INTERFACE ENTRE FILOLOGIA E TRADIÇÕES DISCURSIVAS: ESTUDO DA DEDICATÓRIA DE UM CÓDICE DO SÉCULO XVIII

May 30, 2017 | Autor: Renata Costa | Categoria: Filologia, Século XVIII, Dedicatoria, Tradições Discursivas
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INTERFACE ENTRE FILOLOGIA E TRADIÇÕES DISCURSIVAS: ESTUDO DA DEDICATÓRIA DE UM CÓDICE DO SÉCULO XVIII

Renata Ferreira Costa1 Universidade Federal de Sergipe

Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar um estudo descritivo de uma dedicatória do final do século XVIII, aliando à metodologia filológica o modelo de Tradições Discursivas. Para tanto, toma como corpus a dedicatória do códice Memória Histórica da Capitania de São Paulo (1796), do oficial Manuel Cardoso de Abreu, que, guiado pela prática cultural e política de oferecimento de livros, comum à época, visava a persuadir uma figura política importante, Luís Pinto de Souza Coutinho, então secretário de estado da rainha D. Maria I, do seu merecimento de um benefício, como, por exemplo, um cargo público. Não se pretende trabalhar aqui com uma descrição exaustiva da transformação da Tradição Discursiva dedicatória, mas traçar um perfil de uma dedicatória setecentista, que, em última instância, é representativa das práticas de homenagem e das relações de poder até pelo menos o século XIX. Palavras-chave: Filologia. Tradições Discursivas. Dedicatória. Século XVIII. Abstract: This paper aims to present a descriptive study of a late eighteenth century dedication, combining the philological methodology to the model of Discursive Traditions. Therefore, it takes as corpus the dedication of the Memória Histórica da Capitania de São Paulo codex (1796), of official Manuel Cardoso de Abreu, who, guided by cultural and policy practice of offering books, common at the time, was intended to persuade an important political figure, Luís Pinto de Souza Coutinho, at that time secretary of state to the Maria I queen, of your merit of some mercy, for example, a office. It do not want to work here with an exhaustive description of the dedication Discursive Tradition transformation, but to draw a profile of an eighteenth-century dedication, which, ultimately, represents the tribute practices and power relations until at least the nineteenth century. Keywords: Philology. Discursive traditions. Dedications. Eighteenth Century.

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Professora do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Sergipe. Doutora em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Coordenadora do projeto Para a História do Português Brasileiro de Sergipe – PHPB/SE e líder do Grupo de Estudos Filológicos do Estado de Sergipe – GEFES.

Introdução

A Filologia tem como objeto de estudo os textos escritos, sobre os quais se debruça para editá-los, de modo a torná-los acessíveis e restitui-los à sua genuinidade, e estudar os seus mais variados aspectos. Assim, como observa Cambraia (2005, p. 20), ao fornecer corpora representativos, o trabalho filológico “tem impacto sobre toda atividade que se utiliza do texto escrito como fonte”. Considerada em seu sentido amplo (lato sensu), a Filologia se dedica ao estudo científico de um estado de língua atestado por documentos escritos. No entanto, a descrição ou análise linguística não é sua preocupação primordial, uma vez que, segundo Melo (1975), o conhecimento da língua funciona como meio para que essa ciência atinja seu fim próprio. Nesse sentido, é interessante notar que, quando se estuda os estados de língua apresentados em textos, ou seja, a história de uma língua, “o que se estuda não é a língua [...] senão textos de diferentes épocas, textos que parecem representativos dos respectivos estados de língua” (KABATEK, 2006, p. 515). A partir dessa consideração, Kabatek (2006) propõe, no âmbito dos estudos linguísticos diacrônicos, a interface entre Filologia e Tradições Discursivas, as quais, como destaca Longhin (2014, p.15), surgiram dentro da linguística românica alemã, “sob influência decisiva da concepção de linguagem e de mudança linguística de Eugênio Coseriu”, para quem tradição textual não corresponde necessariamente à tradição linguística. O conceito de Tradições Discursivas, doravante TD, emerge da percepção das diferentes historicidades da língua e dos textos e está diretamente ligado ao “reconhecimento de que o uso da linguagem, nas tantas esferas sociais, se faz por meio de textos e que, portanto, o lugar da inovação linguística é o texto” (LONGHIN, 2014, p. 15-16). TD são, então, modos recorrentes, tradicionais de dizer as coisas, são práticas habituais no plano do discurso, que podem ir desde vocabulário e fórmulas frasais simples até gêneros ou formas literárias complexas:

[...] uma TD é mais do que um simples enunciado; é um ato linguístico que relaciona um texto com uma realidade, uma situação, etc., mas também relaciona esse texto com outros textos da mesma tradição. (KABATEK, 2006, p. 513)

Desse modo, o diálogo entre Filologia e TD permite trabalhar com corpora representativos equilibrados e “saber em quais TD uma inovação é criada, como se difunde ao longo das TD, e também onde há TD resistentes às inovações, TD que preservam elementos que em outras TD não se usam mais”, conforme Kabatek (2006, p. 516). No Brasil, o conceito de TD, muito recentemente vem sendo aplicado no contexto dos estudos diacrônicos do português brasileiro, especialmente no modo de organização dos corpora do Projeto Para a História do Português Brasileiro (PHPB), coordenado por Ataliba Teixeira de Castilho (USP/ CNPq). No âmbito desse projeto, a seleção de corpora é realizada de acordo com critérios que levam em conta, segundo Simões (2011, p. 5), (i) a historicidade da língua em particular, (ii) a historicidade da tradição dos gêneros e (iii) a historicidade genérica dos elementos discursivos presentes nesses textos. É nesse contexto que se insere este trabalho, cujo objetivo é apresentar um estudo descritivo de uma dedicatória do final do século XVIII, aliando à metodologia filológica o modelo de TD. Para tanto, toma como corpus a dedicatória do códice Memória Histórica da Capitania de São Paulo (1796), do oficial-maior Manuel Cardoso de Abreu, que, guiado pela prática cultural e política de oferecimento de livros comum à época, visava a persuadir uma figura política importante, Luís Pinto de Souza Coutinho, então secretário de estado da rainha D. Maria I, do seu merecimento de alguma mercê, como, por exemplo, um cargo público. Não se pretende trabalhar aqui com uma descrição exaustiva da transformação da Tradição Discursiva dedicatória, mas traçar um perfil de uma dedicatória setecentista, que, em última instância, é representativa das práticas de homenagem e das relações de poder até pelo menos o século XIX.

1. A Tradição Discursiva Dedicatória

Atualmente, é comum incluir dedicatórias em trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses, muito mais como agradecimento a parentes e amigos, do que como oferecimento da obra. São recorrentes ainda as dedicatórias de autor, manuscritas nos livros a pedido dos leitores, além das dedicatórias impressas, presentes na abertura das obras. No entanto, houve um tempo em que as dedicatórias se prestavam a muito mais do que agradecer, homenagear ou indicar o livro como um presente, simbolizavam práticas e representação culturais e políticas apoiadas em hierarquias e privilégios. A TD dedicatória está associada ao verbo “dedicar”, cuja origem no latim dedìco,as,ávi,átum,áre significa “consagrar aos deuses, proclamar ou dizer em público o destinatário de” (DICIONÁRIO HOUAISS, 2001). Assim, o mesmo termo poderia indicar tanto o ato de consagrar algo aos deuses como o de oferecer publicamente algo a alguém. Em francês, segundo Chartier (2003, p. 55-56), “dédier” (dedicar) e “dédicace” (dedicação) designam igualmente a consagração de uma igreja e a oferenda de um livro: Dedicar: Consagrar uma igreja [...]. Significa também oferecer um livro a alguém para honrá-lo e enaltecê-lo e, freqüentemente, para esperar inutilmente algo recompensa. Dedicação: Consagração de uma Igreja [...]. É também a Epígrafe preliminar de um livro endereçada àquele a quem é dedicado para implorar sua proteção. (FURETIÈRE, 1690 apud CHARTIER, 2003, p. 56)

O sentido de oferecimento público de um livro em busca de mercês e proteção se tornou uma prática que perdurou por séculos, e a dedicatória o símbolo das convenções sociais, ou, como destaca Delmas (2008, p. 8), o “símbolo das relações políticas apoiadas na hierarquia vigente”. Durante o Antigo Regime, muitos escritores ainda sobreviviam sob o regime de mecenato, pelo qual um artista estava a serviço do rei ou de um grande homem, que reconhecia sua obra como “produto de um trabalho que merece salário, (...) num reconhecimento público de seu talento” [tradução

nossa] (EDELMAN, 2004, p. 113-117). A prática das dedicatórias coincide justamente com esse período, que vai do século XVI ao XVIII, marcado, sobretudo, pelo regime de privilégios e por estruturas de manutenção do poder, de modo que, segundo Delmas (2008, p. 33), “o valor era determinado pela importância social, adquirido pelo reconhecimento dos demais”. Inicialmente, apenas os reis e, depois, também homens de importância social ou política estavam no cerne desse sistema, de modo que sua imagem pública deveria ser constantemente enaltecida e seu poder legitimado. Assim, as dedicatórias dos livros que lhes eram oferecidos garantiam a preservação das relações de poder e a troca de benefícios: Em uma sociedade de trocas, a dedicatória favorecia aquele que oferecia a homenagem e, também, ao soberano que, elogiado e reconhecido, muitas vezes, como fonte de inspiração, colecionava em sua biblioteca símbolos de seu poder absoluto. (DELMAS, 2008, p. 53)

As

primeiras

dedicatórias

aparecem

em

forma

de

imagens,

representando o autor ajoelhado diante do rei, oferecendo-lhe “um livro ricamente encadernado” (CHARTIER, 2003, p. 56). Esse papel de submissão e lealdade exercido pelo homem das letras logo aparecerá textualmente, manifestando uma retórica do elogio e uma demonstração de grande erudição. No Brasil do século XVIII, reflexo da sociedade portuguesa, altamente marcada por hierarquias e pela valorização das aparências, cerimônias e títulos, também se manifestavam, segundo Delmas (2008, p. 55), “relações de mecenato, características do Antigo Regime”, portanto, é evidente a manutenção da TD dedicatória em troca de alguma retribuição.

2. Relações de Poder: Manuel Cardoso de Abreu e Luís Pinto de Souza Coutinho

Manuel Cardoso de Abreu nasceu em 1750, na freguesia de Araritaguaba, atual Porto Feliz, no Estado de São Paulo, povoação conhecida como a vila das monções, pois de lá partiam as expedições fluviais que desciam o rio Tiete em direção a Cuiabá, no Mato Grosso.

Ao longo de sua vida, desempenhou diversos ofícios, como monçoeiro, tropeiro, guarda-mor, feitor, enfermeiro, escriturário e, finalmente, oficial-maior na Capitania de São Paulo, cargo que desempenhou até o seu falecimento, em 1804, com 54 anos de idade. Três fatos da vida de Manuel Cardoso chamam a atenção por denegrirem o seu caráter: foi preso pela acusação de desviar diamantes, esteve envolvido em um processo contra um capitão-mor e é acusado de ter cometido o que hoje se chama “plágio”. Encontra-se também registrada como de autoria de Manuel Cardoso de Abreu a obra Memória Histórica da Capitania de São Paulo e Todos os seus Memoráveis Sucessos desde o anno de 1531 the o prezente de 1796, manuscrito do século XVIII editado por Renata Ferreira Costa (2014), que, em sua tese de doutorado (2012), comprovou ser fruto de uma compilação de fontes, ou melhor, de uma retextualização, na medida em que Abreu conjuga diversos fragmentos de textos dos historiadores paulistas Frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques de Almeida Paes Leme, inserindo alterações que procuram manter a coesão e a coerência textuais, ao mesmo tempo em que deixa marcas de seu próprio estilo. É possível afirmar que uma das poucas partes da Memória Histórica de autoria de Abreu é a sua dedicatória, oferecida a Luís Pinto de Souza Coutinho, então secretário de estado (ministro) da rainha D. Maria I. Coutinho nasceu em 1735, em Leomil, uma pequena vila no norte de Portugal, e faleceu em Lisboa, no ano de 1804. Além do cargo de secretário da rainha, exercido em dois momentos: entre 1788 e 1801, e em 1803, foi capitãogeneral na Capitania de Mato Grosso, entre 1769 e 1772, membro do Conselho Real, comendador, marechal de campo e, em 1801, elevado a visconde de Balsemão. O brasileiro Manuel Cardoso de Abreu e o português Luís Pinto de Souza Coutinho são homens de seu tempo, pertencentes a posições sociais, culturais, políticas e econômicas distintas, mas unidos por relações de poder em um sistema extremamente hierarquizado, que privilegiava as aparências, o elogio público, as trocas de favores e a concessão de títulos e mercês.

Assim, valendo-se de uma prática cultural e política comum à época, a de escrever “dedicatórias estrategicamente destinadas a quem detinha o poder”, como destaca Delmas (2013, p. 40), Abreu oferta e dedica “sua” obra a Coutinho, almejando prestígio e alguma mercê. No caso específico da Memória Histórica, fica evidente que a dedicatória, além da finalidade de elogiar como forma de angariar uma recompensa, também se coloca como uma estratégia de disfarce das apropriações textuais feitas por Manuel Cardoso de Abreu.

3. Descrição da Dedicatória da Memória Histórica

A Memória Histórica da Capitania de São Paulo narra a história dessa capitania, antes Capitania de São Vicente, com o objetivo de reabilitar o valor dos paulistas e defender a honra de São Paulo. A obra pode ser dividida, grosso modo, em quatro partes: intitulação, dedicatória, desenvolvimento e conclusão. O que interessa neste trabalho são especialmente as duas primeiras partes. A intitulação, presente na folha de rosto do livro, apresenta o título da obra, a quem ela é oferecida e o nome do autor. Quanto à dedicatória, DeNipoti e Pereira (2013, p. 261) afirmam que, literariamente, era um estilo retórico, “ensinado e estudado nas universidades europeias, a partir da obra de Tomás de Aquino (mas não somente dela)”, e cuja estrutura se compunha de: [...] exórdio (em que se remetia a algo deleitável, ilustre que fizesse degrau ao argumento da obra); proposição (exposição dos motivos de se escrever a obra, o método, utilidade, necessidade da mesma, que se expunha ao patrono eleito); confirmação (mostra-se o quanto o autor deve ao patrono, mencionando o amor, a piedade e o obséquio para com ele, ou ainda o desejo de lhe ser grato, apregoando os seus merecimentos e louvores); e a conclusão (momento em que se recomenda a obra para ser defendida e livre de maldizentes, e que com o patrocínio adquirido promete-se enviar ao patrono obras melhores, melhor trabalhadas e mais dignas do esplendor do benfeitor). Uma parte final, também chamada de resposta, deve compreender a gratidão e os louvores tanto da obra dedicada quanto de quem a oferece, veementemente assinalados, para que continuem a servir à utilidade pública. (DELMAS, 2008, p. 99)

A dedicatória da Memória Histórica obedece aproximadamente a essa estrutura, devendo-se considerar variações quanto ao conteúdo de algumas partes e a inclusão, em primeiro plano, do vocativo:

a) Vocativo

É a forma de tratamento àquele a quem se dirige o texto, sem que haja menção do seu nome: Illustrissimo e Excellentissimo Senhor

b) Exórdio

O autor expõe a justificativa do oferecimento da obra: Tributo aVossaExcellencia esta pequena offerta, e oproduto | das minhaz fadigaz na mais exacta averiguaçaõ das noticias destaCapita=| nia de Saõ Paulo, sem interessar mais nada, que ajactancia domeu acerto.

c) Proposição

Nessa parte, é apresentado o assunto da obra, os motivos que levaram o autor a escrevê-la, os métodos utilizados e a sua finalidade: Eu Paulista, naõ podia certamente tolerar as opinioenz detantos homenz dou=| tos, canonizadas por verdades, nahistoria doDescobrimento, eFundação desta dita | Capitania. E por isso, como natural della, eapaixonado contra ainformação | dealguns Estrangeiros, particularmente Espanhoes, que ainda doidos, emagoa=| dos dovalor dos primeiros Paulistaz, procurarão denegrir, escurecer, eaviltar | acçoens dignas damelhor fortuna: Andei, Excellentissimo Senhor, como deporta emporta, | mendigando memoriaz as mais firmez, e revolvendo os Archivos dasCamaraz, | Provedoria Real, eoutros desegura perpetuidade damesmaCapitania, para | afiançar as minhas provaz, eo testemunho daverdade, que taõ lealmenteexponho | emtudo quanto escrevo nesta informação. Confesso que foi disvelo daminha | aplicação, para Soccorro damemoria, esaber deffender mais seguidamente aminha | Patria em algum cazual encontro, que setratasse destamateria, eainda para iñs=| truir os meuz mesmos naturaez. Que em noticias detanta antiguidade, | rarissimas vezez há quem entre, emenos pelo escabrozo Caminho detraduzir Carac=| teres escurecidos dotempo, ouformados em opozição ao uzual dehoje, como lamen=| tavelmente choramos noticias perdidas noLabirintho dosCartorios dosSeculos | passados.

d) Confirmação

Na confirmação, identifica-se o tom laudatório da dedicatória, na medida em que Manuel Cardoso de Abreu menciona seu respeito e admiração por Luís Pinto de Souza Coutinho e apregoa os seus merecimentos e louvores, conforme a retórica da época: Porem hoje hé efficaz impulso daminha devoção, e respeito para | com aExcellentissima Pessoa deVossaExcellencia, opór a seus pez esta Colecção dasLembrançaz | fundamentaez daCapitania de Saõ Paulo, [...]

e) Conclusão

O autor confirma o oferecimento da obra, colocando-se na posição de humilde aprendiz, cuja obra é uma pequena amostra de seu pouco talento para tão grande gratidão: Agora vejo que aminha experiencia foi menor, que | oexaminado discurso deVossaExcellencia. Por isto, que eu mais aprendi, beijo as=| maons aVossaExcellencia, pedindo operdaõ domeu arrojo em taõ pequena offerta, eain=| da mais pequena pela pouquidade dotalento doseu Autor.

f) Resposta

Por fim, há a parte que encerra o texto, que compreende a elevação do homenageado à condição de coautor da obra, a expressão “seu mais rendido cativo e diligente orador”, em ato de submissão, e a identificação do autor: VossaExcellencia pode | melhorar-lhe afortuna, que lhefalta, se afelecidade, que aeleva aconstitui=| la inseparavel dospez deVossaExcellencia, tiver oprivilegio, deque algum dia a=| passe pelos olhos. || DeVossaExcellencia || Seu mais rendidoCaptivo, edeligente Orador. || ManuelCardozo deAbreu.

A dedicatória de Manuel Cardoso de Abreu foi produzida conforme os preceitos retóricos correntes à época, valendo-se da eloquência, do tom laudatório ou adulatio, do reconhecimento de lealdade e submissão ao

homenageado e da aparente humildade do seu autor. Desta forma, percebe-se que a estrutura, os aspectos linguísticos e discursivos e as fórmulas utilizadas são elementos que caracterizam a TD dedicatória no século XVIII como uma estratégia de convencimento do merecimento de um benefício.

Considerações Finais

O presente trabalho posicionou-se a favor da interface entre a Filologia e as Tradições Discursivas, na medida em que o estudo diacrônico de uma língua, fundamentado em textos escritos, é, em realidade, o estudo dos textos que representam estados de língua. Ora, se a Filologia e as TD têm como objeto de estudo o texto escrito, cada qual com seu método e seus objetivos, torna-se relevante aliar essas duas perspectivas de trabalho, como recentemente vem sendo feito no Brasil. Aqui, tentou-se dar conta dessa interface, aliando a metodologia filológica, especialmente no que concerne à edição e crítica de um texto manuscrito, ao modelo de análise das Tradições Discursivas. Foi possível identificar a dedicatória como uma TD originada no âmbito europeu do mecenato e do clientelismo do Antigo Regime, cujas características político-sociais também se manifestaram no Brasil do século XVIII. Assim, o uso da dedicatória por Manuel Cardoso de Abreu se situa dentro do sistema discursivo da época, visando a persuadir o homenageado Luís Pinto de Souza Coutinho a reconhecer seu ato escriturário e a fornecer-lhe um novo lugar naquela sociedade hierarquizada. Certamente, um trabalho descritivo como este pode contribuir para os estudos de história da escrita, dos modos de interação social, das formas de pensar, das relações de poder e dos discursos vigentes à época.

Referências

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CHARTIER, Roger. Mecenato e Dedicatória. Formas e Sentido. Cultura escrita: entre distinção e apropriação. Trad. Maria de Lourdes Meirelles Matencio. Campinas, SP: Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil (ALB), 2003. COSTA, Renata Ferreira. Um caso de apropriação de fontes textuais: Memória Histórica da Capitania de São Paulo, de Manuel Cardoso de Abreu, 1796. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. 507 p. ______. Memória Histórica da Capitania de São Paulo: edição e estudo. São Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2014. DELMAS, Ana Carolina Galante. “Do mais fiel e humilde vassalo”: uma análise das dedicatórias impressos no Brasil joanino. Dissertação (Mestrado). Faculdade de História, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. 295 p. ______. Os bajuladores da majestade. Revista de História da Biblioteca Nacional, v. 8, p. 40-43, 2013. Disponível em: . Acesso em: 24 fev. 2016. DENIPOTI, Claudio; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Sobre livros e dedicatórias: D. João e a Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801). História Unisinos, vol. 17, n. 3, set./dez. 2013, p. 257-271. DICIONÁRIO Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. EDELMAN, Bernard. Le Sacre de l’auteur. Paris: Seuil, 2004. KABATEK, Johannes. Tradições Discursivas e Mudança Linguística. In : LOBO, Tânia et al. (Orgs.). Para a História do Português Brasileiro. Vol. 6 : Novos dados, novas análises, tomo 2. Salvador, Bahia : EDUFBA, 2006, p. 505-527. LONGHIN, Sanderleia Roberta. Tradições Discursivas: conceito, história e aquisição. São Paulo : Cortez, 2014. MELO, G. C. de. Iniciação à Filologia e à Linguística Portuguesa. 5. ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1975. SIMÕES, José da Silva. Seleção de gêneros textuais segundo aportes teóricos das Tradições Discursivas e da Linguística de Corpus: critérios para a constituição de corpora históricos do Português Brasileiro. Anais do VI Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais. Natal/RN: Editora da UFRN, 2011.

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