Internação Compulsória para Quê (m)? Breve análise da Política Criminal de \" Combate ao crack \" à luz da Criminologia Crítica 1

May 30, 2017 | Autor: Thiago Knopp | Categoria: Criminologia, Drogas, Politica Criminal
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Internação Compulsória para Quê (m)? Breve análise da Política Criminal de “Combate ao crack” à luz da Criminologia Crítica1

Thiago Hygino Knopp2

Resumo: Perfilhando os postulados da Criminologia Crítica para reconhecer a seletividade como caractere central do sistema penal e revolvendo os indícios históricos da criminalização de crianças e adolescentes envolvidas com o uso de drogas, objetivamos compreender a realidade da hodierna política criminal de “combate” ao crack na cidade do Rio de Janeiro. De um lado, os investimentos na infraestrutura da cidade visando àqueles que serão os maiores eventos esportivos do planeta, do outro, as internações compulsórias de usuários de crack, a implantação das UPPs e os “Choques de Ordem”, mas ambos interligados para tornar atrativa nossa terra tupiniquim para interesses privados.

Abstract: Adopting the principles of Critical Criminology for recognition of selectivity as the central feature of the penal system and revolving the historical evidences of criminalization of children and teenagers involved with drug use, we objectify to understand the reality of the current criminal policy of crack "fighting" in Rio de Janeiro city. On one hand, we have the investments on city´s infrastructure aiming those which will be the biggest sporting events on the planet; on the other hand, we have the compulsory hospitalization of crack users, the implementation of UPPs and the "Shocks of Order", but both interconnected in order to make our tupiniquim land attractive to private interests.

Noções Introdutórias

O mundo foi telespectador da escolha do Brasil como sede dos jogos da Copa do Mundo de 2014 e da cidade do Rio de Janeiro como anfitriã dos Jogos Olímpicos de 2016. 1

Paper apresentado no II Colóquio de Direito Penal, Direitos Humanos e Democracia realizado nos dias 21 e 22 de novembro de 2013 na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2

Advogado Criminalista. Pós-graduado em Criminologia, Direito e Processo Penal pela Universidade Candido Mendes – Centro/RJ. Advogado do Instituto de Defensores de Direitos Humanos – DDH.

Desde então, as principais cidades do país estão se adaptando para receber os atletas e os milhares de turistas que anseiam assistir aos jogos dos maiores eventos esportivos do planeta.

Obras nos principais estádios que serão palcos dos jogos da Copa do Mundo, investimentos em segurança – inclusive com a compra de equipamentos que permitirá ao país lidar com as mais diversas situações (principalmente ameaças terroristas) – mudanças nas rodovias das cidades visando maior acessibilidade aos aeroportos, novos trens que proporcionarão maior conforto aos passageiros, são algumas das medidas que dotarão o Brasil da infraestrutura necessária para bem receber os turistas que aqui se instalarão.

Na cidade do Rio de Janeiro o cenário atual não é diferente: obras para maior acessibilidade aos aeroportos, investimentos em infraestrutura, segurança, transporte público, reinauguração do estádio do Maracanã após um longo período de reformas etc.

Noutro horizonte, assistimos a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora nas favelas antes dominadas pelo tráfico de drogas, desapropriações, remoções do comércio irregular (camelôs) e a internação compulsória dos usuários de crack nas chamadas “cracolândias” – locais, geralmente nas cercanias das favelas, onde há a aglomeração daqueles que buscam obter e consumir a droga ilícita.

Diante dessas duas faces de uma mesma cidade, seria possível traçar uma relação de causalidade entre a internação compulsória de usuários de crack que consomem e adquirem a substância nas “cracolândias” e os preparativos para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos que se realizarão em nossa terra tupiniquim? Por que não permitir ao usuário de crack a livre escolha de submeter-se, ou não, ao tratamento? Estar-se-ia diante de política criminal de cunho higienista e dirigida ao estrato pobre da população carioca com escopo de “limpar” a cidade?

Analisando a realidade sob o enfoque histórico e reconhecendo a seletividade como característica central de qualquer sistema penal, demonstraremos que a internação compulsória de meninos e meninas, crianças ou adolescentes, possui relação implícita com o processo de criminalização por uso de drogas ilícitas da juventude negra e pobre do Rio de Janeiro.

Durante o processo, traremos a lume o olhar positivista das agências penais responsáveis pela análise de casos envolvendo “menores” negros e pobres apreendidos em razão do uso de drogas ilícitas e a “solução” para o “problema”, contrapondo a análise realizada nos casos de apreensão de jovens brancos e de classe média ou alta em virtude daquelas mesmas substâncias.

Apontaremos as reminiscências do modelo sanitário que inspirou a política criminal de drogas nos anos 1914 – 1964 nas hodiernas internações compulsórias de adultos com estado de saúde debilitado devido ao uso do crack e a origem na Doutrina de Segurança Nacional da “tutela” de seus direitos e garantias fundamentais, deixando de ser tratado como pessoa para ser “tutelado”, culminando num procedimento inquisitivo. Por fim, retiraremos o véu e deixaremos visível a “maquiagem” realizada no Rio de Janeiro com a internação compulsória de usuários de crack, a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora e os “Choques de Ordem”, medidas que norteiam a atual política criminal de “combate ao crack” e a política de segurança pública do estado e que escamoteiam seu verdadeiro objetivo: disciplinar e conter o indesejável contingente negro, pobre e morador de favela através da guerra, da militarização de seu cotidiano, em permanente estado de exceção, ao invés de políticas que visem diminuir as diferenças de classes tão patentes na cidade maravilhosa. Capítulo I – Internação Compulsória: Política Criminal Seletiva e Higienista

Toda política criminal, de segurança pública ou atividade legiferante que não reconheça a seletividade do sistema penal como uma de suas características centrais está fadada, cedo ou tarde, ao fracasso. E não é preciso muito esforço para que encontremos exemplos: basta que levantemos os olhos de nossa mesa de trabalho, na torre de marfim, e olhemos pela janela3.

É imperioso, destarte, desmistificar o tratamento igualitário do sistema penal, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é

3

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 16.

seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas4.

Com escopo de recolher, num primeiro momento, os meninos e meninas, crianças ou adolescentes, que fazem uso do crack nas “cracolândias” e interná-los compulsoriamente5 para tratamento nos centros especializados disponibilizados pela prefeitura e, posteriormente, também os adultos com estado de saúde debilitado devido ao uso daquela mesma substância6, a atual política criminal de “combate ao crack” atraiu admiradores fervorosos nas mais diversas searas.

Os meios de comunicação associam a prática de furtos e outros crimes patrimoniais aos usuários de crack nas regiões de “cracolândia”, disseminando o pânico e persuadindo a população dos perigos provocados pelos “viciados”, a ensejar a imperiosa necessidade de adoção de medidas enérgicas para resolver as consequências advindas do uso da droga ilícita em voga e salvaguardar a segurança do “homem de bem”. Travestidos de órgãos de segurança pública – infelizmente, suas decisões são inclinadas a atender ao furor punitivo engendrado pelo medo inculcado por intermédio dos meios de comunicação em massa – e, portanto, descurando de sua verdadeira função como guardião dos direitos e garantias fundamentais assegurados na Carta Magna, os órgãos do Poder Judiciário corroboram com a adoção da medida extrema com substrato no decreto-lei n° 891 de 25 de novembro de 1938, posto que urge necessária a tutela daqueles que, em razão da debilidade provocada pelo uso do crack, não estariam em condições físicas e mentais para decidir desta ou daquela maneira, devendo, destarte, ser mitigado seu direito de ir, vir e permanecer em prol do bem maior, a vida7.

4

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12ª. Edição. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 25. 5

Importante esclarecer os diferentes tipos de internação contemplados nos incisos do parágrafo único do artigo 6° da lei n° 10.216/01, senão vejamos: internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e internação compulsória: aquela determinada pela Justiça. 6

Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/crack-internacao-compulsoria-de-adultos-divide-opinioes-6487379 Acesso em: 1° de maio de 2013. 7

Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/crack-justica-autoriza-internacao-compulsoria-de-menor-usuario7095307 Acesso em: 1° de maio de 2013.

Entendendo a história pela sua relação específica com a verdade, reconstruindo um passado que existiu, temos uma realidade reconhecida a partir dos seus vestígios8, pesquisamos na reveladora dissertação de mestrado da professora Vera Malaguti Batista a criminalização de crianças e adolescentes em razão do uso de drogas ilícitas no Rio de Janeiro e pudemos perceber a seletividade com que as agências do sistema penal tratavam os casos. Os psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, médicos, enfim, a equipe “técnica” responsável pela elaboração do laudo que influiria na decisão do magistrado sobre a necessidade ou não de sua internação para tratamento esquadrinhava a vida da criança ou do adolescente apreendido por envolvimento com as drogas ilícitas em busca de informações que pudessem indicar a hereditariedade de seu comportamento, perquirindo acerca da estrutura familiar em que inserido o menino ou menina, seu grau de escolaridade, se trabalhava, denotando a influência do positivismo, com sua visão racista e determinista, no exercício das funções daqueles profissionais.

O que salta aos olhos é o tratamento diferenciado dispensado aos meninos brancos advindos de famílias de classe média ou alta, moradores de Copacabana, Botafogo, Leblon, Tijuca, com boa renda familiar, filhos de pais com grau de escolaridade elevado e que ostentavam bons empregos, em contraste com aqueles meninos negros, pardos ou brancos, mas pobres, moradores da periferia da cidade ou nas favelas cariocas, filhos de pais pobres, com baixa renda familiar – quando não vivendo na linha da miséria – por vezes órfãos de pai ou de pai e mãe.

Aos meninos brancos de classe média ou alta, proveniente de seio familiar com condições de orientá-los para uma vida moralmente e socialmente engajada, o tratamento pelo uso de drogas ilícitas era realizado em clínicas particulares, mediante apresentação de atestado médico poucos dias após a apreensão em flagrante, com rápida resolução da controvérsia e a consequente entrega da criança ou adolescente aos pais; ao passo que aos meninos negros, pardos ou brancos, mas pobres, moradores de bairros da Zona Norte, Baixada Fluminense ou de favelas, cujas famílias eram “desestruturadas”, que mantinham vínculo de amizade com “más companhias”, a medida determinada, após um longo desenrolar do procedimento, era a 8

BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. In.: Coleção Pensamento Criminológico. 2ª. Edição. Instituto Carioca de Criminologia. Volume 2. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 63.

internação para tratamento ao uso de drogas ilícitas, visando “domesticá-los” através do trabalho e da disciplina. Ou seja, a estas crianças e adolescentes era reservado o sistema penal e as agências que o compõe. Eram crianças e adolescentes que precisavam ser “tutelados”. Quanto à “tutela” daqueles que, em razão dos danos provocados pelo uso do crack, não podem decidir submeter-se ou não ao tratamento para o uso da droga, prevalecendo o direito à vida em prol do direito de ir, vir e permanecer, trazemos a lume a lei n° 6.697/79, de cunho ditatorial, fruto da Doutrina de Segurança Nacional, que considerava o menor em situação irregular não como pessoa, mas como alguém a ser “tutelado”, tal como se pretende na atual política criminal de “combate ao crack”, tendo como consequência um processo inquisitivo9. “Ao longo de toda a história da Humanidade, a ideologia tutelar em qualquer âmbito resultou em sistema processual punitivo inquisitório. O ‘tutelado’ sempre o tem sido em razão de alguma ‘inferioridade’ (teológica, racial, cultural, biológica, etc.).”10

Expandimos o olhar crítico e buscamos a face oculta da política criminal de drogas nos anos cinquenta e sessenta, período em que a droga deixa de estar circunscrita à população negra, pobre, marginalizada, proveniente dos guetos e moradora de favela, passando a objetificação, desumanização e demonização dos algozes, dos “inimigos internos” que ceifam a vida da juventude branca de classe média ou alta. Rosa del Olmo traça assim o panorama das drogas nos anos cinquenta11: “(...) a droga não era vista como “problema” (...). Era muito mais um universo misterioso (...), próprio de grupos marginais da sociedade (...) Nos Estados Unidos, os opiáceos não eram assunto de grande preocupação nacional, pois estavam muito mais confinados aos guetos urbanos e, em especial vinculados aos negros e/ou porto-riquenhos. 9

Ibidem, p. 79.

10

Ibidem, p. 79.

11

OLMO, Rosa del. A face oculta da droga. Trad.: Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 29.

Por sua vez, a maconha também era própria de grupos marginais, fundamentalmente emigrantes mexicanos (...) (...) Nos países da periferia, e concretamente na América Latina, também se associava a droga à violência, à classe baixa e especialmente à delinquência. Pensar nas drogas era associá-las aos “baixos escalões” (...)”

Em termos bem esquemáticos, enquanto estavam adstritas ao estrato pobre da sociedade, sendo consumida por “grupos marginais” compostos por negros, porto-riquenhos e mexicanos, a questão das drogas não tinha voltada para si uma política criminal.

Na década de sessenta, com a o consumo de drogas se estendendo a juventude branca de classe média, muda-se o discurso, vejamos12: “O problema da droga se apresenta como “uma luta entre o bem e o mal”, (...) com o qual a droga adquire perfis de “demônio”; mas sua tipologia se tornaria mais difusa e aterradora, criando-se pânico devido aos “vampiros” que estavam atacando tantos “filhos de boa família”. Os culpados tinham de estar fora do consenso e ser considerados “corruptores”, (...) Este indivíduo geralmente provinha dos guetos, razão pela qual era fácil qualificá-lo de “delinquente”. O consumidor, em troca, como era de condição social distinta, seria qualificado de “doente” (...)”

Nada muito diferente da visão difundida hodiernamente pela mídia formadora da opinião da grande massa disciplinada quanto ao traficante negro, jovem, de boné e bermuda, ostentando cordão de ouro e fuzil, morador de favela, que corrompe a juventude carioca vendendo drogas...

Enfim, mesmo diante de indícios históricos quanto à criminalização da juventude negra e pobre na cidade do Rio de Janeiro em razão de seu envolvimento com as drogas ilícitas, 12

Ibidem, p. 34.

deixemos que o tempo, esse implacável detonador de falsos consensos 13 nos revele a nova (?) juventude carioca internada compulsoriamente para tratamento nas clínicas especializadas...

Ainda inspirado na pesquisa histórica pela sua relação com a verdade, percebemos as reminiscências do modelo sanitário e autoritário, que orientou a política criminal de drogas brasileira no período compreendido entre 1914 e 1964, no discurso judiciário contemporâneo que chancela a internação compulsória de adultos na cidade do Rio de Janeiro com supedâneo no decreto-lei n° 891 de 25 de novembro de 1938.

Sobre a política criminal de cunho higienista que inspirou o decreto-lei n° 891 de 25 de novembro de 1938, Nilo Batista pontifica14: “Não é, contudo, apenas pela consideração do viciado como doente (ainda que tal consideração reforce o argumento) que este modelo, no qual autoridades sanitárias, policiais e judiciárias exercem – às vezes fungivelmente – funções contínuas, merece a designação de sanitário: é que se pode perceber claramente o aproveitamento de saberes e técnicas higienistas, para as quais as barreiras alfandegárias são instrumento estratégico no controle de epidemias, na montagem de tal política criminal.”

Analisamos as hipóteses de decretação da internação obrigatória dos usuários de drogas – e também nos casos de alcoolismo – previstas nos §§ 1° e 2° do artigo 29 do decreto-lei n° 891 de 25 de novembro de 1938 e uma em especial denota a natureza autoritária da medida: o cabimento da internação obrigatória quando for conveniente à ordem pública (!)15.

Vejamos outro dispositivo do decreto-lei n° 891 de 25 de novembro de 1938: diante de “casos urgentes” (?) a polícia podia tomar a iniciativa de efetuar “a prévia e imediata

13

Ibidem, p. 14.

14

BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In.: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n° 20, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 134. 15

Idem, p. 134.

internação fundada no laudo de exame, embora sumário, efetuado por dois médicos idôneos” (art. 29, §4°)16.

Por fim, o previsto no §7° do artigo 46 do decreto-lei n° 891 de 25 de novembro de 1938, que outorgava ao diretor do hospital particular no qual o toxicômano se houvera internado facultativamente o poder de, discordando da alta, oficiar ao Ministério Público mantida a internação pelo prazo de cinco dias (!)17.

Esta síntese das regras que disciplinavam as respostas jurídicas à drogadição dispensam qualquer outro argumento quanto à adequação da designação “modelo sanitário”18.

E vamos além: é patente a não recepção do decreto-lei n° 891 de 25 de novembro de 1938 pela atual Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, não podendo servir de fundamento para nenhuma decisão judicial que respeite minimamente o Estado Democrático de Direito.

Por derradeiro, é preciso reconhecer que apenas uma minoria dos usuários de droga ilícita é dela dependente, de modo que nem todos os usuários de crack que consomem a substância nas “cracolândias” são dele dependentes. Partindo daí, por que então a hodierna política criminal de “combate ao crack” adotou a internação compulsória dos adultos “com estado de saúde debilitado”, não permitindo que decidam sobre sua submissão ou não ao tratamento? Pensamos que a resposta se encontra em Salo de Carvalho19: “(...) a lógica sanitarista, ao ampliar os espaços de intervenção e aproximar o sistema de saúde das práticas punitivas de repressão, abre

16

Idem, p. 135.

17

Idem, p. 135.

18

Ibidem, p. 135.

19

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei 11.343/06. 6ª. Edição. Rio de Janeiro: Saraiva, 2013, p. 77.

espaços para outra perigosa associação, qual seja, a do usuário como adicto em potencial, regulando a imposição de tratamentos aos não dependentes, o que pode ser visto como aplicação de medida de segurança atípica, independente da instauração do devido processo penal.” Capítulo II – “Choque de Ordem”, Internação Compulsória e Unidades de Polícia Pacificadora: a “Maquiagem” para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos Dissemos que a atual política criminal de “combate ao crack”, consistente na remoção e internação compulsória dos usuários da droga nas áreas de “cracolândia” é seletiva, higienista e autoritária, destinada ao estrato pobre da população carioca.

Diante das faces aparentemente antagônicas da mesma cidade, percebemos que há um nexo de causalidade escamoteado entre a internação compulsória dos usuários de crack nas áreas de “cracolândia”, a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora, os “Choques de Ordem” e os preparativos para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

O projeto das Unidades de Polícia Pacificadora não é nenhuma novidade: faz parte de um arsenal de intervenções urbanas previstas para regiões ocupadas militarmente no mundo a partir de tecnologias, programas e políticas norte-americanas que vão do Iraque à Palestina20 e sua implantação nada coincidente nas favelas localizadas na Zona Sul da cidade e nos arredores do Maracanã, por si só já seria um indício luminoso para desvendar o que o projeto esconde: a ocupação militar e verticalizada das áreas de pobreza que se localizam em regiões estratégicas aos eventos desportivos do capitalismo vídeo-financeiro.21

Como vimos, a mídia vincula ao traficante, aquele jovem negro, morador de favela, vestido com boné e bermuda, ostentando cordão de ouro e fuzil, a imagem do “inimigo interno” que corrompe o futuro da juventude branca de classe média através da venda de

20

BATISTA, Vera Malaguti. O alemão é muito mais complexo. In.: 17° Seminário Internacional de Ciências Criminais, São Paulo: 2011, p. 3. 21

Idem, p. 2.

drogas ilícitas, disseminando o medo e persuadindo a grande massa da necessidade de adoção de uma política de segurança pública que “enfrente o crime organizado”.

Inicialmente, e para demonstrar o viés que norteará nossa abordagem sobre o tema, não obstante os anseios punitivistas e reacionários, destacamos que: “(...) as violências cotidianas de uma cidade são atravessadas pelos grandes movimentos do capital mundial que incidem sobre uma determinada história e memória que são “do lugar”, de modo que a segurança pública só existe quando ela decorre de um conjunto de projetos públicos e coletivos que foram capazes de gerar serviços, ações e atividades no sentido de romper com a geografia das desigualdades no território usado. Sem isso não há segurança, mas controle truculento dos pobres e resistentes na cidade.”22

Para que possamos compreender o sucesso avassalador das Unidades de Polícia Pacificadora, principalmente após a “ocupação” do Complexo do Alemão, é preciso entender a relação entre a objetificação, a demonização e a desumanização do “inimigo interno” e seu imprescindível extermínio para a garantia da segurança do “homem de bem”. O massacre dos “traficantes” durante a “retomada do território” pelo Estado é naturalizado pela população disciplinada pelos meios de comunicação em massa. Por se tratar de “inimigos”, toda a violência perpetrada pelo Estado é justificável para o alcance do fim colimado: “dar direitos humanos aos humanos direitos”. Os famigerados “autos de resistência” são a prova da naturalização da barbárie em face daqueles que vivem à margem da lei. O investigado passa a ser a vítima e não mais aquele que perpetrou a conduta que ceifou sua vida para repelir injusta agressão com o uso moderado dos meios disponíveis.

22

Ibidem, p. 3.

Passada a fase da “ocupação”, os moradores se veem diante da militarização da vida cotidiana, subsumidos ao talante da autoridade policial. Naquela área “pacificada” não vige o Estado Democrático Direito. O exercício do direito fundamental de ir, vir e permanecer é violado com os “toques de recolher”. A busca e apreensão pessoal é prática corriqueira face aqueles que saem ou adentram a favela “pacificada”. A realização de eventos populares, como os bailes funk, somente é possível mediante a autorização do comandante da Unidade de Polícia Pacificadora. Mas o que importa é o sucesso do “projeto” e a suposta anuência dos moradores em relação às Unidades de Polícia Pacificadora divulgado pela mídia através dos meios de comunicação em massa.

Pesquisas encomendadas realizadas nas áreas já pacificadas denotam a sinergia da população em áreas de UPP com a atual política de segurança pública. Os sociólogos de plantão, que negligenciam a atitude macrossociológica quanto ao objeto de estudo23, se antecipam em afirmar o que a frieza dos números revelou.

As Unidades de Polícia Pacificadora mostram a que vieram: escamotear a realidade de desigualdades sociais contendo, disciplinando o contingente pobre gestado pelo capitalismo tardio em nossa terra tupiniquim. “Choques de Ordem” nas favelas “pacificadas” compõem a segunda fase que se sucede à “ocupação” pelas forças de segurança, tudo alardeado ostensivamente pela mídia.

Os moradores assistem e a população domesticada aplaude as remoções do comércio irregular e dos “gatos” da rede elétrica e do sinal de televisão a cabo, tudo visando dotar a “comunidade” daquilo que nunca tiveram: serviços públicos (?).

23

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. In.: Coleção Pensamento Criminológico. 6ª. Edição. Instituto Carioca de Criminologia. Volume 1. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 26.

A aparente “função social” na implantação das Unidades de Polícia Pacificadora cai por terra quando percebemos quem realmente irá angariar lucros vultosos com os chamados “Choques de Ordem” nas favelas “pacificadas”, pois no Rio de Janeiro há uma vasta hegemonia de um grande grupo econômico na gestão do Estado e que na Segurança Pública isto é posto em evidência de uma forma explícita24. A “ocupação” militarizada das favelas cariocas, principalmente aquelas localizadas na Zona Sul da cidade e nos arredores do Maracanã, assim como a internação compulsória de crianças, adolescentes e adultos que consomem o crack nas regiões de “cracolândia” revela a seletividade com que atuam as agências do sistema penal.

Aquela geração negra, parda, branca, mas pobre, moradora de favela, outrora criminalizada pelo uso ou tráfico de drogas, disciplinada e “tutelada”, é a mesma que hoje a mídia dissemina nos meios de comunicação ter sido restabelecido seus direitos e garantias fundamentais com a retomada militarizada das favelas pelo Estado. O Rio de Janeiro hoje é um permanente “Choque de Ordem”. Não há pobres desordenando as ruas. Temos a ocupação de todos os tipos de empresas transnacionais na rua, mas nada de pequenos negócios informais, comidinhas populares, artesanatos, música e teatro de rua.25

Na iminência da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, a política de segurança pública e a política criminal de “combate ao crack” vão tratar de “maquiar” a cidade do Rio de Janeiro para servir de peça publicitária, atraindo empresários para a cidade maravilhosa que mais combate o tráfico de drogas...

Considerações Finais

A seletividade é característica central de todo sistema penal.

24

Ibidem, p. 11.

25

Ibidem, p. 21.

A história nos mostrou quem a política criminal de drogas criminalizava: a juventude negra, parda, pobre, moradora de favela, com sua internação para tratamento e orientação para uma vida socialmente engajada através do trabalho. Crianças e adolescentes que precisavam ser “tutelados”, submetidos, por conseguinte, a um procedimento moroso e inquisitivo.

A política criminal de internação compulsória de crianças, adolescentes e adultos que consomem o crack nas regiões de “cracolância” encontra reminiscências no modelo sanitarista, higienista e autoritário de resposta ao consumo de drogas.

Em um Rio de Janeiro na iminência de receber os principais eventos esportivos do planeta, percebemos a outra face desta mesma cidade: a ocupação militarizada de regiões pobres, subsumindo seus moradores ao alvedrio da autoridade policial; “Choques de Ordem” “limpando” e “maquiando” as desigualdades sociais engendradas pelo capitalismo de barbárie e o recolhimento compulsório dos usuários de crack.

Assistimos a massa de indesejáveis sendo controlada, disciplinada, a pretexto de restabelecer seus direitos e garantidas fundamentais usurpados por outra parcela de negros e moradores de favela: os traficantes...

No Rio de Janeiro da Copa do Mundo e das Olimpíadas, a pobreza e a favela passaram a ser sinônimo de lucro...

Referências Bibliográficas

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. In.: Coleção Pensamento Criminológico. 6ª. Edição. Instituto Carioca de Criminologia. Volume 1. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12ª. Edição. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

_____. Política criminal com derramamento de sangue. In.: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n° 20, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. In.: Coleção Pensamento Criminológico. 2ª. Edição. Instituto Carioca de Criminologia. Volume 2. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

_____. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

_____. O alemão é muito mais complexo. In.: 17° Seminário Internacional de Ciências Criminais, São Paulo: 2011.

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei 11.343/06. 6ª. Edição. Rio de Janeiro: Saraiva, 2013.

OLMO, Rosa del. A face oculta da droga. Trad.: Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

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