Iniciativa Yasuní-ITT: conflitos e a politização do conceito de Sumak Kawsay no Equador de Rafael Correa

September 18, 2017 | Autor: Carolina Pedroso | Categoria: Ecuador, Rafael Correa, Yasuní-ITT, Analisi Economico Del Gobierno De Rafael Correa
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Capítulo 10. Iniciativa Yasuní-ITT: conflitos e a politização do conceito de Sumak Kawsay no Equador de Rafael Correa1 Carolina Silva Pedroso2

Eleito com forte apoio de movimentos sociais, ambientais e indígenas, o economista Rafael Correa tornou-se presidente do Equador em 2007 com uma plataforma de campanha inovadora para o país. Sua principal promessa era promover uma reforma constitucional com ampla participação popular e, consequentemente, dos movimentos mais articulados da sociedade civil, incluindo os que lhe deram sustentação na campanha eleitoral. O resultado deste esforço conjunto foi a Constituição de Montecristi, conhecida, dentre outras coisas, por ter incorporado o conceito de Sumak Kawsay (Buen Vivir, em espanhol) nas leis do país e por ter transformado a natureza em sujeito de direitos. Mesmo com os avanços jurídicos logrados, Correa enfrentou muitos desafios para implementar integralmente seu plano de governo, sobretudo no que se refere às aspirações ambientais e mudanças de paradigma de desenvolvimento, tendo em vista os diversos interesses privados e públicos que tangenciam essas questões. Por este motivo, ele passou a sofrer fortes críticas de seus antigos apoiadores: movimentos estudantis, ambientais e indígenas. A CONAIE (Confederação das Nacionalidades Indígenas Equatorianas), uma das representações indígenas mais articuladas do país, por exemplo, declarou o presidente como persona non grata depois da polêmica envolvendo a Iniciativa Yasuní-ITT. Essa proposta nasceu no contexto de protestos contra empresas petroleiras nos anos 1990 e consiste em manter as reservas de petróleo encontradas no Parque Nacional Yasuní embaixo da terra. Correa havia incluído essa proposta em seu plano de governo, porém 1

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O presente trabalho é uma versão estendida do artigo “O conceito de Sumak Kawsay e o desenvolvimento equatoriano no governo de Correa: o caso da proposta Yasuní‐ITT”, Ensaios do IEEI, nº 17, abril de 2013. Este capítulo faz parte do livro “Territorialidades e entrecruzamentos geopolíticos na América Latina”, organizado por Luis Fernando Ayerbe e publicado Editora Cultura Acadêmica, em conjunto com a Fundação Memorial da América Latina. A obra completa está disponível para download gratuito em: http://www.culturaacademica.com.br/catalogo-detalhe.asp?ctl_id=439 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP), bolsista da CAPES e pesquisadora vinculada ao IEEI-UNESP.

elaborou também um “plano B” para explorar aquele petróleo de uma forma menos agressiva ao meio ambiente, o que não foi bem aceito pelos grupos indígenas e de ambientalistas, pois representaria um derespeito à soberania territorial e cultural dos povos que residem em regiões de jazidas e acarretaria prejuízos à biodiversidade. Apesar do começo promissor com a aprovação de uma das cartas constitucionais mais avançadas do continente, o governo Correa foi perdendo o apoio destes setores, que hoje fazem parte da oposição à esquerda. Portanto, o estopim dessa ruptura política gira em torno do dilema “desenvolvimento econômico e social versus sustentabilidade” e tem como pano de fundo a Iniciativa Yasuní-ITT, cuja inovação era a não exploração do petróleo existente no parque. Os ânimos se acirraram quando o governo anunciou, em agosto de 2013, que levaria adiante o “plano B”, explorando o petróleo da maneira “menos danosa” ao entorno da reserva, gerando forte comoção na opinião pública nacional e internacional. O objetivo deste estudo é apresentar a Iniciativa Yasuní-ITT, que é fruto de lutas populares e foi incorporada à agenda da Aliança Pais, bem como o seu “plano B” elaborado pelo governo. Neste contexto, a politização do conceito de Sumak Kawsay e a busca por um novo paradigma de desenvolvimento econômico permitirão entender as posições dos diversos grupos de interesse e do próprio presidente em relação às questões ambientais na atualidade. Consideramos que o processo de politização do Sumak Kawsay é um elemento essencial para identificar a racionalidade dos atores envolvidos na dinâmica social e política do Equador, sobretudo a partir da análise do caso da Iniciativa Yasuní-ITT. Destarte, o trabalho está dividido em quatro partes: a primeira é um breve panorama histórico e conjuntural; a segunda é uma explicação do significado da incorporação do conceito de Sumak Kawsay à Constituição equatoriana de 2008; a terceira seção é dedicada à apresentação e aos desdobramentos da Iniciativa Yasuní-ITT e, por fim, estão as considerações finais sobre os conflitos evidenciados por esta iniciativa na sociedade equatoriana.

Antecedentes da Iniciativa Yasuní-ITT: a proposta da moratória petroleira

“Nos últimos anos, o surgimento de lutas, reivindicações e propostas de diversos movimentos sociais frente ao neoliberalismo, a fase mais desenvolvida e implacável de acumulação do sistema capitalista, mostrou a necessidade de construir novos paradigmas que nos permitam impulsionar profundos processos de mudança para a construção de sociedades mais justas, igualitárias, capazes de gerar alternativas a partir de sua própria diversidade e na democracia.”- Ana María Larrea, 2010 (tradução nossa). A economia equatoriana, embora diversificada, é majoritariamente sustentada pela exploração de petróleo e de outros recursos naturais3, motivo pelo qual desde a década de 1960 o país recebeu empresas estrangeiras que dominaram este setor. Após os dois choques do petróleo da década de 1970, os países exportadores do produto foram inundados por capital internacional e obtiveram facilidade de crédito. O Equador viu sua dívida crescer 22 vezes e, segundo Lia Bressan, “[...] a situação de vulnerabilidade na qual os dirigentes equatorianos colocaram o país deixou o mesmo a mercê dos grandes bancos internacionais na década de 1980, quando esses resolveram cobrar a dívida adquirida na década anterior.” (BRESSAN, 2012, p. 46). A partir de então, a fim de sanar suas dívidas, o país aceitou uma série de condicionamentos para receber ajuda financeira do Fundo Monetário Internacional. Estava iniciada, pois, a década perdida e o ciclo conhecido por neoliberal. Já nos anos 1990, o Equador viveu um período de mobilização social ocasionado pelo inconformismo com os resultados sociais e ambientais das políticas consideradas neoliberais. Ademais da intensa presença de capital estrangeiro investido em atividades extrativas, foi nesta década que desastres ecológicos, decorrentes de tais atividades, afetaram a riqueza natural do país e a soberania de povos indígenas, sobretudo na região amazônica. O caso mais emblemático é o da Chevron-Texaco, cujas operações transcorreram entre 1964 e 1990 e resultaram, por um lado, na exploração de quase 1,5 milhão de barris e, por outro, foram responsáveis pela contaminação de rios, pela morte de animais e pelo aumento de casos de câncer na população local. Além dos danos ambientais, 3

As principais atividades econômicas do Equador, segundo dados do Banco Central disponíveis em seu endereço eletrônico (http://www.bce.fin.ec/), são a exploração de petróleo e exportação de produtos primários (banana, camarão, flores, etc.), além das remessas dos imigrantes. Uma obra de referência sobre a evolução histórica da economia equatoriana é “Breve História Econômica do Equador” de Alberto Acosta, publicado pela Editora FUNAG (2005).

No âmbito psicossocial, as denúncias são múltiplas: violência sexual por parte dos operadores da empresa contra mulheres adultas e menores de idade, mestiças e indígenas; abortos espontâneos; discriminação e racismo; deslocamentos forçados; nocivo impacto cultural e ruptura da coesão social. E mais, sobre Texaco pesa também a extinção de povos originários como os tetetes e os sansahuaris. (ACOSTA, 2010b, p. 20, tradução nossa).

Mediante todas as atrocidades cometidas por essas empresas, indígenas, ambientalistas e militantes dos mais diversos movimentos sociais encabeçaram uma luta pela saída de tais companhias do Equador. Crescia a percepção de que os ganhos obtidos com a exploração dos recursos naturais não eram distribuídos às regiões responsáveis pela produção. A Amazônia equatoriana, se comparada às demais regiões do país4, possui um déficit significativo no que se refere à infraestrutura, qualidade de vida e índices de educação e probreza, além de ter problemas estruturais na área de saúde (BUSTAMANTE; JARRÍN, 2005, p. 20-22). Surgia na sociedade um questionamento acerca do modelo de desenvolvimento adotado pelo país, baseado nas atividades extrativas dos recursos naturais, seja pelo aumento da desiguldade social, seja pelos desastres ecológicos que prejudicavam a população local e a biodiversidade. Nota-se que foi construído um relativo consenso social acerca da necessidade de expulsão dessas empresas, como parte de um plano maior de adoção de um novo padrão de desenvolvimento (ACOSTA, 2011). Neste contexto surge a demanda pela moratória petroleira, ou seja, um compromisso internacional de que o país não exploraria seu petróleo amazônico, buscando conservar tal região em troca do perdão de parte de sua dívida externa. A proposta final da moratória petroleira foi oficializada no livro “El Ecuador Post-Petrolero” (Acción Ecológica), publicado no ano 2000. No ano seguinte, Acosta relata que: […] resgatando a questão da dívida ecológica, a partir dos grupos que discutiam o tema da dívida externa se levantou a possibilidade de um acordo histórico com os credores internacionais para suspender o serviço do endividamento externo em troca da conservação da Amazônia. (ACOSTA, 2010b, p. 20, tradução nossa). 4

Embora territorialmente pequeno, o Equador é dividido em quatro regiões bem distintas e diversificadas entre si: a Amazonía, a Sierra (Andes), a Costa (litoral) e o arquipélago de Galápagos.

A grande novidade – e também fragilidade – da moratória petroleira é que ela condiciona sua efetivação e concretização ao apoio e sensibilidade internacionais pela causa ambiental. Para reforçar esse argumento, os movimentos utilizavam como base um relatório do Banco Mundial que listou as condições necessárias para que um país se desenvolvesse somente com a exploração do petróleo, condições estas inexistentes no Equador (ACOSTA, 2010a). Para entendermos as motivações indígenas na defesa da moratória petroleira é preciso ter em mente a importância da entidade mitológica Pachamama. De acordo com Jorge Lira (1944), a etimologia desse termo advém tanto do ayamará como do quichua, em que Pacha significaria Espaço, Tempo, Terra ou Universo e Mama mãe; portanto, uma tradução literal sugeriria a ideia de Mãe-Terra (Madre-Tierra, em espanhol). Representada pela figura de uma mulher baixa com pés grandes e usando um chapéu, a divindade de origem Inca não seria uma deusa criadora, mas sim provedora, responsável pelas colheitas e gado. Assim, suas funções estão relacionadas à Natureza, sobre a qual exerce o poder da vida e da fertilidade e, em troca, exigiria sacrifícios e oferendas. Apesar de ser cultuada durante o ano todo, o mês de agosto é dedicado a uma série de comemorações, oferendas e rituais que visam agradá-la, pois acredita-se que o desrespeito para com ela gera castigos à toda a humanidade, como os grandes desastres naturais (LESSA, 2007). Seguindo esse raciocínio, os indígenas entendem que o petróleo é o sangue da terra e, como tal, não deve ser retirado sem a permissão da Pachamama. Caso isso ocorra, a natureza sangraria e o castigo de sua divindade seriam fenômenos climáticos incontroláveis. Portanto, a explicação das nacionalidades indígenas que acreditam nessa entidade para o aquecimento global tem relação com a exploração do petróleo. A interpretação desta crença ancestral leva a uma a conclusão semelhante à corrente científica que atribui o aquecimento global à ação antrópica, como a queima de combustíveis fósseis e, dentre eles, o petróleo. O Movimento Pais, fundado pelos economistas e intelectuais Alberto Acosta e Rafael Correa em 2005, juntamente com outros grupos sociais, incorporou a demanda pela

moratória petroleira em seu plano de governo para as eleições presidenciais de 2006, conforme documento oficial do partido: Neste empenho por repensar a política petroleira, aparece com crescente força, a necessidade de analisar com seriedade a possibilidade de uma moratória da atividade petroleira no sul da Amazônia equatoriana, atada a uma suspenção do serviço da dívida externa. Seria imperdoável que se reedite a destruição ambiental e social experimentada no norte da Amazônia. Ademais, é preciso manejar o petróleo existente como uma reserva energética para o futuro, que seria extraída, sempre que existissem suficientes garantias para não colocar em risco a principal riqueza da Amazônia: sua biodiversidade. (MOVIMIENTO PAIS, 2006, p. 41, tradução e grifos nossos).

O êxito eleitoral do novo partido, além de incorporar a idéia de moratória petroleira, também ocorreu graças à proposta de reforma constitucional, que era defendida pela Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) desde 1994. Para o cientista político André Luiz Coelho (2006), esse ponto foi essencial para a primeira vitória eleitoral de Rafael Correa. Na próxima seção, serão discutidas as inovações constitucionais firmadas em Montecristi, em 2008.

O Sumak Kawsay na Constituição de Montecristi “Toda Constituição sintetiza um momento histórico. Em toda Constituição se cristalizam processos sociais acumulados. E em toda Constituição se plasma uma determinada forma de entender a vida. Uma Constituição, todavia, não cria uma sociedade. É a sociedade que elabora a Constituição e a adota quase como uma rota de fuga.” - Alberto Acosta, 2010a, tradução nossa.

Reconhecida por ser uma das constituições mais avançadas em termos sociais, indígenas e ambientais, a Constituição de Montecristi (2008), de maneira inédita, instituiu os direitos da Natureza5 como um dever a ser perseguido pelo Estado, visando oferecer aos

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Do ponto de vista legal, a idéia de direitos está vinculada a deveres: a natureza cumpre com suas obrigações ao prover as condições necessárias para a manutenção da vida. Para que possa exercer seus direitos, todavia, precisa recorrer ao recurso da tutela, de forma similar às crianças e outros sujeitos que não têm autonomia de ação no âmbito jurídico e são representados por instituições, advogados ou qualquer outro cidadão ou coletivo de pessoas dedicados à sua proteção (BREDA, 2010).

seus cidadãos melhores condições de vida e transformar o país em uma potência ambiental (ECUADOR, 2008). Sob esta perspectiva, a natureza deixa de ser um objeto e se aproxima da cosmovisião ancestral da Pachamama. Na tentativa de enquadrar esses termos na lógica ocidental, pode-se afirmar que a ideia de natureza deve ser tomada em conta por sua essencialidade para a vida na Terra, incluindo a humana. Portanto, seu bom funcionamento é fundamental para a manutenção de nossas vidas, evidenciando que a centralidade dessa proposta é que o meio ambiente, entendido como Vida, tem valor em si mesmo e não por razões econômicas (BREDA, 2010). O sociológio português Boaventura de Sousa Santos acredita que esse processo de incorporação de termos ligados aos povos indígenas em uma carta constitucional, instrumento político proveniente do pensamento burguês ocidental, é uma prova da “ecologia do saber”, que representa uma mistura de saberes. “Direito para a Pachamama é uma mescla maravilhosa entre o pensamento eurocêntrico e o pensamento ancestral. E esta é a riqueza que não podemos desperdiçar.” (SANTOS, 2010, p. 153, tradução nossa). O Sumak Kawsay, traduzido para o castelhano como Buen Vivir, por sua vez, é um conceito advindo da cosmovisão indígena, tanto kichwa como yamará, e está relacionado à ideia de uma „vida boa‟, em que há uma harmonização entre todos os elementos da natureza, colocados em pé de igualdade. No Viver Bem nos desenvolvemos em harmonia com todos e tudo, é uma convivência onde todos nos preocupamos por todos e por tudo o que nos rodeia. O mais importante não é o homem nem o dinheiro, o mais importante é a harmonia com a natureza e a vida. Sendo a base para salvar à humanidade e o planeta dos perigos que afligem uma minoria individualista e sumamente egoísta, o Bom Viver aponta para uma vida simples que reduza nossa dependência ao consumo e mantenha uma produção equilibrada sem arruinar o entorno. (MAMANI, 2010, p. 21, tradução nossa).

Desta forma, o homem não é mais visto como um ser superior, mas sim como um dos elementos que compõem este sistema, formado por todas as formas de vida e baseado na sua dependência mútua. Se levado ao extremo, é um conceito que representa um paradigma alternativo ao Antrocentrismo da civilização euro-ocidental, propondo uma

visão Biocêntrica. A grande contribuição desta proposta é a construção de um modelo sócio-biocêntrico, reconhecendo a igualdade de importância da vida de todos os seres, independentemente de seu valor utilitário para a humanidade. [...] a ideia do Sumak Kawsay ou Suma Qamaña: nasce na periferia social da periferia mundial e não contém os elementos enganosos do desenvolvimento convencional. Já não será questão do “direito ao desenvolvimento” ou do princípio desenvolvimentista como guia da atuação do estado. Agora se trata do Bom Viver das pessoas concretas, em situações concretas, analisadas concretamente e a ideia provém do vocabulário de povos outrora totalmente marginalizados, excluídos da respeitabilidade e cuja língua era considerada inferior, inculta, incapaz do pensamento abstrato, primitiva. Agora seu vocabulário entra em duas Constituições. (TORTOSA, 2009, tradução nossa).

A Constituição equatoriana não foi a primeira a possuir termos oriundos das nacionalidades indígenas, a Bolívia já o tinha feito alguns anos antes, por isso José Maria Tortosa se refere também ao texto constitucional boliviano, em que é dever do Estado promover o Bom Viver (BOLÍVIA, 2009). No entanto, enquanto a Carta boliviana prescreve que é dever do Estado promover este e outros princípios ético-morais da sociedade plurinacional, a equatoriana vincula o Sumak Kawsay com o regime de desenvolvimento, que englobaria os aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Para Ana María Larrea: […] na Constituição do Equador se supera a visão reducionista do desenvolvimento como crescimento econômico e se estabelece uma nova visão, na qual o centro do desenvolvimento é o ser humano e o objetivo final é alcançar o sumak kawsay ou o Bom Viver. Frente à falsa dicotomia entre Estado e mercado, impulsionada pelo pensamento neoliberal, a Constituição equatoriana formula uma relação entre Estado, mercado, sociedade e natureza. O mercado deixa de ser o motor que impulsiona o desenvolvimento e compartilha uma série de interações com o Estado, a sociedade e a natureza. Pela primeira vez na historia da humanidade uma Constituição reconhece os direitos da natureza e esta passa a ser um dos elementos constitutivos do Bom Viver. (LARREA, 2010, p. 20, tradução nossa).

Assim, ademais da obrigação do Estado equatoriano em promover o Sumak Kawsay, existe a necessidade de mudar o modelo de desenvolvimento para que se possa, de fato, colocar em prática tal conceito. O desenvolvimento não deve ser considerado um processo linear ou uma etapa do subdesenvolvimento a ser superada; tampouco a pobreza é vista

como a carência de recursos materiais. Existe, pois, a sobrevalorização de outros elementos como o Bioconhecimento (conhecimento para a vida) e uma relação harmoniosa entre sociedade e Natureza, como se não houvesse separação entre elas (ACOSTA, 2010a; BREDA, 2010). Estas novas concepções pretendem estimular outra visão de mundo, em que a natureza não é unicamente um ente provedor, mas sim um elemento com o qual devemos viver em harmonia, respeitando seus ciclos vitais e não como um objeto de comercialização. Segundo esta lógica, não se pode pensar em valores monetários para a vida nem para a relação humanidade-mundo e, embora a exploração dos recursos naturais seja importante para a vida humana, ela deve respeitar a capacidade de regeneração da natureza, ou seja, seus ciclos vitais. Deste modo, seria possível conciliar o Sumak Kawsay com “[…] as vantagens tecnológicas do mundo moderno ou os possíveis aportes advindos de outras culturas e saberes que questionam distintos pressupostos da Modernidade dominante.” (ACOSTA, 2011, p. 10, tradução nossa). Raúl Prada Alcoreza (2011), analisando os significados das terminologias dos povos andinos, indica que as palavras “desenvolvimento” e “progresso” encontram como tradução mais próxima a expressão Sumak Kawsay. No entanto, destaca que ambas guardam concepções completamente distintas e até opostas de desenvolvimento. Nesse sentido, o Sumak Kawsay surge não somente como uma alternativa de desenvolvimento, mas também como uma alternativa ao desenvolvimento. A incorporação deste princípio à constituição equatoriana de 2008 trouxe maior visibilidade para as discussões sobre o entendimento e a aplicação dessa outra forma de ver o mundo. Apesar do grande marco que foi a introdução dessas ideias na carta constitucional, o Sumak Kawsay já vinha sendo amplamente discutido e repensado no Equador pelos movimentos sociais, na luta contra o neoliberalismo (SIMBAÑA, 2011). A importância desta discussão era tamanha no contexto dos anos 1990 e 2000 que, segundo o ex-dirigente da CONAIE, Floresmilo Simbanã, a nova classe política que chegou ao poder com Rafael Correa não tinha alternativas se não assumisse esse compromisso e adotasse esse princípio em seus discursos. Todavia, ele afirma que “[…] para estes

governantes,

o

sumak

kawsay

se

reduziria

a

„redistribuir

os

benefícios

do

desenvolvimento‟, não necessariamente mudar de modelo nem destruir as estruturas reais que o sustentam.” (SIMBAÑA, 2011, p. 223, tradução nossa). Para Fander Falconí (2010), o Sumak Kawsay é uma ideia que segue em construção e em disputa e, por ser uma novidade jurídica, permite interpretações diversas acerca do seu conceito e de qual a melhor maneira para alcançá-lo. Por este motivo, existiriam divergências sobre esta concepção em diversos setores, inclusive entre a alta cúpula do governo de Rafael Correa: Alberto Acosta, que presidiu a Assembleia Constituinte e foi responsável pela elaboração da carta de Montecristi e o próprio Fander Falconí, que ocupou o cargo de chanceler, retiraram-se de suas atribuições por discordarem das posições do presidente6. Estes dois expoentes da política equatoriana têm um histórico de lutas ao lado dos movimentos indígenas e ambientalistas, cujos posicionamentos questionam a postura governamental frente ao desafio de cumprir os princípios constitucionais do Sumak Kawsay e garantir os direitos da Mãe-Terra, vis-à-vis a necessidade de empreender políticas desenvolvimentistas, com vistas a dirimir as grandes assimetrias sociais. Para eles, o mesmo governo que engendrou a reforma constitucional passou a descumpri-la, por aprovar uma legislação mais branda em relação à atividade de mineração. Dentre os motivos que explicam o afastamento de Acosta, Falconí e outros representantes de movimentos sociais, indígenas e ambientais do governo de Correa, é preciso entender sua postura diante da luta pela Iniciativa Yasuní-ITT, apresentada a seguir.

Yasuní-ITT: uma iniciativa para mudar a história. A proposta e seus desdobramentos “O Projeto Yasuní-ITT tem um valor nacional, que é também um valor regional e um valor mundial. É bom para todos os equatorianos; porque nada do que é bom para os indígenas pode ser bom simplesmente

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Acosta rompeu com Correa em 2008, já ao final do processo constituinte, do qual foi presidente. Falconí, por sua vez, foi chanceler até 2010, quando renunciou. Meses depois, retornou ao governo à frente da Secretaria Nacional de Planejamento e Desenvolvimento (SENPLADES) até agosto de 2013, quando novamente anunciou sua saída.

para os indígenas; é bom para os indígenas porque é bom para o país.”Boaventura de Sousa Santos, 2010, tradução nossa. Yasuní é o nome de um parque nacional onde estão três poços de petróleo que compreendem a sigla ITT: Ishpingo, Tambococha e Tiputini e está localizado na Amazônia equatoriana, na fronteira com o Peru (ver figura 1).

Figura 1 – Mapa do Parque Nacional Yasuní e dos poços ITT

Fonte: Ecologistas en acción (2011). O Parque Nacional Yasuní é uma área de proteção ambiental, em que o metro quadrado apresenta mais biodiversidade que todo o continente norte-americano (ver Anexo I). A título de ilustração, […] foram documentadas 150 espécies de anfíbios: mais que as existentes entre Estados Unidos e Canadá juntos. Um hectare do Yasuní contém, em média, mais espécies de árvores, 655, que em todas as existentes ao norte da fronteira do México com Estados Unidos. São estimadas 1.100 espécies de árvores em una área de 25 hectares. (ECOLOGISTAS EN ACCIÓN, 2011, p. 5, tradução nossa).

Nesta área também vivem os Tagaeri e os Taromenane – considerados Patrimonio Sociocultural da UNESCO desde 2005 pela conservação da biodiversidade amazônica –,

cujos direitos ao isolamento voluntário foram garantidos em 1999 com a criação de zonas intangíveis. Estas, embora motivo de controvérsias por terem sido traçadas sem nenhum tipo de consulta a esses povos, ao mesmo tempo em que respeitaram a presença dos poços de petróleo existentes, são uma garantia legal de que o Estado não deve permitir a extração de recursos minerais nestas áreas (ACOSTA, 2010b; LEQUANG, 2011). Afora a riqueza cultural e natural, os poços ITT possuem uma quantidade de petróleo que corresponde a, mais ou menos, 920 milhões de barris, aproximadamente 20% do total das reservas existentes do país. Se fosse explorado geraria uma renda de 7 bilhões de dólares, um montante nada desprezível diante da situação de extrema desigualdade social do país. Por outro lado, o óleo encontrado no bloco ITT é pesado e viscoso, cuja exploração liberaria no meio ambiente uma quantidade de resíduos altamente poluentes (ECOLOGISTAS EN ACCIÓN, 2011). A Iniciativa Yasuní-ITT consiste em deixar embaixo da terra o petróleo dos três poços, preservando as comunidades indígenas e a biodiversidade da região. De acordo com Acosta: Seus objetivos são precisos. Se busca proteger a vida dos povos livres em isolamento voluntário: os tagaeri, os taromenane e em certa medida também os oñamenane. A proteção de uma das zonas com maior biodiversidade do planeta está em sua mira. Igualmente se evitaria a emissão de 410 milhões de toneladas de CO2. (ACOSTA, 2010b, p. 21, tradução nossa).

Em contrapartida, o Equador receberia doações financeiras equivalentes à metade dos ganhos se tal reserva fosse explorada, isto é, 3,6 bilhões de dólares, até 20237. O prazo foi estabelecido em conjunto com o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), com quem o país devia gerir um fundo. A importância da parceria com o PNUD na gestão dos recursos financeiros é a garantia que os investidores terão de que os fundos serão utilizados para cumprir os compromissos de: i) buscar fontes alternativas de energia para reduzir o uso de combustíveis fósseis; ii) evitar desflorestamento para conservar a Amazônia; iii) promover o desenvolvimento social para a população amazônica 7

Com a atualização dos valores, as perspectivas iniciais de 7 bilhões de dólares foram atualizadas para 18 bilhões de dólares, porém não alteraram o montante calculado inicialmente como contrapartida pela não exploração, ou seja, o país continuaria pedindo o equivalente a 3,6 bilhões de dólares (ECUADOR, 2013).

e, finalmente, iv) investir em tecnologias que permitam a transição para um modelo econômico baseado no Sumak Kawsay (LEQUANG, 2011). A Iniciativa, além da clara influência das reivindicações sociais pela moratória petroleira e por um novo modelo de desenvolvimento, tem respaldo na noção de que existiriam devedores e credores ecológicos no sistema internacional: Com a Iniciativa Yasuní-ITT, o governo equatoriano incorpora um sentido de solidariedade às relações internacionais a partir de um enfoque histórico que faz alusão à dívida ecológica, reconhecendo a responsabilidade dos países ricos do Norte, cuja industrialização e riqueza foi possível a partir da exploração e a importação dos recursos naturais dos países do Sul, que não puderam aproveitá-los. (LEQUANG, 2011: 46, tradução nossa).

A idéia é que os problemas ambientais devem ser pensados a partir do princípio de corresponsabilidade mundial em relação aos bens comuns a toda a humanidade, como a atmosfera, o clima, a biodiversidade, a água, etc. A proposta do Equador ao mundo é que a biodiversidade do Parque Nacional Yasuní e seu petróleo sejam vistos como bens comuns, que requerem uma gestão coletiva por conta de sua importância para a humanidade. Portanto, deixar de explorar os poços ITT acarretaria benefícios reais não só ao Equador, mas a toda humanidade, consolidando a busca por um novo modelo de desenvolvimento. Assim mesmo, com esta iniciativa espera-se mudanças profundas no relacionamento de todos os povos do mundo com a Natureza, ao propiciar a construção de uma nova institucionalidade jurídica global sustentada no princípio da corresponsabilidade diferenciada: os países mais desenvolvidos, mormente responsáveis pela deterioração ambiental, estão condenados a contribuir muito mais na solução dos problemas ambientais globais. A lógica da cooperação internacional também deveria ser repensada integralmente a partir destas novas perspectivas. Enfim, com esta Iniciativa se abre a porta para outra forma de organização da vida do ser humano no mundo e não somente no Equador. (ACOSTA, 2010b, p. 21, tradução nossa).

A despeito da enorme importância política, econômica e simbólica da proposta, seriam necessárias mudanças estruturais empreendidas tanto pelo governo, quanto pela sociedade civil, a fim de alcançar um modelo de desenvolvimento “pós-petroleiro”. Quanto aos desafios externos, Rafael Correa sempre considerou que o êxito da Iniciativa dependia da adesão financeira por parte dos países mais desenvolvidos. No entanto, se aqueles países

cujas condições são similares às do Equador – concentração de biodiversidade, reservas significativas de hidrocarbonetos e necessidade de garantir a inclusão social e promover a defesa do meio ambiente de forma concomitante – adotassem mecanismos semelhantes à Iniciativa Yasuní-ITT, isso já representaria um grande passo na estratégia de obter respaldo internacional para uma mudança profunda de paradigmas (LEQUANG, 2011). Em 2008, o presidente Correa viajou à Europa para vender a proposta e conseguiu entusiasmar Alemanha e Bélgica, que haviam se comprometido a doar parcelas anuais ao projeto. Chegou-se, inclusive, a ser estabelecido um convênio bilateral com o governo alemão, porém com o agravamento da crise na zona do euro a partir de 2010 fez com que os aportes prometidos não fossem efetivados. Adicionalmente, alguns países europeus queriam impor condições extras ao país, em troca das doações. Na ocasião, Correa demonstrou seu descontentamento publicamente, chegando a declarar que em seu programa diário de rádio: Querem saber, senhores? Vão mandar em sua casa, peguem as suas doações em “centavinhos” e coloquem-nas nas orelhas, porque nós não vamos receber ordens de ninguém, porque esse dinheiro é do povo equatoriano. Eu dei a ordem de que não se assine esse acordo em condições vergonhosas. Há gente que não entendeu a mudança de época e que aqui já existe soberania e dignidade. Porém notem o abuso, a prepotência. Eles são os doadores e nós os pobrezinhos, inúteis corruptos, ineficientes. Assim que o dinheiro vai para um fundo e eles têm a maioria e decidem em que investir. Se é assim, fiquem com seu dinheiro e em junho começamos a explorar o ITT. (CORREA, 2010, tradução nossa).

Ao mesmo tempo em que parecia empenhado em vender a proposta mundo afora, o presidente desistiu de apresentar a proposta na Conferência de Copenhague (COP-15), em 2009, gerando incômodos entre seus defensores e entusiastas. Aquela seria uma oportunidade ímpar de demonstrar uma ação concreta na luta contra o aquecimento global, uma que todos os países estavam reunidos com esse objetivo, e lograr maior visibilidade e adesões à Iniciativa. Por conta desta decisão e das críticas que fazia à equipe responsável por negociar a proposta com os países, Fander Falconí juntou-se a Acosta e retirou-se do governo. Esse fato repetiu-se durante a Conferência Rio+20, em que o Equador teve uma atuação tímida e não atendeu à expectativa daqueles que esperavam um posicionamento firme em defesa da Iniciativa Yasuní-ITT.

Mesmo tendo incorporado a Iniciativa ao seu programa de governo, Correa e parte de sua equipe elaboraram um “Plano B” ainda durante a primeira campanha presidencial, em caso de não alcançarem o montante esperado no prazo estabelecido e também para apresentar uma “ameaça crível” como elemento persuasório aos possíveis países doadores (SEVILLA, 2013). O plano significava a exploração das reservas do bloco ITT, porém utilizando mecanismos de alta tecnologia para mitigar os possíveis danos e impactos ambientais destas atividades. Por outro lado, ele desconsiderava o posicionamento contrário dos povos indígenas da região e violava as leis nacionais e internacionais de proteção ambiental e respeito às zonas intangíveis. A Petrobras, por exemplo, apresentou um plano de exploração da região, em que empregaria as mesmas técnicas de extração da camada pré-sal, evitando ao máximo os impactos ambientais na região, medida que seria complementada pelo transporte do petróleo por helicóptero até o local de refino. Segundo Daniela Campello, a empresa “[...] defende sua atuação ressaltando que a área devastada em função do projeto será um pouco menor do que cem hectares, ou cerca de apenas 0,007% da área total do parque, e que o projeto terá impactos positivos para a população local.” (CAMPELLO, 2008, p. 36). Outra proposta que chamava a atenção era a da Refinaria do Pacífico, construída na cidade de Manta, na costa equatoriana, em conjunto com o governo da República Bolivariana da Venezuela. Com o objetivo inicial de refinar o petróleo produzido nos dois países, a refinaria tornou-se alvo do interesse chinês. Segundo Roque Sevilla (2013), havia planos concretos desde 2009 de refino de 200 mil barris provenientes da Venezuela e 100 mil barris do bloco ITT, a serem exportados para a China. Entre 2007 e 2013, o país arrecadou somente 0,37% do esperado, o equivalente a 13,3 milhões de dólares e contou com o apoio de Alemanha, Austrália, Bélgica, Chile, Colômbia, Espanha, França, Geórgia, Itália, Indonésia, Luxemburgo e Turquia. Outro valor, de 116 milhões de dólares, era condicionado a outros compromissos e não estava diretamente relacionado à Iniciativa, mas à conservação do Parque Yasuní. Tal condicionamento, imposto pela Alemanha em seu convêncio com o Equador, era considerado por Correa como uma ingerência externa: “A dignidade do país não está à venda. Senhores (alemães), fiquem com seu dinheiro, rechaçamos unilateralmente o

convênio. Saberemos seguir adiante sem a prepotência de certos países que sempre acreditaram ser os donos do mundo.” (CORREA, 2013, tradução nossa). Todas essas variáveis colocavam em xeque a real disposição do governo em levar a adiante a Iniciativa Yasuní-ITT. Se, por um lado, deixou de apresentá-la ao mundo em diversas oportunidades, por outro, recebeu doações ínfimas, muito abaixo do esperado, dificultando sua capacidade em resistir às pressões das empresas que desejavam explorar as reservas. Diante deste cenário e, consciente das normas constitucionais sobre a defesa de áreas como a do Parque Yasuní, o governo de Correa ficou dividido, pois tem nos poços ITT uma oportunidade de curto prazo para financiar muitos dos projetos destinados a sanar as muitas debilidades financeiras, estruturais e sociais do país. A decisão de explorar ou não as reservas encontradas implicaria em um custo político muito alto para um governo que já vinha perdendo prestígio entre os movimentos sociais. Este não é um fato menor, tendo em vista que o histórico de instabilidade democrática no Equador ainda reverbera na cultura política do país8. Em compensação, a popularidade do presidente tem se mantido em alta, apesar das rupturas com parte da esquerda, o que pode ser comprovado com a reeleição de Rafael Correa em fevereiro de 2013, ainda no primeiro turno, com mais de 50% dos votos9. Em agosto de 2013, em cadeia nacional, o presidente Rafael Correa finalmente admitiu que a Iniciativa seria descartada, culpabilizando a crise econômica e a falta de interesse dos países mais ricos em promover esse projeto vanguardista. Afirmou que “[…] a iniciativa se adiantou aos tempos, e não pode ou não quis ser compreendida pelos responsáveis pela mudança climática” (ECUADOR, 2013, p. 4, tradução nossa) e lamentou profundamente que esse tenha sido o desfecho de uma ideia revolucionária nascida na periferia do mundo.

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Entre 1996 e 2006, nenhum dos presidentes eleitos conseguiu terminar seu mandato, fazendo com que o país contabilizasse nesse período 7 mandatários diferentes. 9 Alberto Acosta também foi candidato neste pleito, inscrito pelo Movimento Pachakutik. No entanto, alcançou menos de 3% dos votos, segundo o Conselho Nacional Eleitoral equatoriano (www.cne.gob.ec).

Utilizando como justificativa a extrema desigualdade, as péssimas condições sanitárias e os altos índices de desnutrição no país, Correa anunciou que a Iniciativa seria sacrificada em favor da melhoria da vida da população mais pobre, que inclui boa parte dos povos indígenas. Em seu pronunciamento, indicou que “Nossos povos ancestrais e minorias étnicas vivem na pobreza e alguns pretendem mantê-los nessa situação em nome da „preservação de suas culturas‟, como se a miséria, o maior insulto à dignidade humana, fosse parte do folclore.” (ECUADOR, 2013, p. 6-7, tradução nossa). A alternativa anunciada por Correa, munido de muitas estatísticas, gráficos e mapas, era a exploração de 0,001% do Parque Yasuní. Seu objetivo era demonstrar que a correlação Yasuní/petróleo, Tudo/Nada, postulada por Alberto Acosta e outros ambientalistas10 que seguiram na defesa intransigente da Iniciativa, era alarmista e só servia para desinformar a população. E acrescentou: […] o verdadeiro dilema é: 100% do Yasuní e nada de recursos para satisfazer às necessidades urgentes de nossa gente, ou; 99,9% do Yasuní intacto e cerca de 18.000 milhões para vencer a miséria, especialmente na Amazônia, paradoxalmente a região com maior incidência de pobreza. (ECUADOR, 2013, p. 10, tradução nossa).

Usando esta afirmação de forma contundente, o presidente deixa claro que a sua opção foi por utilizar os recursos da exploração de petróleo para melhorar a qualidade de vida das populações locais, em detrimento do respeito às zonas intangíveis e à soberania dos povos de isolamento voluntário. O presidente aproveitou a oportunidade para conclamar toda a população a fiscalizar as explorações que ocorrerão e a cobrá-lo, comprometendo-se pessoalmente a investir boa parte de seu tempo para garantir que a biodiversidade ali existente não seja prejudicada. A decisão e o pronunciamento de Rafael Correa percorreram o mundo e geraram repercussões negativas e positivas em todos os lugares. Parte da opinião pública internacional demonstrou resignação, compadecendo-se da difícil e utópica missão equatoriana em não explorar o petróleo, destacando o papel das empresas petroleiras e da

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Sobre este grupo, o presidente não os poupou críticas durante todo o pronunciamento, denominando-os de charlatões, falsos, mentirosos, hipócritas, simplistas, maniqueístas e oportunistas (ECUADOR, 2013).

pressão que o governo suportou por seis anos. O economista Alfredo Serrano Mancilla, por exemplo, publicou um artigo no portal TeleSUR intitulado “Correa não tem a culpa”11, enfatizando a ausência de interesse do capitalismo em financiar uma proposta que não estimula a exploração da natureza de forma predatória. Ele também critica os grupos ambientalistas que colocam a questão de forma maniqueísta: ou se explora a natureza para melhorar as condições de vida dos mais carentes ou se conserva a natura intacta, sem obter ganhos que poderiam beneficiar as camadas mais vulneráveis da população. Esse falso dilema teria a ver com a incapacidade da esquerda em entender que a crise ambiental está intrinsicamente articulada com as crises econômica e social perpetradas pelo neoliberalismo. Portanto, a culpa pelo fracasso deste projeto não deveria recair sobre os ombros de Correa, mas sim do próprio sistema e do mau entendimento dos neoecologistas dos conceitos advindos da cosmovisão ancestral indígena (MANCILLA, 2013). Por outro lado, muitos acadêmicos, cientistas e intelectuais de várias partes do mundo também lamentaram a decisão. Vandana Shiva, uma importante ativista indiana e embaixadora da Iniciativa desde 2012, publicou um vídeo na internet pedindo ao presidente equatoriano que revisse seu posicionamento e insistisse para que a inovadora proposta seguisse em voga, afirmando que existiriam outras formas de obter os recursos necessários para erradicar a miséria no Equador12. Internamente, o anúncio gerou grande comoção, levando milhares de pessoas às ruas nos meses posteriores. Muitos grupos de ambientalistas e indígenas uniram-se em torno da proposta de consulta popular, entusiasmados pelas pesquisas de opinião que indicavam que mais de 60% dos equatorianos apoiavam a Iniciativa13. A constituição equatoriana prevê este mecanismo e as coletas de assinaturas ocorreram por todo o país.

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Artigo originalmente publicado em 23 de Agosto de 2013 e disponível em: http://www.telesurtv.net/articulos/2013/08/23/correa-no-tiene-la-culpa-8269.html e comentado no portal “Sem Diplomacia” da UNESP, em 26 de agosto de 2013 (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/129). Disponível no endereço eletrônico da organização SOS Yasuní: http://www.sosyasuni.org (consulta em 23 de agosto de 2013). Pesquisa disponível no endereço eletrônico da organização Amazonía por la vida, publicada em 27 de setembro de 2011: http://www.amazoniaporlavida.org/es/Noticias/encuesta-de-perfiles-deopinion-sobre-la-iniciativa-yasuni-itt.html (consulta em 23 de agosto de 2013).

Paralemente, estes grupos têm divulgado alternativas de obtenção dos valores que seriam gerados pela exploração do bloco ITT, motivados pelas palavras de Vandana Shiva. Segundo a organização Yasunídos, uma solução seria aumentar a carga tributária em 1,5% sobre as elites econômicas do país. Em seu endereço eletrônico14, as informações são de que, se implementada, essa medida permitiria o ingresso de mais de 20 bilhões de dólares em um período de 25 anos, um valor maior do que o calculado com a exploração do petróleo. Este grupo também afirma ser falaciosa a ideia de “exploração limpa” do petróleo, indicando que durante o processo a cada 10 barris retirados do solo, somente um seria de petróleo e os outros nove seriam de substâncias tóxicas. “Esto significa que durante el periodo de extracción del ITT se derramarán el equivalente a 1,5 millones de piscinas olímpicas llenas de desechos. Petroamazonas, la empresa que se va a encargar de explotar el bloque, tiene un amplio historial de derrames en la zona”15.

Reflexões Finais “A um povo que marcha para sua libertação, com dignidade e soberania, expressando a voz do tempo e da Mãe-Terra, nada pode detêlo”- Fernando Huanacuni Mamani, 2010, tradução nossa. Em 2007 o Equador assistiu à ascensão do economista Rafael Correa e do Movimento Pais, legenda que abarcava as principais reivindicações indígenas e ambientais. Sua vitória representou um êxito daqueles que lutavam pela mudança de modelo de desenvolvimento, a fim de superar a dependência econômica da exploração do petróleo, que é uma das principais fontes de renda do país. Uma vez no poder, Correa logrou empreender a reforma constitucional, que resultou na Constituição de Montecristi (2008). Apesar da importância que tiveram os grupos contestatórios na primeira vitória eleitoral do Movimiento Pais, suas posições entraram em choque desde o primeiro ano do governo de Rafael Correa, que chegou a ser declarado persona non grata por uma das organizações indígenas mais importantes do país, a CONAIE, em 2010. Mesmo com objetivos semelhantes - incentivar a substituição do padrão de desenvolvimento a partir do 14

Informações disponíveis no endereço eletrônico: http://www.yasunidos.org/ (consulta em 30 de outubro de 2013). 15 Idem.

Sumak Kawsay - o governo e os movimentos ambientais, indígenas e sociais divergem em relação à maneira como esse processo deve ser conduzido. O governo crê que para financiar o projeto de um Equador pós-petroleiro é necessário recorrer à renda oriunda de atidades extrativistas e aprovou mudanças polêmicas nas leis que regulam tais atividades, gerando uma onda de protestos. Por outro lado, os movimentos ambientais e indígenas defendem que a postura governamental incentiva a continuidade do modelo desenvolvimentista e corresponde aos interesses daqueles que vivem da exploração dos recursos naturais. Quando o Plano B da Iniciativa Yasuní-ITT tornou-se a decisão oficial do Equador, o dilema desenvolvimento econômico e social versus preservação ambiental foi recolocado no debate. Este episódio comprovou a desconfiança de grupos ambientais e indígenas de que o governo tinha cedido às pressões do capital internacional para explorar as reservas amazônicas e, por essa razão, teria desistido de levar a cabo a Iniciativa. Só a existência de um “Plano B” já seria uma demonstração de que o governo não continuaria uma defesa intransigente da proposta, como desejavam seus idealizadores. Portanto, a politização do conceito Sumak Kawsay, bem como sua apropriação pelos diversos grupos sociais e progressistas, gerou interpretações particulares acerca de seu significado e dos melhores meios para pô-lo em prática. Essa situação não ocorre apenas por uma questão conceitual, mas também está fortemente relacionada aos interesses que motivam cada um dos grupos envolvidos na discussão acerca do novo modelo de desenvolvimento pós-petroleiro. A equação “desenvolvimento econômico e social versus sustentabilidade” para os movimentos indígenas e ambientais não é um problema real, uma vez que a proposta do Bom Viver é multidimensional, com implicações sociais, culturais, econômicas, ambientais, epistemológicas e políticas. No entanto, as barreiras enfrentadas pelo governo em manter a decisão de não explorar o bloco ITT demonstraram que a efetivação de uma realidade pós-petroleira requer condições que muito provavelmente não serão oferecidas pelo mundo ocidental-capitalista. Em última instância, o fim da Iniciativa Yasuní-ITT

revelaria a incompatibilidade de uma sociedade totalmente baseada no Sumak Kawsay com o capitalismo. O desfecho parcial definido pelo governo de Correa abre, pelo menos, duas alternativas imediatas no horizonte: i) a proposta oficial, de permitir a extração do petróleo em 0,001% do parque nacional e com rigoroso controle social sobre as atividades ou ii) a mobilização popular dos equatorianos na construção de outras formas de combater as desigualdades sociais do país, sem ter que prescindir da preservação total do Yasuní. Em ambos os casos, a participação da sociedade é a peça-chave para as mudanças paradigmáticas que o conceito de Sumak Kawsay demanda e, nesse sentido, sua politização faz parte do processo de compreensão e assimilação de seus preceitos. O grande desafio inerente aos dois caminhos sugeridos é a capacidade de imposição de vontades entre a população socialmente organizada e os interesses financeiros das grandes corporações, que dominam o setor petroleiro. Neste tabuleiro, as empresas possuem força econômica descomunal em relação às organizações civis e mesmo ao Estado equatoriano. Será, pois, uma batalha não só entre o Sumak Kawsay e o Capitalismo, mas, sobretudo, da Democracia e do Bem Comum frente ao poder financeiro das grandes corporações internacionais e da lógica do self-help.

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ANEXO I

Mapa disponível no endereço eletrônico da organização da sociedade civil equatoriana SOS Yasuní, consultado em agosto de 2013 (www.sosyasuni.org).

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