Integração marginal e relação campo-cidade na comunidade tradicional do Mandira, CananéiaSP

July 18, 2017 | Autor: Anderson Pereira | Categoria: Geography, Human Geography
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Integração marginal e relação campo-cidade na comunidade tradicional do Mandira, Cananéia/SP Anderson Pereira dos Santos1 Júlio César Suzuki2

Resumo Localizada no município de Cananéia, no Vale do Ribeira, litoral sul do estado de São Paulo, a comunidade quilombola do Mandira se formou no século XIX, desenvolvendo a economia de excedente e relações de troca, configurando uma lógica específica de relação campo-cidade com as cidades do entorno. Atualmente, essa comunidade se apresenta como local de profícua expansão para as relações capitalistas, principalmente pela incorporação do turismo como uma fonte de renda para os moradores locais, reconfigurando a antiga relação campo-cidade, processo que ocorreu durante todo o século XX. Nesse sentido, devemos pensá-la dentro de um novo processo de expansão do capital, onde este, na sua reprodução, desenvolve novas fronteiras, trazendo novas modernidades, sem a necessidade da existência de um espaço, não utilizado ou desmatado, sobre o qual se expanda. Nesse contexto, buscamos compreender o estágio atual da relação campo-cidade na comunidade do Mandira, a partir da modificação em relação ao padrão anterior, relacionado à lógica histórica da reprodução do capitalismo na região, concebendo a comunidade por meio do conceito de integração marginal, de José de Souza Martins. Com base em revisão bibliográfica e trabalho de campo, fundado em entrevistas, mapeamentos e séries fotográficas, verificou-se que, com as dificuldades de reprodução do modo de vida tradicional devido à implantação do Parque Estadual do Jacupiranga, em 1969, e com o maior impacto da modernidade urbano-industrial, as relações entre a comunidade do Mandira e a cidade, sobretudo no que concerne às trocas, foram modificadas, em grande medida, devido à expansão do turismo, à realização do trabalho fora da comunidade e ao ensino marcadamente urbano ministrado às crianças e aos adolescentes. Palavras-chave: Mandira, populações tradicionais, relação campo-cidade, integração marginal.

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Graduando em Geografia/USP; Bolsista PRG/USP. Professor Doutor junto ao Departamento de Geografia/FFLCH/USP. Coordenador do grupo de pesquisa Agricultura e Urbanização.

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Introdução

A região do Vale do Ribeira, localizada no sul do estado de São Paulo, tal como muitas outras regiões do Brasil, tornou-se nos últimos anos um espaço onde se desenvolvem conflitos pela posse da terra. Populações de quilombolas lutam contra a especulação de fazendeiros, empresários, Estado e outros agentes pela manutenção de seus territórios. Essas populações são vistas como anômalas, tendo situação jurídica que depende de reconhecimento do Estado e das autoridades locais. No Vale do Ribeira, a constituição legal de territórios de comunidades quilombolas se apresenta como barreira para o acesso à terra e à extração da renda da terra por parte dos grandes proprietários; para a livre expansão e reprodução do capital. O Quilombo do Mandira é uma das comunidades tradicionais que se localizam na região do Vale do Ribeira. O Mandira vive o dilema da manutenção de seu modo de vida tradicional e de seu território de reprodução, pressionado pelas interferências impostas pela expansão da sociedade urbano-industrial, que de inúmeras maneiras impacta sua cultura e interfere na reprodução de suas práticas socioespaciais. A modificação, durante todo o século XX, das práticas culturais cotidianas de sobrevivência influenciou fortemente as relações estabelecidas entre a comunidade e as cidades do entorno, uma vez que os moradores da comunidade, apesar de viverem em situação de dificuldade quanto ao deslocamento, sempre necessitaram de centros urbanos para desenvolverem suas formas específicas de reprodução material, ou seja, desenvolveram a economia de excedente, conforme José de Souza Martins (1975). Esse padrão de relacionamente entre a comunidade e as cidades da região pode ser denominado “relação campo-cidade”, pois aqui a comunidade é vista como um bairro rural (BOMBARDI, 2004), contrapondo-se à forma cidade, materializada como centros urbanos na região. Assim, no início, a comunidade se desenvolveu com a economia de excedente e relações de troca realizadas nos mercados comerciais dos municípios do entorno, configurando uma lógica específica de relação campo-cidade. No momento atual, essa comunidade se apresenta como local de profícua expansão para relações capitalistas, principalmente pela incorporação do turismo como uma fonte de renda para os moradores locais, reconfigurando a antiga relação campocidade, processo que ocorreu durante todo o século XX. Nesse sentido, devemos pensar a comunidade dentro de um novo processo de expansão do capital, em que este, na sua reprodução, desenvolve novas fronteiras, trazendo novas modernidades, sem a www.fct.unesp.br/encontros/engrup

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necessidade da existência de um espaço, não utilizado ou desmatado, sobre o qual se expanda. Isto posto, buscaremos neste trabalho compreender o estágio atual da relação campo-cidade na comunidade do Mandira, a partir da modificação em relação ao padrão anterior, relacionado à lógica histórica da reprodução do capitalismo na região, concebendo a comunidade por meio do conceito de integração marginal, de José de Souza Martins. Para a realização da pesquisa, fizeram-se necessários: o levantamento de fontes e bibliografia referente ao tema; a coleta de dados primários, em trabalho de campo na comunidade, obtidos a partir de entrevistas semi-estruturadas que buscavam a reconstituição da história de vida dos moradores; e a composição de séries fotográficas, além da busca e desenvolvimento de mapeamentos sobre a comunidade. A comunidade do Mandira da memória dos antigos

O bairro do Mandira se formou no século XIX, quando Celestina Benícia de Andrade doou, em 1868, 1200 alqueires de uma antiga fazenda rizicultora ao seu meio irmão Francisco Mandira, filho de uma escrava com o pai de Benícia, o Sr. Antônio Florêncio de Andrade, antigo dono da fazenda e senhor de escravos. Logo após, Celestina abandonou as demais propriedades que constituíam a fazenda. (ITESP, 2002) Com a grilagem de terras durante o século XX e a saída de moradores da comunidade com a consequente venda de propriedades, o território do Mandira foi reduzido a 56 alqueires, onde vivem hoje cerca de 15 famílias, estando situado no extremo sul do estado de São Paulo, na chamada região do Vale do Ribeira. (ITESP, 2002) O pequeno território da comunidade pertence à parcela continental do município de Cananéia e sobreviveu espremido no meio do Parque Estadual de Jacupiranga (1969), tendo alcançado seu reconhecimento enquanto comunidade remanescente de quilombo em 15 de março de 2002. O acesso à comunidade se dá pela SP 226 - Rodovia Régis Bittencourt – e Estrada Municipal de Itapitangui-Mandira, até o km 13, onde está a comunidade. (Figura 1)

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Figura 1 - Localização da Comunidade do Mandira

Fonte: REZENDE DA SILVA, 2008 (org).

Na figura acima, saltam aos olhos três elementos importantes: o território quilombola do Mandira corresponde à área roxa; a Reserva Extrativista do Mandira corresponde apenas à área roxa pontilhada; e o fato de o território da comunidade se www.fct.unesp.br/encontros/engrup

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localizar no entorno de um mosaico de unidades de conservação, como o Parque Estadual Lagunar Cananeia. Os parques estaduais do Rio Turvo e Lagamar Cananéia fazem parte do chamado mosaico de áreas protegidas do Parque Estadual de Jacupiranga, criado em fevereiro de 2008, onde este último foi subdividido em 3 parques estaduais (Lagamar, Turvo e Caverna do Diabo), duas Reservas Extrativistas estaduais, cinco Reservas de Desenvolvimento Sustentável, quatro APAs e duas RPPNs (ICMBIO, 2010). Além disso, podemos ver que o Mandira se localiza a uma distância considerável do centro urbano do município de Cananéia, representado pela cor rosa. Segundo Rezende da Silva (2008), em meados do século XX, plantava-se na comunidade arroz, mandioca, milho, banana e frutas variadas. Apesar da ampla utilização da terra para a realização do roçado, boa parte do sítio ainda apresentava, àquela época, vegetação nativa, isso porque a mata também fornecia importantes elementos para a manutenção da vida da comunidade, como frutos, madeiras, cipós, plantas para remédio, animais para caça etc. A manutenção de um espaço ocupado pela mata dentro do território da comunidade se apresentava, portanto, como condição sine qua non para a reprodução do modo de vida da comunidade, como um grande quintal, e a extinção da mata poderia acarretar a perda de plantas medicinais, de caças, de lenha etc. Além disso, segundo moradores, a caçada não podia ser inescrupulosa, devendo respeitar os ciclos da natureza, o tempo das crias. Nesse contexto, a comunidade do Mandira pode ser considerada tradicional, visto que o modo de vida tradicional caracteriza-se por utilizar “em suas atividades de reprodução (...), recursos da natureza, sem impacto destrutivo por deterem um conhecimento etnoecológico desta e por dependerem da continuidade dos recursos, seja prática ou simbolicamente para a manutenção de suas vidas” (REZENDE DA SILVA, 2004, p. 121). Além disso, as comunidade tradicionais3 apresentam um “conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos que se reflete na elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse conhecimento é transferido de geração em geração por via oral” (DIEGUES, 1994, p. 79). As roças e casas mandiranas apesar de interligadas por caminhos, pelos vínculos e pela solidariedade familiar, apresentavam-se àquela época dispersas pelo território da comunidade, algumas mais distantes, outras mais próximas (REZENDE DA SILVA, 2008). O traçar dos caminhos no chão do território, interligando as residências do bairro e

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Dentre os autores que estudam estas populações tradicionais, destacamos Diegues (2004, 2005), Ângelo Furlan (2000), Rezende da Silva (2004 e 2008), entre outros. www.fct.unesp.br/encontros/engrup

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formando as chamadas trilhas, representou a materialização das redes de sociabilidade, fundadas nas relações de parentesco que caracterizam a comunidade (SOUSA; LIMA; SUZUKI, 2010). Pode-se dizer inclusive que as comunidades quilombolas, que integram o grupo das chamadas populações tradicionais, são também incluídas dentro da conceituação ampla de camponês, sendo, nesse contexto, […] uma expressão regional de campesinato, pois a cultura tradicional não indígena, a das sociedades camponesas não é autônoma, é um aspecto da dimensão da civilização da qual faz parte. Para se manter como tal, a cultura camponesa requer uma contínua comunicação com outra cultura (a nacional, urbana, industrial). Vista como um sistema sincrônico, a cultura camponesa não pode ser inteiramente compreendida a partir do que existe na mentalidade dos camponeses. Neste sentido, a cultura tradicional camponesa é uma expressão local de uma civilização mais ampla (RESENDE DA SILVA, 2004, p. 121).

Isto posto, podemos dizer que as populações tradicionais se apresentam como versão específica e característica do modo de ser do camponês, dentro dessa concepção mais ampla de modo de vida camponês. Com toda a polêmica que o conceito de populações tradicionais pode abarcar, estamos tratando de populações camponesas que possuem singularidades e um modo de vida muito atrelado aos ciclos da natureza, valorizando uma dimensão espacial e traduzindo uma forma não só econômica de apropriação da terra, mas simbólica de suas práticas espaciais, em que se ressalta o significado de suas festas, de suas crenças e da construção da sociabilidade, além da permanência do parentesco, do compadrio e da relação de vizinhança, dentre outras marcas. Assim, designamos que estas são populações camponesas como as de pequenos pescadores, pequenos agricultores, ribeirinhos, pantaneiros, extrativistas, caipiras, caboclos, caiçaras e quilombolas que se baseiam em atividades familiares de reprodução de seu modo de vida (SOUSA; LIMA; SUZUKI, 2010, p. 07).

Durante toda a história da comunidade, as relações de produção sempre estiveram centradas na unidade familiar e num conjunto amplo de relações entre as famílias, gerando um sentimento de pertencimento ao lugar (REZENDE DA SILVA, 2008) e um modo vida agrícola comunitário e tradicional, desenvolvido sobre uma terra herdada dos antepassados e orientado pela cultura e identidade quilombola. Os alimentos advindos da produção familiar em parte eram utilizados para a reprodução do seu modo de vida e o excedente era utilizado para a venda nos centros comerciais dos municípios da região, objetivando, com o dinheiro ganho, a compra de novas mercadorias para o consumo familiar, o que define a economia do excedente.

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Por meio da comercialização do excedente, os mandiranos erigiam fortes relações com os centros próximos, buscando sobretudo o comércio dos produtos excedentes e a compra do que não podiam produzir, como querosene, tecidos, sal etc. Isso ajudou também a estimular as relações de amizade, que os mandiranos puderam criar com os moradores de outras praias, sertões e bairros (REZENDE DA SILVA, 2008). […] no Vale do Ribeira, ao contrário da idéia de comunidade fechada, auto-suficiente e isolada, os grupos rurais negros estiveram historicamente inseridos na economia da Colônia, do Império e do Estado Nacional. […] Trocas matrimoniais, materiais e simbólicas entre esses grupos, além das redes formadas com os comerciantes assentados às margens do Ribeira e também com as cidades mais próximas, permitiram a permanência e desenvolvimento (ITESP, 2006, p. 04).

Nesse sentido, a comunidade se reproduzia utilizando-se da economia de excedente, no sistema de circulação simples, em que se comercializa para se adquirir o que não se produz, conforme aponta Oliveira (2007): [...] no trabalho camponês, uma parte da produção agrícola entra no consumo direto do produtor, do camponês, como meio de subsistência imediata, e a outra parte, o excedente, sob a forma de mercadoria, é comercializada […]. [Assim,] se está diante da seguinte fórmula M – D – M, ou seja, a forma simples de circulação das mercadorias, onde a conversão de mercadorias em dinheiro se faz com a finalidade de se poder obter os meios para adquirir outras mercadorias igualmente necessárias à satisfação de necessidades. É, pois, um movimento do vender para comprar (OLIVEIRA, 2007, p. 40).

A economia de excedente não busca a simples acumulação de capital, numa lógica de ampliação do poder de compra, mas sim a reprodução da vida. O plantio e a produção são baseados nas necessidades do núcleo familiar, sendo somente o excedente comercializado para a aquisição daquilo que não se pode produzir. A lógica norteadora é produzir mercadorias para o consumo e para ter algum dinheiro para comprar outras mercadorias, sendo fundante a noção de planejamento da produção, em que se define um quantum que deverá ser produzido para além das necessidades vitais das famílias, permitindo a geração do excedente. Podemos dizer, portanto, que a comunidade estava, desde o seu início, integrada à sociedade capitalista de maneira subalterna, arrastando-se no movimento de venda, a fim de gerar dinheiro necessário para compra de mercadorias, objetivando garantir a sobrevivência da família. Isso por conta de sua condição camponesa (MOURA, 2003), já em si subalterna, com uma produção voltada para o consumo e organização familiar do trabalho configurando uma relação não-capitalista, mas com mediações mercantis, já

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que, na verdade, parte da sua produção agrícola tendia a ser direcionada e organizada pelo mercado capitalista. Além disso, sendo a comunidade formada majoritariamente por descendentes de negros, a condição de subalternidade repousa, também, na sua condição pretérita de escravos e de estarem inseridos na sociedade como força de trabalho, sob condição compulsória (ASSIS, 2010). Nesse sentido, compartilhamos da idéia de que se trata de uma população inserida de modo particularizado no processo de produção capitalista, em que a seletividade e a hierarquização da sociedade é pressuposto para o processo de acumulação (SOUSA; LIMA; SUZUKI, 2010). Assim, a inserção dessa população na sociedade capitalista se dá de maneira marginal, numa situação de integração marginal (MARTINS, 2003). Considerando o exposto até o momento, podemos dizer que até a primeira metade do século XX predominou, entre o Mandira e os centros urbanos da região, principalmente Cananeia, uma relação campo-cidade fundada na economia de excedente que, a partir do trabalho familiar, criava excedentes de produção destinados ao pequeno comércio, possibilitando às famílias da comunidade consumir itens que não produziam. É necessário frisar que consideramos as formas campo e cidade como complementares, pois são expressão do mesmo processo de modernização que cria variados espaços produtivos, e não antagônicas, como parecem ser. Além disso, são simultâneas, no sentido temporal, e se relacionam entre si. Segundo MARX e ENGELS (1991), a divisão entre campo e cidade se estabelece no momento da industrialização e modernização de uma sociedade, gerando uma divisão territorial do trabalho entre um campo produtor de mercadorias agrícolas e uma cidade onde predomina a indústria e o comércio. A divisão do trabalho no interior de uma nação leva, inicialmente, à separação entre o trabalho industrial e comercial, de um lado, e o trabalho agrícola, de outro, e, com isso, a separação da cidade e do campo [...] Seu desenvolvimento ulterior leva à separação entre o trabalho comercial e o trabalho industrial. Ao mesmo tempo, através da divisão do trabalho dentro destes diferentes ramos, desenvolvem-se diferentes subdivisões entre os indivíduos que cooperam em determinados trabalhos. A posição de tais subdivisões particulares umas em relação a outras é condicionada pelo modo pelo qual se exerce o trabalho agrícola, industrial e comercial (patriarcalismo, escravidão, estamentos e classes). Estas mesmas condições mostram-se ao se desenvolver o intercâmbio entre as diferentes nações (MARX; ENGELS, 1991, p. 29).

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Portanto, a divisão campo-cidade, como divisão territorial do trabalho, se completa com o estabelecimento da divisão social do trabalho advinda do processo de industrialização, que também fornece o pleno desenvolvimento das forças produtivas. É importante lembrar que a modernização, como processo avassalador, obscurece a análise e apresenta de forma fetichista a cisão dos momentos e das temporalidades. Nesse sentido, o moderno e o tradicional se apresentam como tempos distintos quando, na verdade, são simultaneidades, temporalidades co-existentes e, no limite, são atemporais. Isto posto, não podemos pensar o moderno e o tradicional como momentos separados, mas sim expressões e resultados do processo de modernização. O tradicional só o é em função da presença do moderno e vice-versa (MARTINS, 2010; ALFREDO, 2008). Nesse contexto, não podemos analisar a comunidade do Mandira fora do processo de modernização da sociedade brasileira. Além disso, essa comunidade só pode ser entendida como uma especificidade do processo de expansão do capital pelo campo brasileiro. A partir do momento em que se estabelece uma cisão entre campo e cidade, as duas formas passam a fazer parte do mesmo processo produtivo, se tornando divisões territoriais do trabalho, realizando trocas entre si. E nesse sentido pensamos uma relação campo-cidade, tendo que a comunidade do Mandira é vista como um bairro rural, o campo, contrapondo-se à forma cidade, materializada como centros urbanos dos municípios da região. O bairro rural foi definido por BOMBARDI (2004) como sendo uma unidade territorial forjada pelo trabalho camponês, composto por sítios e lotes familiares. Segundo CÂNDIDO (1971), um bairro rural consiste em um […] agrupamento de algumas ou muitas famílias, mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas. As habitações podem estar próximas umas das outras, sugerindo por vezes um esboço de povoado ralo; e podem estar a tal modo afastadas que o observador muitas vezes não discerne, nas casas isoladas que topa a certos intervalos, a unidade que as congrega (CÂNDIDO, 1971, p. 62).

Até a primeira metade do século XX, os fluxos da relação campo-cidade do Mandira com as cidade do entorno eram assimétricos, no sentido de que os moradores do Mandira se deslocavam até as cidades da região a fim de realizar comércio e buscando de tratamento médico e ensino, não havendo ou sendo mínimo o deslocamento de moradores das cidades para a comunidade do Mandira. Outro ponto importante a se destacar é a falta, em grande quantidade, de redes de circulação de mercadorias, informação e pessoas entre o Mandira e os bairros e www.fct.unesp.br/encontros/engrup

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cidades do entorno, sendo que as redes que ligavam a comunidade ao aglomerados urbanos, até a metade do século XIX, eram simples e foram desenvolvidas principalmente por meio do mar, utilizando a canoagem. Os caminhos que ligavam a cumunidade a outros lugares eram de terra e não possuíam boa infraestrutura. Os moradores da comunidade, a fim de se comunicarem com as cidades da região, se utilizavam das canoas, produzidas no bairro. A comunidade vivia assim com inúmeras dificuldades de locomoção, em que os impactos da modernidade urbano-industrial eram mínimos, se fazendo presentes apenas por meio de alguns visitantes e de mercadorias, permitindo que a cultura tradicional fosse densamente mantida. No entanto, não podemos afirmar que o isolamento foi total, pois os quilombos sempre estabeleciam relações, mediadas pelas mais variadas formas, com a sociedade dominante e com os bairros próximos (MOURA, 1989) e nesse sentido a cultura tem de ser entendida, também, como um elemento em frequente dinâmica. Inicialmente, por meio da concepção de divisão de trabalho, é possível compreender a distinção que se apresentava entre campo e cidade na comunidade até meados do século XX. A comunidade era vista como o campo, produtor de excedentes agrícolas, contrapondo-se a cidade, local da venda do excedente e da realização das trocas. Numa escala menor, podemos dizer, ademais, que a divisão do trabalho explica o campo e a cidade brasileiros até meados do século XX. A partir de então, com o processo de modernização do campo, com a expansão da circulação de mercadorias e pessoas e com o crescimento das cidades, a análise fica mais complexa em função da expansão das atividades fabris no campo e a constituição dos complexos agroindustriais. A partir desse período, em muitas regiões do Brasil não se vê, claramente, uma separação entre cidade e campo. O campo brasileiro, em meados do século XX, modificou profundamente seus conteúdos e formas com a chamada Revolução Verde e a introdução de novas técnicas de cultivo e o surgimento dos complexos agroindustriais (SUZUKI, 2007). A partir da segunda metade do século XX, com a forte expansão da agropecuária extensiva, do desmatamento, do extrativismo inescrupuloso e das cidades, surge a preocupação pela preservação de áreas remanescentes de biomas brasileiros. No caso do Vale do Ribeira, 64% do território dessa região ainda mantinha/mantém a Mata Atlântica em pé. Além disso, o Vale representa 1/5 dos 7% de remanescentes de Mata Atlântica no Brasil, cuja relevância da região é, também, apontada por Mendes Júnior e Ferreira: www.fct.unesp.br/encontros/engrup

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Ao analisarmos a situação em que se encontra Mata Atlântica atualmente, podemos entender melhor a preocupação dos preservacionistas materializada na proliferação das unidades de conservação no Vale do Ribeira, isto é, independentemente das consequências sócio-econômicas desse tipo de estratégia para a região. Ao longo do processo de ocupação do território brasileiro, foram abatidos mais de 90% da floresta original que constituía a Mata Atlântica, restando hoje algo em torno de 7% dessa formação florestal que se encontra, em boa medida, distribuída ao longo da costa brasileira em pequenos fragmentos. A maior parte desses fragmentos não tem condições de manter a dinâmica ecossistêmica original, apresentando altas taxas de extinções locais. Isso ocorre em função das exigências ecológicas de inúmeras espécies, tanto vegetais como animais, que necessitam de áreas amplas para manter suas funções vitais e populações viáveis geneticamente, isto é, para que consigam manter a sua variabilidade genética, um aspecto fundamental para a sobrevivência de quase todas as formas de vida e que possui ampla dependência com a disponibilidade de habitats específicos com dimensões suficientes para abrigar todos os elementos integrantes da biodiversidade original (MENDES JÚNIOR; FERREIRA, 2009, p. 516).

É nesse contexto que localizamos a crise do modo de vida camponês da comunidade do Mandira. Na segunda metade do século XX, a cultura tradicional da comunidade já se apresentava em muito impactuada pela introdução de novos elementos urbanos, porém a criação do Parque Estadual de Jacupiranga, com a resultante imposição do paradigma preservacionista sobre parte do território da comunidade, contribuiu de maneira sem igual para a modificação do modo de vida da comunidade e para a consequente modificação da relação campo-cidade. A relação campo-cidade nos novos tempos

As transformações mais profundas no modo de vida da comunidade passaram a ocorrer a partir das décadas de 1960 e 1970, quando da criação e imposição do Parque Estadual de Jacupiranga (Decreto-Lei Nº 145 de 08/08/1969) sobre parte do território da comunidade onde justamente estavam localizados os roçados. Com a consequente e rígida legislação ambiental incidente sobre o Mandira, acelerou-se o desmantelamento de antigas práticas sociais de sobrevivência e a decomposição da reprodução do seu modo de vida camponês. Segundo Mendes Júnior e Ferreira (2009), a imposição das UCs de Proteção Integral (Unidades de Conservação de Proteção Integral) por sobre o território de comunidades caipiras, ou tradicionais, revela um reducionismo científico marcado pela sobrevalorização do modo de vida urbano, que pensa este último como antagônico ao

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modo de vida caipira que, em última instância, pode ser separado do seu ambiente de vida pois é improdutivo. Nas palavras dos autores: Sob o prisma do reducionismo científico, capaz de apartar as populações locais de seu ambiente, e da ótica urbano-industrial, produtora do caipira estereotipado e improdutivo, surge a legislação regulamentadora das unidades de conservação no Vale do Ribeira. Em outras palavras, é a visão historicamente datada de cientistas e literatos que define o modo de implantação das áreas a serem protegidas, onde o elemento humano, representado pelas populações locais, é percebido como um ser asselvajado em constante demanda pelo amparo da civilização. A negação do modo de vida caipira como conseqüência da valorização do modo de vida urbano é um dos núcleos da ideologia da modernização. A vida na mata, sob a ótica desses grandes homens, parece imprópria às populações locais, e assim, elas são separadas ou separáveis do ambiente em que vivem (MENDES JÚNIOR; FERREIRA, 2009, p. 514).

Quando da criação do Parque Estadual de Jacupiranga não se considerou se naquela área havia comunidades que necessitavam da mata para viver. Nesse contexto, o modo de vida tradicional foi desestruturado pelo adoção do paradigma preservacionista, obrigando a comunidade a adaptar-se às leis de restrição ambiental. Assim, a agricultura e as atividades extrativistas (animal e vegetal) na floresta foram criminalizadas, impelindo grande parte da população local a vender suas propriedades e se mudar da comunidade. Os roçados, segundo o ICMBIO (2010), já não representavam, em 1990, a principal fonte de renda da população e eram feitos em terrenos de terceiros (em terrenos de fazendas vizinhas) com dimensões reduzidas, buscando assim dificultar as ações de vigilância dos proprietários dos imóveis e dos agentes ambientais. As roças que estivessem na comunidade possuíam de 1 a 1,5 alqueires e foram concentradas às margens do rio Mandira (por causa dos solos férteis). Nestas áreas, eram cultivados arroz, milho, feijão, mandioca e banana. A produção destinava-se ao consumo familiar, podendo haver a venda de excedentes de milho, arroz e farinha de mandioca para moradores do próprio bairro e das redondezas. Já a pesca buscava basicamente incrementar a disponibilidade de alimentos. A solução para minimizar a precariedade material em que a comunidade estava submetida foi adotar a coleta da ostra, que antes era uma atividade complementar, como a principal atividade econômica desenvolvida pelos mandiranos, já que esta era realizada fora da floresta. Principal atividade econômica atual dos beneficiários da Resex, a coleta de ostras nativas no manguezal da região só passou a esta condição por uma série de circunstâncias que provêm da década de setenta passada: a) o abandono gradual da agricultura como fonte de renda em razão da diminuição das terras para cultivo e da incidência da legislação ambiental; b) a redução das atividades extrativistas vegetais devido à www.fct.unesp.br/encontros/engrup

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drástica redução de estoques de algumas espécies (palmito juçara), à diminuição das demandas de mercado para outras (guanandi e caixeta) e ao acirramento da fiscalização ambiental; c) as dificuldades encontradas pelos moradores para implantarem um consistente sistema de pesca comercial; d) a existência de volumoso estoque natural de ostras na área de manguezal contíguo às áreas de moradia e e) o aumento das demandas de mercado por ostras criadas por comerciantes de São Paulo e Santos (ICMBIO, 2010, p. 54).

As ostras, além de comercializadas com clientes da região, também passaram a ser vendidas para clientes dos mercados de São Paulo e Santos. Com aquecimento do mercado de consumo de ostras e buscando escoar a produção, com eliminação do atravessador e garantia de um preço melhor para o crustáceo, a comunidade criou, em 1997, a Cooperostra (Cooperativa de Produtores de Ostras de Cananéia), que se mantém até hoje. A constituição do Parque Estadual de Jacupiranga, atrelada ao avanço da mercantilização capitalista sobre a região do Vale do Ribeira, acelerou, portanto, a modificação do modo de vida tradicional da comunidade, aumentando-se o tempo dedicado às tarefas de fundo mercantil, como a extração da ostra, e em contrapartida diminuindo-se o tempo dedicado às tarefas não econômicas, como aquelas relacionadas à religião, às festas, à cultura local etc. Assim, pouco a pouco, desaparecem festas, notadamente as religiosas, como a de Santo Antônio e a de São Benedito, pois elas requerem uma quantidade de dias de rezas e novenas em que não se trabalha (MENDES JÚNIOR; FERREIRA, 2009). O paradigma preservacionista começa a ruir a partir da década de 1980, quando as populações tradicionais de quilombolas e caiçaras do Vale do Ribeira começaram a construir, “uma identidade caiçara e quilombola, fruto dos embates contra a especulação imobiliária, contra o autoritarismo ambiental e contra a construção de barragens” (DIEGUES, 2007, p. 36). Nesse momento, várias são as ONGs, institutos de pesquisa (NUPAUB-USP, CNPT/IBAMA etc.) e associações locais que irão advogar em favor dessas populações. Emerge um novo discurso político, defendendo que as populações tradicionais historicamente conservaram as áreas por elas habitadas, por deterem um saber dos ciclos de reprodução da natureza, e as protegeram da exploração agropecuária, de mineradoras, de madeireiras etc., argumentando em favor da permanência dessas populações nas áreas protegidas. Isso gerou a reclassificação de muitas UCs de Proteção Integral para Uso Sustentável, como o Parque Estadual de Jacupiranga que foi reclassificado em um mosaico de UCs de Uso Sustentável (Lei nº. 12.810, de 21 de Fevereiro de 2000).

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Com a reclassificação do Parque Estadual de Jacupiranga de UCs de Proteção Integral para Uso Sustentável, abriu-se a possibilidade para a criação, na comunidade do Mandira, de uma Resex (Reserva Extrativista), voltada para a extração de ostra. “Aprovada formalmente em 1996 pela Comissão das Populações Tradicionais do IBAMA, a criação da Reserva Extrativista do Mandira, constituída exclusivamente por terrenos de marinha, só veio a se concretizar por meio de decreto presidencial em 13/12/2002” (ICMBIO, 2010, p. 36). Nesse contexto, a extração de ostra ganhou importância ainda

maior como fonte de renda para os moradores do bairro, visto que agora a atividade é a única forma de manejo regulamentada. A solicitação da implantação da reserva extrativista se conformou como uma estratégia encontrada pela comunidade para a conquista da autonomia no que se refere ao uso dos recursos naturais do bairro, bem como uma maneira de continuar a reprodução de seu modo de vida tradicional. O turismo ambiental é um novo ramo de atividade que se desenvolve hoje no Mandira. Utilizando-se da exuberância da Mata Atlântica e do patrimônio histórico e cultural da comunidade, estando baseado na ideia de desenvolvimento sustentável, que busca preservar o meio-ambiente e em contrapartida trazer recursos aos grupos afetados pelas unidades de conservação. Aproveitando-se dessa agenda ecoturística e do fato de se constituírem como uma Resex, os moradores do bairro desenvolveram, em 2007, uma nova festa que buscava atrair visitantes para a cumunidade e vender os produtos produzidos no Mandira, tais como artesanato, roupas, peixes, culinária, ostras etc. Assim, a festa incorporava novos objetivos, como geração de recursos, comércio de ostras, atração de turistas e divulgação da cultura quilombola. A primeira edição da chamada Festa da Ostra foi realizada entre os dias 15 e 18 de novembro de 2007. A III Festa da Ostra foi realizada nos dias 19 a 22 de novembro de 2009, com participação e organização do ITESP (Instituto de Terras do Estado de São Paulo) em parceria com a comunidade. Teve atrações como: apresentações culturais e musicais, artesanato, pratos típicos da culinária caiçara que tem a ostra como ingrediente principal etc. Diferentemente das antigas festas (Festa de Santo Antônio e Festa de São Benedito), caracterizadas pela religiosidade e pela sociabilidade, a atual Festa da Ostra aparece como espetáculo turístico, com relações indiretas e mediadas pela dinheiro. A festa deixou de ser um evento voltado para a comunidade para ser vendida como mercadoria, como fetiche do lugar (SOUSA; LIMA; SUZUKI, 2010). Podemos pensar também que a festa é resultado da expansão do urbano, do choque entre duas culturas diferentes que não se reconhecem como produto do mesmo processo, a modernização. www.fct.unesp.br/encontros/engrup

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É o choque entre o moderno e o tradicional. Durante a Festa da Ostra, impera a noção fetichista do consumo do que é tradicional, por outra cultura que é moderna. Além disso, a festa dá uma falsa ideia de integração, quando na verdade reforça disparidades entre uma cultura e outra. A diferença de significados entre as festas dos antigos e a Festa da Ostra não se deve apenas ao cunho religioso das primeiras e monetário da segunda. A diferença se constituiu por meio de uma gama de transformações no modo de vida da comunidade que vai desde a produção econômica à cultural e ao próprio modo pelo qual ocorriam as relações entre os moradores da comunidade (SOUSA; LIMA; SUZUKI, 2010). Como dito anteriormente, a modificação das práticas culturais cotidianas de sobrevivência influencia fortemente as relações estabelecidas entre a comunidade e as cidades do entorno, uma vez que os moradores da comunidade, apesar de terem vivido em situação de enormes dificuldades de locomoção, sempre necessitaram de centros urbanos para desenvolverem suas formas específicas de reprodução material, ou seja, desenvolveram a economia de excedente. É nesse contexto que devemos pensar a nova relação campo-cidade na comunidade do Mandira. No presente, após a crise do modo de vida tradicional em função da implantação do Parque Estadual de Jacupiranga, em 1969, e com o avanço da modernidade urbano-industrial, as relações de troca foram substituídas por novas relações baseadas no turismo, no ensino, na busca de empregos fora da comunidade etc, configurando uma nova forma da relação campo-cidade. Isto posto, devemos pensar a relação campo-cidade, hoje, na comunidade, como composta de múltiplas dimensões materiais e imateriais. A partir da crise do modo de vida tradicional, após a implantação do Parque Estadual do Jacupiranga, diminuiu-se a área de roçado para a comunidade e as práticas extrativistas foram impedidas de serem realizadas. A partir disso, impôs-se aos moradores da comunidade a compra de produtos alimentícios, os quais não mais produziam, em mercados da região. A eletricidade também emerge como um novo fator que modifica a relação campo-cidade da comunidade. É necessário lembrar que, até a metade da década de 1980, não existia eletricidade na comunidade. Isso impedia a instalação de televisores e rádios (apesar de existirem rádios a pilha) no bairro rural. Esses aparelhos de comunicação hoje trazem à comunidade variados elementos da modernidade, que influenciam as suas práticas cotidianas. Porém, os elementos que mais contribuíram para a nova relação campo-cidade na comunidade foram a incorporação do turismo como fonte de renda para o bairro e a saída www.fct.unesp.br/encontros/engrup

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dos jovens para estudar nas escolas da região. Isso porque até meados do século XX, como discutido anteriormente, a comunidade vivia com dificuldades de mobilidade, pois os moradores do Mandira se deslocavam até as cidades da região a fim de realizar comércio e buscando tratamento médico e ensino, não havendo ou sendo mínimo o deslocamento de moradores das cidades para a comunidade do Mandira. É claro que ainda hoje os moradores vão até as cidades do entorno, porém esse fluxo de saída e entrada de pessoas na comunidade se intensificou. Com o turismo, o fluxo deixou de ser assimétrico, como dito anteriormente, ele passou a ser intenso tanto na entrada como na saída de pessoas, mercadorias e informações. Outro ponto a se destacar é a saída de moradores para trabalhar fora da comunidade, situação que não se verificava anteriormente, ao menos de forma expressiva. Além disso, com a ida dos jovens para estudar nas escolas da região, é importante se refletir o quanto esse ensino marcadamente urbano influencia na comunidade. Aqui lembramos um trabalho por nós realizado, analisando a comunidade de São Paulo-Bagre, localizada na Ilha de Cananeia, sul do estado de São Paulo, também na região do Vale do Ribeira. Naquele trabalho alertavamos para a incorporação de novos signos modernos, principalmente pelos jovens, por meio dos meios de comunicação, do contato com turistas e do contato com áreas urbanas. Elementos que poderiam minar a auto-identificação dos moradores enquanto quilombolas. Lembrando que a autoidentificação dos jovens como quilombolas é indispensável para a manutenção de qualquer elemento – seja ele cultural ou material – tradicional da comunidade, em que a possibilidade da perda da identidade quilombola dentre os jovens pode ser um fator de instabilidade para a manutenção da posse das terras, com as quais o comprometimento dos jovens pode deixar de existir (SANTOS; SUZUKI, 2010). Essa mutação da relação campo-cidade na verdade expressa uma maior incorporação dessas populações ao sistema capitalista de produção. Porém, a forma como se dá a inserção dos quilombolas, como uma expressão dos camponeses como classe social, no modo capitalista de produção, continua a mesma: permanece como uma população subalterna, de integração marginal, vista como uma anomalia, com situação jurídica dependente do reconhecimento do Estado e pelas autoridades locais. Terminamos nossa análise trazendo uma reflexão importante acerca dos conteúdos do campo e da cidade, cuja distinção, ainda, é significativa, por mais que a articulação entre essas duas materialidades espaciais seja cada vez mais forte, como nos assegura Ana Fani Alessandri Carlos: www.fct.unesp.br/encontros/engrup

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A cidade e campo se diferenciam pelo conteúdo das relações sociais neles contidas e estas, hoje, ganham conteúdo em sua articulação com a construção da sociedade urbana, não transformando o campo em cidade, mas articulando-o ao urbano de um “outro modo”, redefinindo o conteúdo da contradição cidade/campo, bem como aquilo que lhes une: este é a meu ver o desafio da análise. Nesta direção, o mundo rural não estaria desaparecendo, englobado pelo desenvolvimento das cidades, nem o campo ampliando seu domínio, apontando para um Brasil “menos urbano do que se calcula”. Essas questões apontam na direção da necessidade de colocar a “reprodução da sociedade” no centro do debate o que revelaria o conteúdo da prática sócio-espacial na direção da constituição da sociedade urbana e nesta direção as transformações no mundo moderno mudando o conteúdo das relações cidade-campo […]. (CARLOS, 2010, p. 3)

Analisar as relações entre o campo e a cidade, bem como as determinações do capital sobre ambos, é fundamental, pois, como foi dito anteriormente, a simples análise dessa dicotomia por meio do processo de divisão social do trabalho já não é suficiente. Assim, uma análise da produção do espaço, centrada na problemática da expansão da sociedade urbano-industrial, talvez revele como se ampliam e aprofundam, no mundo moderno, as contradições decorrentes da reprodução da sociedade num momento em que ocorreu uma intensa difusão dos valores urbanos.

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