Interfaces entre a “relação de interagência” da Naturologia brasileira e as concepções de cura no movimento da Nova Era

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STERN, Fábio L. Interfaces entre a “relação de interagência” da Naturologia brasileira e as concepções de cura no movimento da Nova Era. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DA ABHR, 2., 2016, Florianópolis. Anais eletrônicos...

INTERFACES ENTRE A “RELAÇÃO DE INTERAGÊNCIA” DA NATUROLOGIA BRASILEIRA E AS CONCEPÇÕES DE CURA DO MOVIMENTO DA NOVA ERA Fábio L. Stern*

INTRODUÇÃO Desde sua origem, há 22 anos, a formação de Naturologia no Brasil é permeada por saberes religiosos; em especial oriundos da Nova Era. A presença de elementos novaeristas na Naturologia brasileira vem sendo citada desde o início da década de 2010, por autores como Rodrigues e outros (2012), Teixeira (2013), e mais recentemente confirmada por pesquisas empíricas na Ciência das Religiões (STERN, 2015a; STERN, 2015b). Mas a busca pela regulamentação e reconhecimento profissional faz com que muitos discursos sejam silenciados. Teixeira (2013) destacou, em sua etnografia da área, que há naturólogos que consideram que certos temas, tidos como “não-científicos”, devem ser evitados para não fragilizar a legitimidade acadêmica da Naturologia. Em 2015, durante a fala de Adriana Silva no VIII Congresso Brasileiro de Naturologia (CONBRANATU), foi citado o enxugamento em andamento das UA vinculadas às humanidades nos cursos de Naturologia no Brasil, nas quais os movimentos sociais (Nova Era incluída) poderiam entrar em pauta1. Em 2016, nas defesas públicas dos TCC, o então coordenador do curso da UNISUL também fez questão de contra-argumentar o parecer de um dos professores das bancas, de que os saberes e práticas utilizados pela Naturologia foram popularizados no Ocidente graças à Nova Era2. Com isso, é necessário ter em mente que falar de Nova Era na Naturologia é incômodo: causa desconforto tanto nas lideranças da área quanto em alguns naturólogos, e aqueles que pesquisam isso foram historicamente vistos com certa desconfiança. Como uma área jovem e em formação, elementos identitários básicos da Naturologia ainda não foram devidamente discutidos (TEIXEIRA, 2013). Um desses elementos é sua história. Dentre os pouquíssimos trabalhos nessa temática, existe uma proposta rudimentar, *

Doutorando em Ciência da Religião (PUC-SP). Bolsista da CAPES. Membro do Núcleo de Estudos de Novas Religiões e Novas Espiritualidades (NEO), da PUC-SP. E-mail: [email protected] 1 Informação verbal, coletada na mesa-redonda “Naturologia Social”, no VIII CONBRANATU (São Paulo), em 23 out. 2015. 2 Informação verbal, coletada na defesa pública de Louize Keller, na UNISUL (Palhoça), em 22 jun. 2016.

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que tende a dividir a história da Naturologia brasileira em três fases: A primeira fase estaria bastante identificada com o contexto próprio da concepção inicial do curso, fortemente marcado pela perspectiva cultural da Nova Era e com viés voltado para a educação. A segunda fase aproximou e reforçou a relação da Naturologia com as ciências biológicas e com o modelo biomédico. Diríamos que a Naturologia está em sua terceira fase, bem mais madura que a das fases iniciais (RODRIGUES et al., 2012, p. 13).

Ainda que adote a perspectiva de Wedekin em meus estudos, ela não goza do status de oficialidade entre as lideranças pedagógicas da Naturologia, tanto que sequer foi devidamente desenvolvida posteriormente por seus autores. Como uma nova proposta ainda não foi apresentada, utilizo esse modelo. Porém, suas críticas são reflexos da fragmentação da própria história do ensino de Naturologia, cuja narrativa também é alvo de disputas. É comum, por exemplo, o curso da UNISUL, lançado em 1998, autodeclarar-se como o primeiro do Brasil, embora Varela e Corrêa (2005) e Silva (2012) demonstrem a existência de um curso anterior, fundado em 1994 em Curitiba. No que tange a relação de interagência, entender essa história é importante, pois o termo foi cunhado ainda na fase novaerista, embora sem a clareza dessas influências. Segundo Garcia (2008, p. 102), “na procura por uma relação mais profunda entre o terapeuta e o paciente, a Naturologia passou a chamar esse último de interagente”. Grosso modo, a relação de interagência é o vínculo terapêutico estabelecido com um naturólogo. Ao estatuto epistemológico da Naturologia, foi imperceptível até recentemente que a construção da relação de interagência possui elementos novaeristas. O presente trabalho tem como objetivo demonstrar esses indícios nos textos dos naturólogos no Brasil. O escopo dessa pesquisa englobou todos os livros produzidos pela Naturologia no Brasil, todos os artigos publicados nos Cadernos de Naturologia e Terapias Complementares até julho de 2015, os artigos dos números temáticos sobre Naturologia do periódico Cadernos Acadêmicos da UNISUL, todos os trabalhos apresentados em todas as edições do CONBRANATU, e todas as dissertações e teses do banco de teses da CAPES com a palavra-chave “Naturologia” até o

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presente momento. Como critério de inclusão, exigiu-se que o tema específico da relação de interagência fosse abordado de modo epistemológico; ou seja, explicando-o. Esse estudo é um recorte atualizado do levantamento bibliográfico efetuado durante minha dissertação sobre a Naturologia (cf. STERN, 2015a), e boa parte das informações aqui presentes também está disponível na mesma – em especial no Capítulo 3.

A CONCEPÇÃO DE CURA NA NOVA ERA É necessário, para a identificação de discursos novaeristas dentro da concepção de relação de interagência, entender como a Nova Era tende a compreender o conceito de saúde. Segundo Hanegraaff (1996), a preocupação com a cura é uma das quatro tendências maiores do universo da Nova Era, sendo comumente compreendida como sinônimo de crescimento pessoal. Sua importância na Nova Era é tão grande que alguns pesquisadores, como Amaral (2000) e D’Andrea (2000), consideram que atingir a cura é o mais próximo que se encontra do conceito de salvação religiosa entre os novaeristas. Fuller (2005) explica que as terapias dos círculos de Nova Era compreendem o processo de cura considerando aspectos fisiológicos, psicológicos, ambientais, sociais e energéticos. Essa aproximação multidimensional é chamada de holismo, termo criado por Jan Smuts (1927) para se referir à tendência da natureza formar totalidades que são maiores que a soma de suas partes. Smuts considera que embora seja possível dividir a natureza, não é possível compreendê-la apenas estudando suas partes isoladas. Com isso, para alcançar uma explicação adequada do funcionamento da natureza, a ciência precisaria se pautar em um paradigma holístico. Como seu discurso é inclusivo ao espiritual, a noção de holismo foi adotada pela Nova Era, que viu nela uma forma de critica à velha ciência, termo usado para se referirem à física newtoniana e ao cartesianismo. O holismo está no cerne do que Hanegraaff (1996; 1999) chama de ciência da Nova Era: reinterpretações espiritualistas de termos oriundos da Física Moderna (em especial a Física Quântica), popularizadas após o cientista se tornar o agente legitimador da verdade na sociedade moderna. Em suma, as discussões acadêmicas não são compreendidas pelas pessoas comuns, assim como também o povo medieval não compreendia totalmente os pressupostos teológicos. O que é absorvido pela população são conceitos-chave,

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misturados e reinterpretados com o conhecimento popular. Dessa forma, “[...] a sociedade contemporânea não se baseia na ‘ciência e racionalidade’ mais do que o cristianismo préiluminista foi ‘baseado’ na teologia cristã. Não é a ciência, mas as mitologias de ciência populares que provêm à sociedade com seu simbolismo coletivo básico” (HANEGRAAFF, 1999, p. 149, grifo do autor, tradução minha). Essas mitologias de ciência tiveram apelo a toda cultura moderna. A figura da partícula que é ao mesmo tempo onda influenciou não somente os novaeristas, mas toda a sociedade contemporânea ocidental. Na Nova Era, a novidade foi a adição de interpretações espirituais/filosóficas, que transcendem a utilidade objetiva dos pressupostos científicos. Um físico não enxerga na mecânica quântica uma prova da existência de Deus, porque Deus é metaempírico. Do mesmo modo, somente na Nova Era cristais de água são “provas científicas” do poder do pensamento3. Independentemente das críticas que a noção de ciência na Nova Era possa ou não receber, há um aspecto importante do modo como os novaeristas compreendem o processo de cura, essencial ao entendimento da abordagem terapêutica da Naturologia: a convicção de que a medicina dominante, focada em órgãos adoecidos e sintomas, estudando o corpo em partes, não contempla o processo de saúde em sua multidimensionalidade. Aqui é percebida a primeira grande diferença entre o modelo biomédico e a noção de cura na Nova Era. Laplantine (2010) e Hanegraaff (1996) distinguem esses modelos em dois termos: curing e healing. Em português, as duas palavras são traduzidas como “curar”, sem distinções. Em sentido amplo, a diferença jaz no modelo terapêutico. Curing se pauta na compreensão reducionista biomédica de doença, enquanto healing se orienta por um modelo que inclui percepções pessoais e experiências sociais, oferecendo contextos mais gerais para interpretar as doenças. Ao tratar das curas na Nova Era, a utilização do healing seria a principal característica do campo. 3

Refiro-me aqui à experiência de Masaru Emoto, apresentada no filme What the #$*! Do We Know!?, de 2004. Alegando que pensamentos alteram moléculas, Emoto fotografou uma série de cristais congelados após submeter diferentes recipientes de água a preces/meditações, pensamentos positivos e música clássica, comparando-os com cristais de recipientes expostos a xingamentos, à voz de Hitler, música rock etc. Os resultados demonstrados consistem em fotos de cristais belíssimos para o grupo dos “pensamentos positivos”, e cristais disformes para o grupo dos “pensamentos negativos”. Porém, é ocultado do público que Emoto, na verdade, congelou uma série de cristais para cada caso, e escolheu fotografar apenas um deles, tendo como critério exclusivamente a estética do que melhor se adequaria ao propósito de seu projeto. Em outras palavras, embora a série de fotografias de Emoto seja uma obra de arte, academicamente não possui valor científico.

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Além disso, a preocupação pelo crescimento pessoal promove uma constante busca em atingir o “self perfeito”, usando o termo de D’Andrea (2000) para se referir ao pináculo da saúde. O discurso êmico comum diz que o encontro com a saúde é um encontro consigo, um autoconhecimento. Assim, ninguém poderia ser curado por outra pessoa a não ser por si mesmo; sendo essa a segunda grande diferença do modelo biomédico. Esse modelo abre margem para posturas de responsabilização do enfermo por sua doença, afastando-se do modelo em que o paciente recebe o diagnóstico do médico passivamente. Conforme explica Hanegraaff (1996, p. 54, tradução minha, grifo do autor), “o sujeito é desafiado a encontrar o significado mais profundo de sua doença e assim usá-la como um instrumento para o aprendizado e crescimento interior, ao invés de assumir o papel passivo de vítima”. A mente é vista como o fator primário de toda doença, e somente uma profunda mudança nos padrões de pensamento levaria à cura. Caso contrário, ainda que os sintomas físicos sejam sanados, acredita-se que se manifestarão novamente, até que a causa real, a consciência, seja tratada. Aos de fora, pode parecer estranho pressupor a consciência como a origem de todas as doenças, mas da perspectiva novaerista, só o self é saudável. A consciência é entendida como uma amarra criada pela vida social que impede o self de expressar seu potencial pleno (HANEGRAAFF, 1996). A saúde só seria conquistada se o sentido mais profundo da doença for assimilado. Esse significado oculto, segundo Amaral (2000), é manifestado no corpo, simbolizados pelos sintomas. Para transformar a experiência de sofrimento em aprendizado, o sujeito deve interpretar esses símbolos, desvendando-os. Todos os autores citados até aqui abordam as curas da Nova Era, e não o processo terapêutico da Naturologia objetivamente. Contudo, será notado, nos trechos selecionados dos textos dos naturólogos, que os discursos sobre a relação de interagência são muito próximos aos pressupostos novaeristas.

RELAÇÃO DE INTERAGÊNCIA A relação de interagência é a categoria êmica mais visível no discurso naturológico, aparecendo em quase todos os textos que tentam explicar o que é a Naturologia. Segundo Teixeira (2013), a relação de interagência é a dimensão principal da Naturologia brasileira, e

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grande parte do que ele chama de visão naturológica – o diferencial do naturólogo frente a outros profissionais da saúde – orbita em torno da relação de interagência. O que é pouco percebido, entretanto, é que as produções da Naturologia no Brasil corriqueiramente recorrem a ideias muito similares àquelas utilizadas pela Nova Era para explicar o que é a relação de interagência. Nesse sentido, existem duas variações de um mesmo fenômeno observado nessas obras: a primeira é notada quando da utilização de autores tipicamente novaeristas, como Amit Goswami, Ken Wilber, Deepak Chopra e Fritjof Capra; e a segunda quando discursos parecidos com as ideias novaeristas se fundamentam por autores não ligados diretamente à Nova Era. No primeiro caso, obras que declaradamente adotam mitologias de ciência pautadas na Física Quântica – como os livros novaeristas The Tao of Physics (publicado em 1975, no ápice da Nova Era estadunidense) e The Turning Point (de 1982) – são corriqueiramente citadas em textos de naturólogos como referências acadêmicas válidas. Destacando apenas o último livro sobre Naturologia lançado no Brasil, metade dos artigos presentes referenciaram ao menos uma dessas duas obras (cf. RODRIGUES et al., 2012). O segundo caso, todavia, é mais observado no campo. Originalmente o termo relação de interagência foi pensado em 2001 para um projeto de extensão da UNISUL, o CEN (Centro de Extensão Naturológica), da pedagoga Denise Régio Gomes e da enfermeira Graciela Mendonça da Silva de Medeiros. Foi Gomes quem sugeriu que o termo interagente fosse adotado para se referir às pessoas atendidas no CEN, justificando que possuíam perfil diferenciado. Não seriam clientes porque, como um projeto de extensão, o vínculo do CEN não se caracterizaria como comercial. E não seriam pacientes porque não seriam sujeitos passivos. Ao contrário, desejava-se uma atitude participativa, que interagissem com o que ali era ofertado e ensinado pelos naturólogos. Num primeiro momento, a clínica-escola da UNISUL manteve terminologia distinta. No CEN, as pessoas eram chamadas de interagentes, enquanto o termo paciente continuou a ser utilizado no estágio supervisionado. Com o tempo, conforme explica Teixeira (2013), o conceito de relação de interagência foi paulatinamente sendo adotado pelos outros professores como uma terminologia própria da área. Sua construção foi acontecendo ao longo da evolução do curso, através de discussões propostas por professores, TCC dos alunos, e posteriormente pelos eventos acadêmicos da instituição.

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Na UAM, o termo só veio a ser adotado em 2012, após a defesa da tese de Adriana Elias Magno da Silva, a primeira sobre a Naturologia no país. Até então, a UAM achava que interagente era somente um nome excêntrico pelo qual a UNISUL chamava seus pacientes. Mas Silva percebeu, em seu estudo, que a relação terapêutica praticada na UAM era muito próxima à da UNISUL. Dessa forma, apesar do termo não ser difundido na UAM, Silva considerou que a relação de interagência também acontecia espontaneamente no curso da UAM (SILVA, 2012). Como professora desse curso, passou a adotá-lo, o que acabou por formalizar sua utilização também nessa universidade. Assim como a Nova Era, a Naturologia também apresenta uma proposta de abordagem diferenciada do modelo verticalizado da biomedicina, acreditando que o processo terapêutico somente pode acontecer enquanto existir a relação de interagência. O interagente, segundo Barros e Leite-Mor (2011, p. 10), é a “pessoa única capaz de conceber o seu processo de saúde-doença e detentora das decisões e escolhas do seu processo de vida”. Essa citação é importante porque esse artigo de Barros e Leite-Mor é o mais citado, entre a produção acadêmica da Naturologia no Brasil, para explicar o que é a relação de interagência. Como é possível notar, seu discurso abre margem à responsabilização do doente por seu processo terapêutico, algo também comum no âmbito novaerista. A respeito disso, Barros e Leite-Mor não são uma voz isolada. É facilmente observável, nas definições do que é a relação de interagência propostas pelos naturólogos, descrições similares que responsabilizam o enfermo por sua própria doença: Essa relação proposta [a relação de interagência] fundamenta-se na não passividade da pessoa que está em tratamento, consignando-lhe estímulo de autonomia que, por sua vez, retira do terapeuta a responsabilidade com a saúde do indivíduo e terapia, delegando a ele – ao interagente – relevante parcela na busca do desenvolvimento do potencial humano (CARMO; COBO; HELLMANN, 2012, p. 14, grifo meu).

O último grifo dessa citação remete (ainda que possivelmente sem a ciência desses autores) ao Movimento do Potencial Humano, a principal vertente novaerista de cura e crescimento pessoal dos Estados Unidos. Conforme explica Hanegraaff (1996), o Movimento do Potencial Humano parte do pressuposto de que os seres humanos sofrem um processo de alienação para se adaptarem à vida em sociedade. No discurso êmico novaerista, o processo

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de educação promovido desde a infância empobrece a vida humana interior, reprimindo habilidades artísticas e espirituais/energéticas que a sociedade não aceita. Para recuperar a beleza da vida e lhe restabelecer o sentido pleno, seria necessário resgatar o contato com a própria essência, o eu interior (self). No entanto esse resgate não é fácil, e assim como Hanegraaff cita que as fontes novaeristas relatam resistências nesse processo, Silva (2012) também identificou nos discursos dos naturólogos declarações de que os interagentes reagem defensivamente à relação de interagência – o que, evidentemente, pode fazer parte da própria resistência observada no processo de terapia. É possivelmente nesse espírito que Carmo, Cobo e Hellmann (2012, p. 38) consideram que “os indivíduos não precisam ser guiados, manipulados ou forçados a seguir determinada direção, pois, dentro deles, há essa tendência à atualização, o terapeuta tem como papel apenas despertar tal tendência mediante determinadas condições psicológicas facilitadoras”. A função do naturólogo, nesse sentido, seria simplesmente “despertar no interagente a percepção de si mesmo e a conexão com seu próprio potencial de cura” (ROHDE, 2008, p. 85). Declarações, aliás, muito próximas da noção novaerista do paciente se transformando em sujeito de si, tal como expresso por D’Andrea (2000). Se o naturólogo é um mediador, conforme dizem Barros e Leite-Mor (2011), Rohde (2008) e Hellmann (2009); e sua relação terapêutica é horizontalizada – ou seja, ele se coloca como igual na relação de interagência –, então não se pode esperar que passe incólume ao contato com o interagente. Christofoletti (2011) ressalta que o naturólogo é ele próprio um interagente. Hellmann (2008, p. 24) complementa declarando que “as modificações não ocorrem somente no interagente, mas também naquele que tem as habilidades de educar e conduzir ao caminho do equilíbrio dinâmico, de uma saúde melhor: o naturólogo”. Pode-se considerar que essa posição deriva do valor novaerista de creditar a cada ser humano o potencial de modificar a realidade ao seu redor pelo poder de sua consciência (HANEGRAAFF, 1999; AMARAL, 2000). Conforme explica Guerriero (2013, p. 190), na Nova Era “há uma forte crença de que a verdade cósmica está dentro de cada um, sendo este ser um reflexo micro do todo”. No V CONBRANATU, ao se dirigir aos colegas naturólogos sobre a postura que deveriam adotar com seus interagentes, o discurso de Leite-Mor (2012, p. 35) pareceu diretamente influenciado por isso: “Não pensemos nossos interagentes pelo que eles são,

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pensemos pelo que eles podem! Pense seu interagente pelo que ele é capaz [...] Pensemos pela multidão de pequenos deuses que se fazem e refazem a todo momento”. Sua fala pode ser vista como um bom exemplo das noções de cocriador do mundo imputadas ao sujeito pelo movimento da Nova Era através de seus potenciais e da fagulha divina que jaz em seu self. Assim como na Nova Era todo ser humano é entendido como uma relação única interdependente de corpo, mente e espírito, na Naturologia também é possível encontrar autores declarando que “num processo de interagência pode-se observar que cada ser humano possui uma forma distinta e única de compreender e interagir no seu processo de aprendizagem ao longo da passagem terrena” (BELL, 1998, p. 62). Isso abre margem para que alguns naturólogos declarem que a interagência não se limita somente às relações do interagente com o terapeuta, mas que diz respeito a todas as formas de interação do sujeito e qualquer objeto ao qual ele se dirija, como defendeu Pinto (2012) no V CONBRANATU. A respeito da necessidade de captar os sentidos mais profundos do processo de cura, em mais de um autor foi possível encontrar declarações similares a respeito do processo de interagência. Bell (1998, p. 62) declarou que “as transformações [terapêuticas da Naturologia] são vistas quando ocorre uma mudança na qualidade das respostas que são dadas para as pessoas, para o meio-ambiente e para si mesmo”. Além dele, Rohde (2008) vai ao encontro da supervalorização da energia do amor como instrumento de transformação positiva no processo de cura do sujeito, algo que foi observado por Hanegraaff (1996; 1999) ao descrever os círculos de Nova Era. Nos últimos anos, as falas de alguns naturólogos sobre a relação de interagência vêm mudando. Posicionamentos como os de Souza (2012), que alega que a relação de interagência é uma necessidade natural para a promoção da saúde, começam a ser relativizados por alguns naturólogos. Hellmann (2009, p. 79) foi um dos primeiros que problematizaram a busca por causas ocultas das doenças em detrimento aos sintomas, reconhecendo “[...] que é impossível tratar todas as causas, pois estas são inúmeras (como tratar doenças genéticas através das práticas naturais?) e que as causas, em muitos casos, são problemas estruturais da sociedade”. Contudo, em momento algum foram encontrados questionamentos sobre a relação de interagência em si.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo desse trabalho foi demonstrar indícios de que os textos de naturólogos que tentam explicar o que é a relação de interagência, sua principal categoria êmica, possuem um discurso próximo daquele utilizado nas concepções do movimento da Nova Era sobre cura, saúde, doença e desenvolvimento pessoal. Conforme dito na introdução, não é fácil às lideranças da Naturologia assumir esse discurso como possuindo proximidade ao movimento da Nova Era. Por isso, muitas vezes essas evidências são negadas. Acredita-se que o silenciamento dos saberes e a contestação de uma identidade possivelmente novaerista sejam os principais motivos para os textos da Naturologia recorrem a autores de fora do movimento da Nova Era para explicar concepções típicas da própria Nova Era – característica que foi considerada como a segunda variação do discurso no início da seção anterior. Contudo, em alguns casos a tentativa de se distanciar objetivamente de autores explicitamente novaeristas acaba por cair em áreas que, do mesmo jeito, são caras à Nova Era, como a psicologia analítica ou a psicologia transpessoal4. Embora o objetivo não fosse identificar quantos desses textos se encaixavam na primeira ou na segunda categoria, nos casos em que isso ocorreu o conhecimento da área aponta que possivelmente os autores naturólogos acreditavam não estar recorrendo a um saber novaerista. É importante citar também que com a virada da década de 2010, o campo da Naturologia brasileira apresentou breve abertura a saberes procedentes das ciências humanas. Nesse período, teorias oriundas das humanidades pautaram discussões epistemológicas profícuas na área. No entanto, a partir de 2014 aparentemente esses conteúdos passaram novamente a ser afilados. Curiosamente, os mesmos pesquisadores advindos das ciências humanas, que no início da década eram sempre convidados a participar de eventos da Naturologia, passaram a ser preteridos pelas lideranças, quando suas reflexões começaram a ir de encontro ao projeto de Naturologia por elas desejado. Isso levou alguns estudiosos a se afastar do campo, considerando não mais valer a pena pesquisar a Naturologia. Além disso, outro possível motivo que levou a esse novo silenciamento é a proximidade das renovações de reconhecimentos do MEC às universidades brasileiras que 4

Citando o artigo de Carmo, Cobo e Hellmann (2012), ele está todo baseado na psicologia transpessoal, um ramo da psicologia que surgiu nos Estados Unidos dentro do contexto do movimento da Nova Era, e no ápice do movimento da Nova Era naquele país (HANEGRAAFF, 1996).

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oferecem cursos de Naturologia. Em minha dissertação (cf. STERN, 2015), apontei que uma repressão similar foi adotada por volta do ano 2002 pela UNISUL, e que os discursos e professores mais alinhavados a valores novaeristas foram remanejados para que não “dificultassem” o processo. Muitos docentes foram desligados, e determinados temas foram literalmente proibidos por muitos anos além da visita técnica. Por isso, é emblemático notar movimento similar, visto que desde 2015 a UNISUL começou a se preparar mais uma vez para receber o MEC, visando a renovação do reconhecimento de seu curso de Naturologia. Um último ponto que deve ser ressaltado é que a Nova Era é um objeto de estudo desvalorizado não apenas pela Naturologia, mas por toda a Academia. Como um campo oriundo do esoterismo ocidental (HANEGRAAFF, 1996), a Nova Era tende a ser vista com grande desmerecimento pelos cientistas. Mesmo em campos nos quais seu estudo pareceria mais óbvio, como a Antropologia e a Ciência das Religiões, o volume de pesquisas é inferior à disseminação social observada. Essa resistência poderia se dar, em partes, pelos inúmeros exemplos de acadêmicos que acabam descambando para o misticismo, sob a égide de que estão fazendo ciência5. Mas mesmo aqueles que estudam o movimento da Nova Era enquanto movimento cultural são minorias no ambiente acadêmico.

REFERÊNCIAS AMARAL, Leila. Carnaval da alma: comunidade, essência e sincretismo na Nova Era. Petrópolis: Vozes, 2000. BARROS, Nelson Filice de; LEITE-MOR, Ana Cláudia Moraes Barros. Naturologia e a emergência de novas perspectivas na saúde. Cadernos Acadêmicos, Tubarão, v. 3, n. 2, p. 215, 2011. BELL, Carlos Alberto. Do determinismo ao livre-arbítrio. In: HELLMANN, Fernando; WEDEKIN, Luana M. (Org.). O livro das interagências: estudos de casos em Naturologia. Tubarão: UNISUL, 2008, p. 49-64.

5

Vários exemplos são citados por Japiassu (1996), que englobam da crença de alguns cientistas de que há corpos astrais até a declarações de que o espírito é uma propriedade da matéria, ultrapassando claramente as barreiras do conhecimento científico.

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STERN, Fábio L. Interfaces entre a “relação de interagência” da Naturologia brasileira e as concepções de cura no movimento da Nova Era. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DA ABHR, 2., 2016, Florianópolis. Anais eletrônicos...

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