas estrangeiras é formativo. Antes de focar em conteúdos gramaticais e conceitos repetitivos e mecânicos (KLEIMAN, 1995), o ensino de língua espanhola deve abordar conteúdos e atividades que proporcionem um pensamento reflexivo e uma consciência crítica sobre a importância que a língua estrangeira estudada possui na sociedade de um modo geral. Nessa perspectiva, vale citar as OCEM (2006), que possui um capítulo específico para o ensino de espanhol e aborda o novo aspecto do universo sócio-cultural do estudante brasileito. Esse documento reforça a importância do papel social que a LE possui na escola. O aluno precisa entender que o processo de ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira abarca não só a estrutura linguística e gramatical, mas também questões relativas à cidadania e às identidades sociais. Nessa perspectiva, os textos precisam ser escolhidos de maneira criteriosa, a fim de que ajudem a promover o crescimento pessoal e cultural do aluno/cidadão. (PCN, 1999). Objetivos Gerais Proporcionar um ensino de língua espanhola no qual se privilegie a construção conjunta de conhecimento, através da interação dos sujeitos e da socialização do saber. Mudar o possível pensamento estereotipado que os alunos têm a respeito do ensino de língua espanhola, segundo o qual este só se basearia em um processo de tradução, repetição e decodificação linguística.

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Específicos Observar aulas de leitura na minha sala de aula. Acompanhar o desenvolvimento da minha turma ao longo do processo de coleta de dados. Permitir aos alunos a reflexão sobre o seu papel no processo de ensino-aprendizagem. Favorecer o desenvolvimento dos alunos como cidadãos críticos e formadores de opiniões. Entrevistar alguns alunos e descobrir a importância dada por eles ao ensino de língua espanhola. Investigar a motivação dos alunos através das atividades propostas. Transformar as aulas de leitura de E/LE em momentos de desenvolvimento pessoal e intelectual que motivarão os discentes a conhecer cada vez melhor a língua alvo. Metodologia Aporte teórico Ao escolher um tema como este, acredito ser importante trabalhar com as concepções de linguagem e de interação verbal defendidas por Bakhtin (2009). Assim como esse teórico, acredito que a linguagem só pode ser compreendida a partir de sua natureza sócio-histórica, ou seja, a linguagem construída e entendida por meio da interação do eu com o(s) outro(s). Através dessa visão de linguagem é que Bakhtin chega à concepção de dialogismo, que seria o principal constitutivo da linguagem e a condição para o sentido do discurso (MARQUES, 2002). Em vista dessas concepções, e, através dos estudos teóricos de Kleiman (1995) e Soares (2010), investigarei mais a fundo as práticas de letramento que se baseiam em uma dimensão mais social, ou seja, o letramento visto como um fenômeno cultural, um conjunto de atividades sociais que envolvem a língua escrita (SOARES, 2010). Ambas as autoras fundamentam os seus estudos através da ideia de letramento ideológico, proposto por Street (1984), sendo que Soares (2010) trabalha com a terminologia da dimensão social do letramento. Segundo Soares (2010, p. 72), “letramento não é pura e simplesmente um conjunto de ha787

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bilidades individuais; é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social”. Dessa forma, os sentidos são criados e interpretados dentro de variados processos de trocas e relações sociais. Ao entender a linguagem como uma construção feita por meio da interação verbal (MARQUES, 2002), acredito ser importante trabalhar com as concepções teóricas de Vygotsky (1987) com relação à abordagem sociointeracional. Esse estudioso acreditava que o humano é um ser histórico-social e, portanto, é determinado nas interações sociais, ou seja, as relações sociais fazem parte da essência humana. Desse modo, a noção de linguagem deve estar associada à ideia de ação, na qual o sentido só pode ser alcançado através de procedimentos sociointeracionais. (MEAD apud FARACO 2009). Nessa perspectiva, também analisarei a investigação feita por Grigoleto (1997) sobre a interação na sala de aula e seu favorecimento na autonomia dos alunos durante o desenvolvimento de suas habilidades. Segundo a autora, isso ajudaria no processo de socialização dos discentes e no desenvolvimento de sua auto-estima. Considerando o contexto específico da sala de aula de língua estrangeira, o papel do professor será o de criar condições favoráveis ao envolvimento dos alunos com os processos sociais de construção de significados através da utilização da língua alvo (ROLA, 2006). Assim, o meu papel como docente-pesquisadora será o de levar para a sala de aula textos que favoreçam o meu trabalho com a leitura e a construção de conhecimentos no ensino da língua espanhola, visto que um dos meus objetivos será o de modificar o possível pensamento estereotipado da maioria dos alunos com relação à importância da aprendizagem de E/LE. Procedimentos Esta pesquisa será realizada em um colégio público estadual do município de São João de Meriti, no Rio de Janeiro. Os sujeitos envolvidos nesse processo seremos eu, como professora / pesquisadora e observadora-participante, e os alunos de uma das minhas turmas de 2º ano do Ensino Médio, cuja média de idade é de 17 anos. O colégio se localiza em um bairro próximo ao centro do município

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e se encontra próximo a algumas favelas, sendo parte dos alunos moradores das mesmas. Tal pesquisa será interpretativista de cunho etnográfico (LEITÃO 2009) e será baseada em uma abordagem qualitativa de dados, pois se tratará de um estudo do desenvolvimento dos alunos e os significados construídos por eles ao longo do processo de coleta de dados, fundamentada na perspectiva teórica apresentada e através das estratégias adotadas por mim, uma docente iniciando sua prática e buscando o melhor modo de ensinar língua espanhola, considerando a realidade e contexto social dos seus alunos. Ao optar por uma abordagem qualitativa de dados, entendo o sujeito como formador da realidade vivenciada por ele. Sendo assim, analisarei o processo de ensino-aprendizagem e construção do conhecimento, e não somente o produto final obtido, como se faz em uma pesquisa quantitativa. Nessa abordagem, a minha investigação levará em conta o contexto social no qual os meus alunos estão inseridos, ou seja, não me distanciarei da realidade deles. Dessa forma, os dados serão gerados ao longo da interação entre mim, como pesquisadora, e os meus alunos, os sujeitos analisados na pesquisa. Além disso, a minha pesquisa será de cunho etnográfico, visto que buscarei analisar e compreender o que acontece ao longo das aulas e atividades de leitura propostas por mim, em um contexto escolar específico. Dentro do cotidiano da minha sala de aula, buscarei observar os meus alunos ao longo das aulas e captar os sentidos construídos por eles, através da minha prática, como participante desse processo de construção. Querendo contribuir nesse processo de co-construção de conhecimento, levarei para a minha sala de aula textos que sejam significativos para o meu público-alvo e atividades que favoreçam a interação entre os participantes. Para este estudo, utilizarei como instrumentos de coleta de dados: observações de aulas, gravações em áudio; entrevista semiestruturada e diário de pesquisa. Conclusão A minha pesquisa terá a intenção de buscar algumas respostas com relação ao ensino de língua espanhola dado nas escolas, desde as prováveis causas de dificuldade de aprendizagem até as possíveis mudanças que se deve buscar para que o processo de ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira seja, realmente, um diferencial na vida do aprendiz/cidadão. 789

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Aproveitando o início da minha prática docente e experiência em sala de aula, buscarei compreender melhor quais são as maiores dificuldades dos alunos e qual seria o melhor modo de ensinar uma língua que, ao mesmo tempo que é considerada fácil por grande parte dos alunos, por sua proximidade com a língua portuguesa, também gera, pelo mesmo motivo, algumas dificuldades e medos. Para chegar a tais respostas, analisarei todos os corpus levantados e tentarei chegar, através de um bom embasamento teórico, a conclusões que me possibilitem compreender melhor os meus alunos e, assim, melhorar cada vez mais a minha prática docente.

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REFERÊNCIAS

FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & Diálogo – as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. GRICOLETO, Marisa. “Interação em aula de leitura a atuação do aluno nas margens e no centro da construção da significação.” Trabalhos de linguística aplicada. Campinas, p. 85-96,1997. KLEIMAN, Angela. “Modelos de Letramento e a Prática de Alfabetização na Escola”. In ____ (org.).Os significados do Letramento: Uma Perspectiva Sobre a Prática Social da Escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995. LOUREIRO, Ana Paula. Construindo outras “experiências de si”, em Práticas de Letramento Computacional na aula de inglês como língua estrangeira. Dissertação de Mestrado em L. A. UFRJ, 2008 MARQUES, M. C. Said. Primeira versão – vozes bakhtinianas: breve diálogo. Porto Velho: EDUTRO, 2002. MOITA LOPES, Luiz Paulo da (org.). Discursos de identidades: discurso como espaço de construção de gênero, sexualidade, raça, sexualidade e profissão na escola e na família.Campinas-SP: Mercado das Letras, 2003. PINHEIRO, Petrilson Alan. Letramento Digital como possibilidade de viver a experiência errante das identidades sociais. Dissertação de Mestrado em L.A.. UFRJ, 2007. ROLA, Ana Paula Carneiro. O uso da Leitura em Aulas de Espanhol como Língua Estrangeira. In: Linguagem e Ensino, vol. 09, n 2, jul./dez. 2006, pp. 57-77. SILVA, Luciana Leitão. Leitura em ILE: Conceitos em jogo. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros – 4. Ed. - Belo Horizonte: Antêntica Editora, 2010. LUCCI Marcos Antonio. A proposta de Vygotsky: a psicologia sócio-histórica. Profesorado. Revista de currículum y formación del profesorado, 10, 2 (2006). Disponível em: .Acesso em: 26/08/2011.

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A AULA DE ESPANHOL LÍNGUA ESTRANGEIRA (E/LE) COMO UMA PREPARAÇÃO PARA A DISCUSSÃO DE TEMAS DE CIDADANIA

Carla da Glória Corrêa Senra

Introdução

E

m nossa profissão, docentes de língua estrangeira (doravante LE), buscamos sempre refletir sobre nossa prática em sala de aula. Sabemos que nosso papel vai além de ensinar conteúdos sobre a LE alvo; temos a função primordial de formar cidadãos críticos para atuarem no mundo. Essa consciência começou a surgir a partir do início de minha vida acadêmica. No entanto, na prática de sala de aula, em turmas do segundo segmento do Ensino Fundamental, pude perceber uma realidade complexa, onde a vida social de todos os envolvidos no processo educativo deveria estar presente, porém, não é considerada como fator importante. Na prática, o que presenciei foi a preocupação apenas com questões linguísticas. Com isso, senti a necessidade de pesquisar sobre a compreensão do ensino de línguas estrangeiras como fator de importante função social. A aprendizagem precisa ser significativa para que o aluno a perceba como relevante em seu processo de formação como sujeito crítico, participativo e transformador da realidade. Entretanto, não encontramos, com muita frequência, professores conscientes dessa função social que o ensino de LE implica. Nesta pesquisa buscaremos entender o espaço da sala de aula como cenário não só de aprendizagem de estruturas e funções comunicativas, mas lugar apropriado para discussões sobre a realidade social através da LE. Neste sentido, pretendemos potencializar o desenvolvimento da consciência social e linguística do indivíduo, visando à formação de um aprendiz criativo, responsável e crítico. Promoveremos, ainda, a compreensão do conceito de cidadania nas aulas de LE, entendendo que “ser cidadão” envolve a compreensão sobre que posição/ lugar um sujeito ocupa na sociedade, levando, assim, o aluno a ver-se como sujeito através do contato e da exposição ao outro, à diferença, ao reconhecimento da diversidade. 792

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Para isso, a pesquisa será realizada com os alunos e seus respectivos professores de LE, em duas turmas de 7º ano do 2º segmento do Ensino Fundamental, comparando os resultados de duas realidades distintas, no contexto de uma escola pública e de uma escola particular. Definição do projeto Tema Temas de cidadania na aula de Espanhol Língua Estrangeira (E/LE). Problema/pergunta de investigação Atualmente, notamos uma preocupação de muitos docentes de LE na Educação Básica em formar o aluno para usar a língua como mero instrumento de comunicação, no entanto, acabamos esquecendo ou diminuindo a importância da inserção de temas sociais (sexualidade, raça, gênero, diversidade e outros, por exemplo, violência) na aula de língua estrangeira. Como preconizam as OCEM (2006), o espaço escolar deve fomentar o ensino de LE através de uma perspectiva de trabalho em que o social se articule com o lingüístico-funcional. Mas, na prática, como os professores articulam o social e o linguístico na aula de LE? Hipóteses Apesar da evolução metodológica no ensino de línguas estrangeiras, alguns professores ainda reproduzem em sala práticas tradicionais e focadas meramente no cunho gramatical-linguístico, i. e., aprendizagem não-significativa, reflexo da formação recebida em seu desenvolvimento como falante/ professor da língua estrangeira na universidade. Ao ampliarmos os estudos sobre leitura, torna-se possível também interpretar “outras culturas”, inclusive as que estão mais distantes de cada professor e aluno, trabalhando assim a diversidade cultural. Desse modo, estaremos incluindo o desenvolvimento da cidadania na disciplina de LE e tornando a aprendizagem significativa.

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Objetivos Geral Analisar o trabalho em sala de aula do professor de Espanhol como Língua Estrangeira. Específicos Entender o espaço da sala de aula como cenário não só de aprendizagem de estruturas e funções comunicativas, mas também como lugar apropriado para discussões da realidade social através da língua alvo. Potencializar o desenvolvimento da consciência social e linguística do indivíduo visando à formação de um aprendiz criativo, responsável e crítico. Metodologia Aporte teórico Investigaremos como é realizada a aula de espanhol como Língua Estrangeira pelo professor. Para isso, analisaremos como este conduz uma atividade de leitura: se apenas levanta questões linguísticas ou trabalha a leitura como instrumento para a construção da cidadania, i. e., considerando a importância de levantar e reconhecer questões sociais e trazê-las para a sala de aula. Desse modo, a realidade do sujeito deverá ser considerada para que a aprendizagem seja de fato significativa, tornando o aluno um indivíduo crítico e participativo para atuar num mundo globalizado. Em síntese, meu quadro teórico resume-se nos seguintes autores: LEITURA MOITA LOPES (1996) JUNGER (2000) FREIRE (1986)

ENSINO CRÍTICO PARAQUETT (2005) HALL (2000) FERREIRA (2006)

Também serão utilizados alguns documentos como os PCN (1998) e as OCEM (2006). Estas são pensadas para o Ensino Médio, contudo, entendemos que suas ideias se aplicam ao Ensino Fundamental, que será o foco de nossa pesquisa.

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Procedimentos Esta pesquisa de abordagem qualitativa (OLIVEIRA, 2010) será realizada em dois colégios, um da rede pública e o outro da rede particular de ensino, localizados na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Serão observadas duas turmas de 7º ano do 2º segmento do Ensino Fundamental. Os sujeitos envolvidos serão dois professores de E/LE e os alunos das duas turmas observadas. Para isso, propomos as seguintes etapas: Busca bibliográfica sobre a importância da leitura como abordagem crítica de temas sociais nas aulas de LE. Ampliação crítica sobre o conceito de cidadania. Análise do programa da disciplina Língua Espanhola dos dois colégios que servirão de campo para a pesquisa. Observação de aulas de E/LE em uma turma caso de cada um dos dois colégios. Preparação de instrumentos para a coleta de dados dos informantes que contribuirão com a pesquisa. Análise do material preparado pelos professores a partir dos textos e da aplicação em sala. Abordagem da leitura em E/LE pelos professores dos colégios observados. Entrevista com os professores das duas turmas observadas para análise da formação acadêmica e do conceito de língua e de ensino-aprendizagem dos mesmos. Análise do desenvolvimento dessas atividades preparadas pelos professores e realizadas pelos alunos das turmas observadas, a fim de sugerir possíveis avanços no processo de ensino/ aprendizagem de E/LE, proporcionado por este tipo de atividade. Conclusão Com a presente pesquisa esperamos entender se a prática tradicional reproduzida por alguns professores de língua estrangeira é o reflexo de sua formação acadêmica como falante/ professor de LE. Esperamos ainda, promover a consciência social sobre a relevância do ensino de LE. Por meio dessa consciência social pretendemos buscar sempre um vínculo entre a aprendizagem e a realidade

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do aluno e, a partir daí, (re)conhecer também outras realidades. Desse modo, a diversidade cultural estará presente no ensino de LE. Neste sentido, temas de cidadania são de grande valia por estarem relacionados com a realidade, portanto, esperamos contribuir para a conscientização de professores sobre a importância da presença da realidade na sala de aula de LE para que possamos promover uma aprendizagem significativa e a formação de um cidadão crítico e participativo.Com isso, a função social no ensino de LE será compreendida e estará presente em nossas salas de aula.

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REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, A.E.D.; JUNGER, C.S.V.; SANTOS, A.C. Lectura Interactiva en clases de E/LE. Revista Hispanista, vol. I, n. 3, out-nov-dez, 2000. Disponível em: Último acesso em: 12 set. 2011. BRAGA, Elda Firmo; FIGUEIREDO, Dilma Alexandre. A leitura como instrumento de construção da cidadania. Disponível em: Último acesso em: 08 set. 2011. BRASIL. Orientações curriculares para o ensino médio.Linguagens Códigos e suas Tecnologias.Brasília: MEC/ SEB, 2006. ______.Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Língua Estrangeira. Brasília: MEC/ SEF, 1998. CISNEROS, Aura Trejo; PÉREZ, Lilia Mercedes Alarcón. Estrategias de lectura en la universidad.Disponível em: Último acesso em: 12 set. 2011. COSTA, Elzimar Goettenauer de Marins. “Gêneros discursivos e leitura em língua estrangeira.”Revista do GEL, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 181-197. 2008. Disponível em: Último acesso em: 12 set. 2011. FERREIRA, Aparecida de Jesus. Formação de profesores raça/ etnia: reflexões e sugestões de materiais de ensino em portugués e inglês. 2. ed., rev. – Cascavel: Assoeste, 2006. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 12 ed. São Paulo: Cortez, 1986. FREITAS, Luciana Maria Almeida de; VARGENS, Dayala Paiva de Medeiros. Pluralidade cultural nos PCNs: uma diversidade de vozes e sentidos. Disponível em: Último acesso em: 08 set. 2011.

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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 4 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. LIMA, Gersilene Souza; OLIVEIRA, Nágila Dias Aguiar; TEIXEIRA, Lucas Leal. A abordagem da cidadania em Línguas Estrangeira: importância e desafios à sua implementação. Minas Gerais: UNIMONTES, 2011. [No prelo]. MAZZARO, Daniel. “La enseñanza del español en la Enseñanza Media, en un pré-vestibular y en un curso de instrumental: ¿es lo mismo?” In.: AMARAL, E. T. R. & ALMEIDA, E. G. de. Estudos Hispânicos: Língua, Ensino e Literatura. Belo Horizonte, 2010. p. 1-10. MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Oficina de Linguística Aplicada: a natureza social e educacional dos Processos de ensino/ aprendizagem de línguas. Campinas: Mercado de Letras, 1996. OLIVEIRA, Cristiano Lessa de. Um apanhado teórico-conceitual sobre a pesquisa qualitativa: tipos, técnicas e características. Disponível em: Último acesso em: 22 fev. 2012. PAIVA, V.L.M.O. “O lugar da leitura na aula de língua estrangeira.”Vertentes. n. 16 – julho/dezembro 2000. p.24-29. Disponível em: Último acesso em: 12 set. 2011. PARAQUETT, M. “Multiculturalismo y aprendizaje de lenguas extranjeras”. In: Actas del II Simposio Didáctica de E/LE José Carlos Lisboa. Rio de Janeiro: Instituto Cervantes, 2005. VARGENS, Dayala Paiva de Medeiros; FREITAS, Luciana Maria Almeida de. “Ler e escrever: muito mais que unir palavras”. In: BARROS, Cristiano Silva de; COSTA, Elzimar Goettenauer [coord.]. Espanhol: ensino médio. Coleção Explorando o Ensino. V. 16. Brasília: MEC/ SEB, 2010.

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O USO DE SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS PARA O DESENVOLVIMENTO DA ORALIDADE EM LÍNGUA ESTRANGEIRA: UM ESTUDO DE CASO

Luciana Amorim Pereira

Introdução e justificativa

O

desenvolvimento das habilidades de produção e compreensão oral e escrita é fundamental no ensino de língua estrangeira (LE). No que diz respeito à produção oral ou escrita, diferentes métodos e abordagens são utilizados, visando o desenvolvimento da capacidade comunicativa. Dessa forma, a produção e a compreensão de textos na sala de aula de LE tornam-se necessárias, a fim de desenvolver a comunicação em diversas situações no idioma estudado, tanto na oralidade quanto na escrita. Por sua vez, os professores de LE preocupam-se em criar técnicas ou estratégias de ensino para que objetivos específicos sejam alcançados. Porém, existem turmas e alunos com diferentes “estilos de aprendizagem”, que, segundo Reid (1995, apud LIGHTBOWN e SPADA, 2006: p.59) “este termo tem sido usado para descrever uma maneira natural, habitual e preferida de um indivíduo, a fim de absorver, processar e reter novas informações e habilidades”1 (tradução minha). Diante disso, o professor de línguas tem o desafio de encontrar estratégias didáticas que vão ao encontro da variedade de aptidões e estilos de aprendizagem de seus alunos (LIGHTBOWN e SPADA, 2006). Diante disso, eu, a presente professora-pesquisadora, tenho buscado utilizar diferentes recursos que atendam às expectativas de meus alunos, principalmente no que diz respeito a um melhor desempenho na habilidade de produção oral em situações de comunicação, para que assim possam adquirir maior confiança 1 The term ‘learning style’ has been used to describe an individual’s natural, habitual, and preferred way of absorbing, processing, and retaining new information and skills (Reid 1995)”.

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e obter um melhor desempenho em sala de aula. A presente pesquisa tem sido realizada em uma escola privada de idiomas, localizada no município de Maricá-RJ, cuja metodologia apóia-se em uma abordagem comunicativa. Tal pesquisa é realizada em uma classe que se encontra no nível intermediário (três anos de curso concluídos) do curso de inglês como LE. A partir de minhas próprias observações e questionamentos dos alunos quanto ao desempenho obtido e suas dificuldades em atividades de produção oral, foi aplicado um questionário diagnóstico como autoavaliação dos estudantes, que por sua vez se consideram deficientes em tal habilidade. Com base nas avaliações apresentadas, percebi a necessidade de buscar estratégias e oferecer diferentes atividades em LE para que os mesmos pudessem alcançar um melhor desempenho na habilidade que consideram deficientes. Tais estratégias consistem em elaborar materiais didáticos com atividades que envolvam a comunicação, por meio do uso de sequências didáticas para que, assim, possibilite uma melhor relação com os textos de produção oral, ou seja, que permita que o aluno a agir de maneira mais eficaz nas mais diversas situações comunicativas. A proposta da presente pesquisa consiste em elaborar um material didático específico para o desenvolvimento da habilidade de produção oral baseando-se na teoria de sequências didáticas, segundo Dolz & Schneuwly (2004). O estudo tem como principais objetivos analisar e observar o desempenho dos alunos no decorrer da pesquisa, ou seja, antes e depois da utilização das sequências didáticas assim como refletir sobre o papel do professor de LE no que diz respeito à busca de estratégias de ensino para solução de problemas específicos em sua sala de aula e à importância do processo de reflexão de sua própria prática docente. Seguindo os conceitos de linguagem e de construção do significado (Bakthin, 1997); a elaboração de sequências didáticas (Dolz & Schneuwly, 2004); e o ensino da oralidade em LE (Brown, 1994; Nunan,1999) serão elaboradas atividades de forma a ajudar os alunos a dominar melhor a habilidade de produção oral e assim adquirir melhor autonomia nas situações de comunicação em LE. A presente pesquisa também contribui para uma reflexão sobre o papel do professor de LE, que busca novas práticas de ensino a fim de obter melhores resultados em sala de aula.

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Definição do projeto Tema Criação de atividades / materiais didáticos para o desenvolvimento da habilidade de produção oral em aula de inglês como LE. Perguntas de investigação Os alunos pesquisados, que se encontram no nível intermediário do curso de inglês supracitado, sentem-se inseguros nas situações comunicativas em que é exigido um bom desenvolvimento em produção oral. Tal insegurança, muitas vezes, prejudica o andamento das atividades orais propostas durante as aulas e, assim, seus objetivos não são cumpridos. Diante de tal situação: Como a busca de novas estratégias de ensino pode ajudar os alunos a obter um melhor desempenho em uma habilidade específica, em especial as sequências didáticas? Como a utilização de sequências didáticas pode contribuir para o desenvolvimento da habilidade de produção oral assim como proporcionar aos alunos uma maior confiança nas situações comunicativas? Qual a importância de buscar novas práticas de ensino por parte do professor de LE? Hipóteses A partir da reflexão por parte do professor, práticas pedagógicas podem ser repensadas/mudadas para a obtenção de melhores resultados em sala de aula. Diante das perguntas de investigação citadas, acredito que um trabalho com sequências didáticas como estratégia de ensino para desenvolver a habilidade oral poderá contribuir para um melhor desempenho dos alunos, pois trata-se de atividades elaboradas sistematicamente, ou seja, em etapas, pois assim facilitam a apropriação de um gênero, para que os alunos possam adquirir capacidades de linguagem e, então, agir de maneira eficaz nas situações de comunicação. Para um bom rendimento, a escolha de temas e assuntos de interesse dos alunos favorecerá as atividades orais, uma vez que vão ao encontro do que eles gostam, têm conhecimento sobre ou lidam em seu cotidiano. Espera-se que a elaboração

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de um material didático complementar que contenham atividades baseadas em sequências didáticas, atendendo às necessidades dos alunos, contribua no processo de aprendizagem. Para alcançar bons resultados, torna-se necessário o professor sempre observar e refletir a respeito de sua prática de ensino, buscando sempre novas técnicas e estratégias que atendam às necessidades de sua classe. Objetivos Gerais Observar e analisar o desempenho na habilidade de produção oral antes e depois das sequências didáticas propostas; Refletir sobre o papel do professor de LE, no que diz respeito à busca de novas práticas de ensino para um melhor desenvolvimento da produção oral dos seus alunos. Específicos Elaborar material didático utilizando sequências didáticas para o desenvolvimento da produção oral; Aplicar novas atividades, visando o aperfeiçoamento da habilidade de produção oral dos alunos pesquisados; Observar, descrever e analisar o desempenho dos alunos diante das atividades propostas. Metodologia Aporte teórico Este estudo baseia-se, primeiramente, nos conceitos de uso da linguagem e a construção de significados através da interação conforme Bakhtin (1997). Oautor aborda o uso da linguagem como um processo dialógico, ou seja, uma forma de interação. A construção dos significados se dá por meio de um processo de comunicação interativa entre sujeitos semelhantes. Afinal, para Bakhtin (1997), o sujeito é um ser social que constrói o texto (oral e escrito).

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Diante das definições supracitadas, a presente pesquisa procura estudar as concepções de ensino da oralidade em aulas de LE em atividades interativas de produção oral, que segundo Nunan (1999) buscam desenvolver a competência comunicativa do aprendiz. Tal competência tem como característica o uso da língua apropriadamente nas diferentes situações de comunicação. A fim de trabalhar os gêneros orais em sala de aula de LE, as atividades de comunicação propostas aos alunos serão embasadas em sequências didáticas segundo Dolz & Schneuwly (2004). As sequências didáticas, por sua vez, são um conjunto de atividades organizadas sistematicamente em torno de um gênero específico, permitindo, assim, que o aluno domine melhor tal gênero em uma dada situação comunicativa. Procedimentos O presente estudo será realizado em uma turma de Inglês como LE, atualmente com dez alunos, e que se encontra no nível intermediário. Eu, a professora-pesquisadora, leciono nesta classe desde o primeiro semestre de 2010. Primeiramente, foi aplicado um questionário diagnóstico a fim de se obter uma autoavaliação dos próprios alunos, que por sua vez, se consideram deficientes na habilidade de produção oral. Após os dados obtidos através do questionário de pesquisa e das perguntas de investigação, buscou-se fazer um levantamento bibliográfico acerca do aporte teórico que fundamenta esta pesquisa. A seguir, serão criados e aplicados os materiais através de sequências didáticas e em torno de um gênero oral específico a fim de se obter um melhor desempenho dos alunos na habilidade de produção oral. Após a execução de cada atividade, um diário de aprendizagem será proposto aos alunos, que também servirá de instrumento de coleta de dados. Nesses diários, eu e os alunos registraremos nossas impressões e reflexões e avaliaremos o nosso desempenho diante do trabalho proposto. Esta pesquisa constitui-se, especificamente, um estudo de caso e adota uma análise qualitativa dos dados, pois se pretende analisar e interpretar questões específicas da pesquisa.

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Conclusão Ao observar o desempenho de seus alunos nas diversas atividades propostas, o professor, em certas ocasiões, procura diferentes estratégias e recursos a fim cumprir objetivos estabelecidos e melhorar sua prática de ensino. A participação do aluno em procedimentos de autoavaliação e reflexão em relação ao aprendizado também podem levar a resultados mais eficazes em que professor e alunos, juntos, contribuem para um maior sucesso no processo de ensino-aprendizagem. Diante disso, o presente estudo é resultado de uma parceria em que eu como professora pesquisadora e meus alunos temos buscado um melhor desempenho e aperfeiçoamento nas atividades que exigem desenvolvimento da habilidade de produção oral. Espero que os estudos realizados no decorrer da pesquisa, as atividades elaboradas e as reflexões registradas nos diários de aprendizagem possam contribuir de forma positiva, resultando em observações, reflexões e melhorias em minha prática de ensino assim como um melhor desempenho da habilidade de produção oral dos alunos pesquisados.

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REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M.M. “Os gêneros do discurso”. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BROWN, H. Douglas. “Teaching Oral Communication Skills”. Teaching by principles: An interactive approach to language pedagogy. Longman, 1994. DOLZ, J; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. “Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B. & DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. Roxane Rojo e Gláis Sales Cordeiro. Campinas: Mercado das Letras, 2004. LIGHTBOWN, P.M & SPADA, N. How languages are learned (Oxford handbooks for language teachers). 3 ed. Oxford University Press, 2006, p. 59-60. NUNAN, David. “Speaking”. Second teaching & learning. Heinle & Heinle Publishers, 1999.

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O DESAFIO DO NIVELAMENTO DE TURMAS DE ENSINO FUNDAMENTAL NO ENSINO DE LÍNGUA INGLESA. REALIDADE OU UTOPIA?

Marcelo Amaro Pessanha Quadros

Introdução

Q

uando falamos em ensino de língua inglesa, logo nos vem em mente a metodologia adotada pelos cursos livres de idiomas que se foca nas quatro habilidades (ler, ouvir, escrever e falar). Nesses referidos cursos de idiomas existe um caráter comercial, deixando de lado o foco social que o ensino de língua estrangeira tem. Há também um mito de que não se aprende língua estrangeira nas escolas de ensino regular. Moita Lopes (1996) nos relata que a qualidade de ensino de LE, deixa sempre a desejar, principalmente por não ser pensado a partir de uma proposta pedagógica como prática social no Brasil. Esta proposta de pesquisa surgiu, portanto, a partir do início da minha experiência docente na instituição de ensino à qual estarei realizando no ano letivo de 2011 a minha pesquisa. Logo no primeiro dia de aula, de posse dos conhecimentos teóricos adquiridos em nossa graduação, voltado para a leitura instrumental, fiquei chocado, pois me deparei com turmas do ensino fundamental II, às quais, seriam divididas em dois grupos por uma espécie de nivelamento. Segundo a coordenação da instituição de ensino, as turmas seriam divididas em dois grupos distintos, em que os conteúdos e as avaliações seriam os mesmos, só que as aulas seriam ministradas somente em língua inglesa para o primeiro grupo, que fora definido como avançado, explorando, dessa maneira, a oralidade e fluência durante as aulas. Ao segundo grupo foi dada a nomenclatura de intermediário, cujas aulas seriam ministradas intercalando o português e o inglês. Dessa forma, foi realizado o nivelamento, onde foi aplicado um teste de sondagem e, especificamente no nono ano, uma prova pautada no conteúdo do oi-

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tavo ano só que nos moldes do exame K.E.T. (Key English text) de Cambridge. Após esse teste, eu e a outra professora, corrigimos os mesmos, onde, por nota dividimos as turmas. Os alunos que fizeram acima de 35/55 acertos sem contar a redação em inglês, foram pré-selecionados para a turma avançada e os demais ficaram na turma intermediária. Em uma segunda etapa, esses candidatos pré-selecionados para a turma avançada, passaram por um teste oral e dessa forma, podemos nos certificar de que esse aluno não teria problemas em ter uma aula ministrada somente em língua inglesa e grupo intermediário, teria o mesmo conteúdo e prova e nas aulas ministradas, haveria o apoio do português No primeiro mês de aula, houve um choque entre tudo aprendido anteriormente na graduação com a nova realidade de ensino em uma escola privada de classe média alta, gerando questionamentos e motivações que me levaram até esta pesquisa. Destacamos na mesma o teórico Almeida Filho (2010), que entende que aprender uma nova língua na escola é uma experiência educacional que se realiza para e pelo aprendiz / aluno como reflexo de valores específicos de cada grupo social. Almeida Filho nos aporta em relação aos níveis de ensino e a metodologia de ensino e aprendizagem de uma língua estrangeira no contexto escolar. Também buscamos em Moita Lopes (1996) o aporte no que diz respeito à função de aprendizagem de línguas estrangeiras na escola pública, apear de o autor focar no contexto da escola pública, considero suas colocações pertinentes para este estudo. Este projeto tem como finalidade desenvolver uma pesquisa-ação, apresentando o contexto da pesquisa e um estudo de caso sobre o ensino de língua inglesa através de nivelamento nas referidas turmas. Desse modo, estudaremos as formas e teorias que nos dê aporte quanto ao processo de nivelamento, que ainda é desconhecido nesse âmbito escolar. Sua relevância se dá no campo de linguística aplicada, em que será descrito se o que acontece na prática atende ou não ao prescrito nos PCN, OCEM e demais documentos, em que se levará em conta discussões e problematizações nas turmas de nono do ensino fundamental. Abordaremos a crítica bibliográfica referente ao ensino/aprendizagem de LE nas escolas, problematizando, se é possível ou não aprender LE nas escolas e problematizar as possíveis mudanças dentro desse cenário. O objetivo é que esta pesquisa possa contribuir num primeiro momento, para um melhor entendimento e aplicação acerca do processo de ensino de LE através de nivelamento. Além disso, esperamos que auxilie no aprimoramento da minha prática docente.

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Definição do projeto Tema O nivelamento de turmas de ensino fundamental no ensino de Língua Inglesa. Realidade ou utopia? Reflexões teórico-práticas para o ensino de inglês em turmas niveladas do nono ano do ensino fundamental, segundo os aportes teóricos de Moita Lopes (1996), Almeida Filho (2010) e Vera Paiva (1998). Problemas/perguntas de investigação Levando em conta o fato de ter turmas niveladas, com interesses e conhecimentos diferenciados, como isso facilitaria ou não o meu planejamento de aulas e trabalho como professor? Que saberes são necessários da parte docente e como se preparar para atuar nessas realidades diferentes? Hipótese Acreditamos que a aplicação de nivelamento nesta escola possa contribuir para uma melhora no tratamento da aprendizagem do aluno, de suas destrezas comunicativas. A identificação sobre quais saberes são necessários para que o mesmo possa atuar com realidades diferentes e, dessa forma, diagnosticar se o que acontece na prática atende ou não ao prescrito, onde, a escola pode trabalhar a partir da abordagem comunicativa para o ensino de inglês, mas não descartando as orientações prescritas nos documentos brasileiros que norteiam o ensino de LE. Outra hipótese é que o aluno pode realmente verificar que o nivelamento contribui para uma melhora no desempenho das habilidades lingüísticas, ou não, e, nesse caso, para ele esse nivelamento é uma peça de marketing e não melhora nada, pois ele permaneceu com o mesmo conhecimento adquirido no início. Objetivos O objetivo é relatar como os alunos entendem o nivelamento e como o professor se prepara para isso. Não é comparar conhecimento de alunos de zonas

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diferentes e sim estudar novas práticas e abordagens de ensino da língua inglesa em turmas niveladas (foco no professor). Estudar reflexões para o ensino de inglês em turmas niveladas no segundo seguimento do ensino fundamental. Metodologia Aporte teórico Estudo embasado nas concepções teóricas de Almeida Filho (2010) como forma de justificar/mostrar o tipo de pesquisa (pesquisa-ação). Ainda pautado no mesmo teórico, deve ser pensado o ensino/aprendizagem de LE e como é a aula comunicativa de língua estrangeira. Pautado em Moita Lopes (1996), abordaremos a função da aprendizagem de línguas estrangeiras na escola, que nos traz a reflexão do que seja ensinar LE nas escolas públicas. Quais as prescrições / normas que podem seguir os PCN. Para completar essas considerações, serão importantes as colocações de Paiva (1998), sobre as reflexões e experiência no ensino de Língua Inglesa que trarão novos norteamentos e embasamento à pesquisa. Procedimentos Esta pesquisa será aplicada em uma escola privada da Zona Sul do Rio de janeiro. Os sujeitos envolvidos serão os professores de língua inglesa de uma turma de nono ano do ensino fundamental que são separados através de um nivelamento por níveis de conhecimento e oralidade. Tal estudo adota uma abordagem qualitativa de dados, pois se trata de um estudo com foco docente. Para isso, pretende-se observar, ao longo de um bimestre como se dão as aulas de língua inglesa nesse espaço escolar e como o professor interage com os alunos separados em turmas de inglês e nivelados. Instrumentos Observação das aulas para futura transcrição. Relato da minha prática como professor na escola (selecionando um bimestre). 809

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Aplicação de questionários. Análise dos dados. Conclusão Esta pesquisa tem por finalidade avaliar e aprimorar a minha prática docente, relatando como os alunos entendem o nivelamento e como o professor pode se preparar para isso. Um dos resultados que galgo é poder através da minha pesquisa contribuir para um novo olhar quanto ao ensino através de turmas niveladas, que não consiste somente em comparar conhecimento de alunos de zonas diferentes e sim estudar novas práticas e abordagens de ensino da língua inglesa em turmas niveladas. (foco no professor) dentro do seguimento do ensino fundamental.

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REFERÊNCIAS

MOITA LOPES, Luiz Paulo. Oficina de Lingüística Aplicada.a natureza social e educacional dos processos de ensino/aprendizagem de línguas. 4ª. reimp Campinas: Mercado de Letras,2002,p.17-25. ALMEIDA Filho, J.C.P., Dimensões comunicativas no ensino de línguas. 6. ed. Pontes, 2010. BRASIL, ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA O ENSINO MEDIO. Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2006. BRASIL, PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS – terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental – Língua Estrangeira. Ministério da Educação e do Desporto – Secretaria de Educação Fundamental,Brasília: 1998. PAIVA, V.L.M.O. A LDB e a legislação sobre ensino e a formação de professores de língua inglesa. In: STEVES, C.M.T. E CUNHA, M.J. Caminhos e Colheitas: ensino e pesquisa na área de inglês no Brasil. Brasília: UnB, 2003, p.53-84. The Common European Framework of Reference for Language (CEFR). Council of Europe.

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AS REPRESENTAÇÕES CULTURAIS E IDENTITÁRIAS DO PROFESSOR BRASILEIRO DE ELE

Rosangela Piveta

Introdução e justificativa

C

ompreender de que maneira o professor de língua estrangeira, em especial o de espanhol como língua estrangeira (ELE), vê a si – na condição de não nativo – e à língua a qual representa é algo que sempre me inquietou em minha prática docente, sendo eu uma professora de espanhol não nativa. Já no inicio de minha atividade docente, primeiramente num curso de idiomas e, posteriormente, na educação básica regular, quando me vi representante de um idioma que não é o meu, mas que legitimamente represento, deparei-me com questões de cunho identitário, que me levaram a pensar nos fatores que influem nas representações culturais de professores que, como eu, se veem envolvidos com o ensino/aprendizagem de uma língua, que não a materna. Por língua entendo um conceito amplo, não dissociado do conceito de cultura e que, na concepção de Bakhtin (1981) é entendida como sendo socialmente situada e apropriada por indivíduos. Sob essa perspectiva, e a partir de minha experiência em sala de aula, comecei a pensar no hibridismo que envolve o nacional/estrangeiro numa aula de língua estrangeira e no leque de possibilidades identitárias que poderão resultar desse trânsito entre culturas (MOITA LOPES, 2010). Tais questões me levaram à outra: em como sou vista por meus alunos e que representações simbólicas são por eles construídas a partir de minha atuação em sala de aula. Conforme Stuart Hall (2011), a globalização tem contribuído para o surgimento de novas identidades e as identidades nacionais são formadas e transformadas no interior de nossas representações. A noção de ‘pertencimento’, historicamente ligada à noção de culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo nacionais, são aspectos de nossas identidades culturais que, na modernidade líquida,

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se veem fragmentados, abalando a ideia mais ou menos cristalizada de uma identidade definida, que dava aos sujeitos uma ancoragem estável no mundo social e cultural. (HALL, 2011). O fato de o professor ter vivenciado experiências no país estrangeiro objeto de suas classes influencia, de alguma maneira, nesses construtos identitários? Em que medida a noção de pertencimento a uma determinada cultura pode influenciar no aprender/ensinar uma língua estrangeira? Tais questionamentos me levaram a pensar uma investigação que traga à reflexão a discussão sobre as práticas identitárias presentes na sala de aula de língua estrangeira. Acredito que, ao trazer à superfície os construtos identitários e culturais de alunos e professores, possa estar contribuindo para uma prática docente mais crítica e reflexiva, em uma sociedade multidisciplinar e heterogênea. Definição do projeto Tema Estudo das representações culturais e identitárias de professores não nativos de ELE da educação básica brasileira, a partir da lógica dos fluxos que permeiam as relações humanas (MOITA LOPES, 2010) e sob o suporte teórico da análise do discurso de linha francesa (BAKHTIN, 2003); (MAINGUENEAU, 1997). Problema De que maneira se constroem as representações culturais e identitárias de professores não nativos de ELE em sua atividade de trabalho, uma vez que se colocam como representantes de uma língua que não é a sua. Em que medida a vivência ou experiência em um país hispânico influi nos construtos imagéticos de alunos e professores de ELE, no que diz respeito à valoração do nacional e do estrangeiro. Hipótese De acordo com os objetivos pedagógicos de cada professor, acredita-se encontrar distintas representações simbólicas, segundo as relações que mantém com as expressões culturais de seu país e com as dos países hispânicos;

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A vivência ou experiência em um país de língua hispânica também pode revelar distintas marcas de identidade entre professores e alunos. Objetivos Geral Investigar como se constroem as representações culturais e identitárias entre alunos e professores de ELE não nativos do ensino médio regular da educação básica brasileira. Específicos Verificar de que maneiras as práticas identitárias se materializam na superfície discursiva; Verificar em que medida a vivência ou experiência em um país de língua hispânica se reflete nos construtos simbólicos de língua e cultura. Metodologia Aporte teórico Na perspectiva da linguística aplicada e sob a ótica dos fluxos e trânsitos de Moita Lopes (2010), pretendo investigar as representações identitárias que permeiam as práticas cotidianas do professor de ELE da educação básica regular, em uma tentativa de melhor compreender os processos interculturais que experimenta em sua prática docente. Como leitura complementar à questão das múltiplas identidades, me guiarei pelos estudos de Stuart Hall (2004), já que a compreensão desse movimento pluricultural põe em cheque a noção de identidade baseada em relações binárias e abre caminhos para a compreensão da noção de múltiplos pertencimentos socioculturais. No tocante à relação das práticas identitárias com o discurso, apropriarme-ei das leituras referentes ao aporte teórico da análise do discurso de linha francesa (BAKHTIN, 2003); (MAINGUENEAU, 1997). Por se tratar de um trabalho que investiga as práticas identitárias de professores brasileiros de ELE, será relevante a leitura dos documentos oficiais que prescrevem e/ou orientam esses profissionais, 814

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tais como os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2000) e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006). Assim sendo, apresento, a seguir, um quadro teórico para o início de minha investigação: IDENTIDADE DISCURSO

Moita Lopes (2010) Hall (2011) Bakhtin (2003) Maingueneau (1997)

Procedimentos Esta pesquisa terá como contexto uma turma do 1º ano do ensino médio regular de uma escola pública estadual da zona oeste do Rio de Janeiro. Serão analisados os discursos dos alunos e do professor de ELE regente. Como se trata de um estudo de cunho etnográfico (MATTOS, 2005), se levará em consideração, para fins do que propõe a investigação, a perspectiva dos próprios participantes – alunos e professor – sobre os significados que eles constroem no contexto da sala de aula, somada à percepção do pesquisador. Para isso, ao longo de três meses de observação, serão utilizados os seguintes instrumentos para coleta e análise de dados: a) notas de campo, b) entrevista semiestruturada com o professor regente da turma e c) protocolo verbal com os alunos. Conclusão A motivação para pesquisar como se constroem as identidades culturais e suas representações simbólicas numa sala de aula de língua estrangeira partiu de minha própria inquietação enquanto professora não nativa. As maneiras como professores e alunos veem-se a si e ao outro e os construtos que resultam dessas relações interculturais é algo que sempre busquei compreender na relação com meus alunos. Quanto à relevância social do projeto, acredito que possa contribuir para a discussão em torno do papel do professor de língua estrangeira nas escolas de educação básica: O que significa estudar uma língua estrangeira na escola? Como se trabalha a dicotomia nacional/estrangeiro na sala de aul? Como compreender a cultura dentro da lógica dos fluxos? A discussão em torno das identidades é ampla e não se esgota em uma pesquisa, mas acrescenta na busca para a melhor compreender as relações humanas. 815

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REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. ______.Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. CORACINI, M. J. (org.) Identidade e discurso: (des)construindo subjetividades. Campinas: Ed. UNICAMP; Chapecó: Argos, 2003. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise de discurso. Campinas: Fontes, 1997. MATTOS, C. L. G. (Org.); FONTOURA, H. A. (Org.). Etnografia e Educação: relatos de pesquisa. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009. MOITA LOPES, L. P. Oficina de linguística aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996. ______.BASTOS, L. (orgs.). Para além da identidade: Fluxos, movimentos e trânsitos. Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG, 2010. MEC/SEB. Orientações curriculares para o ensino médio. Linguagens, códigos e suas tecnologias. Conhecimentos de Línguas Estrangeiras; Conhecimentos de Espanhol. Brasília: MEC, Secretaria de Educação Básica, 2006, p. 85-124; p. 127164. Disponível em: . ______.Parâmetros curriculares nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC, Secretaria de Educação Básica, 2000. Disponível em: . PARAQUETT, M. Por que formar professores de espanhol no Brasil?Hispanista, v. IX, nº XXXV, 2008. Disponível em: . SIGNORINI, I. (org.). Lingua(gem) e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: FAPESP, 1998.

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SILVA, T. T. (org.). A produção social da identidade e da diferença. Em: SILVA, T. T. (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.

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Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares

OS ORGANIZADORES Antonio Ferreira da Silva Júnior

Possui Bacharelado e Licenciatura em Letras (Português-Espanhol) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Especialização em Língua Espanhola Instrumental para Leitura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestrado e Doutorado em Letras Neolatinas pela UFRJ. Desenvolveu estudo de Pós-Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (LAEL/PUCSP), sob supervisão da Profa. Dra. Titular Maria Antonieta Alba Celani. Desde 2007 é Professor de Língua Espanhola do CEFET/RJ, Campus Maracanã. Foi Chefe do Departamento de Línguas Estrangeiras Aplicadas (DELEA) e Coordenador do Bacharelado em Línguas Estrangeiras Aplicadas às Negociações Internacionais (LEANI). Idealizador e Coordenador do Curso de Especialização em Ensino de Línguas Estrangeiras. Docente permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Relações Etnicorraciais. Tem experiência na área de Letras e dos Estudos Culturais, com ênfase nos seguintes temas: Formação de professores de espanhol, Formação de professores de Letras/ Espanhol nos Institutos Federais, Narrativas docentes, Pesquisa Narrativa, Ensino de espanhol para fins específicos, Literatura e ensino de línguas, Espaço urbano e Caos urbano. / Currículo Lattes: http://lattes.cnpq. br/3288529999588353

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Antonio Ferreira da Silva Júnior, Breno Soares Martins e Leandro da Silva Gomes Cristovão

Breno Soares Martins

É discente do Bacharelado em Ciência da Computação e monitor acadêmico da disciplina Projeto de Algoritmos Computacionais no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), onde também cursou o Ensino Médio e o Curso Técnico de Informática. Foi bolsista do Programa de Bolsa de Extensão (PBEXT, ano 2013) e do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica para o Ensino Médio (PIBIC-EM, ano 2012), sob supervisão do prof. Dr. Antonio Ferreira da Silva Júnior. Trabalhou como voluntário na Jornada Mundial da Juventude Rio2013, onde teve a oportunidade de estar em contato com pessoas de todo o mundo, realizando atividades que exigiam comprometimento, disciplina e trabalho em equipe. Também exerceu voluntariado na ONG Sonhar Acordado. Atualmente, é estagiário de Tecnologia da Informação na Chevron. Tem experiência na área de Ciência da Computação, com ênfase em Linguagens de Programação. / Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6474368062065461 Leandro da Silva Gomes Cristovão

Possui graduação em Letras (Português-Espanhol) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2003). É Especialista em Língua Espanhola pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Mestre em Letras Neolatinas pela Universidade 819

Educação, Identidade e ensino de língua(gem) na contemporaneidade: Múltiplos olhares

Federal do Rio de Janeiro, na área de estudos linguísticos. Atualmente é professor do CEFET/RJ e doutorando em Estudos da Linguagem (PUC-Rio). / Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9991873090647402

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