Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação Ralph Steadman e a perversão de sentidos no jornalismo gonzo

July 4, 2017 | Autor: Eduardo Ritter | Categoria: Ilustração, História Da Mídia
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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014

Ralph Steadman e a perversão de sentidos no jornalismo gonzo 1 Eduardo RITTER2 Tammie Caruse Faria SANDRI3 Vinícius WALTZER4 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUCRS Universidade Federal de Pelotas – UFPel

Resumo Nos anos 1970, o jornalista norte-americano Hunter Thompson criou um estilo jornalístico que ficou conhecido como Jornalismo Gonzo. Em textos agressivos, sem esconder o uso de drogas, lícitas e ilícitas, ele cobriu eventos em várias regiões dos Estados Unidos na tentativa de mostrar a morte do Sonho Americano. No entanto, ele teve um parceiro de viagem e de trabalho que se tornou fundamental para o estilo que ficaria conhecido como Gonzo: o artista britânico Ralph Steadman. Com a mesma visão crítica do jornalista, Steadman fez as ilustrações das matérias de Thompson durante duas décadas. Assim, o presente artigo recupera essa importante participação de Steadman no campo jornalístico, fazendo uma breve análise das principais ilustrações feitas para as reportagens de Thompson. Palavras-chave: Jornalismo Gonzo; Ilustração; História da Mídia. 1 Introdução Em 1970, a revista norte-americana Scanlan’s Monthly enviou para a cidade de Louisville, no estado de Kentucky, o jornalista Hunter Thompson, para cobrir a corrida de cavalos mais famosa dos Estados Unidos: o Kentucky Derby. Thompson, que nasceu na cidade-sede do evento em 1937, já tinha publicado o livro Hell‟s Angels em 1968. Nele, apresenta um relato sobre a gangue de motociclistas mais temida das estradas americanas dos anos 1960. Além disso, aos 31 anos, Thompson já tinha concorrido ao cargo de xerife em Aspen, no Colorado. Apesar da repercussão que o livro sobre os motociclistas teve, Thompson ainda era apenas mais um jornalista que lutava por um lugar ao sol no concorrido mercado editorial que contava com diversos jornalistas praticantes do estilo conhecido como New Journalism5.

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Trabalho apresentado no GP História do Jornalismo, XIV Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS, email: [email protected] 3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS, email: [email protected] 4 Recém graduado do curso de Jornalismo pela UFPEL, email: [email protected] 5 Gênero do jornalismo iniciado nos anos 1960, nos Estados Unidos, e que teve como principais nomes Tom Wolfe, Gay Talese e Truman Capote.

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Acreditando no potencial do jornalista e da pauta encomendada, a revista americana importou um ilustrador britânico para acompanhar Thompson: Ralph Steadman. A partir do trabalho feito pela dupla, com os textos agressivos de um e ilustrações ousadas de outro, nasceu a reportagem O Kentucky Derby é depravado e decadente. O texto causou impacto na imprensa da época e surgiu nesse momento um estilo de jornalismo que ficaria conhecido como Gonzo. Nesse sentido, para abordar o trabalho conjunto feito com o texto de Thompson e as ilustrações de Steadman, o presente artigo foi dividido em três partes. Inicialmente, apresentamos o conceito e uma breve história do jornalismo gonzo, com ênfase na biografia de seu criador. Em um segundo momento, é apresentada uma breve biografia do ilustrador britânico, relacionando-o com o jornalismo gonzo e o trabalho que ele desenvolveu a partir da publicação da matéria sobre o Kentucky Derby em 1970. Por fim, são feitas análises de algumas das ilustrações de Steadman, destacando a importância que elas tiveram para a prática do jornalismo gonzo de Thompson.

2 Gonzo: medo e delírio no jornalismo americano A matéria que deu origem ao jornalismo gonzo foi publicada pela revista Scanlan’s Monthly n° 4, do mês de junho de 1970. Nela, Thompson (1937-2005) fez uma cobertura atípica sobre o Kentucky Derby, competição de turfe disputada anualmente em Churchill Downs Racecourse, em Louisville, cidade natal do jornalista. Durante a cobertura, Thompson e Steadman, sobre o qual falaremos no próximo capítulo, fizeram registros caricaturais do público que prestigiava o evento, sem fazer nenhuma menção à corrida de cavalos propriamente dita. É como se os verdadeiros animais daquele espetáculo estivessem do lado de fora da pista de corrida. No texto, que ocupa 20 páginas do livro “A grande caçada aos tubarões” (2004), Thompson conta, em uma narrativa aubiográfica, tudo o que aconteceu, desde a chegada a Louisville até o final do evento e a análise caricatural do público. Foi justamente para se referir à matéria do Kentucky Derby que um jornalista ligado a Thompson chamou o texto dele de gonzo. Outro amigo, Brinkley, contou em entrevista a Wenner e Seymour a sua versão para a origem do termo. A internet está cheia de mentiras falsas propagadas por professores desinformados de inglês e fãs fumando maconha sobre as origens etimológicas do “gonzo”. Aqui está como isso aconteceu: o pianista James Booker gravou uma música instrumental chamada Gonzo no legendário New Orleans R&B em 1960. O termo “gonzo”, em Cajun, era uma gíria

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que tinha circulado no French Quarter (bairro francês) em torno da cena do jazz por décadas e significa, aproximadamente, “jogar desequilibrado”. O estúdio de gravação real de "Gonzo" teve seu lugar em Houston, e quando Hunter ouviu pela primeira vez a canção foi no Bonkers especialmente a parte de flauta selvagem. De 1960 até 1969 – até Herbie Mann gravar outra flauta triunfante, “Battle Humn da República” – Booker‟s “Gonzo” era a música favorita de Hunter (WENNER E SEYMOUR, 2007, p.126).

Ainda conforme o relato do amigo a Wenner e Seymour, anos antes, em 1968, Thompson apresentou a música para um colunista do Boston Globe Magazine, chamado Bil Cardoso. Foi esse jornalista que denominou o estilo de Thompson como gonzo: [No encontro de 1968] Hunter trouxe uma fita cassete da música de Booker e tocou “Gonzo” uma vez, e mais outra, e mais outra, e mais outra – e isso deixou Cardoso louco, e, naquela noite, Cardoso brincou com Hunter, ridicularizando-o como “o homem Gonzo”. Mais tarde, quando Hunter enviou a sua matéria sobre o Derby Kentucky, ele recebeu uma nota de volta, dizendo algo como “Hunter, isso é puro jornalismo gonzo!”. Cardoso afirmou que o termo foi usado também em bares de Boston e significa "o último dos homens bêbados a ficar em pé", mas Hunter me disse que ele nunca realmente acreditou em Cardoso sobre essa versão para explicar o termo (WENNER e SEYMOUR, 2007, p.125-6).

Ou seja, foi a partir da publicação da matéria sobre o Kentucky Derby que o termo “jornalismo gonzo” se popularizou para designar o tipo de texto que Thompson fazia. Conforme o relato de Sandy Thompson, esposa de Hunter na época, no início, quando o jornalista soube que seus textos estavam sendo chamados de gonzo, ele se sentiu preocupado. Por um lado, ele tinha consciência de que as pessoas pareciam estar gostando dos seus textos, por outro também sabia que dificilmente os veículos o pagariam para escrever em uma linguagem não linear, algumas vezes sem nexo, como por exemplo, quando relata o que pensa enquanto está sob efeito de drogas. Conforme conta Sandy a Wenner e Seymour (2007), Thompson não queria ter enviado para a Scanlan’s a matéria sobre o Kentucky Derby, pois acreditava que não seria aprovada pelos editores. No entanto, após argumentarem para Thompson enviar o texto de qualquer maneira, pois a revista estava com os prazos esgotados, eles não só publicaram como gostaram muito do que receberam. A partir de então, surgiram outras obras com as mesmas características, dentre as quais, a mais famosa delas, Medo e delírio em Las Vegas. Nela, Thompson viaja de São Francisco, na Califórnia, até Las Vegas para cobrir dois eventos: uma corrida de carros no deserto e uma conferência sobre combate às drogas. Assim como na primeira parte do livro,

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na segunda metade Thompson e seu advogado se tornam novamente os personagens principais da história, que é narrada em primeira pessoa, com o uso de palavrões e a descrição do uso de drogas, quebrando todas as normas do jornalismo tradicional. Mesmo sem estar presente na narrativa, Steadman é quem faz as ilustrações da matéria, como será abordado no próximo capítulo. Após o livro sobre Las Vegas, Thompson também publicou Fear and Loathing on the campaign trail 72 e The curse of Lono, todos com ilustrações de Ralph Steadman. Até o fim da sua vida, ele ainda publicaria outros livros autobiográficos, como Better than sex e Reino do medo, ambos, porém, sem a parceria com Steadman.

3 Ralph Steadman: o criador da ilustração gonzo O artista e ilustrador britânico Ralph Steadman nasceu um ano antes de seu amigo Thompson: 1936. No documentário For no good reasons, que aborda a vida do ilustrador, Steadman conta que, assim como Thompson, sempre se considerou uma pessoa que questiona as normas sociais e, justamente por isso, alguém que frequentemente é excluído de certos círculos sociais. “As ilustrações bizarras de Ralph com metade esqueleto e metade figuras protoplasmáticas deixavam ele a parte dos outros jovens artistas” (McKEEN, 2008, p.144). No início de 1970, Steadman visitou Nova York e, chegando na cidade, foi surpreendido pela pobreza e pela grande quantidade de moradores de rua em pleno inverno no lugar considerado o centro do mundo. O artista britânico passou a fotografar essas cenas e, a partir das fotos, fez algumas ilustrações, que chamaram a atenção da revista Scanlan’s. Steadman conta como foi integrado à matéria de Thompson. O ilustrador lembra que nunca tinha ouvido falar na revista Scanlan’s até receber o telefonema-convite. Como destaca em documentário, “Scanlan‟s é o nome de um pequeno fazendeiro porco de Nottinghan 6”. Ao saber que a revista lutava contra o sistema e que o jornalista que faria as matérias era um ex-Hell Angel, Steadman aceitou o desafio de trabalhar ilustrando as matérias de Thompson. Já em Louisville, como conta a Wenner e Seymour (2007), Steadman ficou dois dias procurando por Thompson. Enquanto Steadman procurava Thompson, este já estava na cidade, sem carro, sem hospedagem e credencial para imprensa. E, além disso, precisando encontrar o ilustrador sem nunca tê-lo visto antes. Tudo isso foi narrado, na própria matéria publicada na Scanlan’s: 6

For no good reasons. Direção: Charlie Paul. Documentário, 89‟00". Reino Unido / EUA, 2012.

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Faltando apenas trinta horas para o envio da matéria, eu ainda não tinha credencial de imprensa, nem – de acordo com o editor de esportes do Courier-Journal de Luisville – chance alguma de conseguir uma delas. Para piorar, eu precisava de duas: uma para mim e outra para Ralph Steadman, o ilustrador inglês que estava vindo de Londres para fazer uns desenhos do Derby. Tudo que eu sabia sobre ele era que esta era sua primeira visita aos Estados Unidos. Quanto mais eu ponderava sobre o fato, mais eu ficava com medo (THOMPSON, 2004, p.21).

Antes de se encontrarem, Thompson conta na própria reportagem as dificuldades que teve para convencer os organizadores do evento de que o Scanlan’s era um jornal de esportes de prestígio para obter os ingressos para assistir a corrida. “O assessor de imprensa ficou chocado diante da idéia de que alguém seria burro ao ponto de solicitar credenciais dois dias antes do Derby” (THOMPSON, 2004, p.21-2), recorda, afinal o prazo para credenciamento já tinha terminado há dois meses. Diante da insistência de Thompson, o assessor de imprensa exclamou: “Não tem mais espaço [....] e, afinal de contas, que diabo é o Scanlan’s Monthly?”. Pela dificuldade, o jornalista termina por ameaçar o assessor: É inaceitável. Nós temos que ter acesso a tudo. Tudo mesmo. Ao espetáculo, às pessoas, à cerimônia e com certeza às corridas. Você não acha que a gente veio até aqui pra assistir tudo pela televisão, acha? Por bem ou por mal, vamos entrar. Talvez a gente tenha que subornar um guarda – ou jogar spray de pimenta na cara de alguém. (Eu tinha comprado uma lata de spray de pimenta numa farmácia por cinco dólares e 98 centavos e, de repente, no meio daquele telefonema, me dei conta das horríveis possibilidades de usá-la no hipódromo) (THOMPSON, 2004, p.21).

No entanto, Thompson não precisou usar o spray de pimenta, pois Steadman estava com as credenciais. O jornalista ficou sabendo disso ao perguntar pelo artista inglês na recepção do hotel. Seguindo as orientações da recepcionista, Thompson encontrou Steadman facilmente no camarote de imprensa e, graças a isso, a dupla conseguiu ingressar no hipódromo. O artista britânico lembra quando os dois se encontraram: “De repente olho para o lado e aquele homem alto diz, „Olá, eu sou Hunter Thompson. Foi-me dito para procurar um nerd emaranhado de cabelos e com verrugas. Eles disseram que você era estranho – mas não assim‟” (WENNER e SEYMOUR, 2007, p.121). A partir do encontro, que também é descrito na narrativa, a reportagem passa a trazer em primeiro plano as observações e impressões que o jornalista teve sobre o público e o que acontecia com a dupla. Afinal, como ressalta Thompson: “E, ao contrário da maioria dos outros no camarote de imprensa, estávamos pouco nos lixando para o que

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acontecia na pista. Tínhamos vindo aqui para ver os verdadeiros animais se apresentarem” (THOMPSON, 2004, p.25). A afinidade de Thompson com Steadman é outro aspecto que difere o texto na comparação com as demais narrativas jornalísticas. Na medida em que o artista vai desenhando o que vê, o jornalista avalia as ilustrações e conta isso na própria reportagem. Thompson, inclusive, ressalta a importância de se encontrar a ilustração que melhor represente o que, na verdade, ele pretende passar para o leitor: Ele tinha feito uns bons esboços, mas até agora não tínhamos visto aquele tipo especial de rosto que eu sentia que precisaríamos para a ilustração principal. É um rosto que eu tinha visto umas mil vezes em todos os Derbys a que fora. Na minha cabeça, eu o via como a máscara da aristocracia do uísque – uma mistura pretensiosa de bebida, sonhos desfeitos e uma crise de identidade terminal. O resultado inevitável de muitos cruzamentos entre parentes numa cultura fechada e ignorante (THOMPSON, 2004, p.26).

Na reportagem de Thompson, o jornalista faz essa descrição do seu encontro com o britânico. Steadman, por sua vez, apresentou a sua visão dos fatos nos depoimentos para Wenner e Seymour (2007, p. 121). Em sua fala, ele revela que durante a semana do evento os dois consumiram muito álcool. “Eu não penso que nós paramos, na verdade”. Além disso, ele lembra que Thompson ficava irritado ao ser acordado às oito da manhã. Segundo o artista, o jornalista berrava de dentro de seu quarto: “Que porra é essa? Eu ainda não dormi. Eu estive acordado a noite toda. Me chame daqui a duas horas” (WENNER; SEYMOUR, 2007, p.121). Steadman também recorda que, no início, o jornalista demonstrou certa impaciência com o seu trabalho. “Em um ponto, logo no início, ele disse „Eu gostaria que você parasse de fazer isso. Isso o quê?‟, eu perguntei. „O hábito imundo que você tem de fazer pequenos rabiscos de pessoas‟, ele disse”. Na matéria, Thompson (2004, p. 27-8) comenta essa impaciência, ao falar de sua irritação com o fato de Steadman desenhar pessoas em situações sociais e entregar os esboços para elas. “Os resultados sempre eram infelizes”. E quando o britânico alega que na Inglaterra as pessoas não se ofendem com seus desenhos, Thompson responde: “Foda-se a Inglaterra, „eu disse‟. Aqui é o interior dos Estados Unidos. Essas pessoas encaram isso que você está fazendo com elas como uma ofensa brutal e profunda” (THOMPSON, 2004, p.27-8). No decorrer da semana, conforme Steadman em relato a Wenner e Seymour (2007, p. 122), Thompson começou a mudar de postura e passou a solicitar as ilustrações do artista: “Ele gostou da ideia porque ele pensava que isso era o caminho para dizer algumas

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coisas sobre as pessoas que ele não podia dizer em palavras”. Assim, se por um lado ao final do evento Steadman tinha diversas ilustrações, Thompson não tinha nada além de algumas anotações em um bloquinho de aspiral. Já na segunda metade da reportagem, Thompson descreve o dia do grande páreo, desde a saída do hotel até o final da corrida, mas sempre utilizando uma narrativa autobiográfica. Tanto é que Thompson abordou tudo, menos o que ocorreu com os cavalos na pista. Aliás, no final do texto é relatada a ressaca que a dupla da Scanlan’s Monthly enfrentou no dia seguinte ao grande páreo: A essa altura Ralph não conseguia nem pedir café. Ficava pedindo mais água. “Das coisas que eles têm, é a única adequada para consumo humano”, explicou. Então, com uma hora para matar até o embarque, espalhamos seus desenhos sobre a mesa e ficamos pensando sobre eles um pouco tentando decidir se ele tinha conseguido captar o verdadeiro espírito da coisa... mas não conseguimos chegar uma conclusão. Suas mãos tremiam tanto que ele tinha dificuldade para segurar o papel, e minha visão estava tão desfocada que eu mal enxergava o que ele tinha desenhado. “Merda”, praguejei. “Nós dois parecemos bem piores do que qualquer coisa que você desenhou aqui”. Ele sorriu. “Sabe, estive pensando sobre isso”, falou. “Viemos até aqui para ver essa coisa terrível, pessoas completamente bêbadas, vomitando em si mesmas e tudo o mais [...] e agora, quer saber? Somos nós” (THOMPSON, 2004, p.35).

Foi então que, com as anotações que vinha fazendo e uma narrativa completamente autobiográfica, tomada por quebras de normas, por drogas e bebidas, que o “O Kentucky Derby é decadente e degenerado” foi publicado na edição de junho de 1970 da revista Scanlan’s Monthly com as ilustrações de Steadman. “Eu fiquei completamente deprimido ao voltar para a Inglaterra e para o meu trabalho convencional de cartunista”7, relatou o artista. Poucos meses depois da matéria sobre o Kentucky Derby, Steadman conta que Thompson lhe convidou para fazer outra matéria sobre a Copa América de Iatismo. Em depoimento a Wenner e Seymour (2007, p.124), ele revela como se sentiu: “Eu senti que tinha que ir. De uma maneira estranha eu me senti escolhido – talvez por acidente. A essa altura, isso era jornalismo de ultraje”. Foi nessa cobertura que Thompson deu alucinógenos para Steadman, para curar uma dor de cabeça, conforme o próprio artista relata. Foi quando os gritos e os olhos vermelhos de cães começaram. Era uma lua cheia, mas todos os reflexos que eu via estavam vermelhos. A próxima coisa que eu sei é que eu estava dizendo: “Eu me sinto como Hitler”. Foi 7

For no good reasons. Direção: Charlie Paul. Documentário, 89‟00". Reino Unido / EUA, 2012.

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uma sensação muito horrível de pânico (WENNER e SEYMOUR, 2007, p.128).

Steadman conta em seu relato que ficou sob efeito das drogas por 96 horas, chegando a procurar um médico, no dia seguinte, em Nova York. Essa parceria envolvendo os textos do jornalista e as ilustrações do artista duraria, além da amizade entre os dois, durante toda a carreira de Thompson, que cometeu o suicídio em 2005. Nesse período, Steadman foi convidado para fazer ilustrações de outras reportagens, como Medo e Delírio em Las Vegas, em que Thompson escreve sobre o Mint 500 em Las Vegas e sobre uma convenção de combate aos narcóticos. Essa reportagem acabou se tornando a principal referência do jornalismo gonzo de Thompson e Steadman.

4 Ilustração gonzo: o humor e a perversão de sentidos Para efeitos de análise, destacam-se duas ilustrações relativas aos principais trabalhos do jornalismo gonzo já abordados no breve histórico realizado até aqui: a matéria precursora, O Kentucky Derby é decadente e degenerado, e a mais famosa, Medo e Delírio em Las Vegas. Ambas as ilustrações foram produzidas com a técnica de nanquim sobre papel e terão a significação analisada de acordo com a proposta de Teoria da Imagem, de Justo Villafañe (2000). Essa abordagem, a partir dos elementos morfológicos (ponto, linha, textura, plano, cor e forma – estrutura espacial), dinâmicos (tensão e ritmo – estrutura temporal8) e escalares (dimensão, formato, escala e proporção – estrutura relacional) que compõem a sintaxe da imagem (VILLAFAÑE, 2000), buscará destacar as estratégias de produção de sentidos utilizadas por Steadman, para caracterizar sua narrativa icônica dentro do jornalismo gonzo. Assim como um texto verbal, um texto icônico pressupõe uma narrativa (o dito), que igualmente pode ter caráter mais narrativo ou mais descritivo, conforme a eleição dos elementos compositivos. Nas ilustrações analisadas, o caráter narrativo é reforçado pela eleição do formato longo (horizontal), que, conforme Villafañe (2000), permite ao desenhista criar divisões espaço-temporais, direções e ritmos. A opção por abordar o formato (elemento escalar) antes da apresentação das ilustrações se faz por sua estrutura essencialmente relacional frente aos demais elementos, uma vez que define o enquadramento e condiciona o resultado visual de toda a composição

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Além da tensão e ritmo, Villafañe (2000) apresenta como primeiro elemento dinâmico o movimento, exclusivo de imagens em vídeo (TV e cinema) e, portanto, não contemplado nessa análise.

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(VILLAFAÑE, 2000). Ou seja, trata-se de um ponto de partida do autor, relacionado com todos os elementos compositivos até o final da análise, como poderá ser observado a seguir, iniciando pela Figura 1:

Figura 1: Sem título, de O Kentucky Derby é decadente e degenerado

Fonte: O Kentucky Derby é Decadente e Degenerado

Nessa ilustração, Steadman explora diferentes pressões no traço em áreas específicas, como o chão e o sombreado dos rostos, fazendo com que pontos e linhas componham tensões visuais que direcionam o olhar e conferem dinamicidade à imagem. Por outro lado, marcada por traços firmes e contínuos, a única estabilidade parece vir dos elementos arquitetônicos, como a arquibancada, praticamente vazia, o pilar de sustentação da - e a própria - linha de chegada. O preto e branco do nanquim sobre o papel, em diferentes pressões no traço, conferem um contraste dramático, pesado, forte, à imagem, separando os planos dimensionais da arquibancada, ao fundo, e das figuras humanas e chão, à frente. O contraste também produz diferentes planos dimensionais entre as figuras humanas, como se estas estivessem se sobrepondo, desordenamente, umas às outras. A ondulação nas linhas de contorno das figuras humanas, com inclinação para a direita, confere caráter dinâmico, como se as figuras representadas estivessem cambaleantes, trôpegas, tais quais bêbados. O posicionamento dos rostos e membros à direita dos corpos cria vetores de direção para a direita, relacionados com o efeito de sentido de “entrar” (KANDINSKY, 1997) e que aqui funcionam como uma oscilação dos corpos para “cruzar a linha de chegada”. Nas figuras humanas, os detalhes dos rostos são mal definidos, com bastante uso de sombra. Rostos e membros são volumosos, disformes, como se estivessem se degenerando. Há uma mistura de formas, como se não fosse possível estabelecer um limite entre um corpo e outro. Essa “perda da forma” ou deformação física, típica das caricaturas e

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desenhos de humor (FONSECA, 1999), é reforçada pela postura quadrúpede das figuras humanas, oposta à postura bípede esperada para a espécie, a partir da representação de membros superiores e inferiores tocando o chão. A repetição dos corpos e do contraste claro/escuro, na representação dos mesmos, gera ritmo entre elementos fortes e fracos, que contribuem para o efeito de sentido de dinamicidade. De joelhos, decadentes, as figuras humanas parecem rastejar umas sobre as outras. Como as formas humanas estão alteradas, dimensões, escalas e proporções humanas também são imperfeitas, embora dimensões, escalas e proporções entre aspectos arquitetônicos e figuras humanas sejam respeitadas, reforçando o sentido de degeneração/degradação humana. Assim, a pressão graduada no traço, o contraste entre preto e branco, as direções de cena, a representação disforme das figuras humanas, entre outros, exercem peso/tensão visual em direção ao chão e aos pontos mais escuros/sombreados dos rostos e membros, como se as figuras tivessem caído das arquibancadas rumo ao chão e à linha de chegada. Uma representação que só poderia ser construída com o auxílio do formato horizontal da imagem. Cambaleantes, decadentes, rastejantes, as figuras humanas colocam-se no lugar dos cavalos na pista, como verdadeiros animais. Tal qual Thompson (2004, p.25) descreve sobre o propósito dos dois, jornalista e ilustrador, na cobertura do evento: “Tínhamos vindo aqui para ver os verdadeiros animais se apresentarem”. Foi exatamente isso que Steadman retratou. Essa opção pelo caricatural como forma de representar um momento humano sob o prisma do humor (o que Fonseca, 1999, define como desenho de humor) está presente também em Lizard Lounge (Figura 2), como se observa a seguir: Figura 2: Lizard Lounge, de Medo e Delírio em Las Vegas

Fonte: Medo e Delírio em Las Vegas

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Mais uma vez a estabilidade é demonstrada nos traços firmes e uniformes dos elementos arquitetônicos, como paredes e balcão, em oposição à dinamicidade das figuras representadas. A opção por retratar as figuras humanas de maneira caricatural também se assemelha à estratégia utilizada na Figura 1. Há, porém, uma inversão na representação: as formas agora são animais, enquanto a postura bípede é humana. Pequenos pontos, linhas retas, onduladas e cruzadas são utilizadas para representar rostos e peles de aspecto animal. Representada levemente à esquerda dos centros geométrico e perceptivo (VILLAFAÑE, 2000, OSTROWER, 2004) - e, portanto - a figura principal apresenta na pele formas ovais em branco, inseridas num fundo escuro. Esse constrate confere uma textura que lembra as escamas da pele de lagartos, animais que inspiram o nome do lugar e estão representados nas figuras que vestem roupas masculinas (ternos). O branco, chapado, dessas formas ovais provocam o efeito de sentido de brilho, conferindo textura viscosa à pele9 dos lagartos. As figuras que vestem roupas femininas (vestidos com decote tomara-que-caia, valorizando as formas arredondadas dos seios) são representadas com bicos curvos, lembrando a forma do bico de corvos. Formas animais nos rostos harmonizam com formas humanas nos membros inferiores e superiores. Como resultado dessa representação, as figuras lembram lagartos humanos, corvos humanos. Cabe ressaltar a simbologia de cada um desses animais e a relação dessa simbologia com os significados evocados na ilustração. Corvos são animais que se alimentam de carne putrificada (necrófagos) e, por isso, associados com a morte, o mau agouro, o azar. Já o lagarto é um animal de aspecto grosseiro, que muda de pele temporariamente ao longo da vida, ou seja, muda de aparência. Com isso, depreende-se que a eleição de lagartos e corvos para representar os animais humanos dessa ilustração seja uma alusão aos perigos do lugar, voltado para jogos de azar e capaz de transformar/mudar a vida das pessoas, transfigurá-las. Também Thompson faz referência a lagartos em passagem que descreve uma alucinação sua pelo uso de ácido, no bar do hotel-cassino, quando da chegada dele e do advogado ao Lizard Lounge, para hospedagem: "Coisas terríveis aconteciam ao nosso redor. ao meu lado, um réptil imenso mastigava o pescoço de uma mulher, o tapete tinha virado uma esponja encharcada de sangue... (...) Você notou que esses lagartos conseguem caminhar tranquilos por cima dessa gosma? É que as patas deles têm garras. (THOMPSON, 2010, p.10). Essa passagem está localizada cinco páginas depois da ilustração. Em ambos 9

Embora a pele de lagarto seja seca, a aparência é pegajosa, viscosa, devido ao brilho das escamas, aqui representado pelo branco.

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os textos, de Steadman e de Thompson, fica clara a referência direta ao nome do lugar e à simbologia do animal. A disposição de pontos soltos sobre as roupas e no ar, sobre as cabeças, confere um clima inebriante ao lugar, como se as figuras estivessem embriagadas, extasiadas, em estado de torpor, fora de suas consciências, sem capacidade de pensamento ou ação rápidos. Já a disposição das figuras no espaço de representação e as linhas curvas, sinuosas, de contorno dos elementos arquitetônicos e corpos produzem efeito de sentido de profundidade, marcando diferentes planos dimensionais. O uso de linhas com pressão igual é maior nessa Figura 2, sem tanta repetição entre pontos claros e escuros, numa composição mais estável do que a primeira. Assim, as figuras não se sobrepõem desordenadamente umas às outras, mas se dispõem, estáveis, umas mais à frente que outras, havendo uma ordenação, hierarquização, de planos e figuras, partindo da figura em primeiro plano à esquerda, até a última figura representada à direita. Não é a toa que a figura à esquerda está em primeiro plano. Nas mãos, ela oferece, de bandeja, uma taça que contém um líquido em tom escuro e cujas linhas sinuosas representadas na parte superior indicam um aroma que se espalha pelo ar: provavelmente o de conhaque, pelo formato da taça e cor do líquido. O contraste forte fica por conta do preto, chapado, do chão. Porém, não são para essa direção que os vetores apontam. Com as posturas eretas, os rostos altivos voltados, a maioria, para a direita, mais o grande rabo do “lagarto humano” que está em segundo plano voltado para a direita e a hierarquização de planos e figuras da esquerda para a direita, as direções de cena voltam-se para essa área, como se as figuras assistissem a algo que transcorre fora do espaço de representação, algo que lhes chama a atenção. Dessa maneira, o olhar do espectador da ilustração é convidado a “entrar” na cena e percorrer/explorar o local na mesma direção, na expectativa de ver o que está fora de cena. Nesse percurso, apesar do caricatural das formas animais-humanas, não há alterações de dimensão, escala ou proporção. Como resultado, há um efeito de sentido de verossimilhança, em que harmoniosamente as formas de animais fundem-se a formas humanas e formas humanas fundem-se a de animais, sem confusões. Ao aceitar o convite para explorar a cena, o espectador se depara primeiro com a bebida, em seguida com o fumo, mulheres e o clima inebriante do lugar. O olhar extasiado das figuras para esse ponto não enquadrado no espaço da ilustração encontra expoente no “lagarto humano” representado em segundo plano: um olhar vidrado, definido por diferentes círculos, hipnóticos.

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Que tentações se escondem nesse espaço do “não dito”? Parece residir aí a grande sacada da ilustração: tal qual a tradicional corrida de cavalos não foi abordada na Figura 1, mas pervertida na corrida de humanos, verdadeiros animais, os jogos de azar, principal atrativo do Lizard Lounge e de Las Vegas, são pervertidos nos frequentadores do lugar, animais humanos, e no que não se mostra na ilustração, mas os aguarda, convida, atrae e pode ser a sua perdição. Ao considerar Lizard Lounge sua ilustração favorita entre todos os trabalhos produzidos em parceria com Thompson, Steadman justifica essa escolha a partir da composição do desenho, em relação às sensações que o lugar transmite: “contém todos os elementos loucos, viscosos, traiçoeiros, e as tentações perigosas que estão à espreita no que é, aparentemente, um lugar para se divertir e local ímpar de jogos de azar! Você deve ser capaz de fazer isso sem colocar em perigo a sua vida e a sua integridade física, senão será a sua ruína final!” (RITTER, 2014). É como se, travestidas em corvos e lagartos, as figuras humanas deixassem de ser quem realmente são, perdessem a integridade. De modo geral, nas duas ilustrações, as diferentes graduações na pressão, em áreas mais fortes e fracas, revelam certo nervosismo no traço, como uma escrita solta, denunciando certa rapidez em informar, como se os elementos fossem se dispondo no papel quase que prontamente, crus, urgentes, sem cortes, edições ou melhorias, sem preocupação com um resultado final perfeito. A maneira como Steadman descreve o seu fazer para o jornalismo gonzo revela um pouco dessa despretensão: “Eu apenas lanço o pincel para a direita na tela em preto e branco e a maioria dos desenhos já sai pronta!” (RITTER, 2014). Não se pode deixar, porém, de atestar a qualidade de seu trabalho, nem toda a preparação que a produção artística envolve. O resultado estético da sobreposição de corpos e rostos, dos aspectos caricaturais, disformes, na opção por retratar de maneira humorada determinados momentos da vida humana, lembram bastante os trabalhos de Picasso (Guernica) e Grosz (The funeral, Totum Revolutum, Camberwell Illustration 1), artistas que Steadman confessa, em entrevista (RITTER, 2014), terem influenciado sua formação.

5 Considerações As ilustrações de Steadman marcaram o jornalismo gonzo da mesma forma que o texto de Thompson: com características exclusivas, determinantes de uma época na história do jornalismo, de um fazer jornalístico. Enquanto um ousava no texto, o outro ousava no traço. Enquanto um abusava das palavras, o outro abusava do uso e combinação de

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elementos compositivos do desenho, ambos numa verborragia que parecia incontrolável, estimulada pelo uso de drogas. Considerando que, ao final da cobertura sobre Kentucky Derby, pelos relatos dos dois, 1) Thompson se convenceu de que as ilustrações eram uma forma de dizer algo “sobre as pessoas que ele não se podia dizer com palavras”; 2) Steadman tinha diversas ilustrações, enquanto Thompson tinha poucas anotações em um bloquinho; 3) Na medida em que Steadman vai desenhando o que vê, Thompson avalia as ilustrações e faz disso relato na reportagem, ressaltando a importância de tentar encontrar uma que melhor represente o que ele quer passar ao leitor; pode-se depreender que a cobertura em tempo real, as impressões in loco, foram narradas, em primeira mão e em maior parte, pelas ilustrações de Steadman, embora muitas tenham sido entregues aos próprios representados e, portanto, não publicadas. Com liberdade para ilustrar o que via, sem estar condicionado ou pautado pelo que Thompson desejava, em condições de produção semelhantes às de um repórter fotográfico ou cinematográfico em coberturas jornalísticas, ou seja, agindo segundo seu próprio enquadramento, Steadman fez a sua narrativa icônica, em paralelo – ou mesmo anteriormente - à narrativa verbal de Thompson, que agia mais como editor final na escolha das ilustrações, condizentes com o texto, que seriam publicadas. O mesmo exemplo de liberdade de criação para as ilustrações pode ser observado em Medo e Delírio em Las Vegas. Embora Steadman não tenha participado da viagem que originou o relato, quando se refere à ilustração Lizard Lounge, não condiciona a composição às descrições presentes no texto verbal de Thompson, como a passagem em que o jornalista relata um estado de alucinação, no qual vê pessoas em forma de lagartos. Pelo contrário, Steadman deixa bem claro que a composição contempla “os elementos loucos, viscosos, traiçoeiros, e as tentações perigosas” (RITTER, 2014) do lugar. Ou seja, um retrato do lugar e não de uma alucinação. Se houve uma influência do texto verbal de Thompson para a composição do texto visual de Steadman, nesse caso, ela não é confessa. Em entrevista, Steadman dá a entender que as responsabilidades e funções eram bem definidas para ambos: “tínhamos esse sentimento de lutar contra o que está estabelecido... Ele fazia isso com os textos, e eu, com as ilustrações...”. Porém, parece não atribuir a mesma importância ao seu próprio trabalho. Ao destacar Thompson como “ÚNICO!!! Ninguém mais poderia fazer algo tão inovador quanto Hunter fez no passado…” (RITTER, 2014), parece encobrir o papel de ilustrador na escrita gonzo.

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Embora não tenha contribuído com seu texto icônico em todos os trabalhos de Thompson, é inegável a condição de parceria entre o ilustrador e o jornalista, sem que um interferisse no trabalho do outro, ou conduzisse o trabalho do outro, ao longo do período que consagrou essa forma inovadora de dizer. A parceria concreta entre os dois reverte o mito de que ilustrações somente servem ao texto verbal, complementam a informação já transmitida nele ou auxiliam na compreensão do que o jornalista que o redigiu quis dizer, como se fosse uma expressão menor, principalmente nesses casos, de coberturas jornalísticas, em que ambos, jornalista e ilustrador, apresentam a sua própria versão e visão dos fatos. Humildade exagerada de Steadman? Falsa modéstia? Talvez. No caos do jornalismo gonzo, tudo pode ser o que parece e tudo pode parecer o que é.

Referências bibliográficas FONSECA, Joaquim da. Caricatura: a imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999. For no good reasons. Direção: Charlie Paul. Documentário, 89‟00". Reino Unido / EUA, 2012. KANDINSKY, Wassily. Ponto e linha sobre plano. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1997. McKEEN, William. Outlaw journalist – the life and times of Hunter S. Thompson. New York: W.W. Norton & Company, 2008.

OSTROWER, Fayga. Universos da arte. 24.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. RITTER, Eduardo. Entrevista com Ralph Steadman. Jornal O Rebate, Macaé, 04 jul. 2014. Disponível em: . Acesso em: 04 jul. 2014. THOMPSON, Hunter. A grande caçada aos tubarões. São Paulo: Conrad, 2004. ______. Medo e delírio em Las Vegas. Porto Alegre: LP&M, 2010. VILLAFAÑE, Justo. Introducción a la teoria de la imagen. Madri: Pirámide, 2000. WENNER, Jann S.; SEYMOUR, Corey. Gonzo: the life of Hunter S. Thompson. New York: Back Bay Books, 2007.

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