Instituições totais, demografia & genocídio na Amazônia: segundo a trajetória dos Tembé/Tenetehara no Pará

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Instituições totais, demografia & genocídio na Amazônia: segundo a trajetória dos Tembé/Tenetehara no Pará∗ Jane Felipe Beltrão∗∗ Rhuan Carlos dos Santos Lopes∗∗∗

Palavras-chave: Amazônia; demografia indígena; povos indígenas e Estado; instituições totais; certidões de óbito.



Trabalho apresentado e discutido no GT Indígenas nos censos demográficos na América Latina, por ocasião do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais (ABEP), sob o tema População, Governança e Bem-Estar, realizado em São Pedro/SP – Brasil, de 24 a 28 de novembro de 2014. ∗∗ Programas de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq (janebeltrã[email protected]). ∗∗∗ Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil. Bolsista CAPES ([email protected]).

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Introdução às questões à demografia dos povos indígenas O campo de pesquisa em Demografia diz respeito a conjunto diversificado de metodologias, decorrentes da tão diversa origem das ciências que atuam a partir dessa área estudo: História, Antropologia e a própria Demografia, para citar algumas. Em se tratando de povos indígenas, analisados pelas lentes demográficas, cada disciplina têm ofertado investigações com nuances diferenciadas. Na seara da demografia histórica, como apontam revisões recentes, há grande relevância para historiografia nacional, mas com dimensões diferenciadas por região, com abrangência maior para o centro-sul que para o norte do país (BACELLAR; SCOTT; BASSANEZI, 2005; BARROSO, 2014). Grande parte da produção é relativa à história de famílias e populações. Barroso (2014), todavia, indica a lacuna de estudos acerca da dinâmica populacional e relações familiares de pessoas negras escravizadas e, destaca o silêncio dos estudos sobre povos indígenas, especialmente, para o período colonial e imperial na Amazônia. Do ponto de vista da Antropologia, para o Brasil contemporâneo, as dinâmicas populacionais dos grupos indígenas não são bem conhecidas (PAGLIARO; AZEVEDO; SANTOS, 2005) por conta da confiabilidade das fontes. Do ponto de vista demográfico, antropólogos e demógrafos tem se dedicado as pesquisas nos últimos anos, notadamente de grupos vivos, com indicações valiosas acerca da “ ... diversidade de experiências demográficas desses povos” (PAGLIARO et al., 2005, p.12). Antes disso, antropólogos eram e ainda são pouco familiarizados com os instrumentos quantitativos de análise demográfica, e os demógrafos não se dedicaram aos estudos de sociedades indígenas. Soma-se a este quadro, as dificuldades de levantamento e tratamento de dados relativos ao campo demográfico: ausência de séries documentais para nascimentos, óbitos e migrações; limitações para quantificar dados gerados a partir de etnografias, considerando a diversidade de lógicas indígenas quanto à contagem de anos, gerações, parentesco, além das possíveis interdições para falar dos mortos (PAGLIARO et al., 2005). Porém, desde a década de 1940, antropólogos tem fornecido dados, associados à demografia que, em linhas gerais, privilegiam “análises pautadas em um conhecimento detalhado da história e etnologia dos povos investigados, tratam das repercussões sobre o comportamento demográfico resultante das múltiplas formas de interação com a sociedade nacional envolvente, sejam eles sobre as

2 dinâmicas de mortalidade, fecundidade, migração ou nupcialidade, sejam eles sobre outros aspecto.” (PAGLIARO et al., 2005, p.23)

Entre as pesquisas relativas ao Tenetehara, apenas Wagley (1951) e Gomes (2002) efetuaram análises que consideram a dinâmica populacional do grupo, tendo em vista a relação entre contato com a sociedade nacional e, por outro lado, as condicionantes culturais da etnia no que diz respeito às taxas de reprodução física. Apesar de relevantes, as duas obras de referência não abordam as particularidades dos Tembé/Tenetehara, nesse caso os da região de Santa Maria do Pará, tendo em vista trajetória histórica e particularidades culturais. De fato, é de se ressaltar que a Antropologia, apenas, se dedica a esse sub-grupo étnico Tenetehara a partir de sua própria demanda pela escrita da História, no bojo de reivindicações políticas (BELTRÃO; LOPES, 2014). Pelo argumento, o esforço desenvolvido nesta comunicação está em buscar indicações acerca dos impactos sobre a população Tembé/Tenetehara, gerados pelas ações estatais corporificadas dentro do território étnico do grupo. Os números e as análises estatísticas, no caso, objetivam refletir a respeito do projeto homogeneizador do Estado sobre esses indígenas, em práticas desdobradas em casamentos interétnicos, ocultação de marcadores étnicos nos registros oficiais e dilapidação do território tradicional. Assim, considerando as particularidades da dinâmica demográfica – fatores históricos, antropológicos, sociais e econômicos, bem como a oscilação dos registros das instituições do Estado, no que tange aos povos indígenas, a abordagem associativa entre cálculos estatísticos e análise qualitativa permite a ampliação das perspectivas no estudo da demografia antropológica dos povos indígenas (PAGLIARO et al., 2005). Essa é necessidade corrente, tendo em vista as limitações das análises antropológicas e também históricas sobre o tema, sublinhadamente para a Amazônia, como depreendemos das recentes revisões de literatura especializada (BACELLAR et al., 2005) A problemática e as fontes até então coligidas na pesquisa apresentam limitações e, a partir delas, propostas de análises que buscam encontrar os indícios marginais (GINZBURG, 1990) do processo de mestiçagem homogeneizadora sofrida pelos Tembé, recentemente reconhecidos, pelos demais Tenetehara, como “de Santa Maria” do Pará. A documentação recorrente na demografia histórica, como censos e listas nominativas, se existem, ainda são desconhecidas; por outro lado, registros de batismo com indicação étnica estão parcialmente disponíveis na Paróquia de Igarapé-Açu (PA),

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mas apresentam sérias restrições de acesso, como argumenta Fernandes (2013). Nestas fontes, destaca-se, o trabalho dos padres responsáveis pela organização do Educandário, instalado em Santo Antonio do Prata, que serviu de instituição de controle aos Tembé em fins do século XIX e início do XX, por mencionarem explicitamente a origem étnica dos internos (FERNANDES, 2013).1 Do mesmo modo, listas de estudantes, solicitação para matrículas e termos de exames do referido Educandário estão disponíveis no Arquivo Público do Estado do Pará (PARÁ, 1900, 1916 in LOPES, 2014). Porém, para análise que se apresenta neste texto, utilizamos unicamente, a sistematização do Livro de Óbitos da Lazaropólis do Prata, que serviu aos registros iniciais da Instituição que sucedeu o Educandário, sem ter os indígenas como público alvo. Como se verá, a fonte possui limitações e condicionantes, o que não a invalida da busca dos indícios que se aponta acima. Ainda para Lazaropólis, há os prontuários médicos dos internos, para período de todo funcionamento do hospital de reclusão, passíveis de serem investigados sob a mesma ótica. Estes, no entanto, estão em fase de sistemarização.2 Outras fontes informam a presença Tembé na região pesquisada, sem, porém, fornecer indicativos numéricos seriais. Para o século XIX, os periódicos que circulavam no estado indicam a permanência do grupo indígena nos rios Maracanã e Prata (FOLHA DO NORTE, 1896 in LOPES, 2014). O engenheiro e integrante da administração paraense, Palma Muniz (1913), no contexto de divulgação das ações do governo, descreve as famílias Tembé e suas respectivas aldeias, indicando os locais de atuação dos Capuchinhos. Os dados numéricos são esparsos, apesar de serem indicativos da amplitude da presença indígena tembé na região, bem como do alcance das ações do Estado, via Educandário religioso. Por fim, a última menção aos Tembé na documentação oficial, até agora conhecida, ocorreu no livro-divulgação de SouzaAraújo (1923), responsável pela organização da Lazaropólis. Nesse caso, o autor apenas menciona que a origem do lugar está no Educandário criado pelos padres Capuchinhos para atender os Tembé. 1

Fernandes (2013) apresenta alguns números levantados em censos produzidos pelos indígenas Tembé de Santa Maria, que informam sobre a dinâmica do grupo a partir da criação da Associação Indígena Tembé de Santa Maria do Pará (AITESAMPA). 2 Na verdade, o esforço da equipe, integrada pelos autores, que trabalha no âmbito do projeto: BELTRÃO, J. F. 2013. Antropologias em Histórias Tembé/Tenetehara “em suspenso”. Pertenças ocultas e “etnogêneses” identitárias como faces de etnocídio “cordial” no rio Guamá (PA) Edital: Universal 14/2013 - Faixa C - até R$ 120.000,00. Processo: Nº. 472303/2013-9, é produzir trabalhos acadêmicos que dialoguem com a comunidade científica para melhor executar a “inclusão” da narrativa dos e sobre os Tembé/Tenetehara antes expulsa da escrita da História, daí a exposição gradativa dos dados analisados à crítica.

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Assim, este texto apresenta a associação entre a seriação de informações, contidas no Livro de Óbitos referido, com a trajetória Tembé, contada via narrativas alusivas à cosmologia dos próprios indígenas e também pela documentação já analisada na execução da pesquisa. A difícil demografia extraída da penumbra3 O etnocídio e o genocídio de povos indígenas, apesar de se constituírem em “assassinato institucionalizado” provocado pelo Estado Colonial e/ou pelas Nações recém criadas nas Américas, foi naturalizado pelas políticas racistas que tem por objeto a homogeneização, aplicadas com “mão de ferro” pelas autoridades políticas que ontem e hoje, consideram prioritário a submissão da diversidade à permanente purificação. No Brasil, e em outros países latino americanos, as denúncias das ações homogeneizadoras foram feitas, mas ainda hoje os números e os impactos das referidas políticas não foram contabilizados de forma adequada, por “ausência” de dados confiáveis. Na maioria dos casos se consegue, apenas uma cifra para população total de uma determinada área geográfica, sem, entretanto, contar com a possibilidade de caracterização da referida população por sexo, idade, número de nascidos vivos por idade e números de nascidos mortos por idade da mãe, entre outras variáveis demográficas, como ensina Azevedo (2000). Por outro lado, a ocultação ou a incompletude das fontes não permitem refazer trajetos e trajetórias. No caso em tela, o registro demográfico sobre povos indígenas, torna-se mais difícil quando os coletivos indígenas ofereciam guarida aos africanos que se “alforriavam” pela fuga dos estabelecimentos dos senhores escravistas, constituindo coletivos multiétnicos, que torna a trama da homogeneização quase inexpugnável, pois os parcos registros existentes terminam identificando as pessoas como pardas ou mestiças, mascarando origens e pertenças individuais tão caras à identidade étnicoracial. A História que deixa os povos indígenas “sem história”, torna invisíveis contextos e circunstâncias da ocorrência dos fatos. Embora em alguns casos haja fontes, como: registros de nascimento, de batismo (dada a cristianização de indígenas de forma indiscriminada) e óbito; prontuários de adoecimentos; e registros de entrada e de alta 3

Sobre o fato de subalternos serem relegados à penumbra e a dificuldade de se escrever uma História “sem história”, considerando que os mesmos não são considerados no relato nacional, consultar o excelente ensaio de FRANCO, J. Una historia que carece enteramente de historia. In: MORAÑA, M. e SÁNCHEZ PRADO, I. M. (Ed.). Heridas abiertas: biopolítica y representación en America Latina. Madrid/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 2014. p.155-164.

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referente a internações em instituições totais; os marcadores sociais da diferença apresentam-se subsumidos nos arquivos que se consegue trabalhar, entretanto é possível argumentar a partir de silêncios e ocultações. No caso dos Tembé/Tenetehara, donos do território entre os rios Pindaré – divisa entre Pará e Maranhão – e o Maracanã, na costa atlântica – que corresponde ao noroeste do Pará – foram sistematicamente submetidos a políticas de Estado desastrosas, do século XIX aos nossos dias. Especialmente, por terem se associado aos africanos, que se estabeleceram em mocambos no território indígena. O Estado, na tentativa de morigerar os indígenas, instalou sucessivamente instituições na área: Núcleo Colonial Indígena compreendendo colônia agrícola e internatos; Casa de Correção; Asilo de Leprosos; e, hoje, Unidade de Saúde sob administração da Secretaria de Estado de Saúde Pública (SESPA). Nessas instituições, todas denominadas de Santo Antonio do Prata – vila na qual os equipamentos institucionais foram instalados – fato que permite supor o confinamento de inúmeras pessoas indígenas, africanas e seus descendentes. Considerando a trajetória Tembé/Tenetehara e a relação da etnia com o Estado, busca-se por meio dos registros de nascimento, batismo, óbito e internação, prontuários, livros administrativos (de ocorrências e plantões, reuniões e atas), ocorrências policiais, censos, e raras fotografias, os indícios do impacto das políticas governamentais em termos sociais e demográficos. O volume de dados gerados a partir das fontes, sistematizados quantitativamente, em conjugação com as narrativas contemporâneas e passadas, são analisados com vistas ao entendimento do pressuposto do genocídio gerenciado pelas instituições totais, antes citadas, para especular/desvendar a redução demográfica dos indígenas donos do território. No texto que ora se apresenta, efetuamos incursão no livro de óbitos, com o registro dos 15 primeiros anos do Leprosário. Em busca dos anônimos, supostamente “sem história” Dada a dificuldade de encontrar os números da demografia Tembé/Tenetehara, recorrese ao método indiciário, referido por Ginzburg (1990) para fugir aos incômodos contrapontos entre racionalidade e o irracionalidade, pois a primeira tomada como atributo europeu e a segunda atribuída pelos europeus aos não-europeus, tomam-se as formas de se expressar historicamente – pela escrita ou pela oralidade – para analisar quaisquer indícios que revelem veredas e apontem pressupostos capazes de apreender às ações do Estado na tentativa de submeter os Tembé ao longo dos últimos 150 anos. Por outro lado, se a homogeneização não foi exitosa, pergunta-se como se deu a

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agência/resistência organizada pelos indígenas para manter a tradição e minimizar os efeitos das investidas estatais? Houve enfrentamento? Como os Tembé “branqueados” voltam a ser Tenetehara e recriam o coletivo ou como se reaprende as práticas coletivas? De que forma, hoje, a partir de histórias articuladas (tradicionais ou não) a projetos de vida (passada e presente) os protagonistas se afirmam indígenas? Responder as interrogações feitas requer retomar tanto as histórias Tembé, como as marcas que se apresentam na documentação do antigo Núcleo Colonial Indígena como étnicas, forte ou “timidamente” delineadas, nos registros documentais e no quotidiano observável, pela diferença que produzem de forma contrastante em relação aos vizinhos não-indígenas que, hoje, cercam os diminutos territórios que constituem as aldeias Jeju e Areal, preservadas pelos Tembé, apesar do cerco dos moradores de Santa Maria. Ao arranjar os pontos residuais da malha tecida produziu-se um conhecimento indireto e conjectural sobre o que é “viver melhor” para os Tembé de Santa Maria. É sabido que os povos indígenas podem ser exímios conhecedores da floresta e que possuem capacidade de “ler e ouvir” a natureza, quando criados na tradição, no sistema indígena como refere o cacique Miguel, liderança tradicional, e Almir, liderança política,4 ao narrarem as histórias. Os líderes, comportam-se como estrategistas e ao longo de mais de um século, entre diásporas5 e esbulho de seus territórios, confiaram na memória dos mais velhos a possibilidade de ser Tembé. Os velhos são patrimônio e politicamente orientam os destinos do povo. Para bem viver, o modelo é: (1) cultivar a tradição – caso esta esteja demasiadamente enfarruscada, recorre-se aos parentes; (2) pensar as histórias narradas como ensinamentos para viver em comunidade; (3) compartilhar tradições e reaviva-las quotidianamente; (4) pautar sempre o território confiscado como reivindicação primordial para ampliar os circunscritos espaços de hoje; (5) exigir a demarcação de 4

Segundo Luciano (2006), tradicionalmente conheciam a liderança exercida pelas autoridades como: caciques ou tuxauas, entretanto os desdobramentos da resistência fazem emergir o que se denomina lideranças políticas ou “novas lideranças” que recebem possuem tarefas específicas na difícil relação com os não-indígenas. 5 A categoria diáspora permaneceu restrita, durante anos, à situação vivida pelo povo Judeu e pelos povos Africanos escravizados pelos europeus, postura que implica em considerar o que acontece no continente Americano como de importância menor, especialmente, porque se refere aos povos originários – leia-se indígenas. Hoje, o preconceito trazido pelo eurocentrismo às Ciências Sociais precisa ser desfeito, pois a ação colonial na América foi deletéria e, ainda, produz discriminações hediondas que merecem tratamento acadêmico adequado. Como antropólogos situados na América, considera-se necessário analisar politicamente o caso, tentando retirar as vendas que tentam evitar o olhar arguto e revelador. Usase diásporas no sentido de dispersão para referir as migrações compulsórias (BENBASSA, 2010) às quais os Tembé/Tenetehara foram submetidos, ainda no século XIX, quando o Estado aliado à Igreja Católica decidiu criar o Núcleo Colonial Indígena no Prata (Pará-Brasil).

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suas terras; e (6) sair da penumbra para inscrever-se na história reafirmando a identidade tenetehara, despindo-se do anonimato (BELTRÃO; LOPES, 2014). É preciso ver o modelo homogeneizador em ação para melhor compreender os estrategistas tembé. O modelo é evidentemente incompleto, mas na medida em que os indícios vão sendo reunidos a complexidade do modelo deve reaparecer deixando entrever a gesta tenetehara que passa pela possibilidade de ser Tembé, como querem os algozes, chegando a transformarem-se em “não-indígenas” para renascer por ação política meticulosa e calculada, dando “volta” na homogeneização. Identidade sufocada, de Tembé a Tenetehara6 O genocídio dos primeiros tempos estava supostamente proscrita, pois a política, à época, era ampliar e proteger as fronteiras nacionais conquistando, via colonização, os territórios em poder dos indígenas, entretanto a execução do projeto do etnocídio, supostamente “cordial”, que produzia a homogeneização pela ótica colonialista na esperança de morigerar os então chamados silvícolas era a tônica na virada século XIX para o XX. O Pará, como informa Palma Muniz, não se fez de rogado e “... foi resolvido enfrentar o importante problema social da catequese [dos indígenas] disseminados na zona dos rios Capim e Guamá [território indígena Tembé Tenethehara], sem outro caloulo que o sacrifício e a lucta, sem mais outro fim que a chamada ao grêmio christão e catholico de almas perdidas nas selvas, e levar a outros tantos brasileiros abandonados, não só os contornos da civilização, como assegurar-lhes todas as proctecções da nossa legislação.” (1913, p. 5, sic.)

As recomendações do então presidente da Província do Grão-Pará, Paes de Carvalho, avalizou os Capuchinhos Lombardos da Missão do Norte, situada no Maranhão, no Brasil, a implantar um Núcleo Colonial Indígena, no Pará, com finalidade especial de “cathequese dos silvícolas” (MUNIZ, 1913, p. 6, sic.) Para dar conta da recomendação feita pelo presidente de “largas vistas”, os Capuchinhos, atendendo ao chamamento, implantaram o Núcleo no, hoje, município de Igarapé-Açú (Figura 1), às margens do rio Prata, com a promessa permanecer entre os indígenas por um período mínimo de 15 anos. O Núcleo localizado em Santo Antonio do Prata distava seis dias de Belém e, como a Estrada de Ferro de Bragança, em construção, alcançava a vila do hoje município de Castanhal (Pará), a questão das

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As observações e os argumentos apresentados no item são embasados e, algumas vezes coincide, com o que se diz em: Beltrão (2012a e 2012b) e Beltrão e Lopes (2014).

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comunicações ficaram razoavelmente solucionadas, pois a metade da distância entre o Prata e Belém (sede da província), era vencida pelo caminho de ferro. Pela Lei No. 588 de 23 de junho de 1898, a Missão Capuchinha deveria controlar adequadamente os imorigerados Tembé, para tal deveriam: (1) ministrar ensinamentos da catequese católica; (2) dar instrução elementar; e (3) preparar mão-de-obra aos trabalhos agrícolas. E os planos do Núcleo estavam previstas as instalações físicas compreendendo: edifícios para a Igreja e próprios administrativos; internatos escolares para meninos e meninas (indígenas – órfãos ou não – e demais órfãos não indígenas); casas de colonos – estes deveriam se “misturar” aos indígenas, na proporção de pelo menos 25% do total de moradores da colônia; campos agrícolas experimentais; engenho de cana; e estação de ferro carril. Os impactos da Missão Capuchinha, a supor pela descrição do “plano de controle” sobretudo considerando que, a área era território indígena e quilombola de amplas dimensões no século XIX foi incalculável. Implantado por Frei Carlos de São Martinho, em 14 de setembro de 1898, o Núcleo dá início à cordialidade catequética que conduz ao etnocídio, sob a égide da “Cruz redemptora da humanidade”, manejada pelos capuchinhos e de efeitos desastrosos para o povo Tembé. O território, onde se estabeleceu o Núcleo, era indígena e africano, compreendendo a existência de comunidade multiétnica que vem a ser a emergência e consolidação de organização social de etnias de tamanho e composição diversa e flexível, nos sertões do Brasil. Comunidade forjada pelo encontro de indígenas (donos da terra) e africanos que se refugiavam em espaços indígenas por serem distantes e pouco acessíveis às tropas de resgate que buscavam braços para escravizar e/ou africanos fugidos do jugo das autoridades coloniais. Na literatura antropológica, há referência a confederações multiétnicas no Rio Negro, especialmente, na fronteira com a hoje Venezuela (WRIGHT, 2005). É Palma Muniz que informa, no caso estudado, a referência à comunidade multiétnica, pois segundo suas observações: “[r]esa a tradição, encontrada entre os índios que em tempos idos, talvez em eras coloniaes ainda, a região das nascentes do maracanã, então não taladas pelas incursões civilisadoras, serviu de refugio a escravos fugidos, tanto das terras do rio Guamá, como das costas atlanticas, e de Belém e suas cercanias, que, internando-se nas mattas, desaparecem para sempre. ” (1913, p.16, sic.)

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Figura 1: Localização da área de pesquisa.

O autor, prossegue, informando que: “[e]xistiu néssas paragens um célebre mocambo de negros que cultivavam a terra e viviam da caça, fazendo de quando em vez correrias nos povoados e fazendas das circumvizinhaças,, deixando atraz de si a rapina, o assassinato e outros crimes, acolhendo-se aos seus reductos, que defendiam de qualquer espionagem e conhecimento, tendo feito pagar com a vida todo aquelle que se aventurou a conhecer-lhes a localização.” (MUNIZ, 1913, p.16, sic.)

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A tomar as observações de Palma Muniz (1913) a área era conflagrada e, segundo as indicações presentes na obra e na memória dos Tembé, localizava-se acima do Prata e denominava-se Santa Maria de Belém, às margens direita do rio Maracanã. A repressão aos negros amocambados foi dizimadora, dada a aludida energia com que se combatia os africanos, produzindo grande mortandade e destruindo o mocambo. O domínio colonial inviabilizou o projeto territorial de povos nativos, no caso os Tembé; e de povos transplantados, como os africanos escravizados, a diáspora era promovida uma vez mais. Entretanto, os casamentos inter-étnicos tornam inúmeros descendentes da comunidade original Tembé em pessoas, facilmente, identificadas como negras, pelo fenótipo, sinal diacrítico que remete à discriminação que sofrem nos dias de hoje, pois para o senso comum “índios não são negros”. A construção é recorrente na sociedade brasileira, embora como afirma Pacheco de Oliveira: “[o]s índios não têm homogeneidade cromática, nem possuem traços físicos que possam singularizá-los perante outros segmentos da população.” (1999: 134). Ao indicar a negritude dos Tembé as pessoas esquecem a possibilidade do estabelecimento de relações sociais entre grupos étnicos; negam os direitos de ultrapassar fronteiras étnicas; e ignoram a dinâmica do convívio tradicional que se renova. (Barth, 2000) Aos pesquisadores fica a referência ao “sucesso fracassado” da homogeneidade orquestrada, dada a agência indígena que insiste na possibilidade de afirma-se Tembé. O desaparecimento do mocambo talvez tenha levado os indígenas a se assenhorear uma vez mais do território, provavelmente, acolhendo os negros que sobreviveram à repressão e constituindo uma nova aldeia a uma légua do que em seguida foi transformado em Colônia do Prata, a qual, posteriormente, ao ser abandonada pelos Capuchinhos tornou-se Casa de Correção e, por fim, transformou-se em Leprosário. Aliar-se aos africanos, provavelmente foi a agência encontrada pelos Tembé para livrarse da homogeneidade a que foram submetidos. Palma Muniz (1913) lê o evento como fuga, pois não considera a possibilidade de recuo estratégico dos indígenas, afinal eles eram “silvícolas”. O novo espaço era conhecido, segundo Muniz (1913), como Aldeia Velha, hoje, de saudosa memória no relato dos mais velhos que, vez por outra, falam do lugar com alguma nostalgia a partir da lembrança de histórias narradas pelos bisavós, avós e pais, contadas e recontadas de geração a geração. O território foi rearranjado pelos os donos da terra dadas as vicissitudes produzidas pelo embate com os invasores.

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Na verdade, Muniz (1913) se contradiz ao oferecer informações sobre os amocambados, pois admite que o tempo se encarregou de fazer crescer o “célebre mocambo”, o qual teria chegado a compreender 1.000 almas, fato que os levou a “construir uma aldeia” que abrigava: africanos escravizados em fuga, criminosos evadidos da justiça e, mais tarde índios, incorporados após a destruição. O lugar constituído à revelia do Estado só poderia, na concepção do historiador oficial, abrigar pessoas que, para o Estado, não possuem qualificação. Como então explicar que os “desqualificados”, mesmo em dificuldades, agenciassem em seu favor. Por certo, a insistência em morigerar os povos que viviam entre os rios Guamá e Maracanã, território que supostamente pertencia à província do Pará e não aos indígenas, deve-se ao fato de que o mesmo escapava das mãos do Estado e produzia danos insuportáveis. Afinal como os ditos civilizados não conseguiam domar (ou “amansar”, como se dizia à época) gentes não-civilizada, ou sejam indígenas e africanos. As comunidades multiétnicas – pouco estudadas – são referidas por Muniz (1913) como existentes em território paraense e na Amazônia, e elas se afiguravam poderosas, fato que o Estado não podia suportar. No local, onde no passado se produziu a infraestrutura do Prata, encontravam-se: (1) as casas, em número de cinco ou seis, dos índios da família Miranha; (2) em Anselmo, à margem esquerda do rio Maracanã viviam os Tupanas; (3) a família Braz morava no Jeju, afluente da margem direita do rio Maracanã; e (4) em Arrayal, nas nascentes do rio Jeju ficavam a família dos Leopoldinos, segundo Muniz: “[t]odas estas familias pertenciam a tribú Tembé e viviam em contínua relação entre si, e ultimamente [à época da construção do Prata] com civilisados, por intermedio dos respectivos chefes” (1913, p. 16/17, sic.). E talvez, outras tantas famílias se fizessem presentes, pois para resistir às investidas dos não indígenas deveriam ser em maior número. Portanto, os Tembé sempre estiveram em Santa Maria, mas a cidade chegou a eles, incialmente, como Núcleo de Colonização Indígena, depois elevada a categoria de Vila e, mais adiante à sede de município. A cidade ocupou a aldeia dos Braz e dos Leopoldinos, famílias consideradas as mais antigas entre os Tembé. Assim, para “melhor viver”, o povo Tembé requer retorno ao território e a luta é ensinado coletivamente por diversas vias, independente da perspectiva de ter as terras demarcadas.

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Instituições totais e registros possíveis Como dito anteriormente em nota, os resultados que apresentamos neste trabalho resultam da análise articulada de pesquisa em andamento. Anteriormente, efetuamos exame inicial, agora expandida, do “Registro dos Attestados de Obitos ocorridos na Lazaropolis do Prata (sic)” aberto em outubro de 1923, ano anterior à fundação oficial da Instituição asilar, e encerrado em 1938 (BELTRÃO; LOPES, 2014).Os registros, portanto, são relativos aos primeiros 15 anos da Lazaropólis, com assentamentos de 740 falecimentos, que não dizem respeito ao período completo de funcionamento oficial da instituição, existente até o início da década de 1980. Isso significa que os dados gerados na análise, aqui realizada, não corresponde ao número absoluto de internos do leprosário, nem sequer de todos os falecidos sob sua égide, o que não implica na sua insuficiência amostral. Desse modo, realizamos o teste de qui-quadrado de Pearson, para avaliar a associação existente entre as variáveis qualitativas quanto à etnia, naturalidade e sexo, por intermédio do programa estatístico “R”. Esses atributos foram extraídos e/ou deduzidos do roteiro de informações essenciais acerca do paciente falecido, presentes no Livro de Óbitos: número do óbito, nome do sujeito, causa mortis, data e hora da morte, idade, cor da pele, nacionalidade, estado civil, naturalidade, filiação e indicação de vida ou morte dos pais, indicações de lepra entre os pais, data de acolhida (recolhimento à instituição), número de internação, matrícula e local do Serviço Geral, espólio, local de sepultamento e, por fim, assinatura dos médicos responsáveis. Nos casos de etnia e sexo/gênero, efetuamos a dedução pelos marcadores cor da pele (preta, branca, mestiça e morena) e pela indicação de gênero (masculino ou feminino) presentes nos nomes dos sujeitos e na composição gramatical dos registros. A sequência de dados permite inferências diversas, pois os atributos oferecem o tom de objetividade ao documento, tal como é possível observar nas Fichas/Prontuários que regiam a vida dos doentes no Prata. Todavia, a ausência de um ou outro atributo, de acordo com o assentamento dos mortos, sugere a dimensão subjetiva presente nas pesadas tintas médicas, as únicas que possuem espaço nos referidos assentamentos. Ao mesmo tempo em que a ausência de objetividade não anula a validade da fonte, tendo em vista os seus indícios marginais (GINZBURG, 1990), ela nos possibilita a aproximação com as representações médicas acerca da doença e do atendido (CARDOSO, 2000), além da tentativa de reconhecer os indígenas e os africanos entre os doentes e os não-doentes (BELTRÃO; LOPES, 2014). Consideramos que as

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narrativas dos profissionais possuem historicidade reveladora de preceitos (CARDOSO, 2000) que, no passado, podem ter apoiado ações discriminatórias em função desse ou daquele atributo. Tendo em vista os objetivos do trabalho, ora apresentado, problematiza-se os marcadores sociais da diferença, no caso, aqueles de natureza étnicoracial dos mortos que mereceram registro. O pressuposto, portanto, é de que indígenas e africanos foram amalgamados na categoria mestiços dentro dos registros do Livro de Óbitos, o que deve ter sido generalizado para outros tipos de documentos. As definições para as etnias apresentamse bastante estáticas, pré-definidas, mas indicam que o maior número de pessoas de cor (mestiços, pretos e morenos, provavelmente africanos e seus descendentes) são oriundos das regiões norte e nordeste, fato corroborado pelo teste estatístico: do total de 740 indivíduos amostrados, 200 (60.61%) eram mestiços, pretos ou morenos, provenientes da região norte do país, enquanto 119 (36.06%) do nordeste; os não informados de ambas as regiões equivale a 117 pessoas (X²=71.354, GL=10, P=0.001). Quando separamos as categorias em preto e mestiço/moreno, do modo como estão registrados no Livro de Óbitos, os dados apontam para o número superior de mestiços oriundos da região norte do Brasil: 182 pessoas (60.26%), além dos 15 (51.76%) não informados. Para região nordeste, temos o seguinte: 109 mestiços/morenos (36.09%) e 42 (32.31%) não informados (X²=70.539, GL=15, P=0.001). Assim, temos a indicação de maior número de pessoas mestiças, diante das brancas e pretas. O que faz supor a invisibilidade dos indígenas “dentro” da categoria mestiço (Gráfico 1). Desses sujeitos, 399 são naturais do Pará, sendo que 271 são homens e 128 mulheres; entre os homens 132 são mestiços, pretos ou morenos (70.59%) e 88 (61.54%) brancos, sendo que 51 (73.91%) não tiveram cor informada. No que diz respeito às mulheres, 55 (29.41%) são mestiças, pretas ou morenas, enquanto são 55 brancas (38.46%) e 18 (26.09%) não informada (X²=137.976, GL=107, P=0.023). Ao testar os dados a fim de verificar a associação existente entre as variáveis qualitativas sexo/cor, a maior quantidade foi de indivíduos mestiços, pretos ou morenos são do sexo masculino (228, equivalente a 69.94%); há registro de 98 (30.06%) mulheres mestiças, pretas ou morenas. Entre os não informados quanto a cor, os números são: 85 homens e 5 mulheres, entretanto, essa diferença encontrada não foi significativa do ponto de vista estatístico, o que é explicado pelo acaso (X²=0.975, GL=2, P=0.613).

14 Gráfico 1 - Distribuição por cor/raça a partir dos estados de origem dos internos. Fonte: Registro dos Attestados de Obitos ocorridos na Lazaropolis do Prata (sic), 1923-1938.

Considerando as Fichas dos doentes do Prata, observa-se que o marcador racial considerava a cor da tez, verificada pelo próprio médico durante a avaliação do paciente. Se a conversão de pluralidade étnica do século XIX em marcadores estáticos indica, por um lado, a vinculação científica do observador que analisa o fenótipo do paciente, por outro lado, é sugestivo do apagamento da categoria indígena e suas derivativas nos registros médicos. O fato, por certo, correlaciona-se à política do governo paraense quanto ao seu projeto homogeneizador direcionado aos indígenas, fato que é impossível em relação aos africanos e seus descendentes. Não por acaso, a partir da extinção do Educandário do Prata, não se observa nos documentos, até então levantados, e, por conseguinte, na literatura que se dedica ao estudo dos diversos momentos institucionais, referências aos Tembé/Tenetehara, no caso os trabalhos apontam a possibilidade de considerar o lugar de nascimento ou moradia para deduzir a pertença. O silêncio talvez refira/esconda o malogro da ação morigeradora. Os mestiços são, portanto, uma das marcas nas quais foram enquadrados todos os sujeitos que não eram brancos ou pretos; um amálgama, ao que nos parece, de todas as categorias utilizadas no século XIX.

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Nossos pressupostos foram testados, inicialmente, na análise de 100 indivíduos falecidos (BELTRÃO; LOPES, 2014). A ampliação da amostra e o uso do teste quiquadrado possibilitou a verificação de número maior de sujeitos e indicaram a validade de nossas premissas. O esforço da busca pelos Tembé/Tenetehara da região impactada pelas ações estatais corporificadas no Prata, desse modo, requer também o uso de dados quantitativos, verificáveis em registros de instituições de controle. Histórias e memórias que combatem a homogeneidade A gesta Tembé é cantada em histórias, narradas com extremo cuidado pelos mais velhos e se constituem em façanhas de guerra contra a homogeneidade imposta pelos não indígenas, que colocaram as referências étnicas Tenetehara à sombra do esquecimento. As histórias seduzem crianças, jovens e velhos, o(a) narrador(a) é complementado pelos pares de sua geração e, algumas vezes, são interpelados pelos presentes sobre os significados da História. Evidentemente, que os números apresentados por nós na tentativa de ler as vicissitudes impostas pelo Estado aliado a Igreja Católica aos Tembé, são tomadas em outra chave pelos protagonistas, chave que de forma arguta, demonstra que os não indígenas podem maltratar, tomar o território, matar os parentes, mas não dominam o pensamento, a memória dos subalternizados, assim sendo perdem a possibilidade de assimilá-los à sociedade nacional, como indicavam Wagley e Galvão (1955) há mais de 50 anos. Considera-se que as histórias são elucidativas, como metáfora, de um tempo que os protagonistas não querem ver repetido, e Miguel – cacique da aldeia Areal – informa que as histórias que ouviu e, hoje, conta aos demais, se assemelham a história vivida. A História da Capivara7 foi selecionada para a reflexão que se faz. Certo dia, Miguel sentou-se para brindar os presentes com histórias sem fim, e entre as diversas narrativas que escolheu para ocasião, uma se destacou pelas correlações que fez com o presente vivido pelo coletivo. Disse nosso narrador: “a Capivara8 um Tembé amansou e ficou com a capivara até ela se transformar numa pessoa pra ele, tornar-se numa mulher bonita. 7

Em outra oportunidade, usou-se a História da Guariba, sobre o assunto, consultar: Beltrão e Lopes (2014). 8 A capivara (Hydrochoerus hydrochaeris) é um mamífero da ordem dos roedores que é vista pelos indígenas como semelhante ao porco do mato dos quais diferem pelo focinho e pelas patas, seus dentes são afiados que a tudo serrilham, se criam pelas barrancas dos rios por ser grande nadador. A visão de uma capivara remete ao rios, a água em abundância e por mergulhar e demorar a tornar é admirada, é animal sempre referido na literatura, desde Anchieta, segundo Cunha (1989) que transcreve citações diversas sobre o animal em textos literários.

16 Então, todo meio dia ele ia tomá banho no igarapé, mas só ia toma banho no igarapé depois que todo mundo saia, ele ia por último, né? Um dia aí um dos irmão dele foi atrás, para avista o que que ele ia fazê ... aí chegou lá no igarapé ele chamava a capivara pelo nome, né? Da capivara [em Tenetehara] é Açuré, né? Chamava Açuré, Açuréeee, Açuréee [imitando o grito de chamamento] e, ela saia da água, quando levantava era uma mulhé, uma mulhé bonita. Aí o cara viu tudinho assim ...”

Interrompendo a narrativa diz, mas, rapá [rapaz]! Olhando o horizonte como querendo mirar a linda mulher que surgiu da capivara, depois prosseguiu: “... o irmão dele saiu pra caçá e ele foi pra o igarapé, e disse: olha, o meu irmão, o nosso irmão ‘tá namorando com a capivara, e nós vamô lá, ele vai caçá, todo o sábado ele vai caça e nós vamo matá a capivara, vamô cumê a capivara. Assim ela não volta ...”

Olhando a plateia, diz: agora, por que né? Como se repreendesse o irmão do “amansador” da capivara. E volta a narrar: “aí forum lá, e chamaram a capivara idêntico ele, ela saiu, e antes dela se transforma em pessoa, neles meteram a flecha e mataram a capivara. Daí quando ele chegô, quando ele apareceu, forum lá vê. O irmão foi pra lá, e procura chamô pelo nome dela, Conecutara açuréeee, que quer dizer onde é que tu ‘tá? Chamou, chamou, que nada, aí veio um e trouxe, trouxe, aí um ainda guardou cachimbo da capivara pra ele, diz ‘tá aqui ó [veja].”

A capivara (símbolo da transformação) apresenta-se aos Tembé como misteriosa, pois feia e ameaçadora, mas pode constituir-se em pessoa doce ao mergulhar nas águas do igarapé, tão doce quanto capaz de seduzir os protagonistas, enganando-os. Talvez, como quer Miguel, ela se assemelhe aos invasores que seduzem por um tempo, catequizando e sequestrando suas crianças, mas não conseguem enganar todo tempo, pois os Tembé são capazes de “acordar” e enfrentá-la com malícia fazendo-a cair em suas malhas, mesmo quando ela engana alguns deles. Primeiro, os protagonistas demonstram sua capacidade “amassando” a selvagem capivara, depois seduzem-na com trejeitos, chamamentos e envolvimento amoroso. Entretanto, o sedutor termina enganado e seduzido pela esperta capivara, a ponto de ter que ser socorrido pelos irmãos que ao mesmo tempo que o invejam pelo namoro com a linda capivara/mulher, salvam-no das patas do perverso animal. O jogo de sedução lembra o cerco de guerra imposto aos povos indígenas, mas ao mesmo tempo há momentos de administração do butim conquistado nas batalhas, como quer Souza Lima (1995). A administração, que não deixa de se assemelhar a um cerco

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de paz, é tão tensa como a guerra em si. Portanto, a reflexão de Miguel é factível, pois o invasor pode ser violento, mas não o é o tempo todo, daí a necessidade de estar diuturnamente atento. Na guerra, por permanecer sendo Tembé é preciso estar atento e ser astuto, pois qualquer vacilo pode ser fatal. É importante ressaltar, a História narrada por Miguel, pelo lugar que ele ocupa entre os Tembé, liderança tradicional, cacique da aldeia Areal, e particularmente pelas reflexões sobre a realidade vivenciada por ele pelos parentes. É Almir, integrante do grupo de “novas lideranças”, que referenda a interpretação, oferecida por Miguel e diz: “... durante muito, muito tempo tivemos que nos esconder na mata, fugir mesmo, esconder nossa identidade e negar que éramos indígenas, nossos bisavós, avós e pais sofreram muita discriminação e nós continuamos sofrendo, mas enfrentamos as dificuldades e as situações que aparecem, por isso resolvemos buscar a nossa história, saber realmente o que aconteceu e as histórias do Seu Miguel nos ensinam, ele sabe!”

Portanto, ao solicitarem apoio para escrever a sua História, não abrem mão do conhecimento e da escuta dos mais velhos, assim os números da demografia indígena só referendarão o que os Tembé conhecem e combatem. Hoje, para alguns Santo Antonio do Prata, por tudo que representa na gesta tembé, é o lugar que eles talvez pretendam esquecer, pois para além das agruras, persiste o medo da lenda de que se cura lepra, comendo fígado humano e na correlação de forças, mesmo sendo maliciosos e se defendendo, a partir de muitas agências, receiam ser “remédio para lepra”. Se possível, gostariam de esquecer o Prata, entretanto ele se faz presente.

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