Inserções Multitudinárias nas Metrópoles e … nos museus

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Revista Mesa | Inserções Multitudinárias nas Metrópoles e… nos museus

20/05/15 16:36

EDITORIAL

THINK PIECE

ESTUDOS DE CASO

ARTIGO

VIDEOENTREVISTA

ENSAIO FOTOGRÁFICO

CONTRIBUIDORES

CRÉDITOS E AGRADECIMENTOS

Encontro regional: O Sentido do Público na Arte: Caranguejos e Borboletas. Casa Daros, 28 de setembro de 2013. Foto: Delmar Mavignier

Inserções Multitudinárias nas Metrópoles e… nos museus Barbara Szaniecki

PORTUGUÊS

1. Caranguejos e borboletas, vespas e orquídeas e muito mais… Em setembro de 2013, foi realizado na Casa Daros o primeiro encontro na série O Sentido do Público na Arte1: muitos campos de conhecimento e muitas práticas de arte estavam muito bem “representados”. Por email, os organizadores haviam enviado aos convidados a participar uma imagem instigante e uma provocação: Caranguejos & Borboletas – Uma Referência Poética: Antigas moedas romanas tinham uma imagem de um caranguejo segurando uma borboleta, interpretada pelos pesquisadores como moral de “festina lente” ou avanço cuidadoso. A imagem surpreende pela convergência entre delicadeza e força nesta justaposição quase impossível e pode remeter enigmaticamente às recentes presenças nas ruas do Brasil – entre a leveza da juventude e a força ameaçadora da polícia. Inspirados por estes eventos e o compromisso com a transformação da educação e arte da Casa Daros, propomos uma desaceleração do tempo e um avanço político, explorando novas possibilidades para a ressignificação do sentido do público na arte. A imagem do caranguejo e borboleta (em anexo) norteará nosso encontro como uma justaposição enigmática. Convidamos cada participante a trazer para o encontro uma referência (poesia, texto, obra de arte, ou outra conexão encontrada) inspirada nesta imagem”.

Seleção de impressões e marcas de água da imagem do caranguejo segurando uma borboleta: G.Symenoi. Le sentiose imprese, Lyons, Rouillé, 1561; Jehan Frellon, Silvestre, Marques typographiques, I, No.193 e No 400; Jacopo da Strada e Thomas Guérin, 1553, ibid No 454. Design: Taisa Moreno para o encontro O Sentido do Público na Arte: Caranguejos e Borboletas, Casa Daros 2013.

Caranguejos e Borboletas Borboletas: a imagem visivelmente inspirou as primeiras trocas entre os participantes reunidos em pequenos grupos. As interpretações da imagem variavam em torno de um conjunto de dicotomias e também de sua desconstrução. A suposta oposição entre o duro (caranguejo) e o frágil (borboleta), entre a força da polícia e a leveza da juventude nas ruas, entre outras oposições, foi dando lugar, aos poucos, à percepção de que essas fronteiras são permeáveis e que a dicotomia não se sustenta. Talvez porque, em dado momento, o filho de um dos participantes passou a circular entre nós, entre os vários grupos reunidos, com o desenho do “Borborejo” que criou. Essa criatura híbrida que, em sua circulação, possivelmente contribuiu a alterar a percepção do que estava em jogo na imagem cunhada na moeda romana.

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Borborejo. Desenho feito pelo filho de um participante no encontro, criando um híbrido de um caranguejo e uma borboleta. Foto: Barbara Szaniecki.

O caranguejo e a borboleta não são necessariamente dois seres estanques um com relação ao outro, e sim alterações contínuas que borram toda possibilidade de um “ser” que não esteja em contínua alteração da sua forma: transformação. Da imagem do eu versus o outro emergiu a imagem da própria alteração (alteridade em ação). A circulação da imagem provocou nossos sentidos e, nesse movimento em círculos, gerou outros sentidos para a própria imagem. Não foi à toa que veio à tona as intervenções públicas dos anos 70 de Cildo Meireles Inserções em circuitos ideológicos2 e um texto publicado em 1981 no qual ele abordava esta obra através da intervenção Projeto Cédula. Assim como a circulação do “Borborejo” poderia ter afetado o sentido da imagem do Caranguejo e da Borboleta, a circulação nos anos 60/70 das notas com a inscrição “Quem matou Herzog?” afetou a interpretação dos fatos e voltou novamente a afetar quando transformada em notas em 2013 com a inscrição “Cadê Amarildo?”3.

Cildo Meireles. Quem matou Herzog? 1976. Foto: Pat Kilgore

Cildo Meireles. Cadê Amarildo? 2014. Foto: Pat Kilgore

A imagem “Caranguejo e Borboleta” se encontra gravada numa moeda romana. “Quem matou Herzog4?” e “Cadê Amarildo5?” foram inscritas por Cildo em cédulas de um cruzeiro e de dois reais respectivamente. Além de novos sentidos, podem novos circuitos e circulações promover novos valores materiais e imateriais? Cildo menciona o controle sob o qual operam a imprensa, o rádio e a televisão e sai em busca de outros “circuitos ideológicos”. Sugiro esses outros “circuitos ideológicos” que são as metrópoles e as redes como espaços onde é possível ressignificar e construir outros valores… Valores materiais e valores imateriais. Borboletas e caranguejos cunhados na moeda. Perguntas sem respostas carimbadas nas cédulas de Cildo. Para ele, “o importante no projeto (Cédula) foi a introdução do conceito de ‘circuito’, isolando-o e fixando-o. […] Na verdade, o caráter da ‘inserção’ nesse circuito seria sempre o de contrainformação”. Aqui a arte consiste então na coragem de pôr em circulação informações que tensionem a verdade absoluta e autoritária que caracteriza nosso sistema e sociedade de informação. Vespas e orquídeas: voltaremos à questão dos circuitos e circulações. Por ora, sigamos com a imagem do Caranguejo e da Borboleta que, imediatamente, associei à “imagem” da Vespa e da Orquídea tal como a utilizam Deleuze e Guattari para falar do devir. http://institutomesa.org/RevistaMesa_3/portfolio/casa-daros-caranguejos-e-borboletas-02/

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A vespa e a orquídea são o exemplo. A orquídea parece formar uma imagem de vespa, mas, na verdade, há um devir-vespa da orquídea, um devir-orquídea da vespa, uma dupla captura, pois “o que” cada um se torna não muda menos que ‘aquele’ que se torna. A vespa torna-se parte do aparelho reprodutor da orquídea, ao mesmo tempo em que a orquídea se torna órgão sexual para a vespa. […] Não é um termo que se torna o outro, mas cada um encontra o outro, um só devir que não é comum a ambos, uma vez que eles não têm nada a ver um com o outro, mas que está entre os dois, que tem seu próprio sentido […], não é algo de mútuo mas um bloco assimétrico, uma evolução a-paralela, casamentos, e… para fora… entre eles.”6 Gilles Deleuze e Claire Parnet, em Diálogos Uma vespa e uma orquídea ocupam o canto superior direito de uma imagem no livro Fadaiat – Libertad de Movimiento – Libertad de Conocimiento (Liberdade de movimento – Liberdade de conhecimento), realizado por coletivos que lutam contra a opressão dos Estados e pelos direitos de imigrantes na região próxima ao Estreito de Gibraltar, que separa a África da Europa.7 Nessa área extremamente vigiada, uma conexão de comunicação entre Tanger (Marrocos) e Tarifa (Espanha) foi realizada por meio da triangulação artista–militante–hacker. Ao juntar o desenho da vespa e da orquídea à triangulação artista–militante–hacker, os coletivos evocam claramente a referência teórica a Gilles Deleuze e Félix Guattari.

Fadaiat. Diagrama, 2006

A imagem do livro Fadaiat apresenta duas linhas: uma linha “local versus global” (que é preciso analisar a partir de um local que é a cidade do Rio de Janeiro versus um global que é um mercado de cidades globais) e a linha “analógico versus digital”, que tampouco chega a uma síntese, e que se desdobra em outra linha, onde o viés puramente técnico ganha dimensão espaço-temporal que é a linha “território versus rede”. No emaranhado e tensões dessas linhas, é a triangulação artista–militante–hacker que faz pensar não apenas em devir como em potência emancipadora, neste caso liberdade de movimento e de conhecimento contra as fronteiras que oprimem. Para que tal potência possa se desdobrar, a premissa é que o “artístico” tido por muitos como exclusividade dos artistas passe a se articular com “militância” e “hackerismo”. E esse artístico ampliado ou generalizado (“general artisticity”8) cria uma nova linha de tensão não dialética: a linha “multidão versus instituição”. Não dialética, ou seja, não há promessa de síntese na eliminação do conflito e sim possibilidade de um devir que não é comum a ambos: “evolução a-paralela”, assimétrica. A seguir, proponho em primeiro lugar pensar a instituição artística por excelência – o museu – entre território e rede (ou seja, como fruto das linhas “local versus global” e “analógico versus digital”) para, num segundo momento, a partir dessa sua nova configuração, apreender sua relação com o público nesses tempos de “inserções” multitudinárias nas ruas e nas redes…

2. Museu, Território e Rede O museu hoje permanece extremamente ancorado no território – como templo de Arte, espaço de experimentação artística ou lugar de memória e vivência sociocultural. Às vezes, tudo isso junto e misturado. E, ao mesmo tempo, o museu hoje se torna extremamente articulado em rede. Ele pode assumir a forma de uma rede-empresa artística constituída pela captura e patrimonialização de uma produção que se estende por toda a metrópole, de uma rede-corporação global cujas sedes e filiais produzem e reproduzem produtos e grifes de artistas, ou ainda agenciamentos de resistência a esses aparelhos de captura. E, mais uma vez, tudo isso junto e misturado. Hoje, cada museu se insere de maneira singular em termos tecnológicos mas também socioculturais, econômicos e políticos, nas linhas analógico versus digital e local versus global. Os museus se fazem simultânea ou alternadamente “território” e “rede” em inúmeras e diferentes combinações de formas, mas todas elas atravessadas pela nova fase de um capitalismo que pode ser definido como criativo. No seio do capitalismo criativo, o museu adquire também novas funções: em termos globais, por sua monumentalidade arquitetônica e simbólica, do museu (entre outros megaequipamentos esportivos e culturais que participam não apenas de megaeventos mundiais que são pontuais como de um processo mais contínuo de “criativização” das cidades) se espera que ele seja capaz de inserir a cidade onde se localiza num mercado de turismo e consumo de cidades globais; em termos locais, por sua relação territorial e comunitária, ao museu é http://institutomesa.org/RevistaMesa_3/portfolio/casa-daros-caranguejos-e-borboletas-02/

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pedido que participe da revitalização urbana articulando clusters criativos (concentrações geográficas de empresas do setor criativo mas não apenas) e comunidades culturais em áreas tidas pelo poder público como degradadas. Essas duas funções podem ser verificadas na zona portuária do Rio de Janeiro embora não se restrinjam a ela: os museus lá implementados – o primeiro já inaugurado Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR) e o segundo em fase de construção (Museu do Amanhã) – procuram efetivamente integrar o Rio de Janeiro num circuito cultural-criativo global ao mesmo tempo em que estimulam o desenvolvimento local de clusters contribuindo voluntária ou involuntariamente para processos que, dependendo da gestão que deles é feita, podem ocasionar “revitalização” ou, ao contrário, “gentrificação”, ou seja, construção de novos equipamentos culturais em detrimento da manutenção dos já existentes, e, sobretudo, atração da “classe criativa”9 em detrimento da população local que passa a sofrer a possibilidade do despejo. Essas funções podem, evidentemente, ser assumidas acriticamente ou, ao contrário, ser problematizadas coletivamente. Espetacularização criativa-cultural, especulação imobiliária, desenvolvimento local e revitalização urbana não são funções tão novas assim, mas indicam um novo ciclo do qual as instituições e os movimentos artísticos devem ter consciência e agir em consequência. No seio desse capitalismo criativo e desse contexto conturbado, o Rio de Janeiro tem contudo a vantagem de possuir instituições artísticas muito heterogêneas e onde o próprio “artístico” adquire sentido amplo: museus históricos, museus da era (e da arte) moderna e mesmo moderníssima, até museus da era (e da arte) contemporânea. Cada qual em seu período histórico marcou um território: o centro da cidade que despertava para a urbanidade no caso dos primeiros museus, o Aterro do Flamengo que apontava o caminho da modernidade no caso dos segundos e os territórios degradados do centro assim como os territórios periféricos no caso dos terceiros. A cidade também comporta museus que se apresentam como “tradicionais” e “comunitários” na medida em que mantêm forte elo com seu entorno sociocultural e museus que se definem como “novos”, onde o novo, em muitos casos, vem associado às novas tecnologias e às questões globais. Como disse anteriormente, a maioria articula esses diferentes aspectos de maneira singular e, num mesmo território, coexistem diferentes experiências museológicas. Na zona portuária, por exemplo, coexistem o MAR e a Casa Amarela da Providência, o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos10 e o Condomínio Cultural, com objetivos e desejos que ora convergem, ora divergem. Na Maré, convivem o Museu da Maré e o Galpão Bela Maré. Não apenas são diferentes as experiências museológicas em si como também as articulações que podem realizar entre si. E, embora tenham quase todos eles péssima relação com as plataformas digitais, quase todas procuram um “fora” do museu. Um “fora” que se apresenta na afirmação de Hélio Oiticica de que “museu é o mundo” ou na busca de Cildo Meireles por um circuito para além do “espaço consentido, consagrado, sagrado” (do museu). O museu parece se tornar polimorfo11 ou monstruoso12. Se a proliferação de novos museus confirma a entrada do Rio de Janeiro num mercado de cidades globais – hoje, do capital global ao turismo individual, “compram-se” cidades num balcão de negócios globais –, essa inserção mercadológica não deixa de encontrar muitas resistências. Resistências que se constituem na disputa do que se entende hoje por “público”. E aqui, a imagem da vespa e da orquídea faz todo sentido. Uma pertence ao reino animal, a outra ao reino vegetal. E, contudo, algo (antinatural) acontece “entre” elas e para fora de cada uma delas. A crise da representação política tem como par a crise da mediação museológica, o que implica repensar a relação da instituição e do sistema da arte com esse “outro” que é o público em termos completamente diferentes. Não se trata necessariamente do agenciamento artista–militante–hacker apresentado no livro Fadaiat mas de todos que quisermos inventar. Junho de 201313 abriu uma infinidade deles, e certamente afetaram de modo produtivo o encontro O Sentido do Público na Arte…

3. Museu, público e multidão Vimos que os museus do Rio de Janeiro estabelecem diferentes relações com o território e com as redes e, portanto, diferentes espacialidades e temporalidades: o Rio de Janeiro é moderno, pós-moderno e altermoderno ao mesmo tempo. Nesse contexto complexo, “público”, tanto no sentido de espaço de cidadania quanto no sentido de sujeito receptor de obras artísticas, parece ter uma conotação demasiado moderna. Em termos espaciais, “público” pode soar totalmente estranho em territórios onde tudo é ao mesmo tempo público e privado, isto é, onde todos são observadores e observados ao mesmo tempo. Em tempos pós-fordistas, “público” também pode soar estranho em ambientes socioculturais e regimes de produção onde todos são produtores e consumidores ao mesmo tempo. É nesse sentido que a noção de “público” parece estar demasiado “presa” ao moderno numa cidade onde coexistem diferentes espacialidades e temporalidades, assim como variadas articulações entre elas. A questão do “público” na arte se assemelha à de “massa” na economia e à de “povo” na política. Essas questões não se equivalem, mas, quando confrontadas umas às outras, podem gerar avanços a partir de seus problemas comuns. As instituições políticas não ouviram as ruas e se revelaram incapazes de superar a crise da representação, ou seja, de se abrir a um desejo de política que excede ou não cabe na representação. Serão as instituições artísticas capazes de superar a crise da mediação, ou seja, serão capazes de se abrir a um desejo de arte que excede ou não cabe nas práticas atuais dos curadores, críticos e artistas? A noção de público apareceu em vários grupos do encontro O Sentido do Público na Arte. A ideia de “formação de público” é geralmente criticada, seja pelo viés pedagógico, seja pelo viés mercadológico.

Palavras e frases geradas no encontro O Sentido do Público na Arte:

Caranguejos e Borboletas, 2013, Casa Daros. Foto: Barbara Szaniecki

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20/05/15 16:36 Caranguejos e Borboletas, 2013, Casa Daros. Foto: Barbara Szaniecki

Pelo viés pedagógico, a crítica se faz pela promoção de experiências artístico-pedagógicas que respeitam e não hierarquizam sistematicamente os múltiplos sujeitos e saberes presentes na sociedade. O museu acolhe outras instituições e o museu vai a outras instituições numa relação dialógica. Pelo viés mercadológico, a crítica se faz de maneira mais ambígua: por um lado, questiona-se um sistema que demite diretores pelo simples fato de não atrair público dentro de uma racionalidade que privilegia a concorrência em detrimento da colaboração entre as instituições e que privilegia o consumo em detrimento da experiência artística e do exercício crítico; por outro, manifesta-se certa admiração aos diretores que conseguem atrair público dentro do contexto de emergência de uma “nova classe média”: essa classe trabalhadora que deixa de ser apenas produtora para se tornar consumidora de uma grande gama de produtos e de serviços passa a seduzir também as instituições artísticas. Afinal de contas, por que elas não poderiam também se beneficiar em seus espaços desse “público”? As manifestações de junho de 2013 surpreenderam a todos. Nelas, uma juventude (mas não apenas) que se beneficiou de políticas públicas inovadoras ao longo dos últimos doze anos expressou desejos de vida que não se limitavam a emprego e consumo, ou seja, não se limitavam ao tipo de “inclusão” que a conotação em termos de sua classe média emergente supunha. Queria algo mais. Queria certamente ir aos museus, frequentar exposições e também comprar obras nas galerias e feiras de arte em expansão. Por que não? Mas talvez quisessem, além de conhecer experiências artísticas do passado e do presente e além de dialogar com o campo da arte (artistas, críticos, curadores, entre outros), realizar suas próprias experiências dentro e fora da instituição. Este é, sem dúvida, um grande desafio para as instituições artísticas. Algumas podem optar por funcionar como empresas do “capitalismo cultural e criativo” instalando-se como agente local de um mercado de cidades globais que disputam visibilidade internacional por meio de sua monumentalidade – da qual, hoje, fazem parte os museus com grifes de arquitetos famosos. Outras, apesar de definidas como não governamentais, podem optar por algo como uma “forma Estado”, também cultural e criativo, que disputa patrocínio e verba num mercado de editais. Outros arranjos são possíveis também. Algumas poucas instituições têm arriscado a aproximação com práticas de autonomia e autogestão de movimentos sociais e culturais, criando instâncias não apenas de pedagogia como, sobretudo, de copesquisa e cocriação entre instituição, coletivos e movimentos14. Talvez sejam esses espaços-tempos, ainda que efêmeros, onde museu e multidão podem se agenciar. Mas não há como negar que, de um ano para cá, foi nas redes e nas ruas de nossa metrópole que as experimentações mais potentes se deram. É arte? Se consideramos arte como expressão de potência, certamente sim. Muitos coletivos se formaram nas redes e nas ruas e, nelas, inovaram em termos de expressão. Mas também vêm experimentando formas de organização mais autônomas de sua produção de arte, cultura e comunicação, com ou sem sucesso. Esta auto-organização também pode indicar rumos para novas formas de instituição artística: autoinstituição que ressignificaria o “público”, seja em termos de espaço, seja em termos de sujeitos e subjetividades que participam de atividades artísticas.

“Inserções” Multitudinárias nas Metrópoles e… nos museus Vimos anteriormente que, em plena ditadura militar, Cildo Meireles lançava seu Projeto Cédula: em uma nota de um cruzeiro, carimbou “Quem Matou Herzog?”. Quando em junho do ano passado estouraram as manifestações com reivindicações relativas à qualidade de vida na cidade e também com denúncias sobre a violência das UPPs15, Cildo não hesitou e, em uma nota de dois reais, carimbou “Cadê Amarildo?”.

Cildo Meireles. Cadê Amarildo? 2014. Foto: Pat Kilgore

Em tempos de neodesenvolvimentismo, o emprego aumentou, o consumo aumentou, o PIB aumentou… afinal de contas, o que deseja a multidão que foi às ruas? Impossível apreender a totalidade desse desejo. Num contexto de neodesenvolvimentismo com forte dimensão industrial e alavancado por uma espécie de capitalismo de Estado, aquilo que Cildo Meireles propunha nos anos 60/70 segue válido: é possível apreender: […] uma oposição entre consciência (inserção) e anestesia (circuito), considerando-se inserção como função de arte e anestesia como função de indústria. Porque todo circuito industrial normalmente é amplo, mas é alienante(ado)”16. Hoje o circuito ideológico não se restringe à imprensa, à rádio e à televisão mencionadas por Cildo e se http://institutomesa.org/RevistaMesa_3/portfolio/casa-daros-caranguejos-e-borboletas-02/

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Hoje o circuito ideológico não se restringe à imprensa, à rádio e à televisão mencionadas por Cildo e se estende nas ruas e nas redes que constituem uma vasta metrópole, simultaneamente concreta e virtual. Cildo Meireles fala da necessidade do anonimato para agir dentro e contra uma lógica baseada em diferentes místicas, “na mística da obra em si (embalagem: tela, etc.) ou na mística do autor (Salvador Dali ou Andy Warhol, por oposição, são exemplos vivos e atuais): ou parte para a mística do mercado (o jogo da propriedade: valor de troca).”17 Propõe então as “inserções” para além da distinção entre quem pode e quem não pode fazer arte, para além de uma autoria individualizada que é sempre relacionada à propriedade e, sobretudo, como algo que “só existe na medida em que outras pessoas o pratiquem”. Por meio de “inserções”, perde-se simultaneamente o controle e a propriedade sobre aquilo que é produzido, e esta perda é extremamente produtiva. Nesse movimento, “inserções” podem atingir mais gente “na medida em que você não precisaria ir até a informação, pois a informação iria até você; e, em decorrência, haveria condições de ‘explodir’ a noção de espaço sagrado”. Resta pouco aqui da ideia de uma “formação de público”. Estamos num processo mais direto e mais aberto que é possível apreender através de acontecimentos recentes. Nas redes, a página Cédulativa18 abriu espaço para a postagem de imagens de cédulas com inscrições de todo tipo: “a felicidade não está nas cédulas do dinheiro”, “quando acaba o dinheiro, acabam os amigos”, “a pior pobreza é a de espírito #cédulativa” e “Por quanto você se vendeu hoje?” são algumas delas. Nas ruas, ou melhor, nas vias da Supervia, um misterioso cartaz surgiu nos últimos dias19: “em horários de pico, pode ser necessário que você deixe outras pessoas sentarem no seu colo”. A Supervia e a grande mídia denunciaram e a polícia iniciou a procura do anônimo autor.

Intervenção pública na Supervia – Trans Urbanos, 2013.

E o que os usuários pensam disso? A matéria d’O Dia menciona a página de Facebook “SuperVia – Vergonha para o povo carioca”20, onde muitos elogiaram a iniciativa do cartazista desconhecido: A Supervia SIM deveria tomar um processo pelo que faz com quem depende dos trens, e não quem de uma forma criativa e bem pensada está protestando sobre a forma como todo mundo é tratado”. Enquanto o debate seguia, surgia um novo cartaz onde se lia que a SuperVia não paga suas multas 21 .Esses dois exemplos mostram o quanto a proposta de Cildo é atual e em total sintonia com os sujeitos e subjetividades que se manifestaram nas ruas e nas redes por meses seguidos desde junho de 2013. Lembremo-nos que tudo começou com um movimento lançado pelo MPL (Movimento Passe Livre) contra o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus. Muito além dos 20 centavos, as manifestações estenderam a luta pela mobilidade a uma infinidade de questões urbanas. Podemos então, a partir dessa fala de Cildo, considerar as manifestações que se estenderam de 2013 a 2014 não apenas como um lugar onde ocorrem inserções, mas também como, elas mesmas, verdadeiras “Inserções multitudinárias” nas metrópoles brasileiras na medida em que se recusam a dobrar-se à função de indústria do circuito geral da cidade e sua consequente anestesia para afirmar, potentes, a sua função de arte. É no reconhecimento desse desejo de fazer arte por toda parte e no agenciamento com essa multidão arteira – agenciamentos de caranguejos e borboletas, de vespas e orquídeas, de artistas, militantes, hackers e muito mais – que existe e resiste a possibilidade para as instituições artísticas de reconfigurar O Sentido do Público na Arte.

Bibliografia FLORIDA, Richard. The Rise of the Creative Class. And how it’s transforming work, leisure, community and everyday life. New York: Basic Books, 2000. GRENIER, Catherine. La fin des musées. Paris: Éditions du Regard, 2013. MEIRELES, CILDO. “Inserções em circuitos ideológicos” é um texto escrito por Cildo Meireles em 1970 e publicado em 1981 no livro Cildo Meireles da Funarte, Rio de Janeiro, 1981. (acesso em 11/09/2014) REIS, A. C. F. (org.) Cidades Criativas, Soluções !nventivas: o Papel da Copa, das Olimpíadas e dos Museus Internacionais. São Paulo: Garimpo de Soluções, 2010. ROSLER, Martha. The artistic mode of revolution: from gentrification to occupation e O modo artístico de revolucão: da gentrificacão à ocupacão SYBILLA, Vladimir. Museu-monstro: insumos para uma museologia da monstruosidade. Tese de Doutorado defendida em maio de 2014 no IBICT/UFRJ. SZANIECKI, Barbara. “Amar é a Maré Amarildo: Multidão e Arte”, RJ 2013. SZANIECKI, Barbara. Sobre Museus e Monstros. (acessado em 2/12/2014) SZANIECKI, Barbara. To be or not to be a White limousine. (acessado em 2/12/2014) LANDRY, Charles. The Creative City: A Toolkit for Urban Innovators. Londres: Earthscan, 2000.

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O projeto, premiado em edital da Funarte, coordenado pelo Instituto MESA e concebido em parceria com colaboradores regionais (tais como Casa Daros, Bienal Mercosul, Centro Cultural Cariri do Banco do Nordeste e MAC de Niterói), promoveu uma série itinerante de encontros nas respectivas cidades do Cariri, Niterói/Rio de Janeiro e Porto Alegre, abrigando o intercâmbio de ideias e experiências que vem ressignificando o sentido de público na arte e cultura brasileira. A Casa Daros é uma nova instituição focada na arte da América Latina que foi inaugurada em 2013. 2

“Inserções em circuitos ideológicos” é um texto escrito por Cildo Meireles em 1970 e publicado em 1981 no livro Cildo Meireles da Funarte, Rio de Janeiro, 1981. (acesso em 11/09/2014). 3

http://oglobo.globo.com/cultura/cildo-meireles-reve-seus-50-anos-de-arte-politica-poetica-11680129 e http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2013/11/1365447-as-cedulas-de-cildo-meireles-e-outras8-indicacoes-culturais.shtml 4

Vladimir Herzog (1937–1975) foi um jornalista nascido na antiga Iugoslávia e naturalizado brasileiro. Militante do Partido Comunista Brasileiro, foi torturado até a morte nas instalações do Doi-Codi que fez circular a versão de que teria se suicidado na cadeia. 5

Amarildo Dias de Souza (1965–2014) foi um ajudante de pedreiro e morador da Rocinha que, detido, torturado e morto dentro de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), se tornou símbolo da luta contra a violência policial. (Acesso janeiro 2015) 6

DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Dialogues. Paris: Champs/Flammarion, 1996, p. 9.

7

http://fadaiat.net/index.html

8

Faço referência ao conceito de “General intellect” de Marx.

9

FLORIDA, Richard. The Rise of the Creative Class. And how it’s transforming work, leisure, community and everyday life. New York: Basic Books, 2000. 10

“Pretos Novos era o nome dado aos cativos recém-chegados da África e desembarcados no Rio de Janeiro, em meados do século XIX, em uma área da cidade chamada, então, de Pequena África. Neste local, hoje a zona portuária da Gamboa, ficava o mercado de venda dos negros cativos.” (Acessado Janeiro 2015) 11

GRENIER, Catherine. La fin des musées. Paris: Éditions du Regard, 2013.

12

SYBILLA, Vladimir. Museu-monstro: insumos para uma museologia da monstruosidade. Tese de Doutorado defendida em maio de 2014 no IBICT/UFRJ. 13

Em junho de 2013, manifestações multitudinárias tomaram conta das principais capitais do país. A onda de manifestações iniciou-se com uma demanda pela redução da tarifa de ônibus mas, muito rapidamente, as demandas populares se multiplicaram. 14

Em recente visita ao Rio de Janeiro, Jesus Carillo, diretor do Programa Cultural do Museu Reina Sofia (Madri, Espanha), falou de sua experiência com as Redes Conceptualismos Del Sur e Universidad Nomada. 15

UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) é um projeto da Secretaria Estadual de Segurança do Rio de Janeiro que pretendeu instituir polícias comunitárias em favelas como forma de desarticular os poderes que controlam estes territórios. Com o desaparecimento, a tortura e a morte do pedreiro Amarildo em 2013, as UPPs passaram a ser muito questionadas. 16

MEIRELES, CILDO. “Inserções em circuitos ideológicos” op cit.

17

Ibid.

18

https://www.facebook.com/cedulativa/photos_stream

19

http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-09-19/policia-procura-autor-de-cartaz-que-geroupolemica-entre-passageiros-da-supervia.html 20

https://www.facebook.com/SuperviaVergonhaParaOPovoCarioca

21

O texto do cartaz dizia: “A Supervia é isenta de pagar os milhões de reais em multas que deve aos cofres públicos porque a Agetransp é uma agência reguladora de fachada, composta por pessoas ligadas aos governantes e a empresários do setor de transportes.”

APRESENTAÇÃO | CORPO EDITORIAL | NORMAS PARA PUBLICAÇÃO | EDIÇÕES Revista MESA, ISSN: 2319-0264, No. 3, Maio 2015 | contato: [email protected]

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