Universidade de São Paulo
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo AUH5866_Anarquitetura: arte e arquitetura contemporâneas em diálogo Docentes: Guilherme Wisnik e Agnaldo Farias
Insolação e as trevas do moderno Aluna: Laura Carone Cardieri -‐ mestrado
[email protected] janeiro de 2016
O objeto do presente texto é o longametragem Insolação (2009), de Felipe Hirsh e Daniela Thomas. Escritores russos como Pushkin e Tchecov foram referência para o roteiro dos dramaturgos Will Eno e Sam Lipsyte, que trataram um tema exaustivamente abordado de forma inusitada: embora fale de amor, paixão e desilusão, a paisagem desértica de Brasília confere uma estranha atmosfera ao filme. A cidade e sua arquitetura constantemente sob o sol completam o cenário sufocante por onde perambulam personagens que parecem fora de rumo. A intenção do estudo é despertar uma reflexão sobre arquitetura a partir do cinema, acreditando ser esta uma operação contemporânea. Considera-‐se também contemporânea a própria linguagem cinematográfica, tanto no que se refere ao produto final, o filme, quanto à sua dinâmica de produção, em que profissionais de diferentes áreas colaboram para o todo. Ou seja, a própria estrutura do cinema o aproxima de uma síntese das artes: “Os profissionais procuram, nas respectivas áreas de atuação, formas que levem a uma obra única, o filme. O espectador percebe essa convergência quando encontra autenticidade e consonância entre os diversos universos construídos -‐ narrativo, rítmico, sonoro e visual – e não 1 sente nenhuma prevalência de um aspecto sobre o outro.”
A linguagem do cinema e sua poética buscam produzir um universo inventado que traz consigo, naturalmente, parâmetros estéticos a partir de modelos e referências. Esta espécie de generalização estética, por sua vez, vem a contribuir para a construção do olhar do homem contemporâneo, modelizando sua experiência:
“(…) os esquemas perceptivos atualmente provêm dos cartazes, das fotografias, das imagens do cinema, da televisão e outros meios. Além disso, deve-‐se destacar a atenção estética que se volta para lugares, cenas, acontecimentos da vida, ao invés de se voltar para os objetos institucionalmente qualificados como obras de arte. É por aí que 2 se pode falar em generalização estética, em uma “artealização da vida.”
Dentro do processo de produção, o responsável pela visualidade de um filme é o diretor de arte e sua equipe, composta por profissionais ligados à cenografia, arquitetura e artes em geral. Há também uma equipe de produção de locações que 1
HAMBURGER, Vera I. Arte em Cena: a direção de arte no cinema brasileiro. (P. 29) FAVARETTO, Celso. Deslocamentos: entre a arte e a vida. In: ARS. São Paulo, v.9, n. 18, p. 94-‐109, 2011. (p.107) 2
realiza a pesquisa dos espaços existentes a serem filmados, bem como a negociação para viabilizá-‐los. No caso específico do Insolação, as cenas que fizeram parte deste estudo foram todas filmadas em locações, lugares existentes na cidade de Brasília. Construídos ou não, atuam como cenários pois há sempre a produção de atmosferas. “Cenários são elementos vivos que, somados aos efeitos da luz e outros, especiais, fabricam atmosferas e armam situacões a cada acontecimento do roteiro. A edição em sequência dos inúmeros ambientes, ou mesmo das diversas cenas que se passam em um único espaço, oferece ao espectador um percurso visual. Ao explorar plasticamente essa fluência, cria-‐se uma cadência rítmica ao olhar, interferindo diretamente na vivência do filme e na compreensão da 3 narrativa.”
Em Insolação, a relação entre os personagens e o ambiente consiste na principal discussão deste trabalho, pois a atmosfera do filme é tão ou mais importante e significativa do que a linguagem verbal, os diálogos. Nota-‐se uma clara (e obscura, como será visto adiante) aproximação entre o estado de espírito/ emocional dos humanos e a desolada paisagem por onde transitam. De forma geral, na direção de arte de um filme: “A composição da poesia do espaço joga com diversos elementos combinados. Em sua base está a eleição da arquitetura e da paisagem dominantes e, nesse contexto, a insercão da arquitetura e da paisagem 4 referentes a cada personagem ou cena.”
A paisagem de Brasília, bastante específica, composta em sua maior parte por arquitetura moderna num arranjo urbano único, veio a contribuir com o clima de impessoalidade e distanciamento do filme. No entanto, o cenário não se vale da paisagem mais emblemática de Brasília -‐ os eixos monumentais e palácios projetados por Niemeyer, que inclusive fizeram parte do cenário da minissérie Felizes para Sempre (2015), dirigida por Fernando Meirelles. Em Insolação, o que é apresentado são edifícios pouco conhecidos (embora modernos) e fora da área notória da cidade, produzindo um certo estranhamento. O procedimento para este trabalho foi a eleição de algumas cenas do filme como disparadoras de conceitos referentes a questões contemporâneas. A dinâmica consiste em apresentar os frames, descrevê-‐los e levantar possíveis leituras, 3
HAMBURGER, Vera I. Arte em Cena: a direção de arte no cinema brasileiro. (P. 33) IDEM. (P.32)
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relacionando cinema e arquitetura. O ator Paulo José é uma espécie de narrador que alinhava as cenas. Seu papel, assim como o dos demais personagens, é incerto, indeterminado: poeta, professor, andarilho, louco, mestre de cerimônias. Ele é aquele que, por sua vivência, aprofunda assuntos que dizem respeito a sentimentos humanos.
fig.1 (0:01:26)
Na cena que abre o filme, a figura do poeta surge no telhado de uma edificação qualquer, interferindo na horizontalidade do cerrado, em meio a antenas, para-‐raios e outros elementos que dão apoio à vida contemporânea. Um lugar sem interesse, banal, que não merece ser visto. Juntamente com os pontos seguintes, este fator compõe a linguagem da fotografia e da arte: •
espaços vazios, como uma cidade-‐fantasma;
•
o homem enquanto vestígio, reduzido a nível indicial;
•
alto contraste: o par luminosidade excessiva/ sombras muito escuras;
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dessaturação: cor esmaecida, predomínio de neutros;
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indeterminação do uso dos espaços: não há definição de funcionalidade;
•
a arquitetura moderna tomada como cenário, ou seja, edifícios existentes ocupados como locações para filmagem;
•
lugares degradados (que sofreram a ação do tempo e da natureza) e abandonados (pelo homem);
•
composição gráfica: horizontalidade e verticalidade bem marcadas pela paisagem. Nesta cena, o poeta e diversas hastes e antenas são
elementos verticais em contraluz. A arquitetura em primeiro plano e a paisagem em segundo formam uma sucessão de linhas horizontais. E neste espaço meramente funcional, o poeta escreve no velho caderno a palavra tristeza.
fig.2 (0:01:57)
A cena seguinte, em plano médio, começa com um poema sendo declamado:
fig.3 (0:03:01)
“Tristeza. Silêncio por favor! Posso ter sua atenção? Tristeza. É triste que a tristeza seja tema da nossa conversa. Os pássaros cantam e o sol esconde o frio da nossa bela cidade. Mas eu não estou aqui para falar sobre a cidade, estou aqui para falar sobre o amor. Eu espero que vocês honrem esta minha paixão, a qual eu dediquei toda minha vida, todos estes anos. Deixe-‐me ser claro e obscuro. Guardem suas perguntas, confiem no mistério. E nada de comidas barulhentas! Esta ficção me desperta do sonho de minha vida. Ela prova que eu não estou morto. Estou apenas morrendo. Morrendo.”
O plano então se abre, revelando um grande salão vazio. Novamente a horizontalidade está presente, indicando agora que se trata de um edifício
moderno: amplidão espacial; vão livre, sem interferência de colunas ou outros elementos de sustentação; abertura em faixa, do piso ao teto; elementos ovóides, tipo brises-‐soleils, repetidos na fachada; laje de cobertura em concreto aparente; piso monocromático contínuo; paredes revestidas de lambris de madeira.
fig.4 (0:03:33)
Teatro? Salão de festas? Auditório? Salão de baile de um clube. Saguão para atividade pública qualquer. A posição do narrador é diante de uma plateia vazia, num espaço que poderia ter sido um palco, ou índice de espaço público. Mas é só. O que mais importa é que a memória do que outrora foi este espaço, ou o uso que teve, é ativada pela condição de abandono, de inatividade atual. A gama de conotações aumenta ainda mais por saber-‐se um edifício existente na vida real, e não uma cenografia construída para o filme. A ficção, assim, aponta para um prisma de significados possíveis, um enigma cuja resposta parece conhecida apenas pelo poeta-‐narrador que declama para ninguém, -‐ além do espectador na sala de cinema: “e nada de comidas barulhentas” pode estar-‐se referindo à pipoca mastigada, ao refrigerante sorvido de canudinho até o fim. Portanto, a realidade dentro da ficção expressa nestas duas operações – a apropriação/ ocupação da arquitetura existente tomada como cenário; e a locução direta do narrador ao espectador -‐ pode configurar uma aproximação entre arte e vida, conforme discute Celso Favaretto no texto Deslocamentos: entre a arte a vida. O autor discorre sobre o moderno e o contemporâneo de modo a situar algumas produções artísticas, sobretudo a obra de Helio Oiticica. “Pois, se o (desejo) da arte é a conversão do real em imaginário, o desejo da arte dita contemporânea é o de
introduzir o imaginário no real, algo que o projeto moderno parece ter querido banir.”5 Assim, este deslocamento no eixo real/ imaginário acontece em Insolação mais pela carga atmosférica do que pela narrativa verbal, conferindo à arquitetura e ao espaço uma importância ímpar.
fig.5 (0:03:56)
O final da cena arremata de forma simbólica as questões arte/vida e real/imaginário. O discurso do poeta é interrompido por uma voz: “Você não pode mais usar esta sala”, seguida de corte e inversão de eixo de câmera, o contraplano, revelando a figura do vigia no ângulo oposto do salão. Está completa a quebra da ilusão, revelando a lei, a regra, a convenção; e aniquilando a poesia. O vigia representa, então, a vida real em seu sentido mais burocrático. Outro conceito importante na fala do poeta é o de obscuridade: “deixe-‐me ser claro e obscuro; guardem suas perguntas, confiem no mistério”. Aqui, há tanto a descrição verbal de uma escolha da fotografia, o alto contraste, -‐ quanto o questionamento do próprio ato racional de perguntar, da busca do conhecimento. Os pares claro/perguntas e obscuro/mistério remetem à dicotomia que tem em sua origem o pensamento iluminista, criticando o projeto moderno, já que aconselha o caminho do desconhecido e intuitivo.
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FAVARETTO, Celso. Deslocamentos: entre a arte e a vida. In: ARS. São Paulo, v.9, n. 18, p. 94-‐109, 2011. (p.96)
Na cena da figura 6, é possível observar a dureza desta dualidade no grave contraste entre o iluminado pelo sol (edifício, matéria) e sua sombra (imaterial). Esta, agarrada aos volumes arredondados de superfície aveludada e cinzenta, é negra e tem um desenho abstrato que remete a pontas, espinhos, lanças. Uma segunda forma sobreposta, bidimensional, gráfica, recortada, contundente. Anúncio de algo nocivo, talvez mortal.
fig.6 (0:17:47)
fig.7 (0:18:01)
Da mesma forma, o conceito de escuro/obscuridade está presente nas considerações sobre a contemporaneidade do filósofo Giorgio Agamben6. Para ele, “(…) contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros.
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Coincidentemente, no ensaio O que é o contemporâneo, Agamben se vale do poema O século, do russo Osip Mandelstam para enunciar seu pensamento, ou seja, a figura do poeta e da poesia estão presentes, como em Insolação.
Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, 7 que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente.”
A percepção do obscuro está nas falas do narrador, mas principalmente na direção de arte do filme, em que a arquitetura moderna é apresentada sob a ótica da decadência, do abandono, mostrando a ação do clima e a passagem do tempo. O personagem Léo, quando perguntado se gostava de Ana, responde de forma emblemática: “eu gosto de todo mundo…no início”, ou seja, o amor quando começa só traz bem-‐estar, para depois transformar-‐se em martírio, sofrimento, transformação que é descrita pelo poeta: “(…) um assunto eterno, maravilhoso, muitas vezes doloroso, às vezes aterrador, mas sempre proveitoso… inesquecível… assustador.” Processo este experimentado pelos personagens do enredo, e que tem na fotografia e na cenografia um belo paralelo, representado pela deterioração, camada soturna sobre o que um dia foi novidade, frescor.
fig.8 (1:12:39)
Para além do paralelo entre ambiente e amor, pode-‐se identificar, numa camada mais relacionada com a própria arquitetura, a decadência do moderno. Mostrar a degeneração de edifícios produzidos sob a luz do modernismo significa não apenas a degradação da matéria, mas de todo um sistema de pensamento. De certa forma, representa o envelhecimento de uma arquitetura que não comporta a ação do tempo por sua ideologia a-‐histórica, de ruptura, de vanguarda. No moderno não existe passado. 7
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. (P. 63)
“Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo.”8 A frase ilustra, portanto, o que se pretende aqui: olhar de um ponto de vista contemporâneo para a arquitetura moderna, em que já se tem consciência da falha, do que deu errado. O sol aparece de fato com a cena de Vladimir em sua bicicleta. O personagem do jovem Antonio Medeiros pedala por ruas desertas com edifícios de grande volume. O sol tem alta luz branca, resultando em muito escura sombra. A pele de Vladimir é claríssima, ampliando a sensação de febre, queimadura, insolação. O sol é nocivo, quase radioativo.
fig.9 (0:04:26)
fig. 10 (0:04:56)
O sentido primeiro, no filme, é a insolação como paixão, a febre que inflama o homem. Calor que provoca queimaduras, agente externo que causa doença, a paixão: pathos. 8
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. (P. 64)
Afora estes significados, a insolação pode assumir o papel de força incontrolável da natureza. O imponderável que se revolta contra a ação nociva do homem e passa a castigá-‐lo em forma de calor, luz agressiva, perturbação, e mais amplamente o aquecimento global9. E indo mais fundo: sol e luz enquanto razão, racionalidade. Insolação e radiação como a racionalidade prejudicial, que acaba por danificar o próprio homem. Ele, que desde o Renascimento coloca a razão em primeiro lugar, recebe nos tempos atuais o revés de seus efeitos. Se o sol é a luz do homem moderno, a insolação seria seu resultado na contemporaneidade, sua “treva”. O sol intenso, então, aparece como personagem de fato, assim como a cidade, mas vai além dela: é ele o protagonista. É a natureza no comando, não mais o que foi feito pelo homem, a cidade. Fisicamente, ele entra pela lente da câmera e ofusca os olhos do espectador, uma espécie de flaire, e aparece também na versão negativa, a sombra, em igual proporção, reforçando aquilo que anteriormente profetizava o poeta: “confiem no mistério.” Assim o sol, em conluio com o tempo, causa danos à cidade e ao homem, como se pode observar na cena que tem como locação um quiosque ao ar livre, uma espécie de lanchonete. Embora em funcionamento, a construção apresenta um certo abandono, tanto na aparência quanto na implantação. No entorno, edifícios esparsos, distantes uns dos outros, desabitados. Ninguém além dos personagens, sobreviventes neste estranho lugar, onde o mato cresce sem controle.
fig.11 (0:05:09)
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Abordagem semelhante do clima em colapso pode ser vista no premiado curtametragem de ficção Recife Frio (2009), de Kleber Mendonça Filho. A temperatura da cidade cai bruscamente, transformando a maneira de viver e morar.
O poeta se aproxima soltando palavras ao vento: “Lá, no início do tempo, o tempo se agarrou ao espaço. Agora o tempo parece um pouco distorcido neste lugar. Mas não é o tempo – as pessoas vão dizer que é o tempo. É, pode ser o tempo, pode ser o espaço. Tempo, espaço.”
fig.12 (o:05:54)
O tempo e o espaço, parecem distorcidos naquele lugar, que pode ser a cidade, o filme em si, ou mesmo o lugar compartilhado por todos, o mundo, o planeta. Ele apresenta a fusão entre tempo e espaço, sugerindo uma ambiguidade que é parte da linguagem do cinema, em que o tempo não necessariamente corresponde ao tempo cronológico, sobretudo naquilo que Gilles Deleuze chama de imagem-‐tempo10. Em Insolação, o tempo linear não tem importância, e sim o estado mental e emocional, as sensações, a poesia tanto verbal quanto visual. O espaço, por sua vez, está presente em muitas falas do narrador; nesta e anteriormente, quando menciona a cidade. O espaço que parece distorcido tanto pode se referir à condição física em que se encontram as edificações – castigadas pelo sol – quanto à maneira como vão sendo filmadas quando em movimento, em desconexão, fragmentadas, como na primeira cena de Vladimir andando de bicicleta. O tempo se arrasta ainda mais quando o espaço é ocupado por apenas um solitário personagem sem ação, simplesmente a presença, um índice do humano, como nas figuras 1, 4, 6, 7, 10 e 11, e também nas seguintes: 10
De acordo com Roberto Machado, o conceito deleuziano de imagem-‐tempo abrange imagens cinematográficas que têm relação direta com o tempo e o pensamento. Diferem e vão além, portanto, das imagens-‐movimento, constituídas por situações sensório-‐motoras. Sobre o assunto, relacionado ao curtametragem Eletrodoméstica, ver o ensaio Para além da praticidade, de autoria da pesquisadora, disponível em
fig. 13 (0:11:30) fig.14 (0:12:05)
fig.15 (0:16:50) fig.16 (0:22:56)
fig.17 (0:45:20) fig.18 (0:52:56)
fig.19 (1:16:18) fig.20 (1:27:21)
fig.21 (0:57:56) fig.22 (1:10:11)
fig.23 (1:12:08) fig.24 (1:20:10)
fig.25 (1:29:56) fig.26 (1:15:57)
O poeta segue: “Agora mesmo sua vida se estende na sua frente, atrás de você, em todas as direções. Não sei porquê. A vida está por toda parte. Nós evoluímos e involuímos para frente, e involuímos e evoluímos para trás.” Aqui a ideia de tempo/espaço em continuidade se completa, num raciocínio que considera o tempo não-‐linear e multidimensional, questionando o sentido de progresso e evolução e apresentando um olhar fenomenológico, sensível. O poeta, a seguir, adquire um status de mestre de cerimônias ao propor uma espécie de jogo aos participantes. O espaço do quiosque, inicialmente mostrado como um todo pelo exterior, em perspectiva, é fragmentado em vistas internas de cada uma de suas quatro faces, janelas por onde se vê o exterior, o mundo e as pessoas. A câmera fixa parece posicionada exatamente no centro da lanchonete, realizando quase registros fotográficos, em que apenas os personagens se movem como quadros vivos. A montagem se dá por cortes, sem continuidade entre uma face e outra do espaço, por isso a sensação da vista, esta representação gráfica ortogonal tão utilizada nos projetos de arquitetura. E assim como num projeto, a compreensão do objeto todo, o quiosque, se dá pela perspectiva, estabelecida pelo plano geral do início. A luminosidade do exterior é tanta que o interior do lugar é pura sombra, uma moldura escura em contraluz, onde as folhas das janelas se abrem para fora formando um abrigo para o sol a pino. A monotonia só é interrompida por pequenos detalhes nos objetos apoiados na bancada, e pelos personagens. O espaço, então, enquadra e emoldura, mas também uniformiza e massifica o humano, reduzindo sua importância enquanto indivíduo. O contraponto está na natureza da proposta do mestre de cerimônias, que diz que estão todos “prestes a embarcar numa aventura maravilhosa”: dar a volta naquele local para que “pudessem falar um pouquinho sobre si mesmos”. A valorização do indivíduo, do pessoal e específico, partir da mobilização física dos corpos. A ideia de movimento rompe a bidimensionalidade, sugerindo a roda, contato, afeto; em vão, pois ninguém topa a brincadeira. Ainda que a câmera esboce um giro desajeitado, o movimento não se conclui, mantendo os cortes, quadro a quadro. Apenas a música traz continuidade e sequência.
No decorrer do filme percebe-‐se que sim, o jogo foi aceito pelos personagens, e isso é o próprio desenvolvimento do roteiro. Depois que se separam na lanchonete, o filme segue com cada personagem mostrando sua vida, seu ambiente, e mais de si mesmos, de acordo com a proposta do poeta. É possível situar como contemporânea a atitude do poeta, no sentido de retomar o humano em sua fragilidade sensível, a partir do interesse em considerações pessoais sobre a vida. “Como se sabe, o contemporâneo é mais um campo e uma atitude, que em alguma coisa se distingue da moderna, ao invés de, propriamente, uma superação ou substituição do que antes era desejo de ruptura, do novo, etc.”11 No filme, o espaço do quiosque é o lugar do encontro, da reunião, uma espécie de ágora contemporânea, onde os indivíduos são convidados à exposição de suas opiniões. Acontece que, como seres deste século, são acometidos por aquilo que Freud chama o mal-‐estar: estão desacreditados, endurecidos, anestesiados12. Não é à toa que o poeta os alerta, lúcido e provocativo: “O amor não foi feito para sermos felizes, mas para nos sentirmos vivos.” Igualmente não é por acaso que o espaço em que se encontram já não é público – um outro sintoma dos tempos atuais -‐ , e sim um local de consumo, uma lanchonete, onde, paradoxalmente, ninguém está a consumir. Os personagens parecem mais estar-‐se abrigando do sol, nos três sentidos propostos neste texto: a metáfora do sol/ razão excessiva fomentada pelo próprio homem; o sol enquanto fenômeno físico da natureza subjugada pela mesma razão, radiação nociva que prejudica, castiga o homem. E, é claro, a insolação como febre da paixão: “Guarda-‐ te bem do amor. Teme essa felicidade”, diz o pai de Vladimir.
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FAVARETTO, Celso. Deslocamentos: entre a arte e a vida. In: ARS. São Paulo, v.9, n. 18, p. 94-‐109, 2011. (P.98) 12 Freud, na obra O mal-‐estar na civilização, coloca como principais fatores de infelicidade do homem contemporâneo: o amor e a repressão da agressividade. Sobre o assunto, igualmente relacionado ao longametragem Insolação, ver o ensaio Cenas de instintos domesticados, de autoria da pesquisadora, disponível em
fig.27 (1:34:05)
A cena final do filme é novamente o quiosque, desta vez vazio, no mesmo enquadramento de quando apareceu pela primeira vez: a câmera fixa registrando a paisagem árida e imóvel. Seria uma foto, não fosse pelo mínimo movimento da lona rasgada de cobertura, percebido graças ao longo tempo de duração da cena, 32 segundos. Diz o poeta: “A vida passa tão rápido. Eu vejo crianças tentando, se debatendo, procurando por toda parte. Eu fiz isso. Eu faço isso. Andando, perdidos, sob o sol. Olhando uns para os outros e perguntando: é você? É você? Toda noite, uma noite de insônia Enquanto tentamos acalmar o animal dentro de nós Como a música a uma outra pessoa Ah, a pele deles é nova e eles não sabem nada Ao contrário de nós, que temos a pele velha e não sabemos nada”
O lugar que dá abrigo e alento para a desilusão mostra o efeito nocivo da insolação no tecido que o recobre, como a pele que descasca quando queimada pelo sol. A estranha beleza da cena está na combinação da fala e da imagem: tanto às peles jovens quanto às velhas, o amor é sempre uma busca humana, ao mesmo tempo fundamental e avassaladora. E a cobertura da lanchonete, então, se mostra frágil como o maior órgão do corpo humano, reforçando a condição perecível das coisas do mundo criadas pelo homem. A arquitetura que é apresentada em Insolação está o tempo todo sob a ação de algo maior: vento, temperatura, sol; a natureza, o ambiente terrestre, o tempo, -‐ demonstrando que os produtos da inteligência não dominam o imponderável – assim como o homem é arrebatado pelo amor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. BANHAM, Reyner. Teoria e projeto na primeira era da máquina. São Paulo: Perspectiva, 2013. FAVARETTO, Celso. Deslocamentos: entre a arte e a vida. In: ARS. São Paulo, v.9, n. 18, p. 94-‐109, 2011. FREUD, Sigmund. O Mal-‐estar na Civilização. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2012. HAMBURGER, Vera I. Arte em Cena: a direção de arte no cinema brasileiro. São Paulo: Sesc/Senac, 2014. HARVEY, David. Condição pós-‐moderna. São Paulo: Loyola, 2010. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: 34, 1994. MACHADO, R. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. Longametragem Insolação no Youtube: disponível em acesso em 01.nov.2015 Curtametragem Recife Frio: disponível em acesso em 30.dez.2015 Sobre o longametragem Insolação: disponível em acesso em 15.dez.2015 Textos de Laura Carone Cardieri: Cenas de instintos domesticados (2015) e Para além da praticidade (2014), entre outros: disponíveis em acesso em 6.jan.2016