Intelectuais, conhecimento e neo americanismo

June 23, 2017 | Autor: J. Silva Júnior | Categoria: Higher Education Policy, Political Economiy
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Texto original em espanhol. Tradução realizada pela Mestranda em Educação Hildegard Susana Jung, do PPGEdu da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, Campus de Frederico Westphalen/RS. Bolsista Prosup/Capes.
A convergência se processa por diferentes mecanismos que combinam elementos de imposição e persuasão. Entre eles podem ser mencionados três: os financiamentos condicionais (com condições definidas para seu uso), a persuasão exercida por intelectuais e think tanks dos países centrais, e a emergência de comunidades epistêmicas globalizadas.

Segundo Mowery e Rosenberg (1998), as relações entre a pesquisa nas universidades dos Estados Unidos e a indústria remontam a aproximadamente um século e meio. Isto é, estas relações teriam começado ao final do século XIX. Ver também Weber (2002).
O inglês se tornou um idioma mundial, o latim da modernidade, primeiro com o Império Britânico e em seguida com a dominação exercida pelos Estados Unidos da América. A grande maioria das revistas científicas é publicada em inglês. Os autores argumentam teórica e empiricamente sobre a hegemonia dos Estados Unidos em muitas partes do planeta (MARGINSON e ORDORIKA, 2010).
Segundo Berman (2012), esta foi em parte uma resposta à crise econômica: "Durante años, los Estados Unidos vivieron un largo período de estancamiento económico, incluyendo desempleo, alta inflación, bajo crecimiento de la productividad, y una crisis de energía. (p.3) (versão livre do original em inglês traduzida pelos autores).
Em inglês: "from state financed to state subsidized to state located".
(STEM), Disponível em: http://www.aau.edu/search/default.aspx?searchtext=Competes%20Act. Acesso em dezembro de 2014.
As três demandas principais dos professores eram o aumento salarial, a melhora das condições de trabalho, e a reformulação da carreira docente. Em um encontro de professores e alunos em greve por 57 dias, a filósofa Marilena Chauí ressaltou que a universidade deve recusar cinco medidas que estavam sendo adotadas em algumas universidades: a terceirização, a privatização e mercantilização de cursos, a contratação massiva de professores temporários, a massificação do ensino através do aumento de estudantes e a diminuição de contratações de professores, e os cursos de curta duração. Disponível em: http://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2002/06/26/543098/debate-critica-mercantilizao-na-usp.html. Acesso em 12 de fevereiro de 2015.
O Fórum de São Paulo se constituiu em 1990, quando partidos políticos progressistas da América Latina e Caribe se reuniram a convite do Partido dos Trabalhadores (PT Brasil), com o objetivo de debater a nova conjuntura internacional depois da queda do Muro de Berlim e as consequências da implantação de políticas neoliberais pela maioria dos governos da região. Disponível em: http://forodesaopaulo.org/historico-do-foro-de-sao-paulo/ Acesso em: 29 de agosto de 2014.



CAPÍTULO 8

INTELECTUAIS ACADÊMICOS E REFORMAS INSTITUCIONAIS NO BRASIL: NEOAMERICANISMO

João dos Reis Silva Júnior
Daniel Schugurensky
Luiz Carlos Anelli Júnior

Introdução
Neste artigo tentamos fazer uma reflexão sobre o contexto social, econômico e político da educação superior estadunidense das últimas décadas, para contribuir com a compreensão de algumas transformações que têm lugar nas universidades públicas brasileiras. Esta reflexão pode ajudar a entender algumas mudanças estruturais que acontecem no Brasil e suas consequências sobre o trabalho acadêmico e a produção científica. Já no início deste século, o historiador Nicolau Sevcenko (2000) previa os problemas da universidade estatal brasileira. As tendências que hoje se perfilam claramente já o incomodavam. Seu olhar sobre os países centrais, que por diferentes processos produzem uma convergência de reformas institucionais, mostrava a tendência que viria a se estender por várias regiões do planeta.
Com o exemplo das universidades inglesas a modo de ilustração, Sevcenko descreve uma homenagem ao professor Noel Annan (que nos anos 1950 foi o primeiro reitor com exclusividade no cargo) no King's College da Universidade de Londres. Conforme seu relato, no auditório era possível identificar três gerações. A primeira, à frente, era integrada pelos contemporâneos do homenageado. Um "pequeno grupo de famílias de linhagens distintas, cujos membros e descendentes ocupavam todos os cargos decisórios, fazendo da academia a extensão natural de seus privilégios de classe". A segunda, a geração da década de 1960, que abriria caminho para o que não cabia no interior da universidade inglesa, de onde nasceriam "inspirações e alianças radicaies, cujos frutos mais exóticos foram a insurreição punk, a música eletrônica, o dub, o novo cinema inglês e a chamada escola londrina de artes plásticas." A terceira geração, constituída pelos professores da década de 1990 - aos que denominou "herdeiros do futuro"- eram os novos intelectuais que reformulariam em sua prática cotidiana a instituição universitária e formariam as gerações seguintes.

Intelectuais e hegemonia
A atual reconstrução da universidade estatal brasileira está sendo realizada em uma medida significativa por estes intelectuais que atuam na academia e em certos casos têm posições privilegiadas na formulação de políticas universitárias. Dada a convergência de políticas universitárias a nível internacional, para melhor compreender as práticas e o trabalho cotidiano destes novos acadêmicos brasileiros, convém examinar as reformas institucionais nas universidades de países centrais (ALTBACH, GUMPORT e BERDAHL, 2011; SLAUGHTER e RHOADES 2011; SCHUGURENSKY, 2013). Três fatos recentes podem ajudar na contextualização desta virada: a greve de 2012 e seu impacto nas universidades federais, as manifestações sociais ocorridas em 2013, e a tentativa de privatização da universidade estatal brasileira, com início simbólico nas universidades estatais paulistas.
Sevcenko sugere um dos caminhos para entender a formação desta geração e da atual cultura da universidade estatal brasileira como parte de um movimento maior, do qual o Brasil e outros países viriam a participar de forma orgânica a partir da década de 1990. Para ele, as novas gerações de acadêmicos têm sido socializadas no modelo neoliberal, que substitui os princípios de solidariedade, igualdade e esperança de mudanças por una perspectiva thatcheriana, que propõe a não existência da sociedade, senão indivíduos que interatuam (leia-se competem) no mercado:

La operación ideológica construida por el nexo Reagan-Thatcher mudó completamente la configuración del debate político. Su mayor proeza fue metamorfosear los términos de su alianza en una amalgama cultural de alcance místico. Fuertemente apoyados en tradiciones puritanas exclusivistas y autocentradas de la cultura anglosajónica, dislocaron sus contenidos doctrinarios de la esfera religiosa para la política. El resultado fue el deslizamiento del concepto de destino manifiesto, tan latente en Cromwell como en Washington y Jefferson, de un factor incontestable de los pueblos anglosajones para el propio sistema capitalista (SEVCENKO, 2000, p. 34).

A expressão desse momento foi se concretizando em épocas diferentes em distintos países, alterando drasticamente o aparelho do Estado e as instituições republicanas. Mais que uma nova episteme política e religiosa, produziram-se mudanças estruturais na economia, na ciência e na tecnologia. Esta nova cultura das universidades estatais foi se gestando por várias décadas, mas torna-se mais visível no momento atual. Por um lado, se expressa em uma série de reformas políticas e programas para a universidade estatal. Por outro, se expressa no discurso, nas atitudes e nas práticas de intelectuais que ocupam posições na própria universidade ou em órgãos do Estado nas diferentes esferas administrativas.
De acordo com Ianni (1994), o contexto destas transformações é uma nova cultura mundial, a qual tem como centro uma apologia e endeusamento da ideologia da eficiência, concretizada na diminuição da distância entre a ciência e a tecnologia através da inovação. Estes traços se transformariam na prática política em programas de governo e de propostas nas quais a ciência, a tecnologia e a educação consistiriam na fundação de um novo momento histórico. Para Sevcenko (2000, p. 45), este novo momento histórico teve sua origem na disputa pela ciência e pela tecnologia no pós-guerra:

Era una propuesta clara que tocaba a todos. La nueva realidad solo ofrece oportunidades para el trabajo cualificado, por tanto el mejor medio de suscitar la promoción social debe ser necesariamente la educación. Además, en la vertiginosa corrida tecnológica que sucedió a la Guerra Fría, sólo quien tuviese autonomía tecnológica podría garantizar su soberanía. Luego, educación, ciencia y tecnología son las tres llaves de la nueva era. Pero el veneno de la manzana prohibida ya se infiltró en las venas de los nuevos líderes.

Com o tempo, a eficiência alcança o estatuto de dogma como fundamento político e se concretiza na busca diária da inovação. Esta fundamentação nos permite dar um contexto histórico e internacional às reformas ocorridas nas universidades brasileiras e nas de outros países nas últimas décadas. O que se pode observar, amplamente, é a convergência de muitos sistemas universitários ao modelo estadunidense, uma tendência que Altbach (1992) já identificou e que foi se intensificando no século XXI. No caso da universidade estatal brasileira, os 'herdeiros do futuro' vêm desempenhando um papel importante nesta transição.

Estados Unidos: A Bayh-Dole Act e o Competes Act
No sistema universitário brasileiro é possível perceber que a autonomia e a orientação pública têm diminuído, e em seu lugar foi se impondo uma lógica de mercado. Uma perspectiva histórica e internacional que considere a tese da convergência proposta por Altbach deve voltar o olhar a algumas reformas que têm ocorrido nos países centrais. Ainda que a colaboração entre universidade e indústria nos Estados Unidos venha desde larga data, é principalmente a partir da década de 1980 que esta associação toma um impulso significativo. Referida relação se expressa, por exemplo, nos altos níveis de patenteamento e de licenciamento, ou seja, de conhecimentos produzidos na universidade que são comercializados rapidamente. A origem desta tendência pode ser observada na pressão que as universidades estatais sofrem para conseguir financiamento que lhes permita suportar os cortes orçamentários. Também é pertinente notar que estas reformas têm uma dimensão legislativa. Entre muitos possíveis exemplos, mencionaremos a promulgação da Bayh-Dohle Act (de 1980) e da Competes Act (de 2007).
A Bayh-Dole Act de 1980 é interessante porque não foi tanto uma imposição do Estado às instituições universitárias, mas foi –sobretudo- o resultado da pressão das próprias instituições norte-americanas, da indústria e dos próprios formuladores de política, que se convenceram do reordenamento necessário para recolocar a economia americana em uma posição dominante a nível internacional (PERORAZIO, 2009; MOWERY et al., 2004). Assim, a produção de uma nova forma histórica da hegemonia se produz, pelos intelectuais, nas instituições, na indústria e no Estado. Marginson e Ordorika (2010), seguindo Gramsci, notam que em condições de hegemonia cultural, dada população adota formas linguísticas, e inclusive um idioma completo, de outro grupo de pessoas. Esta adoção não é provocada tanto pela coerção, mas pela persuasão que emana do prestígio cultural e o poder econômico, político e social. Segundo estes autores, a teoria da hegemonia de Gramsci coloca a universidade em um papel central dentro da sociedade civil, pois esta instituição "estandariza e inculca el lenguaje dominante y el conocimiento autorizado, un lugar de actividad cultural por derecho propio, y el sitio donde se forman las siguientes generaciones de líderes" (p. 69).
Promulgada em 12 de dezembro de 1980, a Lei de Patentes e Licenciamentos (PL 96-517, ou Bayh-Dole Act) criou uma política de patentes uniforme entre as muitas agências federais que financiam a pesquisa nos Estados Unidos. Esta lei permitiu que pequenas empresas e organizações sem fins lucrativos, incluindo universidades, retivessem a propriedade dos investimentos obtidos com financiamento do governo Federal em programas de pesquisa. Este projeto de lei foi apresentado pelos senadores Birch Bayh, de Indiana e Robert Dole, do Kansas.
A Bayh-Dole Act foi fundamental no incentivo às universidades para sua participação em atividades de transferência de tecnologia e alterou significativamente o paradigma de propriedade intelectual e de financiamento das pesquisas realizadas nas instituições estadunidenses. Naquela época, como apontam Mowery et al. (2004), havia um consenso entre os pesquisadores das instituições universitárias dos Estados Unidos de que uma parte significativa das pesquisas realizadas com financiamento do governo Federal apresentava dificuldades para a comercialização devido às barreiras para a obtenção de patentes por parte destas instituições. A partir da perspectiva destes pesquisadores, era necessário produzir um marco legal para regular a histórica relação entre a universidade e a indústria nos Estados Unidos. Por outro lado, tanto os executivos das indústrias, como os formuladores de políticas públicas começaram a entender que a inovação seria uma saída precisa para o crescimento econômico. Nesse contexto começou a se formar uma nova camada de intelectuais que pouco a pouco consolidaria um novo modelo de universidade em um país com uma das maiores economias do mundo. Berman (2012) identifica dois fatores principais que explicam a reforma da universidade norte-americana e particularmente a orientação das atividades de pesquisa em direção à satisfação das necessidades do crescimento econômico:

El primero consiste en que el gobierno lo estimuló e indujo a las universidades a que asumieran la ciencia académica como un valioso producto económico. (...) El segundo consiste en que tal movimiento sería mayor y se esparció una nueva concepción [hegemonía], de que la innovación científica y tecnológica debe servir como un motor del crecimiento económico (p. 2).

Desta maneira, o Bayh-Dole Act foi fortemente impulsionado pelas universidades que vinham desenvolvendo pesquisas com patenteamento. Sua aprovação representou um marco nas políticas de inovação dos Estados Unidos a partir da década de 1980. Essa lei tinha por objetivo o incentivo à comercialização dos resultados das investigações na universidade. Havia, então, uma nova forma de produção real de riqueza. Isso representou uma novidade no capitalismo dos Estados Unidos e, atualmente, se espalha pelos países que se relacionam com os Estados Unidos, influenciando fortemente as mudanças na universidade brasileira a partir do início do século XXI.
Além de produzir e fortalecer o estatuto da propriedade intelectual, a lei buscava contribuir com o desenvolvimento econômico dos Estados Unidos, fomentando a competitividade do setor industrial através da inovação tecnológica e comercialização de conhecimento produzido pela academia desse país. Esta nova ordem jurídica significou um importante incentivo à defesa da propriedade intelectual, levando à reestruturação das universidades de pesquisa e implantando de maneira acelerada seus departamentos de transferência de tecnologia a fim de estreitar a relação com as empresas privadas (MOWERY et al., 2004).
Nesse contexto, as universidades norte-americanas passaram a organizar a produção do conhecimento científico – tanto no que se refere ao financiamento, como à agenda de pesquisa e à gestão da própria instituição- de forma que seus resultados fossem rapidamente comercializados. Desde então, as universidades passaram a guiar-se não somente por indicadores de produtividade acadêmicos e científicos, mas também –e em muitos casos principalmente- por indicadores de desempenho econômico e financeiro. Isto orientou a academia à adoção de modelos de gestão identificados com as práticas corporativas, resultando na mercantilização do conhecimento e da instituição universitária, caracterizando o que alguns autores chamam capitalismo acadêmico (SLAUGHTER e RHOADES, 2011). Esta nova universidade induz à modificação da natureza do trabalho do professor pesquisador no sentido de que seus resultados possam ser comercializados.
Slaughter y Rhoades (2011) ressaltam que desde a aprovação do Bay-Dohle Act, em 1980, elevou-se significativamente o número de patentes concedidas às universidades norte-americanas e se expandiu o número de departamentos de transferência de tecnologia. Isto poderia trazer consequências para a produção de conhecimento. Um exemplo disso pode ser encontrado na agenda de pesquisa destas instituições, que passaram a priorizar o desenvolvimento de projetos de pesquisa aplicada (em detrimento dos projetos de pesquisa básica) pelo maior potencial de comercialização e de transferência de tecnologia ao setor produtivo.
Os dados apresentados no estudo de Loise e Stevens (2011) revelam esta tendência. Segundo estes autores, até a aprovação do Bay-Dohle Act, somente 23 universidades possuíam departamentos de transferência de tecnologia. No período entre 1983 e 2012, houve um crescimento da ordem de 769% no número destes departamentos. Isto gerou uma expansão significativa das atividades de transferência de tecnologia para o sector industrial. No período de 1991 a 2008 houve um crescimento exponencial das atividades relacionadas à transferência de tecnologia no âmbito destas instituições, o que demonstra a tendência da academia a uma crescente mercantilização do conhecimento. Com relação às licenças, Loise e Stevens (2011) afirmam que no mesmo período, "50% fueron contratadas por pequeñas empresas, 35% por grandes corporaciones y 15% por las llamadas spin-off companies universitarias" (LOISE e STEVENS, 2011, p.187). Não é difícil deduzir as consequências deste processo no trabalho dos professores pesquisadores e na maneira com que concebem seu trabalho e a universidade na qual trabalham.
Os dados apresentados no estudo de Loise e Stevens (2011) mostram ademais que o faturamento obtido pelas universidades com estas licenças apresentou um crescimento expressivo, passando de US$7,3 milhões, em 1981, para US$3,4 bilhões, em 2008. Neste mesmo período, formaram-se 6.652 start-ups ou empresas novas. Este estudo também demonstrou que no período de 1996 a 2007, as atividades de transferência de tecnologia das universidades, somadas à criação de empresas, foram responsáveis pela geração de aproximadamente 279.000 empregos e contribuíram com US$187 bilhões para o PIB dos Estados Unidos nesse mesmo período.
Slaughter e Rhoades (2011) analisam como as universidades norte-americanas redefiniram suas atividades de pesquisa, passando a priorizar a comercialização de seus resultados, principalmente depois da aprovação da Bay-Dohle Act durante a administração de Ronald Reagan, e da Competes Act na primeira década do século XXI, quando a crise de 2008 já era uma realidade. Segundo os autores, naquele período, as instituições universitárias, especialmente as estatais, passaram a privilegiar as atividades relacionadas com a comercialização do conhecimento para diminuir sua dependência com relação ao financiamento público, federal e estatal. Esta estratégia permitiria reduzir sua vulnerabilidade financeira perante as crescentes restrições do orçamento público para a manutenção das universidades, em resposta às crises fiscais do Estado. De forma jocosa, costuma-se dizer que há algumas décadas as universidades públicas eram financiadas pelo Estado, depois passaram a ser parcialmente subsidiadas pelo Estado, e agora simplesmente estão localizadas em um Estado.
O Competes Act 2007, que poderia ser traduzido livremente como a "Lei América da competitividade", tem entre suas disposições a cobertura da gama de atividades de um grande número de agências e empresas federais, incluindo o Gabinete de Política de Ciência e Tecnologia (Título I), a Administração Espacial e Aeronáutica (Título II), o Instituto Nacional de Tecnologia e Standards (Título III), a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (Título IV), o Departamento de Energia (Título V), e a Fundação Nacional de Ciência (Título VII). Em muitos lugares, a lei determina que cada agência deverá cooperar com seus pares e departamentos, e chama a atenção para a pesquisa de alta recompensa em áreas de necessidade nacional crítica. Alerta para a necessidade de consideráveis esforços das agências com relação à educação dos futuros profissionais da ciência, da tecnologia, da engenharia e da matemática.
Em síntese, a aprovação da Bay-Dole Act e da Competes Act reforçou o processo de mercantilização do conhecimento e alterou a função social e política da universidade, produzindo uma nova cultura acadêmica orientada pelos objetivos econômicos. Tal cultura reformou a gestão institucional, que por sua vez instituiu um novo regime de produção de conhecimento no qual docentes pesquisadores e administradores formam um novo bloco de atores. Este novo bloco de atores está produzindo um novo ethos acadêmico alinhado com valores e práticas corporativas com consequências para o trabalho cotidiano de professores e pesquisadores.
Essas leis, de fato, são parte fundamental do contexto que promove os contínuos cortes orçamentários às universidades estatais e a orientação ao mercado. Isto pode ser observado, por exemplo, nos planejamentos estratégicos das universidades estatais, onde a busca de financiamento privado e o aumento das tarifas estudantis constituem-se em pilares estruturais para o seu crescimento e, por vezes, à sua própria sobrevivência. Esta nova racionalidade também impulsiona a mobilidade acadêmica de estudantes e professores, alterando o perfil dos professores a serem contratados. Em muitos concursos públicos, por exemplo, buscam-se professores com antecedentes que demonstrem que são capazes de obter subsídios de pesquisa (grants) de montantes significativos. Mais ainda, em algumas universidades já existem categorias específicas de professores que precisam gerar uma alta proporção de seu salário através de grants.
Tudo isto tem levado a uma aceitação da mercantilização, da intensificação do trabalho dos professores e da nova natureza do trabalho do pesquisador e, sobretudo, na consolidação de uma nova cultura na qual o objetivo primordial é a iminência do resultado das pesquisas, e que referido resultado seja comercializável. Neste modelo, o pesquisador tem três objetivos: a patente, o licenciamento e a publicação. Uma das consequências destas reformas é que os pesquisadores experimentam uma redução de sua autonomia para decidir seus temas de pesquisa, que agora estão sujeitos às demandas de uma economia cada vez mais globalizada. Nesta nova configuração, o pesquisador acadêmico não somente tende a adaptar sua agenda de pesquisa ao mercado, como também os prazos de produção de conhecimento, que devem compaginar-se com os prazos de produção do valor econômico (SGUISSARDI e SILVA JÚNIOR, 2009).
Colocados nesta posição, muitos pesquisadores tentam vender seus serviços para o patenteamento e o licenciamento de produtos, as instituições acadêmicas tentam diferenciar-se, encontrando nichos que lhes permitam competir favoravelmente, e se termina gerando um mercado de educação superior que permite ao Estado abandonar paulatinamente sua responsabilidade fiduciária. Estas transformações que começaram nos Estados Unidos no contexto das crises econômicas dos anos 1970 e 1980 aprofundaram-se durante a crise imobiliária que provocou outra onda de crise em muitas famílias e universidades. Como foi observado em várias ocasiões (e.g. The Economist, 2009; VEDDER e DENHART, 2014), a bolha imobiliária foi seguida pela bolha universitária. Nessa conjuntura, a ciência acadêmica adquire um valor estratégico. Mais ainda, todo esse conjunto de fatores fortaleceu a internacionalização da educação superior. Os índices de mobilidade acadêmica, por exemplo, são os mais altos segundo as séries históricas do International Institute of Education (IIE). Além disso, como as universidades públicas não podem continuar incrementando as taxas de estudantes domésticos devido a pressões políticas, começam a depender mais e mais dos pagamentos de estudantes internacionais.
Em termos de gerenciamento, os reitores de muitas universidades têm um perfil de administradores profissionais, e a gestão acadêmica está subordinada à gestão administrativa. Destaca-se, ademais, o Conselho de Administração (Board of Trustees), que em muitos casos tem uma formação majoritária de representantes do governo e de grupos econômicos que orientam as políticas de cada instituição. O professor se transforma em empreendedor e ao mesmo tempo em um intelectual que dissemina a nova cultura por meio de seu trabalho através do exemplo cotidiano, além de formar as futuras gerações segundo os mesmos princípios em todos os níveis de ensino.
Esta é a geração da década de 1990, à qual se referia Sevcenko. Ela se constitui nos novos intelectuais que vão produzir a universidade estatal no Brasil das próximas décadas. Este professor está mais disposto a oferecer seu trabalho ao mercado e fará tudo o que for possível para publicar em revistas reconhecidas nos rankings internacionais, para conseguir financiamento e para vender patentes. Todas estas atividades se relacionam de uma maneira central com a agenda de pesquisa, que é determinada crescentemente por critérios determinados pelo Estado e pelo mercado, e cada vez menos pelos próprios pesquisadores a partir de critérios acadêmicos.

As universidades brasileiras: reforma e resistência
O movimento docente das universidades federais que tentou resistir à imposição deste modelo no Brasil através de uma greve nacional em 2012 conseguiu o apoio de sindicatos docentes e conquistou algumas reivindicações. Entretanto, estas foram de caráter menor, e não conseguiram deter a imposição do dogma da eficiência e as reformas da universidade orientadas ao mercado. Neste contexto é pertinente ressaltar que mesmo muitas destas reformas tendo sido introduzidas por organismos multilaterais, a nível doméstico foram adotadas e adaptadas por intelectuais brasileiros de grande influência no Estado e nas próprias universidades. Já em 1998, por exemplo, Francisco de Oliveira escrevia que as concepções, as justificativas e as teorias que promoviam estas reformas estavam sendo defendidas e propagadas pelo Núcleo de Estudos sobre Ensino Superior da Universidade de São Paulo (NUPES).

No accidentalmente, algunos de los antiguos principales investigadores del NUPES ocupan puestos claves en sectores decisorios para la formulación e implementación de las políticas educacionales en el aparato de Estado; unos, si bien fueron dislocados para funciones no directamente envueltas con la educación superior, influencian notablemente lo que pasa en el área (OLIVEIRA, 1998, p. 8).

Outro exemplo é Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Universidade de São Paulo e ministro da Fazenda do Brasil nos anos 1980, ministro da Reforma da Administração Pública e do Aparelho do Estado (1995-1999) e ministro de Ciência e Tecnologia em 2000. Para ele, a reforma do Estado deve orientar-se a superar a crise fiscal, de forma que o país volte a ter uma reserva pública que lhe permita estabilizar solidamente os preços e financiar investimentos econômicos. Em sua opinião, a reforma deve ser implementada através de quatro setores: 1) o núcleo estratégico do Estado, 2) as atividades exclusivas do Estado, 3) os serviços não exclusivos ou competitivos, e 4) a produção de bens e serviços para o mercado. No âmbito Federal, os serviços não exclusivos do Estado mais relevantes que para Bresser-Pereira devem orientar-se pela economia são as universidades, as escolas técnicas, os centros de pesquisa, os hospitais e os museus (BRESSER PEREIRA, 1996).
A greve de 2012 e outros movimentos de protesto não conseguiram deter a saída do Estado da esfera pública, que passou a ser administrada em parte por corporações profissionais. Novamente, no contexto da reforma do aparelho do Estado, a necessidade de produção de serviços estatais que são comercializáveis – epicentros da sociabilidade dos novos intelectuais – se tornou mais forte. Em 2014 aconteceu uma greve de três meses nas três universidades de São Paulo que resistiam aos intentos de privatização. Para essa época, depois de duas décadas de mercantilização, a convergência das reformas nas instituições brasileiras parecia ser irreversível (GILGA e ASSUNÇÃO 2014). Essa greve universitária obteve mais êxito que a anterior em deter algumas medidas privatizadoras no Estado de São Paulo, mas a dinâmica geral a nível nacional continuava seu caminho.
Os principais intelectuais em posições estratégicas do Estado têm sua origem nas universidades públicas, às vezes com pós-graduações no exterior. No contexto da reforma do Estado dos anos 1990, os pesquisadores mais produtivos que conseguem acumular poder e prestígio através de financiamentos públicos e privados vão se convertendo em exemplos paradigmáticos e defensores do novo ethos da universidade estatal brasileira. Isto poderia explicar a situação passiva de muitos professores, alunos e gestores institucionais com relação a resistir às reformas na educação superior. Estas reformas têm sido em grande parte, promovidas por uma série de atores institucionais.
Um destes atores foi o MOBIT (Mobilização Brasileira para a Inovação Tecnológica), fundada com base em um relatório de pesquisa de Glauco Arbix (2007) sobre política industrial e inovação. Arbix era nessa época sociólogo da Universidade de São Paulo, onde também coordenava o Observatório de Inovações e Competitividade, com sede no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Logo exerceria o cargo de coordenador do MOBIT e atualmente é presidente da FINEP (Fundação para o Financiamento de Projetos – inovação e pesquisa). O relatório de Arbix (2007) se produziu em um contexto no qual o sistema de pesquisa brasileiro buscava formular uma proposta para a consolidação de políticas similares às dos países centrais. Arbix analisou sete países (Estados Unidos, França, Canadá, Irlanda, Reino Unido, Finlândia e Japão) e afirmava que estes consideram a inovação como o fator mais importante de suas estratégias competitivas, aglutinando grupos empresariais, acadêmicos e públicos. "Cada uno a su manera, esos países caminaron para un paradigma en que el conocimiento ocupa el lugar central en la reproducción de nuevas relaciones económicas y sociales" (ARBIX, citado em MARQUES, 2008, p. 34).
A preocupação consistiria, nessa primeira metade da década do século XXI, em incorporar o melhor que estava sendo feito no mundo, no âmbito da inovação científica e tecnológica, que em geral se interpretava como uma orientação ao mercado. Para Marques, uma das características centrais do relatório de Arbix é o lugar atribuído às empresas nessas estratégias. Os esforços estão orientados a aperfeiçoar as atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação na empresa: "existe consenso de que es a través de la empresa que la economía se moverá y generará el bienestar económico. En esos siete países analizados, las universidades son presionadas a colaborar" (MARQUES, 2008, p. 34). Arbix argumentava, de fato, que não se trata de discutir a autonomia universitária, mas a relevância de sua agenda de pesquisa. Para o autor, "las universidades son estimuladas a adaptarse a las mudanzas para ayudar a las empresas" (ARBIX, citado em MARQUES, 2008, p. 34).
Também é relevante destacar que as reformas de educação superior são relativamente independentes da marca política do partido governante. O paradigma de reformas em educação superior nos governos de Clinton (1993-2001), por exemplo, não se diferenciou significativamente daquele dos mandatos da administração Bush (2001-2009) nem de Obama (2009-2016). Algo similar ocorreu no Brasil. Existem poucas diferenças entre as políticas de educação superior dos governos de Fernando Henrique Cardoso (1993-2002), de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2009) e de Dilma Roussef (2010-2018). Além disso, existem interessantes paralelos entre as reformas implementadas nos Estados Unidos e no Brasil durante estas duas décadas. Este é um dado interessante, porque esta convergência pode ser observada tanto em períodos nos quais Brasil e Estados Unidos tiveram governos com ideologias relativamente afins (e.g. Rousseff e Obama), como em períodos nos quais estes dois países tiveram governos com ideologias diferentes (e.g. Bush e Lula).
A convergência das reformas universitárias ao modelo estadunidense já aparecia em uma profecia weberiana há quase um século. Em um discurso que proferiu em 1917, na universidade de Munich, Weber argumentou que as universidades alemãs estavam se desenvolvendo de acordo com o modelo norte-americano, particularmente em certos ramos do conhecimento, como ciências ou medicina. Weber observou que esta situação ofereceria "vantagens técnicas" como sucede em qualquer empresa capitalista, mas ao mesmo tempo alertou sobre certas consequências que esta dinâmica poderia gerar no trabalho de pesquisa:

Ahora es posible ver claramente cómo la ampliación de nuestra universidad, de ayer a hoy, para dar acceso a nuevas ramas de la ciencia, se está haciendo de acuerdo con los patrones norteamericanos. Los importantes institutos de medicina o de ciencias se han convertido en empresas de capitalismo de Estado. Para realizar su tarea requieren medios de gran envergadura, y sin ellos se produce la misma situación que donde sea que intervenga la empresa capitalista, esto es la separación del trabajador de los medios de producción (WEBER, 1917, p. 2).

Nesse discurso, intitulado A ciência como vocação, Weber também predisse que com o passar do tempo esta tendência se aprofundaria e se ampliaria a outras disciplinas, incluindo as ciências sociais. Seguindo um raciocínio similar, C. Wright Mills, em sua tese de doutorado, sinalizava o processo de transformação das disciplinas em ocupações profissionais, e a correspondente transformação do intelectual em acadêmico profissionalizado (MILLS 1942; HOROWITZ, 1968).
No Brasil, a convergência das reformas do Estado e a 'americanização' das universidades que tomaram impulso durante o governo de Fernando Henrique Cardoso no século XX, tiveram continuidade no século XXI com os governos do Partido dos Trabalhadores, chegando até o governo atual de Dilma Roussef. Um momento importante nesta trama foi o compromisso de continuidade de projeto de país iniciado por Cardoso na transição ao governo de Lula em 2002. Matías Spektor, professor da Fundação Getúlio Vargas, mostra em seu livro 18 dias: quando Lula e Fernando Henrique Cardoso se uniram para conquistar o apoio de Bush, como Lula se incorpora a um processo que lhe impõe, com sua aceitação, a continuidade de muitas diretrizes institucionalizadas durante as administrações de Cardoso. Houve nesse momento um esforço conjunto de toda a esfera diplomática do governo de Fernando H. Cardoso e de todos os que comporiam esta mesma área no governo Lula para buscar a credibilidade do Brasil, pois a desconfiança dos investidores internacionais depois da vitória de Lula pôde ser observada no risco país, que passou de 800 a 2.400 pontos. Segundo Spektor (2014), em Wall Street, ninguém sabia com certeza se Lula honraria os compromissos que o Brasil vinha assumindo com os bancos durante o período Cardoso. Paul O'Neill, secretario do Tesouro dos Estados Unidos, havia dito que Lula precisaria "demonstrar que não era louco". No Congresso dos Estados Unidos da América, uma carta assinada por doze deputados afirmava que "o Sr. Da Silva, em cooperação com o regime comunista de Fidel Castro, estabeleceu um grupo esquerdista, antiglobalizante, chamado Fórum de São Paulo". E mais: Henry Hyde, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos acentuou a ameaça lulista com estas palavras: "Há uma possibilidade real de que Fidel Castro, Hugo Chávez e Lula da Silva possam constituir um eixo do mal nas Américas".
O esforço conjunto de Fernando H. Cardoso (que nessa época finalizava seu mandato presidencial) e Luiz Inácio Lula da Silva (que estava por começar o seu) culminou em uma reunião realizada na Casa Branca da qual participaram George W. Bush, Fernando Henrique Cardoso e Lula Da Silva. Como resultado dessa reunião, eventualmente Lula obteve o apoio de Bush. Como contrapartida, ao receber a aprovação do presidente da primeira economia mundial, o futuro presidente do Brasil se comprometeu a continuar com o modelo econômico que, durante oito anos, havia gerado e institucionalizado o governo de Cardoso. Segundo Spektor (2014), este foi um ato ao mesmo tempo simbólico e concreto, que permitiria ao Brasil continuar o acesso ao mercado mundial de capitais, mas em um contexto de relações de poder desiguais em uma economia cada vez mais globalizada.
Em 2002, Lula herdou esse modelo de país, e em muitas áreas teve que adaptar-se às regras do capital financeiro. Para Oliveira (2010), essas regras do jogo se expressavam em uma forma específica de hegemonia ao contrário, na qual o Brasil, segundo Paulani (2008), funcionava como plataforma de produção real de valor para a concretização do capital financeiro (especialmente dos Estados Unidos) que entrava no país. Por outro lado, o governo de Lula tentou resolver os problemas sociais por meio de políticas específicas, incorporando as grandes maiorias ao cenário político através do acesso a bens privados e públicos nunca antes alcançados pelos setores mais empobrecidos nos mais de 500 anos de história do Brasil. Duas foram as principais consequências deste processo. Primeiro, Lula se converteu em um mito vivo, e sua popularidade cresceu mais que a de seu próprio partido. Segundo, foi necessário consolidar esta hegemonia e aumentar a produtividade econômica do país por meio do aumento da produtividade industrial (CGEE 2010, Ministério das Relações Exteriores do Brasil, 2011).
O projeto continuou, com pequenas variantes, até a atualidade, incluindo os governos de Dilma Rousseff. Mais que isso, durante os últimos anos parece haver uma reorientação semelhante àquela que vem ocorrendo nos Estados Unidos. Como observa Cummings (2014), o modelo de busca da eficiência da ciência acadêmica como motor da economia global precisa de uma avaliação para a produção eficiente com relação ao crescimento econômico. Em sua opinião, o momento atual propicia uma oportunidade para alimentar a função de transferência de tecnologia das universidades para a economia, diminuindo os custos de produção. Este autor propõe a criação de novas associações público-privadas e uma ação empreendedora que inclua os alunos com o desafio de alcançar novos meios de mudança tecnológica e gestão de propriedade intelectual:

Se trata de un compromiso sustancial para el éxito a largo plazo. Es necesario el compromiso colectivo del cuerpo docente, la comunidad y los especialistas que auxilian en el activo de tecnología crítica y desarrollo de las incubadoras (start-up). El desarrollo de ese complejo modelo de transferencia de tecnología tiene un retorno increíble y gratificante sobre la inversión y produce valor a largo plazo en las relaciones, rendimiento, impacto y desarrollo económico (CUMMINGS, 2014, p.1047. Tradução livre feita pelos autores, diretamente do original em inglês).

O que Cummings propõe para os Estados Unidos pode ser observado atualmente em outros países, incluindo o Brasil. O Programa Nacional de Plataformas do Conhecimento (PNPC), por exemplo, foi instituído pela presidente Dilma Rousseff através do decreto 8.269 de 25 de junho de 2014, com o objetivo de aproximar o Brasil à fronteira do conhecimento orientado pela demanda dos setores estratégicos da economia doméstica e pela demanda das corporações nacionais e transnacionais. Segundo o professor e formulador de políticas Glauco Arbix, agora presidente da FINEP, o programa Plataformas do Conhecimento é um grande propulsor da economia brasileira, tem base na universidade pública, e conta com significativos fundos públicos para sua implementação. O programa busca articular a produção gerada nas universidades e instituições de pesquisa, com as empresas e as ações do Estado, particularmente em áreas vinculadas à agricultura, saúde, energia, aeronáutica, indústria naval, e à tecnologia da informação e comunicação.
Em síntese, o projeto nacional dos governos petistas ajudou a consolidar as reformas institucionais que se originaram com a reforma do aparelho do Estado durante a presidência de Cardoso. Neste contexto, as universidades públicas introduziram reformas que se orientavam na mesma direção que as universidades dos países de economias centrais. Lentamente, em que pese alguns gritos opositores, a universidade estatal vai se reorganizando e uma nova cultura acadêmica vai emergindo, especialmente pela prática dos novos intelectuais, a indução dos programas de incentivo à pesquisa e a formação de um novo perfil de pesquisador formado nos programas de pós-graduação nas últimas duas décadas. Os "novos doutores" ou "novos intelectuais" chegam preparados às universidades e não questionam a nova cultura; ao contrário, contribuem para sua consolidação.

Considerações finais
Em uma análise internacional sobre a situação dos professores que incluiu o Brasil, Phiilip Altbach (2003) observou que no século XXI as condições de trabalho acadêmico estão se deteriorando como produto de quatro tendências centrais: a massificação, a prestação de contas (accountability), a privatização e a comercialização. O contexto destas dinâmicas é a reforma do Estado e a reestruturação das universidades públicas, que muitas vezes tiveram uma relação complementar. A adesão do Brasil às demandas do capital financeiro e o novo pacto político e social sugerem orientar nosso olhar aos atores destas reformas, e para isso vale recordar algumas reflexões de Gramsci sobre os intelectuais.
Para Gramsci (1988), a superestrutura, síntese dialética de elementos da sociedade civil e da sociedade política, em sua relação também dialética com a estrutura econômica, é espaço da hegemonia e da dominação dos grupos no poder ou de seus representantes. O lulismo, identificado ideológica e antropologicamente com a classe trabalhadora, está condicionado significativamente pelo capital nacional e internacional. Na expressão de Francisco de Oliveira, está produzindo-se uma hegemonia invertida, pois os governos do Partido dos Trabalhadores – assim se apresenta – governa, sobretudo, dizendo sim ao capital financeiro e à nova forma histórica de hegemonia global. Para Oliveira, as características desta hegemonia ao contrário não têm precedentes na história do Brasil. Segundo o sociólogo brasileiro, o lulismo é um fenômeno novo, que exige novas reflexões:

No es nada parecido a cualquiera de las prácticas de dominación ejercidas a lo largo de la existencia de Brasil. Supongo también que no se parezca con lo que el Occidente conoció como política y dominación. No es patrimonialismo, pues lo que los administradores de los fondos de pensión estatales producen es capital-dinero. No es patriarcalismo brasileño de Casa-Grande y senzala, de Gilberto Freire, porque no es un patriarca que ejerce el mando ni la economía es "doméstica" (en el sentido de domus romano), Aunque en la cultura brasileña el jefe político pueda ser confundido, a veces, con el "padre" – Getúlio Vargas fue apodado de padre de los pobres. No es populismo, como sugiere la crítica de la derecha, y aún algunos sectores de la izquierda, porque el populismo fue una forma autoritaria de dominación en la transición de la economía agraria para la urbana industrial. [...] Nada de eso está presente en la nueva forma de dominación (OLIVEIRA, 2010, p. 26).

É pertinente, pois, indagar sobre os intelectuais que ao longo desse período atuaram na construção do que nos interessa neste artigo: a construção da nova universidade pública. Para Gramsci, a função intelectual está ligada fundamentalmente à superestrutura. Os intelectuais são "funcionários da superestrutura" e ao mesmo tempo estão ligados à estrutura econômica, pois representam um determinado segmento social, mesmo quando não estão conscientes disso, pensando em trabalhar em prol de um bem humano, enquanto a profissionalização cuida da comercialização de seu trabalho. Ainda assim, nos cursos graduação e de pós-graduação, na pesquisa e na consultoria, seguem formando as novas gerações e seguem formando os "herdeiros do futuro". Acabam, assim, fazendo a união com a estrutura e consolidando a nova cultura da universidade atual, nas linhas descritas por Weber, Mills, Berman e Sevcenko.
A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre nos grupos sociais fundamentais, mas é "mediatizada" em diversos graus por todo o contexto social, "por el conjunto de las superestructuras del cual los intelectuales son precisamente los funcionários" (GRAMSCI, 1988, p. 13). Gramsci não vê os intelectuais no sentido convencional, ou seja, enclausurados em uma sala e distantes do segmento que representam. Para Gramsci, o intelectual deve estar em contato com o segmento que organiza, sentindo como tal segmento sente, para poder captar seus desejos e organizar os elementos da classe fundamental que representa. Sem o intelectual não existe direção, não há organização e, desta forma, não pode haver hegemonia das classes subalternas.
A educação é um campo privilegiado para a atuação dos intelectuais no sentido atribuído por Gramsci. Para o que nos interessa, a universidade pública se tornou um aparelho privado de hegemonia privilegiado para a disseminação do movimento que analisamos há duas décadas. Vale destacar o que mostramos nas páginas anteriores deste texto sobre o papel dos pesquisadores nas universidades inglesas, estadunidenses e brasileiras. Destaca-se que os intelectuais estão ligados à superestrutura, mas seu papel na economia é de fundamental importância.
No caso em questão, os novos intelectuais são os que estão moldando a universidade estatal brasileira do século XXI. A universidade pública se reforma em resposta às exigências históricas que o Brasil teve que enfrentar desde a década de 1980. Entretanto, ainda que a reforma da universidade ocorra num contexto de condições objetivas, nela atuaram intelectuais, e nela estes intelectuais estão formando as gerações seguintes, que vão reproduzir a nova cultura acadêmica.
Esta nova cultura acadêmica, que já está bastante consolidada nas universidades dos Estados Unidos e no Brasil encontra-se em processo de consolidação, tem sua origem em condições econômicas e institucionais determinadas e em um contexto específico de incentivos, castigos e recompensas, mas também é produto de atores políticos e intelectuais. Os intelectuais universitários, em particular, são instados a realizarem um trabalho de produção e circulação do conhecimento que alcança uma modificação estrutural da natureza do seu próprio trabalho, e nesse mesmo processo o próprio intelectual se transforma. Assume não somente a nova natureza de seu trabalho, mas também a cultura de um novo tempo que o próprio trabalho e as mudanças institucionais definem. É importante indagar sobre a nova natureza do trabalho desses intelectuais e suas consequências. Nas investigações iniciais o que ficou claro foi a intensificação do trabalho dos professores e a precarização de suas relações de trabalho, especialmente no caso dos trabalhadores com contratos temporários. Como observamos neste artigo, a intensificação do trabalho e a precarização de suas relações são consequência da modificação da natureza do trabalho do pesquisador, que por sua vez é resultado das transformações da universidade pública e da reforma do Estado.
É importante reconhecer as conquistas econômicas, sociais e educativas que se produziram no Brasil durante as últimas duas décadas com os diferentes governos do Partido dos Trabalhadores através de uma série de políticas e programas. Na área econômica, por exemplo, entre 2003 e 2009, o PIB per capita aumentou de US$7.700 a US$10.450. No terreno social, os avanços foram notáveis. Entre 1990 e 2008, a pobreza baixou de 46% a 26% da população, e entre 2004 e 2008, uns dez milhões de brasileiros se incorporaram à classe média. Nestes anos, aumentou significativamente o emprego e o consumo popular, e se reduziram as desigualdades sociais de uma maneira nunca vista na história do país. Grande parte deste êxito pode ser atribuída a três iniciativas. A primeira é o programa Bolsa Família, que dá cobertura a aproximadamente 12 milhões de famílias brasileiras (aproximadamente um quarto da população total do país). A segunda é o aumento real do salário mínimo, que foi incrementado em torno de 25% durante os governos de Lula. A terceira iniciativa foi o aumento de crédito aos setores populares, que se incrementou em aproximadamente 80% durante o mandato de Lula (SINGER, 2012).
No terreno educativo, conquistou-se um significativo aumento da escolarização desde a pré-escola até a educação superior. Com a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB) o governo garantiu a extensão da oferta educativa desde a pré-escolar até a escola média. Na área da educação superior, as conquistas foram notáveis. Por exemplo, através da iniciativa REUNI (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) foram criadas mais de vinte universidades federais, e o número de municípios atendidos por universidades duplicou, e o número de estudantes de graduação nas universidades federais cresceu em torno de 60%. O programa Ciências sem Fronteiras oferece oportunidades de estudo no exterior a 100.000 estudantes brasileiros nas áreas de ciência, engenharia, tecnologia e matemática (e recentemente também em ciências sociais e humanas) através de bolsas de um ano de duração. Em nível de pós-graduação, tanto o número de estudantes de mestrado como de doutorado praticamente duplicou entre 2003 e 2013. Os estudantes de mestrado cresceram de 531.634 a 1.045.507 nesse período, e os de doutorados aumentaram de 37.728 a 79.478 de 2002 a 2012 (INEP, 2014).
Reconhecer estas importantes conquistas não significa perder de vista que a trajetória geral das universidades públicas brasileiras segue uma pauta similar à trajetória das universidades dos países centrais. As universidades brasileiras, como as de muitos outros países, estão sujeitas aos efeitos da globalização e à comercialização crescente dos resultados do trabalho universitário. Quando assumiram a nova natureza de seu trabalho, os pesquisadores e professores brasileiros transformaram as instituições e a si mesmos e passaram a formar novos intelectuais a sua imagem e semelhança. Trata-se, aqui, de colocar em discussão o papel dos intelectuais na produção e difusão de conhecimento para tornar público e explícito esse processo que muitas vezes é invisível.

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