Institucionalização do Trabalho

July 14, 2017 | Autor: Helgis Cristófaro | Categoria: Organizational Psychology, Political Philosophy, Critical Social Theory
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Este texto foi originalmente redigido como trabalho final do curso de pós-graduação–Desenvolvimento e Crises da Psicologia Organizacional (PST – 5715) ministrado no Instituto de Psicologia da USP pelo Prof. Dr. Sigmar Malvezzi durante o segundo semestre de 2013.
Bacharel em Filosofia pela FFLCH USP e mestrando em filosofia política na mesma instituição.
Cf. Nobre, Marcos; A Teoria Crítica, Jorge Zahar Editora, 2004.
Source: National Surveys on Drug Use and Health (NSDUH), 2011 (revised October 2013). NSDUH is an annual survey sponsored by the Substance Abuse and Mental Health Services Administration (SAMHSA). The survey collects data by administering questionnaires to a representative sample of the population through face-to-face interviews at their places of residence
Institutions are conceived as consisting of basic ideals that are developed into distinctive ways of defining and acting upon reality (i.e. discourses), supported by elaborate systems of measurement and documentation for controlling action outcomes. Even though such a distinction may convey the impression of a stepwise process, here, it is intended more as an analytical device for disentangling the composite totality that makes up the processes of institutionalization.
Denominado como modo de produção asiático, ou modo de produção ancestral ou ainda comunismo primitivo. Neste modo de produção não há nenhuma posse privada da propriedade, detendo o Estado a posse da propriedade e da terra em particular, tomando uma forma comunal. Marx também atribuiu à este modo de produção uma forma de governo despótica, um baixo nível de tecnologia e a economia constituída em torno de agricultura, do artesanato simples e em torno da garantia de sobrevivência imediata.
Cf. GRIMES, ANDREW J. & STEFFY, BRIAN D., Personnel/Organizational Psychology: A Critique of the Discipline in Critical Managemente Studies, Sage Publications, 1994
Cf. NEGRI, ANTONIO, & HARDT, MICHAEL, Empire, Harvard University Press, 2001, pp. 22 e seguintes.
A Institucionalização do Trabalho,
a Fluidez do século XXI
e o Objeto da Psicologia das Organizações e do Trabalho
Helgis Torres Cristófaro


"Never in the last two hundred years have there been so few efforts to defend an emancipatory and humane notion of labour as today."
(Axel Honneth, 2012, p. 56)

Resumo: O texto pretende aplicar ao campo da Psicologia das Organizações e do Trabalho o instrumental crítico de análise próprio da teoria crítica e do materialismo histórico para compreender como a questão da emancipação humana tem sido considerada na gestão de pessoas nas relações de trabalho, neste início de século XXI, bem como, estabelecer desafios e possibilidades de mudança na atuação dos profissionais de POT.

Pensar o objeto da Psicologia das Organizações e do Trabalho (POT) considerando a fluidez do século XXI e a institucionalização do trabalho é um desafio prospectivo que pede um exercício inicial de análise crítica dos três elementos que compõem tal desafio de análise concatenada (os conceitos de fluidez e institucionalização e a POT enquanto campo de saber) para então tecer um prognóstico para a POT e seus objetos com base em um cenário futuro estabelecido como tendência a partir dos fios históricos revelados pela análise crítica.
O pano de fundo desta análise crítica é a Teoria Crítica considerada sob três elementos fundamentais: a relevância dos movimentos históricos, a centralidade da emancipação e a atitude crítica.
A atitude crítica se estabelece pelo compromisso de manter indissociáveis conhecimento e prática, investigação e história. Atitude crítica então seria conhecer sem abdicar da reflexão sobre o caráter histórico do conhecimento produzido. A atitude crítica solicita que o conhecimento seja pensado sempre sob uma inserção social e das relações sociais no tempo presente em movimento.
A centralidade da emancipação humana significa tomar posição de confronto e superação sobre as relações de dominação de toda espécie, e tem por postulado a presença no interior das formas de dominação das condições de possibilidade de relações de cooperação e consentimento que podem superar o modelo dominador-submisso.
O movimento histórico lembra que a tarefa de constituir um diagnóstico do tempo presente é incessantemente renovada e necessariamente inscrita em uma leitura reatualizada do passado. Ou seja, entendimento do passado sob as condições presentes de movimentos emancipatórios formando uma tendência histórica.
A Fluidez do Século XXI
Me recordo de quando, ainda adolescente, li dois grandes textos futuristas da época, "1984" de George Orwell e "Admirável Novo Mundo" de Aldous Huxley e pouco depois assisti ao fabuloso filme de Stanley Kubrick "2001 Uma Odisseia no Espaço". Filme e livros tiveram profundo impacto e moldaram fantasias e expectativas sobre o novo século, mas sobretudo, ofereceram reflexões valiosas sobre a natureza humana.
Diz a classificação de gênero literário e cinematográfico, tratarem-se de ficções. Assim, na maior parte, aquelas obras de arte não mostravam prognósticos precisos do futuro, eram e continuam sendo realidades fictícias. No entanto, em alguma medida, são em verdade exercícios prospectivos que se mostram muito presentes, quase como se fossem profecias. Se por um lado falar do futuro não é ficção apenas na literatura, afinal todo exercício de futurologia é um exercício de possiblidades imaginadas, por outro lado, o passado e o presente são realidades palpáveis que se bem interpretadas tem os sinais de como estabelecem as condições de possibilidade do vir a ser, e os limites que estabelecem determinações de curso. Esse exercício Marx denominou de tendência histórica.
Dessa forma, Orwell, Huxley e Kubrick anteviram como as individualidades e a ordem social, neste início de século XXI, parecem de fato assentadas sobre um progresso tecnológico avassalador, presente em todas as dimensões da vida. Tal qual a mão invisível do mercado dos economistas existe a mão invisível da tecnologia, atravessando e tocando todas as formas de vida, em todas as suas manifestações. Não chegamos ao ponto da autodeterminação dos sistemas (ou da máquinas) perante o humano como em "2001", mas vivemos sobre um grau, ou em um degrau, dessa determinação extrema.
Por conta dessa massiva presença da tecnologia na vida, no final do século XX e neste início de século XXI, ocorreu uma desintegração dos limites espaço temporais, como se o mundo tivesse sido subitamente reduzido e coubesse nas telas digitais de alta resolução e na mobilidade e diversidade das comunicações interpessoais via telefonia celular, internet, redes sociais, etc. Pensar a vida através de categorias especificas determinadas por limites espaço temporais não fornece mais uma compreensão adequada dos fenômenos humanos individuais e sociais. A rigor a compreensão dos fenômenos humanos em geral sempre esteve sob dificuldades quando a metodologia utilizada foi de natureza cientifica. A complexidade humana, individual e social, aumentou de tal maneira que não há restrição de variáveis que sustente qualquer tipo de conhecimento determinista perante a diversidade e mobilidade das mudanças sociais, vale dizer, perante a fluidez dos indivíduos e das suas relações. Essa quase que impossibilidade de manter as ciência humanas sob as demandas das metodologias das ciências exatas é o principal ganho teórico na virada do século.
Ainda que a redução do humano à razão instrumental já tenha sido criticada inúmeras vezes, ela persiste, sobretudo no senso comum. Em massa a humanidade tem realizado a troca de liberdade e diversidade pelos constrangimentos de identidades em conformidade com uma estrutura de consumo e produção que promete, mitigar, garantidamente, os riscos de infelicidade, incerteza e morte inerentes à vida.
Essa troca, que a maioria realiza sem plena consciência, como se essa forma de vida fosse natural e a única possível, é sustentada pelos resultados efetivos de aumento da população mundial e de sua longevidade que marcaram o século XX e são mais eloquentes na sua segunda metade.
No entanto, nem sempre essa efetividade foi acompanhada de boas condições de vida e de autorrealização. Ao contrário, os indicadores de diferença de ganhos, de suicídio entre jovens adultos, de abuso de substâncias (álcool, drogadição e automedicação), de diagnósticos de doenças mentais e de uso crescente de antidepressivos, estabilizadores de humor e antipsicóticos indicam que essa troca tem levado a um sentimento quase que geral de bloqueio das condições de autorrealização.
Tomando os EUA como referencial, pelo tamanho de sua economia e sua hegemonia tecno militar cultural, os números sobre doenças mentais e abuso de substancias são eloquentes. Considerando o ano de 2011 havia 34,6 milhões de adultos (idade acima de 18 anos) diagnosticados com algum tipo de doença mental, 12,1 milhões com problemas de abuso de substâncias e outros 6,8 milhões com os dois problemas Ou seja, somadas as três classificações são 53,5 milhões de estadunidenses com algum tipo de dificuldade psíquica. Considerando ainda que toda população economicamente ativa de 155 milhões de pessoas está nessa faixa etária acima dos 18 anos, a menos dos aposentados, temos que entre um quarto e um terço das pessoas que trabalham se drogam constantemente ou com substâncias legais como álcool, ou com substâncias ilegais como maconha, cocaína, heroína, anfetaminas, etc., ou com medicamentos como psicotrópicos, ansiolíticos, reguladores de humor, etc.
Mais ainda, 65% das pessoas sob tratamento de saúde mental estão seriamente incapacitadas para o trabalho. Considerando, ainda, que as estatísticas de alcoolismo e drogadição são necessariamente imprecisas pela natureza do assunto é razoável estimar que o consumo de álcool e drogas ilícitas atinge uma população bem maior.
O crescimento contínuo do consumo de medicamentos indica um descontentamento com a própria condição psíquica para parte significativa da população adulta no país referência do capitalismo global, vale dizer, não há autorrealização.
O "soma" do Admirável Novo Mundo está entre nós. A fluidez neoliberal do século XXI deve ser entendida como o desconhecimento de si, em um ciclo que se inicia com identidades de prateleira, continua com um diagnóstico expresso de distúrbios de personalidade, ou mesmo doença mental e se perpetua com o consumo de medicamentos, desconectando a pessoa de seus sentimentos, recrudescendo o esvaziamento de um self não coeso e reafirmando a necessidade da medicação.
Os que não têm "a sorte" de um diagnóstico tem no consumo excessivo de álcool e nas drogas ilícitas outra alternativa para manterem-se sob controle. Considerando ainda o crescimento das religiões mercantis sob medida que trocam dizimo por conforto de pertencimento a valores padronizados e bem ajustados ao mercado globalizado, parece que o contingente de adultos dispostos a uma vida de fato humana está em redução sistemática.
Como o trabalho também passou a prescindir de limites de espaço (não está restrito aos muros das fábricas, ou às paredes dos escritórios) e de tempo (não está limitado por uma jornada fixa diária de oito horas e cinco dias por semana) é imediata a abdução de que sendo uma parte importante do agir das pessoas, em termos de quantidade de tempo, energia e prioridade, a forma e as condições de trabalho tem relação direta com o bloqueio da autorrealização e por consequência com o adoecimento psíquico, quer dizer com um sofrimento social.
A fluidez neoliberal do século XXI não é apenas uma flexibilidade que abriga a diversidade, é também uma ausência de determinação de si mesmo que se renova e reinventa através do consumo de bens, do trabalho sem sentido institucionalizado e do uso constante de drogas, lícitas ou não, que modificam a condição de ser humano sensível pleno de afetos e paixões que não é apenas razão.
Adicionalmente essa fluidez remove valores e referenciais morais, sejam eles normativos ou gramaticais, constituindo como que um corpo social sem parte rígida, sem esqueleto, sem coluna dorsal, todo flexível e que não pode estar ereto sem algum exoesqueleto. Trata-se de uma existência condicionada por uma extrema conformidade, um existir de plena determinação toda exterior ao indivíduo.
A Institucionalização do Trabalho
Institucionalizar é um fenômeno sócio político e se refere à transformação de conceitos, valores, comportamentos, conhecimentos, técnicas, hábitos, valores, práticas, costumes, etc., em alguma estrutura social reconhecida e aceita a priori por todos indistintamente. Essa estrutura social tanto pode ser uma organização concreta, um regramento objetivo, ou um constructo aceitos como inerente ao social.
Nesse sentido, institucionalizar se aproxima dos conceitos de naturalizar e universalizar, na medida em que sob a perspectiva dos indivíduos algo institucionalizado da mesma forma que algo naturalizado está na condição de pressuposto na organização social e na definição da própria existência e não é passível de dúvida ou questionamento, e por consequência é também uma verdade universal.
Em particular quanto a institucionalização de conhecimentos e técnicas é útil, para a reflexão sobre a institucionalização da própria POT, o modelo proposto por Hans Hasselbladh e Jannis Kallinikos segundo o qual institucionalização é entendida como a concatenação de Ideais, discursos e técnicas de controle. Para os autores "Instituições são concebidas como consistindo dos ideais básicos que são desenvolvidos em distintas formas de definir e de agir sobre a realidade (ou seja, discursos), suportados por elaborados sistemas de medição e documentação para controle dos resultados de ação. Apesar de tal distinção poder transmitir a impressão de um processo gradual, o objetivo aqui, é tomá-la mais como um dispositivo analítico para destrinchar a totalidade composta que forma os processos de institucionalização." (Hasselbladh and Kallinikos, 2000, p. 704).
Institucionalizar carrega traços específicos no caos do trabalho, na medida em que também representa as formulações de um "dever ser" expressas em forma de direitos e deveres legais e morais a respeito do trabalho e das relações do trabalhador com o capital e as organizações de trabalho. Em suma, a institucionalização do trabalho deve ser entendida como as pretensão de um conjunto de naturalizações de valores universais e de construções concretas de dispositivos institucionais locais e globais que tem por objeto a capacidade humana de produzir coisas materiais ou imateriais.
Mas, no que resultou a institucionalização do trabalho? De onde partiu e onde chegou esse processo?
Vários autores se dedicaram a construir uma historiografia do trabalho, ou mesmo entender a história da humanidade a partir do trabalho. Nesse sentido, Karl Marx e Friedrich Engels fornecem, sob o materialismo histórico, uma interpretação histórica que encadeia em sequência modos de produção e faz a correlação entre estruturas de poder, tecnologias de produção e crises sistêmicas que levariam ao próximo modo de produção.
Vou aqui apropriar, com certos ajustes, os quatro grandes movimentos defendidos por Marx como sendo a história da institucionalização do trabalho, a saber: comunismo primitivo (ou modo asiático), sociedades escravocratas, o feudalismo e o capitalismo.
Dada a caracterização que Marx faz do comunismo primitivo vou considerar a institucionalização do trabalho principiando nas relações de escravidão. Também vou considerar que o trabalho escravo se mantém no interior de todos os demais e assim sucessivamente, ou seja, defendo que no processo histórico da institucionalização do trabalho não ocorreu uma substituição de formas ultrapassadas de institucionalização por novas formas, mas sim acréscimos em camadas com eventuais diluições das formas anteriores, vale dizer adaptações, de tal modo que nunca de fato se extinguiram por completo as institucionalizações anteriores, na medida em que institucionalizar não se refere exclusivamente ao estatuto legal e jurídico, mas também às dimensões moral e prática do trabalho e das relações entre trabalhador e capital.
Ademais, com a globalização, a integração pela telecomunicação, teleprocessamento e aceleração e disponibilidade das formas de transporte, a institucionalização do trabalho deve ser repensada em termos globais, o que implica encontrar formas de trabalho muito diversas e que, na sua essência, se passam conforme diferentes formas de institucionalização.
Um segundo ajuste diz respeito a subdividir o modo capitalista em mutações, ou sub modos, de tal forma que diferentes formas de institucionalização podem ser identificadas e analisadas. Assim, considero ao menos as seguintes formas de capitalismo: mercantil, industrial de grandes volumes, administrado pelo Estado, industrial de eficiência de materiais, financeiro, cognitivo e globalizado.
Dessa maneira, poder-se-ia dizer que a institucionalização do trabalho acompanha a história humana há um longo tempo, ao menos desde as primeiras relações de escravidão, e de tal modo que a escravidão foi e é uma instituição que define regras de forma, valor e relação do trabalho, inclusive como instâncias legais.
Essa história da institucionalização do trabalho pode ser reconhecida em seu acúmulo de valores e conceitos sob o seguinte conjunto declaratório:
É através do trabalho que cada ser humano garante sua sobrevivência e exerce sua cidadania. Exceto crianças e idosos todos devem trabalhar. É trabalhando que se ganha a vida.
O trabalho remunerado é mais importante que o trabalho não remunerado.
O trabalho remunerado que produz resultados precificáveis é mais importante e desejável socialmente.
Trabalhos mais complexos devem ser melhor remunerados.
Quanto menos manual mais complexo é o trabalho. O trabalho de comando, direção, gestão é mais valioso que os demais.
O trabalho deve ter finalidade econômica.
Também um conjunto de estatutos institucionais pode ser identificado:
Direitos e deveres nas relações de trabalho são regidos por leis.
Trabalhadores se organizam sob sindicatos legalmente previstos.
A recusa ao trabalho é um direito, direito de greve, que pode ser exercido sob condições legais que o regulam para evitar crises econômicas.
É a existência de capital na forma de ativos (terras, prédios, equipamentos, instalações, estoques, direitos e patentes) e numerário (caixa e recebíveis) que possibilita a oferta de trabalho, a produção de bens e serviços e consumo.
O resultado do trabalho é propriedade do detentor do capital. A distribuição do lucro para os trabalhadores, se existir, é maior conforme seja maior o nível hierárquico.
Por fim cumpre destacar o estabelecimento de instituições formais como, Ministério do Trabalho, judiciário específico como no caso brasileiro, organizações e organismos internacionais (a OIT – organização internacional do trabalho p.ex.), a inclusão de regras sobre trabalho nos acordos de livre comércio como União Europeia, ALCA e Mercosul, a exclusão legal e social de direitos mínimos para trabalhadores imigrantes ilegais e a formação de reservas de mercado através de organizações classistas por especialidades técnicas, de produtos ou de saber, ou sua combinação, como conselhos de engenharia e administração, sociedades profissionais, institutos certificadores, etc..
No processo de institucionalização do trabalho a padronização do trabalho tem sido fator constante e tem por fundamento atender o conceito de que o consumo de bens e serviços é o desejo por algo determinado e conhecido a priori. Para funcionar bem o capitalismo de mercado requer que o desejo emane de uma promessa de prazer claramente determinada pelo objeto, tempo e situação, o desejo não deve ter autonomia individual perante a produção. Assim, o trabalho deve produzir o mesmo, o igual, o esperado, e segundo uma fixidez e constância do desejo de consumo, vale dizer desejo de ter, que pode ser expresso em termos monetários se for possível discriminá-lo no tempo e comparativamente.
É no tempo e na comparação que o valor da coisa se modifica de modo a se constituir o ciclo de obsolescência segundo o qual algo novo se torna antigo decrescendo seu valor e abrindo espaço para um novo algo novo que por seu turno cumprirá o mesmo ciclo. Para tanto o desejo deve seguir esse ciclo infindável de insatisfação reconfigurando a lei de utilidade marginal: não mais uma determinação de valor pela relação entre utilidade e quantidade, mas pela relação entre utilidade e novidade, ou a utilidade condicionada pela substituição oportuna em lugar da necessária.
No capitalismo globalizado o desenvolvimento de produtos através da evolução das engenharias de produtos, das técnicas de design, da engenharia de produção e dos modelos informatizados de planejamento e controle de produção conseguiu criar uma grande diversidade de objetos de consumo a partir de um conjunto padronizado de atividades e insumos, de tal forma que o trabalho hiper-fragmentado guarda cada vez menos conexão com o resultado final o qual surge como um resultado impessoal produzido pela junção de muitos fragmentos laborais. Ademais, um mesmo fragmento altamente especializado participa de inúmeros conjuntos de produção para gerar diferentes resultados, na forma de bens e serviços, velando ainda mais a vinculação entre o trabalho e seu resultado.
O outro elemento que tem sido constante através do processo de institucionalização do trabalho é a tensão fundamental entre dominação e submissão presente em todos os modos de produção desde a escravidão. Daí ser a emancipação questão fundamental para todas as tradições críticas. No entanto, parece que ao final do século XX a questão da emancipação como que ficou "démodé" no próprio meio acadêmico das ciências sociais. Nas palavras de Honneth, "Enquanto o trabalho societal perdeu quase por completo sua significância nas ciências sociais, as dificuldades, temores, e esperanças daqueles diretamente afetados pelas condições do trabalho societal giram em torno dessa noção mais do que nunca" (Honneth, Axel, 2012, p. 57). Esse "trabalho societal" se refere à noção de o trabalho ter a múltipla função de satisfazer demandas e necessidade econômicas, individuais e sociais.
E prossegue o filósofo crítico notando que "...o desaparecimento do reino do trabalho do foco da teoria social transmite a realização de que as relações de produção correntes existentes fazem com que qualquer proposta de melhoria efetiva na organização do trabalho soe como mero pensamento mágico (sollensforderungen)." (ibid idem)
Sob esses mesmos referenciais a própria POT enquanto uma forma de trabalho foi institucionalizada, e parte da reflexão crítica sobre seus rumos e seus objetos no século XXI deve necessariamente considerar que o psicólogo das organizações e do trabalho realiza trabalho que é demandado, ofertado e remunerado conforme a institucionalização do trabalho vigente. Sob determinações e limites próprios do capitalismo!

A Psicologia das Organizações e do Trabalho e o século XXI
Os campos do saber que se constituíram com uma proporção mais acentuada do saber técnico (savoir faire) do que de um saber científico propriamente dito (savoir savoir) têm maior dificuldade de incorporar com vigor reflexões críticas sobre si mesmos. Esse fenômeno é plenamente observável em campos como a Administração de Empresas, as Engenharias, a Medicina, e tantas outras profissões que têm uma face prático produtiva muito acentuada.
Com a crescente desconexão entre campos de saber, resultado da especialização produtiva, o foco na relação com outros campos é regido quase que exclusivamente por acréscimos técnicos efetivos. Assim, qualquer contribuição crítica sofre crescentes resistências nesses campos onde a prática e a técnica são prioridades, uma vez que toda crítica demanda formulações hipotéticas que não podem ser comparadas com a concretude da produção prática que uma técnica realiza. A análise crítica pressupõe a aceitação de alternativas, o risco de ajustes e a continuidade do processo crítico. Em suma, no nosso ambiente produtivo contemporâneo a crítica é considerada essencialmente diletantismo, perda de tempo. Apenas a crítica propositiva é desejada, desde que cumpra a função de acelerar e aperfeiçoar os objetos práticos e técnicos. Tragicamente, no mais das vezes, a ausência da análise crítica conceitual enseja a proposição de falsas inovações, meras renomeações dos mesmos conceitos e práticas, apresentados sob novos nomes ou com discretas modificações. Uma análise minimamente profunda dos rótulos em consultoria de gestão, em marketing ou em tecnologia de informação devem demonstrar essa monotonia conceitual.
A POT se inscreve no contexto de um campo de saber com forte ênfase na técnica. A dificuldade implícita nessa declaração está na necessidade quase uniforme que todos os campos de saber têm de estarem conforme o status de saber cientifico, ainda que sejam um saber fazer, como se o saber cientifico fosse muito mais valioso que o saber fazer. Se de fato a POT é a combinação entre administração de empresas, psicologia e filosofia é deste último campo, da filosofia, que a POT poderia se alimentar de um saber crítico.
Nesse sentido, a POT tem a vantagem de manter no seu "DNA" uma conexão com o campo filosófico que de fato tem se apresentado como reflexão crítica pelas mãos de alguns de seus teóricos para além do debate técnico instrumental voltado para a Administração de Empresas.
No entanto, a face técnica a serviço de uma institucionalização do trabalho segundo as demandas do modo capitalista de produção foi a grande ênfase de realização da POT. É lícito concluir que a POT encerrou o século XX sob um déficit sociológico fundamental, pois, pouco ou nada contribuiu para a emancipação dos trabalhadores, ou ao menos para denunciara a formidável precarização do trabalho empreendida pelo modelo econômico neoliberal. Evidentemente não se trata de cobrar os profissionais e teóricos da POT pelo aprofundamento de relações desiguais de poder e ganhos nas organizações, pois trata-se de uma falência geral da emancipação e do trabalho como foco de crítica e proposição em todos os campos das ciências sociais e humanas como observa Honneth na citação acima. No entanto, cada voz que se cala presta um serviço à reificação humana através do trabalho, e essa responsabilidade deve sim ser cobrada dos profissionais da POT.
Trata-se de um conflito que se tornou desigual em poder e número, na sociedade e na academia, a partir dos fracassos dos movimentos operários ao redor do mundo desde os regimes pseudo-comunistas russo, chinês e europeu oriental, passando pelo desmantelamento do operaismo italiano, e se consolidando na conformidade ao credo do capitalismo financeiro neoliberal globalizado protagonizada pela chegada ao poder do Partido dos Trabalhadores no Brasil e sua notória adesão ao modelo político econômico neoliberal que pensa o trabalho como privilégios em hierarquias de poder e ganho. Em suma, os esforços emancipatórios passaram a representar um idealismo irrealista, ultrapassado e sem rumos.
No que se refere à POT as recentes e repetidas tentativas de rachar o campo em uma psicologia das organizações e outra do trabalho, como se fosse possível separar cara e coroa e manter o conceito de uma moeda, mostra a atuação dessa dificuldade que o atual capitalismo globalizado constituiu para que fluam discursos ou demandas de emancipação. A proposta de separar a psicologia das organizações da psicologia do trabalho não apenas enfraquece, senão elimina, o som dos discursos críticos no interior das organizações. É mais fácil não ouvir o que não soa, não ver porque não está lá para o olhar. Eliminar a percepção da diferença torna viável, com o passar do tempo, pretender que ela nunca existiu nem virá a existir.
Evitar essa assepsia no interior da POT é seu grande desafio no século XXI, e deve ser visto como uma luta dos próprios trabalhadores por emancipação humana. Considerando que ocorreu um domínio efetivo das técnicas da psicologia aplicadas aos desafios da organização do trabalho e que resultados reais foram constituídos, é justamente a partir dessa estabilidade produtiva, desses fundamentos que mostram a POT como responsiva e capacitada que deveriam surgir espaços para as reflexões críticas das relações de trabalho enquanto relações de poder, de dominação, de inequidade e de sofrimento.
Não se trata de um pleito autorreferente e imaginário, pois as discussões em torno dos bônus para altos executivos nos EUA, Europa e Japão são reais, os deslocamento de valor e riqueza que o setor financeiro realizou, por exemplo em 2008, são reais. O adoecimento emocional e físico das populações em larga escala, como atestam os dados sobre o crescimento exponencial de prescrição e consumo de medicamentos psicotrópicos, pede que ao menos a hipótese de uma relação direta com o trabalho e a organização do trabalho seja considerada, pesquisada e avaliada.
Os objetos da POT, no contexto da fluidez do século XXI e da institucionalização do trabalho, devem ser a emancipação, a ética social do trabalho e a inequidade crônica e deveriam resultar na construção de referenciais teóricos e práticos que mostrem a possibilidade de outras maneiras de organizar o trabalho as quais podem gerar menos diferenças de ganhos, abolindo a indiferença moral nas relações de trabalho e defendendo a recompensa à cooperação. A POT pode aproveitar uma história de contribuição real para a produtividade do trabalho e um conhecimento diferenciado e real das organizações de trabalho para construir um novo marco teórico sobre o trabalho em geral, recuperando o trabalho humano para além da dimensão econômica apenas, bem como construir novas práticas de gestão de pessoas que viabilizem maior felicidade e menor sofrimento no trabalho.
O passo essencial inicial é rechaçar as intenções de fratura interior, sob o argumento fundamental da perda de referenciais históricos que construíram identidade de campo de saber. Toda dissidência remete às disputas de poder, no caso da proposta de divisão da POT o poder que está em jogo é o poder de controle para a inequidade através da monotonia acrítica que o capitalismo globalizado requer. Não é uma batalha qualquer. Trata-se de uma batalha de vida e morte, a fratura descaracterizaria de tal forma a POT que resultaria em sua aniquilação como campo integrador de saberes diversos. Facilmente veremos uma absorção da POT pela administração e pela psicologia e o esquecimento da filosofia crítica como presença importante nos campos do saber fazer.
Outro movimento essencial é compreender e argumentar a atualidade da questão da emancipação humana. Nesse sentido a produção acadêmica neutra e autônoma pode ser bastante efetiva. Esse é um desafio crítico por excelência, é preciso construir um diagnóstico do tempo presente que aproprie efetivamente prática e teoria em torno da questão da emancipação humana. A pesquisa empírica pode construir a atualidade dos efeitos das relações assimétricas de poder em torno do trabalho. As conexões entre alienação, ideologia, reificação e emancipação podem ser atualizadas e recompostas com novos aportes das renovações em psicanálise de grupo, por exemplo, ou em teoria crítica, como na teoria da luta por reconhecimento de Honneth, ou ainda, nas análises sobre globalização biopolitica e biopoder sob a égide do comum em Michael Haedrt e Antonio Negri.
Como podem certas instituições apresentarem diagnósticos e prognósticos de igualdade entre homens e mulheres ou entre raças e etnias se o sofrimento pela discriminação sofrida pelas mulheres ou por negros se expressa concretamente nas diferenças salariais e na ascensão profissional? Como pode esse tipo de afirmação ser alardeada em magazines e jornais sem qualquer consideração crítica? Síndrome de Burnout, Síndrome do Trabalho Vazio, diagnóstico Boreout, a psicopatia organizacional, os distúrbios narcísicos no trabalho, são estudos de ilusionismo?
Como empresas constroem rankings de melhores locais para trabalhar elegendo como excelentes locais empresas que desrespeitas limites de horários, impendem que funcionários acessem e-mails pessoais e redes sociais no trabalho e mantêm instrumentos de espionagem e vigilância ostensivos? Imaginem o desespero, o desamparo e a desesperança a que foi submetido um funcionário que realiza que ali onde ele é tratado como um robô é considerado um ótimo local de trabalho!
A POT fica sob ameaça de morte quando prospera a ideia de sua divisão em organização e trabalho. Nesse momento, a maior afirmação de vida para a POT é desconsiderar o medo que a ameaça de morte instaura e ao invés de uma postura de negociação cuidadosa partir para um confronto interior e outro exterior que reafirme a vocação original de equilibrar os três campos de saber da administração, da psicologia e filosofia enquanto saberes técnicos e científicos em constante cooperação e criação.
Segundo Espinosa só é livre quem supera o medo da morte. "O homem livre, no que pensa menos é na morte, e a sua sabedoria é uma meditação, não da morte, mas da vida." (Espinosa, Ética, Prop. LXVII)
A POT é feita de pessoas que estudam e trabalham com pessoas, mesmo focando na organização o trabalho se realizará por e entre pessoas. O recurso que mobiliza uma luta conjunta é a formação de um todo maior que a soma das partes. Esse todo não é um corpo objetivo regrado e pressuposto, nem é uma massa sem sentido ou propósito, esse todo se articula como força e movimento pela surgência do comum. Segundo Negri, o comum surge da relação complementar entre kairós (instante) e void (vazio).
É então na ausência de repostas prontas e de certezas cristalizadas que o verdadeiramente novo pode ser concebido, e é na presença do momento preciso que a força de estar em comum enfrenta e vence o medo que a dominação instila e assevera paralisando muitos em benefício de poucos.
Resta lembrar que em meio a tecnologias de controle completo, Kubrick, Huxley e Orwell mantiveram algo em comum que nos é muito próximo. Em "2001" o embate pela manutenção da vida entre o homem e a máquina sob condições de vida adversas e extremas (a vida no espaço no caso) é metáfora para a redução do humano à razão instrumental. Em "1984" a desconformidade de Winston é prevista, acompanhada e controlada por um Estado que eliminou qualquer separação entre o público e o privado, entre pessoa e comunidade. É inevitável pontuar a semelhança da Teletela e do Grande Irmão com as revelações de como Estados e empresas controlam e espionam pessoas em toda parte a todo instante. No Admirável Mundo Novo o selvagem John é objeto de espécie e curiosidade, um animal estranho, um John Doe (João Ninguém) que tem afetos e paixões, pensa e questiona a ponto de causar imenso horror e aversão. O irônico é que a recusa ao convívio social é do próprio John e ante a impossibilidade de se manter humano lhe restará a morte por suicídio.
O algo comum nas três obras que nos é muito próximo está para além da crítica ao positivismo tecnológico, a tragédia fundamental é o fracasso de ser humano, a essência desse fracasso é a reificação do homem pelo homem, diretamente e através de dispositivos impessoais, a face prática desse fracasso é a aceitação da reificação como condição natural da vida.
Em suma, a pergunta essencial que os profissionais de POT precisam responder urgentemente diz respeito à sua própria institucionalização. Enquanto pessoas e profissionais estarão ou não reificados? É através dessa resposta que então uma decisão moral pode ser tomada quanto a enfrentar, ou não a questão da emancipação no trabalho e da reificação alheia
Vale recordar a formulação kantiana fundamental do imperativo categórico: "Age de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio".

Bibliografia
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