Interações entre Ciências Sociais, Arte e Gênero no Brasil

July 3, 2017 | Autor: Vitória Ravazio Pais | Categoria: Ciências Sociais, Artes, Género, Sociología, Antropologia da Arte, Antropologia Brasileira
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
Professor responsável: Caleb Faria Alves







Carolina Goulart Kneipp
Vitória Ravazio Pais



Artigo Bibliográfico: Interações entre Ciências Sociais, Arte e gênero no Brasil






Porto Alegre, Rio Grande Do Sul
2015
Encontro entre Arte e Antropologia: o que resulta desse diálogo?
Levando em consideração o caráter diverso e multifacetado do fazer artístico, é de se pensar que qualquer estudioso interessado em compreender este campo, inevitavelmente tenha se deparado em algum momento com a infinidade de interpretações e ângulos possíveis pelos quais pode-se apreender e estudar a arte. E, neste caso, nosso interesse no presente trabalho direciona-se à uma perspectiva em especial – ao olhar desenvolvido pelos Cientistas Sociais.
Dentro do campo de estudo antropológico, a arte sempre foi um referencial importante, à medida que revela, através das miríades de possibilidades de representação simbólica que a compõe, importantes aspectos cosmológicos que integram os sistemas de organização humana, transpondo elementos da cultura imaterial à material, ou seja, tornando o mundo das ideias e ideais acessível aos sentidos. É na antropologia contemporânea, no entanto, que o estudo da arte enquanto objeto central de análise tem se firmado, não apenas enquanto um dos muitos tipos de manifestações culturais esquematizados através do estudo etnográfico, mas como um fenômeno humano complexo cujo leque de sentidos que nele subjaz requer um esforço interpretativo minucioso, centralizado em sí e por sí, de forma total. A arte, sob essa ótica, configura um extenso campo de pesquisa interessante a todas as ciências humanas. Na antropologia, é significativo o aumento de autores e livros que propõe um investimento nessa área. (Alves e Amaral, 2008; p.7)
Diferentemente da visão de críticos de arte, colecionadores, ou dos próprios artistas - que tendem a valorizar aspectos mais subjetivos, uma espécie de "aura" das obras de arte - o Cientista Social, ao abordar as manifestações artísticas, se propõe a trata-las a partir de uma posição "dessacralizante", que, por sua vez, além de possibilitar estudos comparativos que revelam os diferentes modos de lidar com a produção simbólica e com as manifestações estéticas em diferentes sociedades, problematiza aspectos referentes ao contexto de criação, circulação e recepção das obras de arte, funções e sentidos atribuídos à prática como um todo. Trata-se, sobretudo, do interesse pelas interfaces entre a arte e as demais esferas da vida social, ou melhor, do estudo da arte como um importante acontecimento da vida social.
Nesse sentido, a investigação e a análise dos fenômenos artísticos operam como valiosas ferramentas de compreensão histórica e social, contribuindo significativamente para o os debates e o desenvolvimento das metodologias de estudo da realidade social.
No que tange à metodologia empregada, podemos verificar certa consensualidade entre os pesquisadores dedicados à sociologia e antropologia da arte na adoção da estratégia hermenêutica como ferramenta privilegiada de análise, tendência preponderante nas ciências humanas desde o século XIX, quando consolidou-se enquanto metodologia científica. A hermenêutica, também denominada como "paradigma indiciário" por Carlo Ginzburg, desenvolve uma análise privilegiadamente qualitativa dos fatos que estuda, estabelecendo uma relação estreita com a fenomenologia de Edmund Husserl, filosofia com a qual se desenvolveu paralelamente. Segundo esta, a realidade pode ser compreendida apenas através de seus fenômenos, mas não em sua essência. "O conhecimento resulta do encontro do objeto, daquilo que se dá à percepção, com a consciência intencional do homem." (COSTA, 2002; p.44). Isto é, a posição ocupada pela hermenêutica, neste campo, aparece como a base pela qual as manifestações simbólicas são interpretadas junto a análise de suas relações históricas, sociais e políticas nas quais foram concebidas.
Todavia, tendo em vista o fato de que a arte, como um todo, engloba um campo praticamente infinito de manifestações e nutre diálogo com variadas áreas e linguagens, as pesquisas realizadas pela antropologia têm se pretendido também cada vez mais diversificadas. Um exemplo disso é o modo como os pesquisadores passeiam pelos diferentes modos de expressão estética – cinema, teatro, dança, artes visuais, artesanato – e a partir destas propõem relações que nos ajudam a repensar e refletir aspectos que perpassam problemáticas presentes no cotidiano da sociedade contemporânea – a política, as relações de gênero, relações étnicas, raciais, sexuais, etc.
Em virtude disso, tendo sobretudo como principal objetivo traçar um panorama geral que nos permita compreender o que tem sido produzido pelos estudiosos brasileiros neste campo, para fins de uma exploração mais minuciosa deste encontro entre arte e antropologia no Brasil optamos pelo estudo de autoras/es que tenham se preocupado em trazer a temática de gênero para discussão e buscado no fazer artístico suas principais fontes de pesquisa, elucidando particularidades e dissonâncias entre os sexos e os gêneros presentes na sociedade.
Bases teóricas: um panorama geral
O presente trabalho limita-se a realizar um levantamento do que vêm sendo feito em termos de antropologia da arte e gênero no contexto brasileiro; entretanto, antes de serem apresentados os autores nacionais, faz-se importante, de início, uma recapitulação das bases teóricas da área de estudo aqui apresentada, sobre as quais sustentam-se os intelectuais brasileiros.
Um dos primeiros antropólogos a se dedicar à arte como uma questão antropológica foi Franz Boas, em seu livro "Arte Primitiva" obra cuja importância para a antropologia da arte consiste no pressuposto da indissociabilidade das manifestações artísticas em relação a cultura do grupo social que a produz, e a própria cultura como uma dimensão marcada pela historicidade. Propôs o fim do dualismo entre forma e conteúdo, tratando a experiência estética enquanto um fenômeno inerente a toda a espécie humana. Assim, podemos considerar como o mais importante legado de Boas para a antropologia da arte a necessidade de pensar esta última em termos de causalidade, o que torna possível ao Cientista Social a elaboração de análises pertinentes.
Contemporaneamente, podemos citar como importantes referenciais em antropologia da arte, entre muitos outros, autores como Clifford Geertz, Alfred Gell, Bruno Latour, Pierre Bourdieu, Theodor Adorno e Claude Lévi-Strauss.
Dentre os intelectuais cujas áreas de conhecimento não estão dentro das ciências sociais, mas que no entanto exercem grande influência sobre a sociologia e antropologia da arte estão Michael Baxandall, historiador da arte galês, Erwin Panowsky, também historiador da arte de origem alemã, referência importante nos estudos de iconografia e discípulo de Aby Warbug, outro expoente em história da arte e Ernst Gombrich.
O Desenvolvimento no Brasil
Embora os estudos dos fenômenos artísticos ainda sejam minoritários nas ciências sociais, o interesse de antropólogos brasileiros pela área das artes tem se revelado cada vez mais profícuo. Ainda que não seja um campo tão consolidado quanto outras áreas dentro das ciências sociais, o diálogo interdisciplinar que caracteriza o estudo da arte enquanto objeto sociológico torna o caminho cada vez mais aberto à sua ampliação. Um exemplo disso são os meios por onde circulam a produção intelectual na área – periódicos, revistas, congressos – que nem sempre são voltados especificamente para as ciências sociais, e sim, muitas vezes, emergem das "áreas das artes". Lígia Dabul, em apresentação ao dossiê de Sociologia e Artes Visuais, atesta: "Confirmando esse caráter dialógico do conhecimento gestado nas pesquisas sobre a arte como vida social, não por acaso, ao lado do crescente número de trabalhos sociológicos e antropológicos sobre o assunto, observa-se a presença, cada vez maior, de cientistas sociais nas páginas de publicações acadêmicas da chamada área das artes, em especial das visuais." (DABUL, Lígia. 2010; p: 8.) Dabul cita algumas revistas da universidade do Rio de Janeiro como, por exemplo, Arte & Ensaios da UFRJ, Concinnitas da UERJ e Poiésis da UFF, mas frequentemente podemos encontrar nomes de cientistas sociais em publicações de outras revistas voltadas para as artes também em outras universidades.
No Brasil, temos entre os principais representantes dos estudos em antropologia e sociologia da arte Antônio Candido, sociólogo, professor emérito e crítico literário dedicado ao estudo da interface entre sociedade e literatura; Els Maria Lagrou, professora do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ, cujas áreas de interesse englobam etnologia ameríndia, seus regimes ontológicos, sociais e estéticos, assim como a antropologia da arte, da imagem e dos artefatos em geral; Lígia Maria de Souza Dabul, professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da UFF e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFF, com experiência na área de Sociologia e Antropologia e ênfase em Sociologia da Arte e Antropologia da Arte, atuando principalmente com sociologia e antropologia da arte, arte contemporânea, artes plásticas, sociologia da arte, sociologia dos públicos e do lazer, e em métodos e técnicas de pesquisa em ciências sociais; Maria Lucia Bueno, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCSO/UFJF), líder do grupo de pesquisa CNPQ Cultura e Artes Visuais e Coordenadora da pesquisa A condição de artista contemporâneo no Brasil: entre as instituições e o mercado, tem experiência nas áreas de sociologia da cultura e da arte e de Historia social da cultura e da arte, com ênfase nos seguintes temas: Artistas, Instituições e Mercado; Cultura e Arte Brasileira; Arte Moderna e Contemporânea; Trabalho artístico e cultural: Consumo e estilos de Vida; Gastronomia; Moda; Cultura Urbana; Indústria Cultural; Modernidade; Mundialização e Globalização; Caleb Faria Alves, professor adjunto na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com experiência em Sociologia e Antropologia e desenvolvendo pesquisas em torno dos temas arte, crítica da arte, Benedito Calixto, patrimônio, estética, museus, primeira república e pré-modernismo; Heloísa Pontes, professora titural do Departamento de Antropologia da Unicamp, cujo interesse pelo teatro brasileiro, entre outras áreas de estudo, aqui lhe vale menção.
Na busca por livros publicados na área, percebemos uma maior frequência na publicação de livros formados pela compilação de artigos, tal como fez Maria Lucia Bueno no livro "Sociologia das artes visuais no Brasil" e Patrícia Reinheimer e Sabrina Parracho Sant'Anna em "Manifestações artísticas e ciências sociais: Re exões sobre arte e cultura material", do que volumes centrados em um único tema e desenvolvidos em única autoria. O primeiro livro, por exemplo, organizado por Bueno, reúne estudos sobre arte brasileira do século XX e XXI e examina a partir de um olhar sociológico a trajetória das escultoras acadêmicas, a pintura dos viajantes, as coleções, o mercado, a crítica e os museus de arte, a obra dos loucos e dos primitivistas, o público das exposições e os processos na arte contemporânea. O segundo, por sua vez, é resultado do seminário Manifestações Artísticas e Ciências Sociais: re exões sobre arte e cultura material organizado na UFRRJ pelo Núcleo de Pesquisa CULTIS e patrocinado pela Capes. Os artigos reproduzidos "(...) por vezes tangenciam, outras aprofundam algumas das dimensões que constituem este amplo campo de re exão: o papel da arte e da cultura material, das coleções e dos museus, na construção de identidades, na relação com os valores religiosos, nas políticas públicas, no estabelecimento de representações acerca do produtor artístico, na delimitação e autonomização do campo artístico, entre outros temas que vêm consolidando arte e cultura material como objetos "bons para pensar"." (RINALDI, Alessandra; RIBEIRO, Ana Paula Alves; MACHADO, Carly; REINHEIMER, Patrícia; 2013: p: 7)
Além disso, não podemos esquecer das publicações semestrais, em sua maioria acadêmicas, que emergem das ciências sociais e focam especificamente no diálogo entre arte e antropologia. Cadernos de Arte e Antropologia, por exemplo, é uma revista semestral com acesso online que enfoca os campos de ligação entre as ciências sociais e as artes. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) também temos a Horizontes Antropológicos, um periódico semestral também com acesso online, publicado pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social que possui números temáticos abertos à pluralidade de interpretações e de temas que possam interessar à antropologia para a compreensão dos fenômenos socioculturais – de forma que, em suas publicações há um espaço exclusivo destinado ao tema da Antropologia e Arte.

Gênero, Arte, Sociedade
Os estudos antropológicos que visam interpelações entre arte e gênero, no cenário internacional, possuem nomes importantes tais como Griselda Pollock e Linda Nochlin que por serem nomes relevantes também à produção de teorias Feministas, têm trazido, por meio desta fecunda combinação teórica, inúmeras contribuições aos debates acerca da posição ocupada pelas mulheres e sua falta de representatividade na história da arte.
Linda Nochlin, em seu aclamado artigo Why Have There Been No Great Women Artists? (1971) faz uso do que a mesma concebe por "abordagem sociológica da arte", para destituir o conceito tradicional mítico de "genialidade" e seus atributos inatos, naturais, auto-didáticos, miraculosos e intrinsecamente vinculados ao gênero masculino. (ARRUDA, Lina Alves; 2011: p.250). Com essa abordagem, Nochlin conclui:
"O que nós escolhemos chamar de 'gênio' é uma atividade dinâmica, e não uma essência estática, uma atividade de um sujeito em determinada situação." (NOCHLIN, 1971: p.28)
A autora chama atenção ao fato de que a condição social é fator condicionante no que diz respeito ao sucesso dos indivíduos, e no caso da invisibilidade das mulheres no meio artístico, a resposta estaria nas restrições e falta de acesso às oportunidades por elas sofridas. Arruda, em trecho apresentado no VII Encontro de História da Arte da UNICAMP resume a importância de Nochlin e sua contribuição aos estudos interdisciplinares: "Ao propor a conciliação do estudo do campo artístico com demais áreas do conhecimento para a produção de uma historiografia da arte socialmente crítica e ao enfatizar a importância de se entender a arte como uma totalidade de práticas sociais, pode-se dizer que Nochlin revoga a autonomia da história da arte com relação às demais disciplinas e desnaturaliza as hierarquias que constituem o sistema da arte, evidenciando a parcialidade da disciplina e relacionando-a, de maneira inovadora, às assimetrias entre os gêneros." (ARRUDA, Lina Alves; 2011: p.252)
No entanto, no mesmo artigo apresentado ao VII Encontro de História da Arte da UNICAMP, Arruda elucida que, "na opinião de Pollock, Nochlin afirma e justifica o 'fracasso' das mulheres artistas (argumenta que é institucionalmente impossível para mulheres alcançar a excelência ou o êxito artístico no mesmo nível que os homens), promovendo uma explicação sociológica fundada na desvantagem e no preconceito contra mulheres artistas. Essa idéia é contestada por Pollock pela colocação de que a descriminação é um sintoma, não uma causa dessa condição." (ARRUDA, Lina Alves; 2011).
As duas autoras preocupam-se em identificar a falta de representatividade feminina da história da arte, entretanto, Pollock se opõe a ideia de que as mulheres foram simplesmente excluídas devido ao preconceito, e, diferentemente de Nochlin, não condiciona a superação da negligência como principal questão do feminismo. A autora promove uma inspeção da genealogia de poder intrínseca à história da arte e às práticas sociais para abordar o tema a partir de uma leitura crítica do modelo vigente, defendendo, acima de tudo, uma intervenção feminista nas histórias das artes.
Ao atentar para as assimetrias entre os sexos, o movimento Feminista possibilitou não só uma maior compreensão em torno do modo como se constroem e se sustentam as relações de gênero na sociedade, mas viabilizou, principalmente, novas categorias de análise – o conceito de gênero, por exemplo – que se mostrou uma construção social e cultural, e não um conjunto de características inatas ao ser como durante muito tempo se defendeu. A relevância das análises interdisciplinares no tocante ao campo artístico está, portanto, no modo como revelam a presença de formas particulares de relações de poder pautadas nas assimetrias entre os sexos nas formas de produção, consagração e recepção das obras pelo público em geral.
Nessa direção, seguindo as bases teóricas tanto de Pollock e Nochlin quanto de outras Feministas, o nome brasileiro de mais destaque na área é de Ana Paula Cavalcanti Simioni, graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1994), mestre (1999) e doutora (2004) em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Realizou doutorado-sandwich na École des Hautes Études en Sciences Sociales- Paris (2002) e pós-doutorado pela Université de Genève (2006). Docente do Instituto de Estudos Brasileiros (USP) desde 2009, atuando na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia da Arte e da Cultura, particularmente nos temas que envolvem Arte e gênero e Mecenatos públicos e privados no Brasil (séculos XIX e XX). Atualmente dedica-se aos seguintes projetos de pesquisa: "Artistas Modernistas na Coleção do Instituto de Estudos Brasileiros" e "Outros modernismos: produção artística e cultura visual no Brasil, 1920-1940. (Disponível em: http://www.ieb.usp.br/docente/ana-paula-cavalcanti-simioni)

Simioni é autora de uma série de artigos interessantes, em sua maioria dedicados a rememorar artistas mulheres cujos trabalhos desafiaram as possibilidades de atuação imputadas ao sexo feminino ou a iluminar a trajetória da vida de artistas mulheres cujo trabalho foi esquecido ou pouco valorizado pela história, em decorrência do próprio apagamento que receberam no mundo da arte na época em que viveram. Em todos os casos, no entanto, o objetivo da autora é tentar demonstrar, por meio de uma revisão história, as razões pelas quais existiram tão poucas artistas mulheres na história brasileira que recebem, ainda hoje, honras por seu talento, e da mesma forma, porque ainda é tão difícil às artistas conquistarem reconhecimento. Assim escreveu "Souvenir de má carriére artistique: uma autobiografia de Julieta de França, escultora acadêmica brasileira", artigo onde discorre sobre a autobiografia da pouco conhecida artista, não obstante de ter sido a primeira mulher a cursar aulas de modelo vivo e de ter obtido, em 1900, o maior prêmio outorgado a um aluno pela ENBA: a bolsa de viagem ao exterior. (SIMIONI, 2007, p.250). Apesar de ter a qualidade de seu trabalho reconhecida por muitos artistas de renome com quem conviveu em sua estadia em França, como Rodin, Julieta de França teve seu trabalho desclassificado pelo concurso que escolheria o monumento comemorativo à República brasileira, ao qual candidatou-se. Souvenir de má carrière artistique é um álbum de lembranças composto pela própria artista, onde selecionou notícias, textos e fragmentos de cartas que ajudaram a reconstruir sua trajetória no mundo da arte, os diversos artigos elogiosos a seu respeito, o reconhecido mérito de seus trabalhos, que no entanto, não lhe renderam a conquista de um espaço entre os grandes nomes da história.
Já no artigo: "Entre Convenções e Discretas Ousadias: Georgina de Albuquerque e a pintura histórica feminina no Brasil", Simioni disserta sobre a trajetória desta artista que, para o seu tempo, foi muito ousada, sendo a primeira mulher a se dedicar ao gênero de pintura histórica. Foi apenas em 1922, ano emblemático para a historiografia modernista, em decorrência da crise do academicismo, que uma artista do sexo feminino se aventura no gênero com a produção da tela "Sessão do Conselho de Estato", onde Georgina de Albuquerque retrata a Princesa Leopoldina no centro da cena que antecedeu o brado da Independência brasileira, em meio a uma reunião presidida por José Bonifácio. Dentro de suas possibilidades, Georgina subverteu em muitos sentidos as expectativas de comportamento relacionadas a seu sexo. Em primeiro lugar por se atrever a realizar uma pintura de gênero histórico, trabalho normalmente reservado aos homens. Em segundo lugar, por eleger como heroína de sua tela e representante de um importante momento histórico, onde os homens sempre ocupam papel hegemônico nas representações, uma mulher. Em terceiro lugar, pela própria disposição dos personagens na tela: "ela (princesa Leopoldina) não está ao centro, com uma espada, e tendo abaixo os homens (ou o povo, se se quiser), tal qual aparecia nas pintas alegóricas ou naquelas em que o herói era um homem. Essa heroína é serena (contrariando a noção da mulher como um ser sem controle sobre suas paixões); não se coloca acima dos homens (mas eles lhe rendem homenagem, ainda que estejam mais altos); não faz a guerra, mas a articula; não dá "o grito", mas o engendra, sua força é intelectual. " (SIMIONI, 2002, p. 153)
Em " O Corpo inacessível: as mulheres e o ensino artístico nas academias do século XIX" Simioni aborda com maior profundidade um tema presente nos dois artigos anteriormente mencionados: a impossibilidade das mulheres, nessa época, terem acesso ao mesmo tipo de educação artística proporcionada aos homens, devido ao fato do estudo com modelos vivos lhes ser considerado inapropriado e portanto, negado. Nesse artigo, Ana Paula fala, justamente, sobre os casos excessivos, sobre como algumas mulheres artistas conseguiram escapar de tal regime de inacessibilidade aos nús e de exclusão das Escolas de Arte. Entre estas, em França, estavam Elisabeth Vigée-Nebrun, que conseguiu driblar a proibição aos modelos vivos através de "cópias de obras antigas, de aulas particulares com outros artistas, da visita ao museu de cera e dos esboços realizados fixando o próprio corpo ou de suas amigas íntimas, sem contar o das serviçais que lhe serviam de modelo". (SIMIONI, 2007, p.86). Já Adelaïde Labille-Guiard recebeu incentivo de sua família, tendo aulas particulares; além disso, era protegida pelas filhas de Luís XV, de quem pintou retratos, e pelo duque d'Orléans.
No Brasil, além das já mencionadas artistas mais famosas Julieta de França e Georgina de Albuquerque, frequentaram a Académie Julian, Escola de Arte francesa especial para mulheres, onde as moças tinham permissão para participar de aulas com modelos nús femininos, somente, Mme.Barbosa (em 1889); Mme. Castillos (em 1889); Mme. Capper (em 1896);Mme. De Mesquita (1890); Hermina Palla (1893); Mme. de Sistello (em1892 e, novamente, em 1900); Mme. Silva (em 1900); srta. Mariette Rezende (em 1900); a srta. Negrão (em 1902); a srta. Herré (em 1902); srta. Valim (1904) e as também mais reconhecidas Nicolina Vaz (1904), 1904; a pintora paulista srta. Nicola Bayeux (1903); a caricaturista Nair de Teffé, também conhecida como Rian (em1905), Helena Pereira da Silva Ohashi (1912) e Tarsila do Amaral (1922). (SIMIONI, 2007, p.92)
No livro " Profissão Artista: pintoras e escultoras brasileiras no século 19", lançado em 2004, Ana Paula trata de todas essas questões, da exclusão feminina do mundo das artes efetuada através dos diversos obstáculos inseridos no caminho das mulheres, obstáculos que tornaram tão difícil, ou impossível para a maior parte delas a conquista de um espaço onde pudessem realizar seus trabalhos; o pré-julgamento ou a pré-desqualificação da produção artística feminina em decorrência das restrições impostas ao gênero, que acabavam o relegando a um papel secundário ou invisível no campo artístico, predominantemente masculino, e a determinação de gêneros artísticos considerados femininos em contraposição aos masculinos, negando o acesso das mulheres aos últimos.
Contudo, para além de suas publicações enquanto pesquisadora, a autora desenvolve em seu trabalho de docência a responsabilidade por disciplinas que são ofertadas aos alunos com a pretensão de levar a discussão presente em seu estudo para as salas de aula. Tivemos acesso ao programa da disciplina "Gênero, Arte e Sociedade" no site da Universidade de São Paulo (USP) e nos objetivos nele explicitados por Simioni, podemos ter uma ideia de quais são suas preocupações ao abordar sociologicamente gênero, arte e cultura:
"Objetivos
A disciplina pretende discutir as contribuições teóricas e metodológicas específicas da sociologia da cultura no âmbito das relações de gênero, abordando a relevância das análises interdisciplinares no tocante à produção cultural e, em especial, ao campo artístico. Objetiva-se investigar as relações entre produção cultural e distinções de gênero, o que significa atentar para o modo com que as questões das assimetrias entre os sexos e suas representações podem ser tomadas como relações de poder particulares que atuam, de modo próprio, nas formas de produção, consagração e recepção das obras culturais. Nesse sentido, a análise da atuação e da produção das mulheres artistas será compreendida por meio das interações por elas estabelecidas com as práticas institucionais, discursivas e estilísticas que perpassavam os diversos meios artísticos ao longo dos séculos XVIIII, XIX e XX, notadamente no Brasil.
Programa
1. Abordagens sociológicas: gênero, arte e cultura;
2. A constituição histórica das relações de gênero;
3. A dimensão do gênero no Antigo Regime: o discurso da "excepcionalidade" da mulher artista
4. O século XIX e a invenção da diferença (física e intelectual) entre os sexos: genialidade como atributo masculino;
5. Mulheres e representação: o corpo feminino na pintura, escultura e na literatura do século XIX;
6. As mulheres artistas e o campo acadêmico: exclusões institucionais e discursivas;
7. Mulheres artistas nos círculos modernistas: modernizando as diferenças de gênero:
8. Feminismo e a arte feminista;
9. Corpos, gêneros e raças: proposições e debates contemporâneos."
(Disponível em: https://uspdigital.usp.br/jupiterweb/obterDisciplina?sgldis=ieb0251&nomdis)

Não obstante, outra autora a abordar gênero em diálogo com as ciências sociais e as artes foi Cristina Costa. A autora possui Bacharelado e Licenciatura em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1973), Mestrado (1985) e Doutorado (1990) em Ciências Sociais (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo. É Livre-Docente em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professora Associada 3 da Universidade de São Paulo, Presidente da Comissão de Pesquisa da ECA/USP e Coordenadora do Curso Aperfeiçoamento por EaD - Censura e Liberdade de Expressão em Debate, organizado com o Centro de Investigação Mídia e Jornalismo (Lisboa, PT), do qual é membro e pesquisadora. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Artes e Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: comunicação, arte, educação, sociologia e comunicação digital. É coordenadora do OBCOM - Núcleo de Apoio à Pesquisa - Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da USP e Vice-Chefe do Departamento de Comunicações e Artes - CCA - da ECA/USP. (Texto disponível em http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4768514H3)
No livro "A Imagem da Mulher - Um estudo de arte brasileira", Cristina Costa, por meio do registro fotográfico e de catalogação e seleção de imagens, foca sua análise na busca pela compreensão dos papéis desempenhados por mulheres na formação e na organização produtiva da sociedade brasileira, passeando pelos séculos XVII, XVIII, XIX e pelo início do XX, e dirigindo a atenção a cinco movimentos artísticos: o barroco, o neoclassicismo, o romantismo, o realismo e o modernismo. Trata-se da análise da imagem da mulher na arte, das representações do feminino perpetuadas através das diferentes manifestações estéticas e que nos permitem visualizar o papel desempenhado pelas mulheres na história da sociedade brasileira. O que singulariza a pesquisa de Cristina Costa é justamente o uso de material iconográfico como fonte de pesquisa, de modo a chamar a atenção a esse interessante meio de análise. Pois como escreve Eduardo França Paiva:
"A iconografia é, certamente, uma fonte histórica das mais ricas, que traz embutida as escolhas do produtor e todo o contexto no qual foi concebida, idealizada, forjada ou inventada. Nesse aspecto, ela é uma fonte como qualquer outra e, assim como as demais, tem que ser explorada com muito cuidado" (PAIVA, Eduardo França. História & Imagens. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. p. 17.)

A imagem como objeto de pesquisa ainda não obteve nas ciências sociais e em outras disciplinas instrumentos teóricos suficientes para o seu tratamento e por isso, ainda apresenta problemas. No entanto, no caso de Cristina Costa, observa-se um caráter inovador: "Com efeito, nela a imagem não é considerada apenas como uma coadjuvante, uma mera ilustração, uma referência histórica ou uma curiosidade. Ao contrário, para a autora, é a partir das imagens que se elabora, reconstitui e ressignifica o quadro das relações sociais e o papel da mulher nessas relações. (...) Tendo em vista que os estudos dessa natureza são pouco numerosos e pouco considerados, cabe registrar que o trabalho de Cristina Costa é altamente instigante para um debate sobre o uso de imagens de obras de arte como fontes nos estudos de História" (LINS, Jacqueline Wildi. Revista Estudos Feministas, 2004. p:341)





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