INTELECTUAIS DE ESQUERDA E A CONSTRUÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS NO ÓRGÃO GESTOR DE CULTURA DA CIDADE DE JOÃO PESSOA

June 23, 2017 | Autor: Bárbara Duarte | Categoria: Sociologia da Cultura, Sociologia Política, Políticas Culturais, Sociologia Dos Intelectuais
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38º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

SPG05 – CULTURA E HEGEMONIA NO CAPITALISMO CONTEMPORÄNEO INTELECTUAIS DE ESQUERDA E A CONSTRUÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS NO ÓRGÃO GESTOR DE CULTURA DA CIDADE DE JOÃO PESSOA

AUTORA: BÁRBARA M. DUARTE TEIXEIRA LIRA DA SILVA

2014

Introdução

O interesse nessa pesquisa desenvolvida no mestrado foi perceber como o contexto de expansão do capitalismo contribuiu para a transformação da concepção de cultura e do papel do intelectual engajado de esquerda. Para isso, a proposta foi estudar a atuação na construção de políticas culturais, a partir de um grupo de intelectuais e artistas que estiveram na gestão da Fundação de Cultura de João Pessoa durante os anos 2005 a 2008. O objetivo do trabalho foi saber quais os dilemas enfrentados por representantes da esquerda artística e política que anteriormente se posicionavam mais à esquerda das gestões de governo, uma vez no exercício estatal, como se dariam as disputas internas e articulações das questões culturais? O que nos motivou inicialmente para a realização da pesquisa foi a observação de uma mudança no foco das políticas culturais estatais, a partir da gestão do Prefeito Ricardo Coutinho (PSB), discurso pautado por uma confluência de ideias entre o partido do governo e as lideranças da esquerda artística e cultural. Percebemos que houve uma valorização da cultura tradicional popular e da afirmação da identidade cultural do estado. Isso pôde ser visto pela inserção de grupos populares (representantes das manifestações populares como coco de roda, ciranda, cavalo-marinho, nau catarineta, entre outros;) no calendário cultural de eventos da Fundação. Todavia, o que defendemos no nosso trabalho é que um dos motivos de tal preocupação tem relação com uma tendência à incorporação do discurso “nacional popular” da década de sessenta do Brasil, que se baseou na criação de uma cultura nacional a partir da idealização da categoria povo. Desse modo, percebemos como tais medidas não tiveram como resultado o “nacional popular” nos termos gramscianos, mas um modelo revolucionário que se pauta no romantismo da construção do “homem novo” a partir da volta ao passado. Atualmente, diante da crise dos modelos revolucionários, vivenciamos uma reprodução do “romantismo-revolucionário” que abrevia a noção de política cultural como semeadora do entretenimento. Com a realização do trabalho de pesquisa qualitativa, utilizando a “observaçãoparticipante” e realização de entrevistas semiestruturadas, podemos perceber que a trajetória política e cultural dos artistas e intelectuais, os relacionava diretamente a incorporação do ideário da década de sessenta no Brasil, que perdurou nas expressões artísticas e nas organizações em grupos políticos e movimentos culturais da cidade de

João Pessoa tendo ecos na década de setenta e oitenta, período de efervescência cultural no estado. Assim, a presença desses representantes culturais num órgão estatal, possibilitou que os projetos e ideais anteriores pudessem ser colocados em prática fomentando o debate de uma concepção de cultura mais ampla.Existia certo aspecto de (BARBATOJÚNIOR, 2004) “missão revolucionária” nos interlocutores, dessa maneira, foi um objetivo importante da pesquisa problematizar o que era apresentado como uma proposta de emancipação, levando em conta o fato de que esse projeto poderia funcionar como uma integração desses intelectuais e artistas numa estrutura que delimitava até mesmo o espaço para crítica. Desse modo, escolhemos tratar essa temática a partir de um panorama teórico que relacionasse dentro do marxismo cultural a problematização dos diferentes projetos de “emancipação”, e paralelamente, a ideia de “entretenimento” como conseqüência do desenvolvimento da cultura no capitalismo. Para isso, nos concentramos nas contribuições de dois dos principais teóricos do marxismo ocidental do século vinte: Antônio Gramsci e Theodor Adorno. Essa escolha resultou num dilema no qual se apresentam duas propostas diferentes. Uma delas é a do intelectual engajado de esquerda que pretende junto aos grupos que representa lutar por um projeto emancipatório de uma realidade menos opressora. E do outro lado, encontramos a posição que questiona o papel do intelectual engajado de esquerda na formação de um projeto, já que isso pode ser um fenômeno tão opressor quanto o atual. O problema reside em entender como é possível existir crítica tanto do conhecimento quanto da cultura numa época em que o formato da sociedade é pautado no desenvolvimento da cultura a partir da “indústria cultural”, o que promove a extinção da singularidade do sujeito.

1. A contribuição das idéias de Antonio Gramsci e sua influência no Brasil

Um dos primeiros marxistas a recuperar a discussão da cultura na sociedade capitalista foi Antônio Gramsci. Contra as concepções do “marxismo economicista vulgar” da II Internacional que considerava a transição do capitalismo para o socialismo como um processo evolutivo e inevitável sem dar importância às questões da cultura.

Ele traz um refinamento das discussões como uma espécie de dialética de conservação e superação das análises de Marx e Lênin. Isso se reflete também, em virtude do contexto italiano de sua época e de sua interlocução com autores italianos contemporâneos ao seu período como é o caso de Croce e Gentili (COUTINHO, 2003). Mas antes de tudo, acredito que tenha relação também com a sua trajetória pessoal, na qual está delineada uma sensibilidade característica para perceber as minuciosidades dos problemas da atuação do capitalismo em determinados estratos e grupos diferenciados. Para tanto, a tarefa desse autor foi salientar a importância da luta de classes para a cultura. Para ele, assim como para Marx, a luta de classes também pode ser verificada na cultura, pois nela também existe disputa de poder. Nesse sentido, não há como se pensar a cultura sem ser permeada pela questão de classe. No entanto, é importante saber: Até que ponto a posição marxista segundo a qual se pode entender a contribuição dos intelectuais em termos econômicos, é verdade? Em linguagem marxista, até que ponto a superestrutura é determinada pela infra-estrutura? Ou até que ponto, na história, a produção de idéias é um processo com a sua própria história, como os idealistas pensaram? Dessa maneira é importante se aprofundar na posição de Gramsci em relação a isso. Para este autor é imprescindível ter os pressupostos teóricos do marxismo como fios condutores do seu pensamento. Dessa maneira, contribuiu na análise da cultura como campo diretamente ligado à política, sobretudo no entendimento de que a estrutura da sociedade é fortemente determinada por idéias e valores. Nesse sentido, a luta por “hegemonia” encerra em si um debate sobre cultura. Foi no conceito de hegemonia que Gramsci aprimorou a relação da luta de classes no campo cultural. Assim como Marx, ele também se preocupou com um projeto de revolução que provocasse a emancipação das classes subalternas. Marx partiu da mercadoria para explicar toda a sua crítica em relação à economia política. Gramsci se debruçou sobre a relação dialética entre governantes e governados mostrando o antagonismo das classes a partir da relação da sociedade civil e dos aparelhos privados de hegemonia. Na América Latina é um dos autores marxistas mais lidos e influentes.Um desses motivos é a ocorrência de sistemas autoritários em vários países a exemplo do Brasil. De acordo com Ortiz (1988) é a partir da década de setenta que o instrumental gramsciano se populariza no meio intelectual, numa tentativa de ação de agentes políticos na disputa política e ideológica do Estado. Assim, é possível estabelecer algumas analogias entre a

Itália e o Brasil, principalmente em relação aos “intelectuais”, a batalha pela “hegemonia”, e também ao seu conceito de “revolução passiva”. O conceito de “revolução passiva” é utilizado por muitos comentadores brasileiros de Gramsci principalmente se referindo como revelador de muitos traços da formação histórica brasileira. Gramsci usa o termo “revolução passiva” inicialmente para compreender a formação do Estado burguês moderno na Itália, em que no fascismo existe uma mudança no modelo capitalista para sua fase monopolista. O cerne da ação se refere às medidas de “restaurações” das classes dominantes como reatividade a processos de mudanças dos grupos “de baixo”. Assim, as classes dominantes neutralizam as classes populares incorporando muitas de suas demandas, impedindo uma atuação mais radical das classes subalternas (COUTINHO, 2006). No caso brasileiro verificamos a “modernização conservadora” em que a revolução instaurada pela burguesia não teve como objetivo romper totalmente com as estruturas dos velhos regimes, mas enquadrar às camadas populares ao contexto de “capitalismo tardio”. Isso promoveu uma revolução pelo alto, impedindo uma participação popular significativa (FERNANDES, 1987). Diante desse processo de incorporação das camadas populares, também ocorre um processo de anexação dos intelectuais de esquerda à classe dirigente, malgrado o êxito das tentativas revolucionárias e coligação dos intelectuais numa atitude que Gramsci caracterizou como “transformismo”. Todavia, a busca desenfreada dos intelectuais de esquerda pela identidade do homem brasileiro numa releitura do “nacional-popular” gramsciano, como iniciador do processo revolucionário, nos mostra como a figura do intelectual de esquerda pode estar colaborando para a permanência de uma cultura estática. Entretanto, mesmo fazendo uma crítica aos intelectuais italianos que se diziam “idealistas” e caracterizando o novo tipo de intelectual orgânico que estava surgindo na Itália como intelectual da burguesia, Gramsci tinha planos de articulação dos intelectuais de esquerda. Tinha a proposta de através de um movimento orgânico com o povo construir uma realidade diferente da existente na Itália. Na verdade, o plano de Gramsci era de que a esquerda italiana precisava a partir de um processo dialético possuir intelectuais orgânicos que pudessem representar suas lutas. O intelectual para ser orgânico, não necessariamente precisaria pertencer à classe que representa, mas necessitava, por outro lado, assim como um poeta ou escritor

orgânico que suas posições estivessem “... em consonância com a maneira de pensar e sentir do povo” (GRAMSCI, APUD, LOMBARDI-SATRIANI, 1986, p. 27-28). É esse processo de afinação do intelectual com os sentimentos populares que poderá guiá-los, e conduzi-los a uma catarse de civilização moderna. A questão dos intelectuais é decisiva em relação à influência sobre as classes fundamentais, tanto através da coerção como do consenso. O estrato dos intelectuais é radicalmente mudado de acordo com o desenvolvimento do capitalismo. Assim, quanto mais desenvolvido o sistema capitalista, mais irão existir formações de grupos na disputa pela hegemonia, e é nesse sentido que Gramsci ensina que: “Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político”. (GRAMSCI, 1989, p. 03).

Os intelectuais orgânicos são os principais agentes difusores da sociedade civil e sociedade política, elaborando a ideologia dominante no grupo, dando assim consciência ao grupo de seu papel, bem como, transformando em “concepção de mundo”, que a todos deve ser repassado. Para Gramsci, apenas depois da criação de uma camada de intelectuais orgânicos, ligados às classes subalternas, é que se pode elaborar e gerir a super-estrutura que dará a homogeneidade ao “bloco histórico da esquerda revolucionária, aliança da classe operária com o campesinato. Desse modo, quanto mais diversificada for a sociedade civil, existindo a constituição de grupos dos mais variados tipos e orientados por intelectuais orgânicos, mais será possível a sociedade civil exercer o seu poder através do “consenso”. Isso pode ser feito a partir da adesão de vários indivíduos e grupos formando uma aliança popular, que fortalecerá a sua teoria política de disputar hegemonia para que a classe revolucionária se torne não apenas “dominante”, mas também “dirigente” (COUTINHO, 2007). Para Gramsci a emancipação das classes subalternas está condicionada a uma mudança da estrutura vigente. Assim como Marx, ele acredita que essa mudança deve acontecer a partir da ação e organização do proletariado na formação do “bloco histórico”. Ele sofistica alguns conceitos na medida em que mostra a existência de várias

disputas de hegemonia por diversos grupos subalternos que possuem ideologias diferentes, as quais são afirmadas num movimento contínuo de disputa com as classes dominantes.

2. A contribuição das ideias de Theodor W. Adorno ao marxismo ocidental

2.1 O MARXISMO E A TEORIA CRÍTICA

Max Horkheimer entre outros intelectuais fundaram o Instituto de Pesquisa Social em 1927 como primeira instituição alemã de orientação para pesquisas abertamente marxista. Entretanto, quando Horkheimer assume a direção do Instituto em 1930, imprime um programa de crítica da prática política dos partidos operários alemães (Matterlart, 1999). O programa da Teoria Crítica se inspirou num marxismo em ruptura com a ortodoxia e voltou-se principalmente para as transformações ocorridas na cultura desde os anos quarenta. Assim, falando sobre o primeiro diretor do Instituto, Adorno explica: (...) ele próprio se consideraria um marxista, porém entendendo essa posição não apenas em seu sentido político-partidário, mas em seu significado científico; o conceito de “marxismo” servia-lhe para descrição de um sistema econômico, de uma determinada cosmovisão, e de um método de pesquisa bem definido. Essa postura de Grunberg – vinculada a uma “escola” de pensamento, mas ao mesmo tempo entendendo-a em sua dimensão crítica e como perspectiva aberta – constitui, de modo geral, a tônica do pensamento dos elementos do grupo de Frankfurt. (ADORNO, 1999, p. 05)

A partir dessa citação e fundamentada na produção da Teoria Crítica, principalmente nas obras de Adorno e Horkheimer, percebemos que esses pensadores não abandonaram o projeto emancipatório do marxismo, mas apenas fizeram uma leitura diferente das teorias marxianas. O nosso debate está centrado na influência do pensamento de Adorno como uma das figuras centrais na Escola de Frankfurt, e também um dos principais expoentes do marxismo ocidental. Contudo, a forma em que concebeu suas teorias rejeitava uma vinculação à política do proletariado, já que acreditava num potencial utópico da sociedade moderna que extrapolava a carceragem em um regime socialista (JAY, 1984).

Por apresentar uma recusa ao compromisso com a militância partidária, e defender “a teoria como práxis”, foi acusado por alguns marxistas filiados a partidos como Lukács, de não ter relação com o marxismo: “Essa sensibilidade levou naturalmente à reprovação dos esquerdistas mais ativistas, segundo os quais Adorno era um elitista que havia traído as implicações políticas do seu próprio trabalho, uma reprovação melhor tipificada pela célebre acusação de Lukács de que Adorno “havia passado a residir no Grande Hotel Abismo‟ (JAY, 1984, p. 19).

Entretanto, a principal questão a ser investigada para Adorno e Horkheimer era a apatia das massas diante de regimes totalitários como o fascismo e o nazismo que estavam baseados na destruição da humanidade e na dominação do homem. Dessa forma, como se explicaria a falta de consciência de classe dos indivíduos? É nesse sentido, que o conceito de ideologia formulado por Adorno e Horkheimer abarca um sentido maior do que o marxiano: “Não se trata de instrumentos na mão de alguém – classes ou indivíduos – nem de cortina para ocultar alguma outra coisa, mas de falsa experiência social. Falsa porque é incapaz de reconhecer e realizar sua própria verdade, que é a de ser resultado de uma atividade social determinada”. (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p.11)

Para Olgária Matos (1989, p. 09) a partir da leitura de Horkheimer, existem duas teorias críticas: a dos anos 30 – marxista revolucionária e a dos anos 70. A Teoria Crítica dos anos 70 se aprofundou compreendendo que o projeto marxista de uma sociedade livre implantado pelo marxismo ortodoxo, não foi capaz de prever que a revolução e a sua ideia de racionalidade, acabou por liquidar a liberdade dos sujeitos. Nesse sentido, tanto a expansão do capitalismo quanto o socialismo para Adorno tiveram como resultado a opressão e o que ele chama de “sociedade administrada”. Tanto o experimento soviético como a sua experiência de exílio nos Estados Unidos, comprovaram a relação de dominação e opressão dos indivíduos. Assim, para Matos: “Em outras palavras, a experiência do fracasso da revolução proletária ante a ditadura nazifacista e, depois face ao milagre econômico – produto de um capitalismo sedimentado – determinaria o abandono das esperanças revolucionárias e as análises das tendências à total administração na sociedade moderna”. (MATOS, 1989, p. 14).

Entretanto, o fato de não acreditar numa revolução a partir do proletariado não significa uma descrença num projeto de emancipação da sociedade. A Teoria Crítica reconhece o materialismo e as relações econômicas existentes como influentes no conjunto da sociedade. Desse modo, um dos pontos defendidos por essa corrente de pensamento continua sendo a felicidade da humanidade, ou como Adorno coloca na obra Mínima moralia a busca por uma “vida boa”. Para isso, se vê como necessária uma modificação das condições materiais existentes. Entretanto, uma das questões centrais na Dialética do Esclarecimento, trabalho escrito por Adorno e Horkheimer é entender que a razão deveria ter como efeito a construção de uma sociedade digna para a humanidade, mas, no entanto a racionalização desenvolvida por ela tem contribuído para um processo de desumanização da sociedade e instalação da barbárie (ADORNO & HORKHEIMER, 1985). Além da notável influência marxista, a base teórica em que se sustentou a teoria crítica também passa por diversos autores entre eles: Freud, Weber, Nietzsche, Kant, entre outros.Adorno e Horkheimer têm uma relação polissêmica com a filosofia do Iluminismo uma ora explicativa e em outra crítica. O objetivo dos autores é superar a ideia da razão iluminista como transformadora, baseada na denúncia dos efeitos regressivos que ela provoca à sociedade. Percebem que o processo de racionalização avançada que ocorre na civilização atual voltada para o progresso, tende a destruir a própria substância da razão. Já que a razão se converte em mero instrumento do sistema, o destino do sujeito é ser prisioneiro dos limites desse racionalismo. A razão objetiva o mundo e os homens visando o progresso histórico. Assim, instrumentalizam os indivíduos embutindo a crença de que não é necessário procurar a felicidade, pois já se está nela. Para Adorno e Horkheimer (1985, p.24): “O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens” A função da teoria crítica não se resumiu em diagnosticar a incorporação da razão e cultura no capitalismo. Mais do que isso, os autores tem uma proposta crítica de “esclarecer o esclarecimento”. O pessimismo presente em suas obras é um pessimismo crítico, que tenta escapar ao totalitarismo retratando as cicatrizes do passado pelos regimes totalitários como o nazismo e fascismo, e expondo o sofrimento ainda presente na humanidade.

Dessa maneira a utopia prenunciada por Adorno e Horkheimer difere de uma forma institucionalizada de luta política, assim como pensou ser possível o marxismo. Os frankfurtianos acreditam ser necessário se retirar da práxis e refletir teoricamente sobre a mesma a fim de construir um esclarecimento que não vise à dominação, mas a verdadeira emancipação da humanidade. Assim: “Só o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 20).

2.2 As concepções sobre o conceito de cultura e de intelectual em Theodor W. Adorno

Para Martin Jay, Adorno está entre os poucos intelectuais do século XX que tiveram sensibilidade para compreender os diversos significados que a palavra cultura confere. Adorno teve a experiência de poder conviver de perto com as diferentes compreensões sobre a cultura, tanto no ambiente americano, quanto no alemão. Isso auxiliou a construção de seus variados trabalhos sobre cultura e crítica cultural. (JAY, 1984). Muitos críticos acusaram o pensamento adorniano em relação à cultura de elitista, entretanto, uma das maiores preocupações desse autor foi superar a divisão entre cultura no sentido elitista e cultura como modo de vida. Para ele, a cultura na sociedade atual tem uma enorme tendência a se tornar ideologia (JAY, 1987). Quando foi convidado a fazer um trabalho com Paul Lazarsfield nos Estados Unidos, é que Adorno teve contato com a cultura de massa tecnologizada. A expansão desse sistema o fez perceber que não é uma cultura que provém do povo, mas um discurso falsificado pautado na total reificação da consciência pela “indústria cultural”. O autor fala o seguinte sobre o conceito de “indústria cultural”: “Tudo indica que o termo indústria cultural foi empregado pela primeira vez no livro Dialektik der Aufklãrung, que Horkheimer e eu publicamos em 1947, em Amsterdã. Em nossos esboços, tratava-se do problema da cultura de massa. Abandonamos essa última expressão para substituí-la por “indústria cultural”, a fim de excluir de antemão a interpretação que agrada aos advogados da coisa. Estes pretendem, com efeito, que se trata de algo como uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas, em suma, da forma contemporânea de arte popular. Ora, dessa arte a indústria cultural se distingue diretamente”. (ADORNO, APUD, COHN, 1971, p. 287).

Nessa citação o autor deixa bem claro a transformação que a cultura vem sofrendo ao longo da modernidade. O mesmo problema que ocorreu com a razão também acontece com a cultura. A cultura contemporânea tende a conferir a tudo um ar de semelhança. A repetição é o motor da atrofia da imaginação e da permanência do mesmo. As manifestações estéticas já não desafiam a supremacia da realidade cultural fraturada dos dias atuais. A indústria se encontra entrelaçada com a cultura, assim como o mito com o esclarecimento. Assim: “A indústria cultural é cultura ou indústria? Nem cultura: porque subordinada a lógica da circulação de mercadorias e não a sua própria – nem indústria: porque tem mais a ver com a circulação do que com a produção. Isolar um ou outro pólo é consagrar a ideologia. Tratá-los conjuntamente é mostrar no que constituem a ideologia – na incapacidade de desenvolver-se, de realizar plenamente seja sua condição de cultura, seja sua condição de indústria”. (COHN, 1986, P. 19)

Dentro da “indústria cultural” a cultura se encontra privada de realizar seu impulso criador. No mundo em que as mercadorias passam a ser sujeitos, a cultura se transforma em entretenimento que busca a todo o momento realizar os anseios das massas, as quais passam a ser sua ideologia. Na verdade, a lógica da “indústria cultural” elaborou uma grande facilidade em absorver os mais distintos elementos até mesmo os que porventura se opõem a ela. Dessa maneira: “Adequando-se por completo a necessidade, a obra de arte priva por antecipação os homens daquilo que ela deveria procurar: liberá-los do princípio da utilidade” (ADORNO & HORKHEIMER, 2006, p. 61). Apesar do diagnóstico de incorporação da cultura feito através dos escritos sobre a “indústria cultural”, nos seus escritos mais tardios Adorno levantou questões sobre como a arte e a cultura seriam campos para uma possível resistência, algumas formas específicas de arte poderiam contribuir para um mundo de liberdade. De acordo com Adorno: “A cultura que, de acordo com seu próprio sentido, não somente obedecia aos homens, mas também sempre protestava contra a condição esclerosada na qual eles viviam, e nisso lhes fazia honra; essa cultura por sua assimilação total aos homens, torna-se integrada a essa condição esclerosada; assim, ela avilta os homens ainda uma vez. As produções do espírito no estilo da indústria cultural não são mais

também mercadorias, mas o são inteiramente”. (ADORNO E HORKHEIMER, 2002, P.93-94).

As condições em que se encontram a razão e a cultura no sistema capitalista é uma ameaça a uma possibilidade de realização da utopia de felicidade, originalidade, e de um mundo verdadeiramente humano. O que a modernidade previu a partir do esclarecimento, a permanência no horizonte da razão, teve como resultado a desestabilização da cultura e da própria razão. Dessa forma, seria necessário restaurar a idéia de uma razão libertadora por dentro dos domínios da própria razão. Adorno expõe: “Com a felicidade dá-se o mesmo que com a verdade: não se a tem, está-se nela. Sim, a felicidade não é senão o estar abrangido, reprodução do abrigo na mãe, isso mesmo ninguém feliz pode jamais saber que o é. Para ver a felicidade, precisaria sair dela: seria como se nascesse. Quem diz estar feliz mente ao invocá-lo, e peca assim contra a felicidade. Só é leal a ela quem diz: fui feliz. A única relação da consciência com a felicidade é a de gratidão: é nisso que consiste sua incomparável dignidade. (ADORNO, 2008, p. 108).

A unidade do sistema está baseada numa constante criação de necessidades que, mesmo não sendo totalmente atendidas, funcionam como pilar essencial para a criação de um imaginário popular de que é possível sua realização. A “racionalidade técnica” é responsável pela padronização das necessidades humanas. Assim, a “indústria cultural” procura envolver os indivíduos numa realidade que abarca toda a promessa de felicidade ligada à realização de todos os sonhos. Porém, de acordo com Adorno, estamos diante de uma felicidade ilusória já que não é possível viver num mundo de felicidade diante dos horrores realizados, seja com o nazismo, ou com a sociedade norte-americana que acredita ser o lugar por excelência da liberdade, mas eterniza a condição de dominação. Sobre a posição do intelectual engajado na sociedade, Adorno nos seus escritos sempre teceu várias críticas, em razão da compreensão de que tanto a cultura como o intelectual revolucionário se encontram impossibilitados de se realizar na sociedade de “capitalismo tardio”. O autor defendia que seria necessário ao pensamento independente manter o elemento crítico, pois só assim é que se poderia resistir à barbárie instituída. Apesar dele não ter uma formulação sistemática sobre o conceito de intelectual, apontou como existiam aporias nessa atividade na época moderna, que estariam ligadas a sua teorização sobre as transformações da arte, cultura e filosofia sob o capitalismo. Nesse

sentido, a concepção de intelectual em Adorno tem muito a ver com sua experiência de se encontrar exilado, segundo ele como um “expatriado profissional”. Para o autor: “Todo intelectual na emigração, sem exceção alguma, está prejudicado, e faria bem em reconhecê-lo se não quiser dar-se conta disso da maneira mais cruel atrás das portas cerradas do seu amor próprio. Ele vive num ambiente que lhe é incompreensível, por mais que seja entendido em organização sindical ou trânsito urbano; ele sempre está em erro. Entre a reprodução da própria vida sob o monopólio da cultura de massa e o trabalho objetivo e responsável reina um hiato insuperável. (ADORNO, 2008, p. 29).

Essas concepções norteiam o entendimento, de que, além do que Gramsci propôs em relação ao “intelectual orgânico”, é necessário, avaliar também a ação desse intelectual sob uma crise da utopia revolucionária. Em meio a uma estrutura de uma sociedade que se coloca enquanto esclarecida, mas se encontra ofuscada pelo mito, é necessário perceber a incongruência do papel do intelectual orgânico prenunciado por Gramsci em relação a sua prática contemporânea. Assim, apesar de Gramsci e Adorno serem relativamente contemporâneos um ao outro, existiam realidades diferentes nos países de origem de cada um. Na Itália da época de Gramsci, ainda não existia um desenvolvimento da cultura em termos de indústria como o que ocorria nos Estados Unidos, país em que Adorno acompanhou de perto a mudança na cultura e nas formas de organização dos indivíduos. Para Adorno, é uma contradição à existência de uma atividade intelectual que tente diminuir a distância entre os intelectuais e o povo, quando o resultado dessa simbiose está ameaçado pelo desenvolvimento da “razão instrumental”, que dificulta a existência da oposição na sociedade. Segundo ele: “Para o intelectual, a solidão inviolável é a única forma em que ainda pode manter de algum modo a solidariedade. Toda adesão, toda humanidade na convivência e na participação é mera máscara para a tácita aceitação do desumano”. (ADORNO, 2008, p. 22). O intelectual vive um dilema na sociedade para exercer um papel crítico. O distanciamento postulado enquanto medida para uma crítica esforçada é uma ilusão na medida em que, o que está distante também está próximo. E a atuação de engajamento é uma busca de auto-conservação, na qual ele se encontra traído pela sua causa, pois a própria oposição constitui um momento da sociedade. Nesse sentido, sua causa é transformada em ideológica.

A observação de Adorno em relação à defesa de programas políticos por alguns intelectuais como Brecht e Sartre, era que a filosofia e a cultura não deveriam ser usadas como aparelhos de demarcação de alternativas políticas. Segundo Adorno, apud, Doohm (2006, p. 56) “em desespero contra a violência adotam práticas violentas”. Ainda de acordo com Doohm (2006, p. 55) a democracia não resultou para as pessoas como uma coisa tão familiar para ser entendida como uma coisa própria delas, na verdade ela foi percebida como um emblema do poder em que as pessoas não se consideraram sujeitos do processo político. Já que não ocorre uma autonomia dos indivíduos numa busca por uma felicidade coletiva, e sim uma adesão às idéias e pensamentos desenvolvidos pelos grupos dominantes que se propõem a beneficiar de alguma forma os grupos marginalizados, são exercitados dessa forma o conformismo e a adequação a políticas compensatórias. Essas são vistas como avanços e possibilidades de lutas nas quais os intelectuais atuam como defensores dos grupos sociais, e ao mesmo tempo, se abrevia a condição de separar a práxis da teoria não sendo necessário pensar, mas estar de acordo. Desse modo: “Seu ressentimento é socialmente racionalizado sob a forma: pensar não é científico. Enquanto isso, o mecanismo de controle expandiu sua potência mental ao extremo em várias dimensões. A tolice coletiva dos técnicos da pesquisa não é mera ausência ou retrocesso de capacidades intelectuais, mas uma excrescência da própria capacidade de pensar, que a devora com sua própria força. A maldade masoquista dos jovens intelectuais advém da maldade da sua enfermidade”. (ADORNO, 2008, p. 120)

Dessa maneira, por acreditar que a esfera política, como a esfera cultural se tornaram uma fachada, a exigência de honestidade intelectual é ela mesma desonesta (ADORNO, 2008). Para Adorno, o intelectual deve se colocar em confronto direto com o passado, para entender as repercussões que este trouxe na realidade concreta, e através da negação das exigências cotidianas da realidade, expressar sua crítica a transformação da teoria numa quimera. A aversão a teoria, característica de nossa época, seu atrofiamento de modo nenhum casual, sua proscrição pela impaciência que pretende transformar o mundo sem interpretá-lo, enquanto, em seu devido contexto, afirmava-se que os filósofos até então tinham apenas interpretado – tal aversão a teoria constitui a fragilidade da práxis. Que a

teoria deve curvar-se a ela dissolve o conteúdo de verdade da mesma e condena a práxis ao delirante; é hora de enunciar isto como algo prático. (ADORNO, 1995, 211) Seria necessário então se voltar à teoria e a sua capacidade de interpretar o mundo para se entender os problemas contidos no esclarecimento de nossa época, e a necessidade de esclarecê-lo. Dessa forma, qualquer atuação do intelectual numa realidade dominada pela ideologia da “indústria cultural” se decompõe em erro. 3. O “romantismo – revolucionário” da esquerda da década de sessenta no Brasil Dentre os vários sentidos que o golpe militar assumiu dois deles tem maior importância para o diálogo que pretendemos estabelecer aqui. Um deles é sua dimensão política que congregou diversos grupos de esquerda que se organizaram como oposição política e cultural ao modelo de governo centralizador. E o outro foi sua dimensão econômica, em que podemos presenciar um momento no qual a economia brasileira se insere por completo nos moldes do capital internacional (ORTIZ, 1985). Esse período de modernização do país fez com que os movimentos de esquerda inspirados nas agitações culturais e políticas internacionais, (como a atuação e resistência da União Soviética na Guerra fria), acreditassem que eram possíveis alternativas libertadoras para o país. Nesse período da história brasileira, existiu um grande impulso revolucionário de inúmeros grupos que mesmo com as suas ambiguidades, conseguiram organizar propostas e ações em comum que, em sua maioria, tiveram como objetivo a revolução socialista. Junto com a organização política para desmistificar uma realidade social fragmentada, em que a desigualdade social continuava a assolar a população mesmo com a promessa do milagre brasileiro, também existia uma preocupação dos grupos de esquerda com o questionamento da constituição da noção de brasilidade. Para Ridenti (2003, p.198-199): “Recolocava-se o problema da identidade nacional e política do povo brasileiro, buscava-se a um tempo suas raízes e a ruptura com o subdesenvolvimento, numa espécie de desvio à esquerda do que se convencionou chamar ultimamente de “Era Vargas”, caracterizada pela aposta no desenvolvimento nacional, com base na intervenção do Estado”. (RIDENTI, 2003, p. 198-199)

Na verdade, desde a década de trinta já existia uma preocupação do Estado em reforçar a identidade nacional levando em consideração a cultura do povo (JÚNIOR,

1999). Porém, é só no regime militar, momento de grande efervescência política e cultural, que os movimentos de esquerda que já atuavam por uma “emancipação nacional” nos períodos anteriores, radicalizam em ações que iam de encontro à hegemonia vigente. É intenção do estado se mostrar como uma instância democrática que abriga toda a diversidade cultural, e mais do que isso, que colabora para a conservação da identidade brasileira. Entretanto, a atuação dos movimentos de esquerda tem como finalidade trazer à tona as relações de poder que ocorrem entre os grupos, mostrando como a constante necessidade do Estado em investir na construção da tradição brasileira, não passa de uma prática autoritária (CHAUÍ, 1986). Assim, de acordo com Barbalho:

(...) o regime militar valoriza a cultura como elemento estratégico na sua tentativa de integrar a nação. Apropriando-se do conceito de nacional-popular, esvazia o discurso da esquerda e procura impor sua „interpretação‟ do país. Uma visão guiada por interesses militares e nacionalistas, reunidos na ideologia da Segurança Nacional, e econômicos, na busca da unificação do mercado de bens simbólicos, unindo diversas formas de utilização do nacional-popular. (BARBALHO, 1998, p.55)

Na contramão das propostas do Estado, que como já vimos, tinham como objetivo justificar a ordem existente se torna central para os movimentos artísticos e intelectuais de esquerda retomar o problema da identidade nacional e política do povo brasileiro. Nesse sentido, partilhamos da tese proposta por Marcelo Ridenti de que existiu uma atitude “romântico-revolucionária” desses grupos na prática de uma reação, e não de uma revolução. Já que, recuperar o passado através da valorização do povo, era uma implicação fundamental para a construção de um projeto utópico que rompesse com o capitalismo e tivesse o horizonte no socialismo. Ridenti afirma: “Não obstante, o conceito de romantismo, particularmente o tipo revolucionário, parece ser pertinente para caracterizar a maioria da esquerda política e cultural brasileira nos anos 60 e princípio dos 70 – embora houvesse diferenças entre os projetos específicos dos vários grupos, nos quais o romantismo vincula-se com a idéia iluminista de progresso. É justamente essa fusão entre a busca romântica das raízes populares para justificar o ideal iluminista de progresso que dá colorido aos romantismos revolucionários”. (RIDENTI, 2000, p. 56)

Para este autor não se deve entender o adjetivo romantismo - revolucionário com um sentido pejorativo, pois esses valores que se pautavam no resgate de um passado pré-

capitalista eram uma constante em movimentos de esquerda do mundo todo. A interferência desses movimentos na literatura e na prática bastante influente do Partido Comunista do Brasil contribuiu para a formação de toda essa geração. Desse modo: “O romantismo das esquerdas não era uma simples volta ao passado, mas também modernizador. Ele buscava no passado elementos para a construção da utopia do futuro. Não era, pois, um romantismo no sentido da perspectiva anticapitalista prisioneira do passado, geradora de uma utopia irrealizável na prática. Tratava-se de romantismo, sim, mas revolucionário. De fato, visava-se resgatar um encantamento da vida, uma comunidade inspirada no homem do povo, cuja essência estaria no espírito do camponês e do migrante favelado a trabalhar nas cidades”. (RIDENTI, 2000, p. 25)

A base para as formulações de Ridenti se encontra na obra de Michael Lowy e Robert Sayre, Revolta e melancolia, o romantismo na contramão da modernidade é aplicada a realidade da esquerda brasileira da década de sessenta. Para esses autores o romantismo não se restringe a uma corrente artística da Europa na época da Revolução Francesa, mas consiste numa visão de mundo ampla que pode ser encontrado em diversos locais do mundo (RIDENTI, 2000). Para Lowy e Sayre, pode assim ser definido: “Recusa da realidade social presente, experiência de perda, nostalgia melancólica, e busca do que está perdido: tais são os principais componentes da visão romântica” (LOWY e SAYRE, 1995, p. 44). 4. Os intelectuais e artistas da Funjope e a “estrutura de sentimento românticorevolucionária” de esquerda A hipótese levantada em nossa pesquisa foi de que existiram semelhanças na atitude de esquerda dos grupos políticos e culturais locais que atuaram na gestão da FUNJOPE (2005-2008), com a lógica nacional descrita por Marcelo Ridenti. É importante situarmos que os entrevistados na pesquisa realizada, têm o auge da sua trajetória política e cultural ligadas a década de setenta e oitenta, na participação em partidos políticos, sindicatos e movimentos culturais que atuavam na contramão do governo e do sistema. Num momento em que ocorria um movimento nacional de mobilizações das esquerdas culturais na produção de uma arte engajada. Muitos grupos também acreditavam no potencial revolucionário da cultura na luta contra a ditadura militar. Os

representantes dos grupos culturais pesquisados estiveram contagiados por essa efervescência política e cultural, expressando através da arte e cultura, formas de resistência à realidade de repressão e desigualdade social proporcionada pelo desenvolvimento do capitalismo e pelos governos autoritários. Percebemos que o imaginário crítico da década de sessenta se fez presente contemporaneamente, já que a maioria dos interlocutores dessa pesquisa viveram a época da ditadura militar e ainda carregam na sua metodologia de trabalho e de vida ligadas a cultura, uma forte influência das esquerdas e do ideário “romântico-revolucionário” desse período, na construção de suas ações e atitudes na construção das políticas culturais, mesmo que através da sua participação num órgão gestor de cultura municipal. Ao longo da pesquisa podemos observar que a atuação dos grupos culturais pesquisados, antes da participação na instituição sempre esteve voltada para uma arte engajada que valorizasse a música autoral, a cultura popular tradicional, bem como as demais culturas produzidas nos bairros periféricos, através de uma postura voltada para a denúncia dos processos de exploração do capitalismo. Através das entrevistas realizadas com os interlocutores, notamos que isso ocorreu por meio de atividades que tiveram como foco através da música, do teatro, entre outras expressões artísticas, provocar um questionamento na população sobre as desigualdades vividas, e sobre o processo de alienação constante proporcionada pela “indústria cultural”. Uma vez que esses representantes de oposição ao governo, a partir de então, começaram a fazer parte da equipe da gestão de governo da fundação como diretores culturais e chefes de divisões específicas dada a sua credibilidade artística e política, existiu uma preocupação na construção de uma política cultural que atuasse com ações de “resgate” e valorização da cultura popular e dos artistas locais. As ações institucionais procuraram evocar o fortalecimento da cultura popular tradicional, considerando-a como a cultura “autêntica”, numa forma de se contrapor aos projetos “reificadores” da “cultura de massa”. Isso pôde ser visto a partir das entrevistas, numa retomada de elementos discursivos e ações políticas que remetem a um momento histórico de unir os elementos políticos do passado a um momento presente. Isso fez parte de um ideário comum na Fundação de que era necessário consolidar a identidade cultural da cidade a partir das produções mais representantes das “raízes” do povo. A cultura popular tradicional, dessa maneira, passa a ser um elemento importantíssimo na representação dessa identidade.

O discurso dos artistas e intelectuais da FUNJOPE se pauta em duas frentes: a inserção da cultura popular tradicional e dos artistas locais no circuito de eventos culturais da Fundação. Para esse grupo essa é uma medida de contraponto as posturas da “indústria cultural” de valorização da “cultura de massa”. O que observamos é que, não há como entender a prática desses grupos culturais sem compreender a “estrutura de sentimento” que carregam, de construção de uma arte e cultura engajada. Mesmo percebendo essa reverberação dos pensamentos de esquerda na ação desses intelectuais e artistas, é preciso fazer uma análise mais detalhada do contexto em que estão inseridos, de representantes de divisões de cultura pertencentes a uma Fundação de Cultura do município. Percebemos que como explica Perry Anderson (2006), ocorreram mudanças nas coordenadas históricas do modernismo, mas observamos que no Brasil continuou a existir um movimento de reprodução de uma postura “romântica”, mesmo que através de re-arranjos dos intelectuais de oposição. A proposta de uma utopia revolucionária, não é mais possível devido a vários fatores, entre eles, a expansão da “indústria cultural”. Entretanto, existe uma inserção dos grupos de esquerda nas estruturas institucionais que pretendem apoiar o desenvolvimento da cultura e que agem como vanguarda revolucionária representantes dos anseios do povo.

5. Abordagem metodológica e estudo de caso dos intelectuais e artistas da Funjope 2005-2008

A proposta metodológica escolhida foi a realização de uma descrição etnográfica numa perspectiva dialógica, que acompanhou o planejamento e a execução das políticas de cultura realizadas pela instituição. Realizamos entrevistas semi-estruturadas baseadas em relatos das histórias de vida dos interlocutores e utilizamos também o método da “observação-participante” para compreender melhor o cotidiano de ações e as trajetórias dos entrevistados. Realizamos ainda uma pesquisa documental que nos permitiu examinar relatórios, gastos financeiros, histórico da instituição, entre outros. Foi a partir dessas fontes que buscamos compreender de maneira ampla qual a concepção de política cultural pretendida pela gestão 2005-2008 da FUNJOPE. Dessa maneira, realizei uma pesquisa etnográfica com acompanhamento da rotina e atividades dos interlocutores, realizando formalmente 9 (nove) entrevistas semi-

estruturadas com representantes da instituição, das áreas de: música, teatro, dança, literatura, cultura popular e produção cultural; A preocupação foi traçar um cenário que retomasse as trajetórias políticas e culturais específicas, percebendo como elas se relacionavam entre si, a fim de compreender como o percurso histórico-pessoal de cada um contribuiu para sua visão de mundo e fundamentação dos parâmetros estabelecidos para a construção da política cultural específica. É importante salientar que se levou em conta no início de cada entrevista a preocupação em reportar os sujeitos às suas histórias de vida de forma mais livre, e posteriormente, direcionando-os a uma estrutura de perguntas em sua maioria comum a todos os entrevistados. Nesse sentido, de acordo com Paul Thompson: “A melhor maneira de dar início ao trabalho pode ser a partir de entrevistas exploratórias, mapeando o campo e colhendo idéias e informações. Com a ajuda destas, pode-se definir o problema e localizar algumas das fontes para resolvê-lo. Do mesmo modo que a “entrevista piloto” de um grande levantamento, uma entrevista de coleta de informações genéricas no início de um projeto local pode ser uma etapa muito útil”. (THOMPSON, 1992, p. 254).

Baseados na orientação de Thompson procurou-se fazer perguntas genéricas para todos os informantes no intuito de perceber a validade da hipótese de pesquisa, observando as recorrências nos discursos dos sujeitos. No decorrer das entrevistas fomos percebendo como poderíamos explorar mais alguns aspectos nas perguntas aos entrevistados, existindo uma preocupação de se voltar para o contexto específico de cada sujeito. Nesse sentido, procurei não interromper o encadeamento dos depoimentos, mas tentei a partir das suas próprias construções, adequar às perguntas que havia planejado para a situação de entrevista. Haja vista que os nossos informantes são funcionários contratados dessa gestão da FUNJOPE, e que em virtude do seu vínculo institucional pode ser problemático a exposição das suas ideias sobre a política da gestão, antes de utilizar o gravador nas entrevistas, tivemos conversas informais nas quais procuramos reter o máximo de informações sobre o assunto para posteriormente usá-las nas entrevistas (THOMPSON, 1992). Pedimos autorização para gravar todas as entrevistas. Em alguns momentos precisei insistir em questões que os interlocutores tinham medo de se comprometer com as respostas, mas a partir do momento que se discutia mais a fundo determinado assunto, foi possível ter avanços e dependendo do caso encontramos recorrências de negações.

Isso foi importante também para demonstrar que existia um motivo substancial para não se querer falar sobre determinado assunto. É importante salientar que não é objetivo desse trabalho acreditar que seja possível uma entrevista completamente livre, já que, até mesmo o esclarecimento do objetivo da pesquisa pode influenciar na resposta do entrevistado. Assim, procuramos ainda ter cautela na abordagem aos interlocutores, evitando ações que pudessem impedilos de responder as indagações, como interrupções freqüentes, e insistência em temas sinuosos (THOMPSON, 1992). Notamos que iniciar a entrevista a partir da história de vida dos sujeitos criou um clima de familiaridade entre pesquisador e interlocutor. Esse relato inicial do sujeito nos trouxe sua experiência e interpretação a respeito do mundo que vive. Na entrevista, houve uma atenção especial para se fazer um recorte da história de vida dos sujeitos em relação à política e a cultura. Isso facilitou a análise do material coletado. Como explica Becker: “O sociólogo que coleta uma história de vida cumpre etapas para garantir que ela abranja tudo o que quer conhecer, que nenhum fato ou acontecimento importante seja desconsiderado, que o que parece real se ajuste as outras evidencias disponíveis e que a interpretação do sujeito seja apresentada honestamente”. (BECKER, 1999, p. 102).

Desse modo, cabe ao pesquisador o questionamento em relação à história contada, realizando o confronto com dados de outras fontes familiarizadas com os acontecimentos descritos, garantindo a observação atenta a todo material de pesquisa. No caso dessa pesquisa, as histórias de vida dos interlocutores e o seu entrelaçamento, nos ajudaram a compreender o engajamento desses atores com a cultura antes da participação na gestão. De acordo com Becker (1999): “A imagem do mosaico é útil para pensarmos sobre este tipo de

empreendimento científico. Cada peça acrescentada num mosaico contribui um pouco para nossa compreensão do quadro como um todo. Quando muitas peças foram colocadas, podemos ver mais ou menos claramente, os objetos e as pessoas que estão no quadro, e sua relação uns com os outros (BECKER, 1999, p. 104).

A orientação de apreender as diversas histórias de vida dos sujeitos, que assim como as peças de um mosaico se inter-relacionam, e produzem um sentido na sua totalidade, nos ajudam a compreender o contexto político e cultural da gestão da Fundação e as motivações desses sujeitos para a construção das políticas de cultura.

Para uma compreensão mais ampla do cenário político e cultural pessoense desde a década de setenta, selecionamos três grupos representantes da atuação cultural que perdura até os dias atuais: O grupo “Jaguaribe carne de estudos”, o “Musiclube da Paraíba” e o “Grupo Piollin de teatro”;

5.1 O grupo Jaguaribe carne de estudos

A década de setenta na Paraíba foi um período de grande efervescência política e cultural. Num período de agitações políticas nacionais e internacionais como a Guerra fria entre os aliados dos Estados Unidos e da União Soviética, e diante do golpe militar no Brasil, existiu muita agitação das esquerdas, primeiramente com as lutas pelas “reformas de base”, e depois numa ação contra a ditadura. Essas condições comuns num plano mais geral favoreceram que esse período da história brasileira trouxesse várias experiências particulares de representações de um questionamento da ordem existente, e da construção de ações políticas e culturais diversificadas. Na cidade de João Pessoa muitos grupos de esquerda, movimentos sociais e culturais surgiam nesse período. Um dos grupos que mais se destacou pela ação cultural e política que se iniciou nesse período na cidade foi o Jaguaribe carne de estudos. Um dos principais objetivos do “Jaguaribe Carne” era a maior apreensão possível em arte, cultura e política, para depois proporcionar uma socialização desse conhecimento. Nesse sentido, houve uma organização de vários artistas das mais diferentes linguagens artísticas, que tinham como ideal comum à popularização da cultura e sua ação educativa na sociedade. Assim, sempre houve uma participação do “Jaguaribe Carne” junto às associações, movimentos estudantis, sindicatos, entre outros, com a prática do que os integrantes definiram por “guerrilha cultural”. O que definem como “guerrilha cultural” seria a permanência de uma atitude de esquerda que buscasse transgredir os padrões normativos, atuando na utilização da arte e da cultura como ferramentas importantes na construção de uma consciência revolucionária. De acordo com o Entrevistado 1, um dos fundadores do grupo, o “Jaguaribe Carne” surgiu no meio de festivais de música dos anos setenta, mais especificamente num festival de música estudantil que aconteceu no ano de setenta e quatro em João Pessoa. Ele explica que os festivais eram momentos importantes em que circulavam artistas, intelectuais e grupos que tinham propostas inovadoras ligadas à cultura na

cidade. Foi nesse momento que o grupo teve a oportunidade de expressar suas idéias, a partir dos seus estudos autodidatas e linguagens experimentais. Conhecidos pela produção de uma “anti-música” e “anti-arte”, tiveram uma ação de vanguarda na cena cultural paraibana que impulsionou o surgimento de um mercado alternativo para as produções independentes. A escolha do nome do grupo está ligada ao bairro de Jaguaribe, em que residia o núcleo principal do grupo, os irmãos Entrevistado 1 e Entrevistado 2, e o termo “carne” se refere às influências do movimento modernista e da antropofagia.O objetivo era levar as suas ideias políticas e artísticas para o povo através da música e de outras expressões artísticas. Como afirma um dos artistas em seu depoimento: “(...) a gente sempre engrossou o caldo do povo porque a gente se tornava alto-falantes deles. Quando fazia uma música, fazia uma poesia que retratava essa vida difícil que as pessoas tinham nas comunidades, nos bairros, da fome que as pessoas tinham não só de comida, mas como de arte, de cultura, a gente tentava suprir isso com o nosso trabalho”. (Entrevistado 2)

Como observamos no discurso de um dos fundadores desse movimento, existia um compromisso de uma arte política que proporcionasse um despertar da população para as questões políticas. A valorização da arte autoral também foi uma marca desse grupo, que sempre procurou se contrapor às posturas de uniformização da cultura colocadas pela “indústria cultural”. Uma das ações práticas que se realizaram nesse sentido, foi a confecção de mil capas artesanais para o álbum da banda intitulado “Jaguaribe instrumental”. A arte do cd foi feita por quarenta artistas plásticos que a partir do desenho, da pintura e da fotografia trabalharam coletivamente na realização de 1000 (mil) capas diferentes, guardando as características particulares de cada obra.

5.2 Musiclube da Paraíba

O Musiclube da Paraíba foi fundado em 1981 e contribuiu para fomentar a cena local paraibana em torno dos intérpretes e compositores que procuravam construir políticas sociais a partir dos grupos organizados. A experiência do musiclube congrega os mesmos interesses que o Jaguaribe Carne, só que voltado para uma área específica, a música. “(...) Invadimos o prédio e tornamos aquilo ali um coletivo, um coletivo no qual o Musiclube foi a ponta de lança da invasão e ocupação de uma das salas em que começava, e onde passamos a

desenvolver todas as atividades. O Musiclube ele oferecia aulas de música, de coral, de canto com coral, e promovia reuniões, debates, festas, enfim, ele tentava fazer uma agenda social atacando todos os planos (...)”. (Entrevistado 7)

Uma característica marcante dos movimentos independentes foi a ênfase no aspecto da formação. Assim, os intelectuais e artistas que faziam parte do musiclube valorizaram o aspecto da formação de comunidades na área de música. A maioria dos integrantes não era filiada a partidos, mas estavam próximos das atividades realizadas pelos partidos e organizações de esquerda. Esse foi um período de grande influência do Partido Comunista do Brasil e do Partido dos Trabalhadores nas esquerdas como um todo. A relação dos integrantes do musiclube com a política partidária é explicada por Entrevistado 7: “(...) Nós, não discutíamos a política, a política partidária, mas nós tínhamos uma ligação forte com o PT e na verdade com os movimentos de esquerda, mais aliada ao PT na verdade. Tinham algumas pessoas que eram mais aliadas do PT, mas a gente era aliado às esquerdas, por que era um processo muito novo e porque éramos muito novos também, éramos jovens (...)”. (Entrevistado 7)

Entre outros projetos o “Jaguaribe Carne” fomentou a criação de movimentos como: a Coletiva de música em 1976, o Movimento de escritores independentes em 1984, além de ter participado da criação do projeto “Fala bairros”. Esse último projeto teve como objetivo um trabalho de formação em relação à cultura, no auxílio à formação de novos grupos de música, seminários de formação e oficinas que propiciassem à população de cada bairro um contato mais direto com a produção cultural da cidade.

5.3 O grupo de teatro Piollin O surgimento do grupo de Teatro Piollin ocorreu também no início da década de setenta. Entretanto, a proposta do grupo de teatro destoava de uma proposta política conscientizadora, se voltando mais para a produção artística e educacional. No ano de setenta e sete, o grupo resolveu ocupar um convento que estava prestes a ruir com o pretexto de abrir uma escola de teatro. A partir da conquista do espaço, o grupo começou a se articular construindo um movimento junto com a comunidade local, em que se iniciou um curso de teatro para crianças. Começaram a realizar diversas oficinas de teatro e circo para crianças e jovens, transformando o local numa oficina para experimentações do grupo e numa escola de teatro.

Apesar de não estar próximo de uma proposta engajada politicamente na construção de uma arte revolucionária no mesmo sentido do grupo Jaguaribe Carne, o Grupo de teatro Piollin esteve engajado através da expansão e fortalecimento do teatro paraibano, a partir de um processo de formação de crianças e adolescentes que puderam entrar em contato com essa arte, alguns posteriormente chegando a se juntar ao grupo; e o segundo visava fortalecer o núcleo de atores e atrizes que através do processo de criação de concepção e montagem de espetáculos de grande qualidade artística, passaram a se apresentar no estado e circular pelo país representando a Paraíba em inúmeros festivais de teatro.

6. Panorama das políticas culturais da Funjope 2005-2008

No ano de 2004, Ricardo Coutinho lança sua candidatura para a prefeitura de João Pessoa. Sua trajetória política1 foi marcada pela defesa e apoio às causas dos movimentos culturais e sociais, o que proporcionou uma grande mobilização dos artistas e intelectuais durante a sua campanha, pois acreditavam que a eleição dele significaria um novo rumo para a cultura na cidade de João Pessoa. O apoio a “lei viva cultura” foi uma das ações que Ricardo Coutinho encampou e que beneficiou diretamente os segmentos culturais da cidade. Outro motivo da adesão dos artistas e intelectuais a sua campanha foi o contexto político instaurado pela seqüência de governos anteriores, em que foi instalado um marasmo cultural, se fazendo necessária a esperança num projeto novo. Assim, os intelectuais e artistas não-partidários, passam a apoiar a candidatura de Ricardo Coutinho, e quando ele é eleito participam do corpo institucional da FUNJOPE. A participação no poder público foi um desafio a ser enfrentado pelos grupos de oposição, mas ao mesmo tempo, a construção pessoal e coletiva de várias décadas desses atores proporcionou um cenário em que se teria a oportunidade de construir uma política de cultura institucional e participativa para a cidade. Entrevistado 1 explica a participação do “Jaguaribe Carne” nessa gestão da FUNJOPE:

“(...) Ele é o cara que sempre teve presente e próximo das articulações culturais que a gente vem participando nos últimos trinta anos. Então é o cara que a gente vai crer que possa ter reações diferentes em relação ao que Maranhão fez aqui no primeiro governo dele, por exemplo, que foi dramático sabe? E assim de uma irresponsabilidade cultural imensa. Que não tá no gibi. Obviamente quando existe a possibilidade de se participar de um processo como esse, dentro da FUNJOPE, dessa idéia que a gente vem desenvolvendo ao longo dos últimos, pelo menos vinte anos, obviamente a gente vem, e vê que tem chão, tem possibilidades, as portas podem ser abertas (...)”. (Entrevistado 1).

Dessa maneira, observamos que houve uma convergência de idéias e perspectivas sobre a cultura entre os artistas e intelectuais da cidade que tinham uma postura mais à esquerda, com o programa político do candidato a prefeito Ricardo Coutinho. Percebemos que a participação do movimento cultural e de outros movimentos de minorias foi fundamental para a sua eleição. Um dos representantes do teatro da Paraíba assumiu o cargo de direção da Fundação. O Entrevistado 3 também indicou algumas pessoas para sua equipe, entre os nomes estavam outros participantes do Grupo Piollin, como Everaldo Pontes e Entrevistado 4, e a professora universitária aposentada Maria Ignez Ayala. Ele sinaliza: “(...) Tudo em algum momento tinha uma ação que a gente podia chamar de esquerda, de apoio às ações mais socializantes, mais éticas e era natural que se aglutinassem aí e era natural também que o prefeito tenha as suas ligações, suas relações, ou compromissos. Se eu tô engajado numa trajetória política partidária, é natural que na construção da equipe de uma Fundação haja os nomes que ele indica, e haja os nomes que eu apresento e que compete pra ele a última palavra em torno da nomeação (...)”. (Entrevistado 3)

Primeiramente o interlocutor situa que a participação dos coletivos de cultura tinha propostas que se identificavam com uma “estrutura de sentimento de esquerda”, guiadas por uma perspectiva comum, que visavam uma igualdade de condições de acesso a cultura para a população. Os representantes do “Jaguaribe carne” demonstraram querer manter seus ideais de descentralização da cultura através de ações de transformação social. Assim, questões estruturais como esclarecer a população sobre os problemas sociais vividos em virtude da ação do capitalismo, também deram a tônica do movimento: “(...)“ - Mas rapaz, vocês não acham que tavam querendo demais não?”A gente tava querendo demais, realmente, mas esse demais da época pra gente era nada, era o mínimo que a gente queria né?! Por que é que as pessoas não podem criar, por que as pessoas não podem comer pão, por que as pessoas não podem ver uma peça, por que não podem assistir a um show, por que é isso?! Por que é que só a burguesia, só os ricos tinham direito a esse tipo de coisa, e o pobre não tinha?

Então a gente achava isso uma coisa normal. O cara diz: “- Mas aí tão querendo que o povo vire intelectual”. A gente sabe que o intelectual é aquele que pensa alguma coisa daí era isso que a gente queria fazer com que as pessoas pensassem um pouco mais e pudessem a partir disso transformar um pouco a vida deles, a vida do povo, a nossa vida (...)”. (Entrevistado 2)

Como lemos acima, existia uma preocupação do grupo em questionar a situação de desigualdade social. Para esse grupo, era urgente se realizar uma revolução cultural na mente das pessoas, e sua contribuição foi a partir da música e de outras linguagens artísticas que foram usadas como suporte para expressar situações do cotidiano em que se pudessem perceber as circunstâncias de exploração que os sujeitos estavam envolvidos. Esse estilo é bem semelhante ao dos intelectuais de esquerda da década de sessenta no Brasil, que acreditavam ser a vanguarda revolucionária do povo, e que atuavam a partir dos Centros Populares de Cultura. Para o interlocutor a sua atuação no “Jaguaribe Carne” sempre procurou se aproximar da prática do “intelectual orgânico” que sempre procura dialogar com os grupos para saber suas preocupações: “(...) Sim, porque o intelectual orgânico é aquele ser que surge nos contextos menos, como é que se diz assim... É como se fosse um pântano e dali nascesse uma flor, isso é o intelectual orgânico. Como é que vai nascer uma flor de um pântano? Porque o contexto daquele pântano ali chegou a naturalmente a esse ponto de gerar flores. Imagina um jardim no pântano, é o que é a realidade. É isso, é um jardim no pântano onde do improvável nasce exatamente àquelas situações que vão dar um novo significado a história da ressignificação né? Pra se viver pelo menos mais dez, vinte, trinta ou quarenta anos à frente. E viver é isso (...)”. (Entrevistado 1)

Uma pessoa chave na construção desse processo dentro da gestão foi o Entrevistado 5. Sua trajetória foi extremamente ligada à política de esquerda da Paraíba. Na década de sessenta, iniciou a sua trajetória no movimento estudantil, mais tarde ingressou no Partido Comunista Brasileiro, participou de várias organizações de movimentos operários, treinamentos militares, e ficou um período na clandestinidade em Recife e no Rio de Janeiro. Chegou a ser preso e torturado na época da ditadura militar. Morador do bairro dos Novais, bairro de João Pessoa conhecido pelas inúmeras manifestações da cultura popular, sempre esteve muito perto dos mestres da cultura popular e no ano de noventa e nove, se organizou junto com mestres e intelectuais para fundar o Centro Popular de Cultura do Bairro dos Novais. A partir daí, teve uma militância mais forte em relação à cultura popular. Para ele: “(...) Hoje eu tô na cultura popular, e eu sempre tive uma coisa comigo, quando eu me dedico a uma coisa eu me dedico de corpo e alma, mergulho de cabeça. Então se é a cultura popular, eu tô dentro da cultura popular. Não sei até quando. Sei lá, pode até aparecer uma coisa mais importante pra fazer. No momento, é como num sei quem disse: “- Tu tá fazendo a revolução

cara, de uma forma diferente, mas tá fazendo. Tu estás cumprindo um papel importantíssimo” (...)”. (Entrevistado 5)

O interlocutor foi um dos principais responsáveis dentro da instituição por incluir a participação dos grupos de cultura popular nos eventos da instituição. Entretanto, notamos como essa escolha faz parte diretamente da “estrutura de sentimento” mais à esquerda que pode ser visualizada a partir da sua trajetória e das suas ações contemporâneas. “(...) Eu acho assim: no São João, é mais emblemático isso, que é fazer o São João a cara do São João que nós gostamos. De escutar uma boa música, seja ela de que gênero for, e as coisas autênticas e, não só por ser autêntica, porque essa coisa da autenticidade, às vezes chega muito a bairrismo, mas é na verdade a coisa tradicional que é o São João. E isso tem as músicas, tem o folclore. Isso foi resgatado, foi levantado como bandeira e foi respeitado, que é o tradicional forró pé-de-serra, bandas que seguram essa música que é tão importante pra nossa região. E não deixar se contaminar com essa mistura que se faz do São João com música caipira, essas músicas vindas do interior de São Paulo, com essas duplas sertanejas, que nada tem a ver com o nosso São João e esse São João comercial que as pessoas deram o nome de forró de plástico e virou uma febre e se alastrou como uma praga, se alastra que ninguém tem esse domínio. Então eu acho que é o dever de poder público oferecer ao público uma música que vá de encontro a isso, porque essa outra música você pode consumir, pode pagar aí a qualquer preço, a qualquer lugar então dá a oportunidade que as pessoas conheçam esse outro lado (...)”. (Entrevistado 4).

É feita uma diferenciação entre o forró pé - de serra como ritmo característico do São João e o forró “eletrônico” como uma forma derivada, que acrescentou outros instrumentos e fez a dança ser mais próxima de um espetáculo. Assim, apesar de não ter traçado um projeto por escrito de qual seria o norte das ações de cultura da gestão, se sabia na prática que era necessário valorizar a cultura popular tradicional. Para eles, o investimento nesses grupos como representantes da identidade cultural local, seria uma maneira de se contrapor a uniformização das identidades proporcionada pelos artistas e grupos pertencentes à lógica da “indústria cultural”. Entretanto, percebemos que existe uma autoridade dos intelectuais em dizerem qual cultura deve ser “boa” ou “má” para a população, com a idéia que eles têm a função de educar as massas para a valorização de sua própria cultura. Dessa maneira, percebemos como essa defesa da cultura do povo se assemelha ao projeto dos intelectuais de esquerda da década de sessenta que tratavam as manifestações populares como algo perdido no tempo que precisava ser resgatado antes que desaparecesse. Essa compreensão acredita que a cultura é incapaz de entrar em contato com outras expressões culturais e ressignificar a sua prática. Quando o interlocutor usa a

expressão “se contaminar” nos mostra justamente uma noção de que a mistura com a cultura industrializada é algo prejudicial para a cultura tradicional que deve manter sua “essência”. Essa compreensão termina menosprezando a capacidade do povo em reagir na defesa dos seus costumes e sua cultura.

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