Internet e contra-comunicação: mobilização social em rede no documentário Levante

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Internet e contra-comunicação:

mobilização social em rede no documentário Levante! Érica Lucena Palmeira Silva1

Universidade Federal de Pernambuco [email protected]

RESUMO A história das sociedades se inscreve através das relações de poder, e a comunicação ocupa posição fundamental nessas relações, à medida que atua na formação de opinião e

construção de significados – funções histoticamente reservadas às esferas de poder que detinham o monopólio dos meios de produção. Esse panorama começa a mudar com a

emergência do ciberespaço e das tecnologias móveis, que apropriadas pelos agentes sociais, tornam-se ferramentas de contra-comunicação e de mobilização popular. Este

fenômeno é abordado pelo documentário Levante!, que traz experiências de quatro lugares

do mundo, em que manifestações pela conquistas de direitos e pela democracia são atravessadas pelo uso das tecnologias. Este artigo se propõe analisar os conceitos que

envolvem essa nova proposta de fazer midiático, e busca traçar conexões com as novas práticas sociais apresentadas pelo documentário Levante!.

PALAVRAS CHAVE: Redes sociais. Ciberespaço. Relações de poder. Mobilização social. Levante.

INTRODUÇÃO Consagrada sob a alcunha de uma “nova mídia”, de caráter libertário e

democratizador, a que se credita a fundação de novos paradigmas no fazer

comunicacional, a internet, rede de computadores tal como se conhece nos dias atuais, somente se consolidou como este ambiente colaborativo, informativo e de

amplo lugar de fala em meados de 1984, momento em que o ciberespaço passa por uma reconfiguração. 1

Estudante do 3º período do curso de Rádio, TV e Internet da Universidade Federal de Pernambuco.

Originalmente uma plataforma comunicativa fundada no militarismo, utilizada

como ferramenta estratégica de guerra e dispositivo de monitoramento, e ademais, como ferramenta a serviço de grandes grupos corporativos – que mantinham suas bases de dados de investigações científicas acessível apenas a uma rede restrita,

composta pelas esferas acadêmica, militar, comercial e industrial – o primeiro momento

da internet pode-se constatar, é

fortemente caracterizado

pela

institucionalização, à medida que era essencialmente ministrada por e a favor das esferas dominantes: que detinham os meios de produção, o capital financeiro e o poder coercitivo estatal.

Os primeiros ruídos nessa estrutura institucionalizada, segundo Castells

(1999 apud MALINI; ANTOUN, 2013) surgem em meados de 1979 a partir da

criação e rápida expansão da rede Usenet, desenvolvida por estudantes da

Universidade de Duke e da Universidade da Carolina do Norte. Criada como uma

alternativa à Arpanet – rede que fora desenvolvida pelo Departamento de Defesa Americano e que conglomerava as esferas dominantes citadas anteriormente – a rede Usenet que se propunha ser de mais amplo acesso, funcionando por meio da

linha telefônica, viabilizou a emergência dos primeiros grupos de discussão em rede, dos primeiros boletins informativos, das primeiras colaborações (tutoriais e troca de códigos de computação), mudando o perfil e contexto inicial do ambiente em rede.

O que dantes era de acesso restrito e institucionalizado, controlado e a

serviço do Estado e da indústria, passaria a um ambiente colaborativo, espaço livre

para o debate público, de construção intelectual, e para a organização de comunidades de interesse. Favorecidos pela Usenet e dentro do contexto de uma

sociedade industrial e do desenvolvimento tecnológico, são refundados pela primeira vez os lugares de fala e dos protagonismos sociais; destes fenômenos despontam

novas formas de interação social e mobilização política, e a comunicação de massa, antes poder de poucos e atrelada a uma lógica de exclusividade da emissão (feita

de um para muitos) passa a ser mais horizontalizada, no modelo de muitos falando para muitos. Assim, a rede Usenet – ao promover a ampliação do acesso à rede – contribui na construção de uma nova forma de experienciar a internet, como um ambiente de contra-poder, um meio de contra-comunicação.

RELAÇÕES DE PODER E RESISTÊNCIA A história das sociedades se inscreve através das relações de poder;

relações estas que devem ser observadas não em sentido unilateral, na concretização da imposição de poder que resulta na submissão, mas sim como um

processo de constante “negociação”, onde atuam os agentes de dominação, em sua

tentativa de se impor e influenciar (personificados nas esferas estatais e corporativas), e os agentes sociais, no exercício da resistência, que se organizam e

se mobilizam através de organismos de luta e reivindicações coletivas. Essas relações, constituem-se assim de modo dinâmico;

onde há resistência, há a

permanência de uma força ou sistema que provoca estranhamento e enseja reações de alguma ordem. Sobre isso, explica Foulcault (1995 apud ALVIM, 2010, p. 196)

que para entender as estruturas de poder, deve-se entender a existência as forças de resistência que lhe contrapõem:

É fundamental investigar as resistências contra os dispositivos de poder, [...] pois é somente por meio daquilo que está à margem, que está interdito e que se coloca contra a ação do poder que é possível entender, de forma adequada, as estruturas sociais ou as regularidades de um campo social qualquer.

Apesar de não operar em sentido linear, verticalizado, as relações entre

esses dois polos não se constroem de modo igualitário; de outra forma, os agentes

sociais não estariam incumbidos de atuar como forças de resistência, propriamente. Onde estaria então situado o ponto de inflexão desta relação disforme? O que fomentaria o poder hegemônico e por conseguinte, a manutenção das forças de contraposição? Van Dijk (2009) aponta como um dos fatores, a posse de bens que

são valorados pela sociedade, dentre eles o acúmulo de capital e a distinção de ordem econômica:

El poder [...] necesita una base, es decir, recursos que socialmente lo autoricen a ejercer el poder [...] Estos recursos habitualmente consisten en atributos o posesiones socialmente valorados pero distribuidos de manera no equitativa, tales como la riqueza, la posición, el rango, el estatus, la autoridad, el conocimiento, la idoneidad o los privilegios o hasta el mero hecho de ser miembro de un grupo dominante o mayoritario.

Em seu desenvolvimento sobre o conceito de hegemonia, Gramsci (2002

apud MORAES, 2010), explica como essa força se estrutura socialmente, relacionando-a com o aparato coercitivo de Estado – que detendo o monopólio legal

da repressão e da violência asseguraria a disciplina dos agentes sociais, à medida

que deixa livre para operar autonomamente os aparelhos privados de hegemonia. Pontua

ainda

como

estes

poderes

(estatais

e

privados)

se

fortalecem

ideologicamente, já destacando àquele momento (em 1921) a atuação da mídia (impressa) no “controle da opinião”:

É preciso fazer compreender que o proletariado hoje não tem contra si apenas uma associação privada, mas todo o aparelho estatal, com sua polícia, seus tribunais, seus jornais que manipulam a opinião segundo o arbítrio do governo e dos capitalistas.

Pode-se então considerar que as relações de poder se dão na tentativa de

um grupo tentar imprimir sobre um outro grupo sua vontade e seus intuitos, de modo a implementar um consenso, seja ele de ordem moral ou intelectual, para fins

ideológicos ou político-econômicos; entende-se ainda que essas investidas são

efetivadas por meio de um certo nível de conivência do aparato estatal, e se valida

através de outras estruturas, tais como a justiça e a mídia. Neste sentido, pode-se dizer que as forças de resistência atuam motivadas pela indignação, ao perceberem

que o Estado e a Justiça passam não mais a atender aos interesses coletivos, mas sim, tem sua atuação intervencionadas por interesses do capital.

Desta forma, órfãos das esferas públicas e objetivados pela iniciativa

privada, os agentes sociais, não detentores dos meios de produção e sem poder de

influência econômica, acabam por não usufruírem da mesma capacidade

comunicativa do Estado e do capital, fator que dificulta a contra-proposição às ideologias e discursos hegemônicos. Aqui por fim, se reconhece o sobrepeso que

desequilibra a balança nestas relações de poder; aqui se identifica o ponto de inflexão: o poder da comunicação.

(CIBER)ESPAÇOS DE TENSIONAMENTO Comunicação é poder. A máxima comumente repetida é examinada por

Castells (2007) como um fenômeno imanente ao desenvolvimento da sociedade

(visto que executa papel preponderante no jogo de poder), onde a comunicação e a informação se configuram como forças fundamentais para o exercício do poder e da

resistência, da dominação e da mudança social. Aqui, a batalha principal, como

afirma o autor, é travada sobre a esfera ideológica, sobre a mente das pessoas: sobre como elas pensam, e por conseguinte, decidem, agem.

Van Dijk (2009), explica como esse poder de dominação social através do

manejo de informações opera indiretamente, configurado em um soft power:

En otras palabras, habitualmente el poder social es indirecto y opera a través de la «mente» de las personas, por ejemplo, mediante el manejo de la información o las opiniones necessárias que requieren las personas para planificar o ejecutar sus acciones. La mayoría de las formas de poder social que se ejercen en nuestra sociedade implican este tipo de «control mental», que por lo general se consigue por intermedio de la persuasión u otras formas de comunicación discursiva.

Os escritos de Gramsci (2002 apud MORAES, 2010) reforçam este

pensamento, quando pautam o controle ideológico e a interdição do poder de fala

como ações que visam “conservar a unidade ideológica de todo o bloco social, que é cimentado e unificado precisamente por aquela determinada ideologia”; o autor

ainda explica como estes processos operam na esfera midiática: “trata-se de regular a opinião social através de critérios exclusivos de agendamento dos temas que merecem ênfase, incorporação, esvaziamento ou extinção”.

Este modelo de comunicação e controle social se mostrou exitoso por muito

tempo, especialmente com o surgimento e popularização dos meios comunicação de

massa como o rádio, e principalmente a TV; sobre este último Santaella (2003),

afirma que opera na lógica de “uma audiência recebendo informações sem

responder [...] o padrão de energia viaja num só sentido, na direção do receptor, para ser consumido com uma resistência mínima”. Ou seja, estes meios de emissão

não prezavam pela diversidade dos discursos, pela participação social, e assim a

comunicação de amplo alcance era realizada unilateralmente (de um para muitos), viabilizando a conservação da unidade ideológica, do agendamento, e do esvaziamento de opiniões.

Este quadro começa a mudar com a emergência da comunicação em rede,

tendo início em meados de 1984 com o desenvolvimento da Usenet, agregado ao uso do computador pessoal e da conexão telefônica, que juntos viabilizaram o

surgimento dos primeiros grupos de discussão no ciberespaço; naquele momento era fundado o que hoje se conhece por ciberativismo, fenômeno definido por Malini e Antoun (2013) como “ações coletivas coordenadas e mobilizadas coletivamente

através da comunicação distribuída em rede interativa”. E assim como a sociedade,

que se constrói por meio de tensionamentos, o ciberespaço que passa a ser

habitado pelos agentes sociais não poderia ser diferente: se desenvolve à sua imagem e semelhança.

Este momento de transição constitui um marco na história da sociedade e

especialmente da comunicação, que passa por uma mudança de paradigma: antes

de emissão unidirecional e mediada por esferas institucionais hegemônicas, passa a ser horizontalizada, interativa e auto-gerida, como explica Castells (2013):

The most important communication transformation in recent years has been

the shift to mass communication to mass self-communication, mass selfcommunication being the process of interactive communication that can potentially reach a mass audience but in which the production of the message is self-generated, the retrieval is self-directed and the reception

and remixing of content from electronic communication networks is selfselected.

Tendo em vista essa abertura para livre expressão de amplo alcance e seu

potencial uso para fins de organização e mobilização social, a internet passa a ser

apropriada pelos agentes de resistência como um meio de contra-comunicação.

Essa sua faculdade imanente torna-se mais robusta por meio das melhorias de infraestrutura de rede, como a implementação das infohighways e difusão da banda-

larga (rapidez transmissão de dados, em tempo real) e pelo surgimento das tecnologias móveis (smartphones, conexões 3G, 4G...), lhe agregam o caráter da onipresença e desterritorialização. Aqui,

multiplicam-se

potencialmente

os

conteúdos

compartilhados,

resignificados e recompartilhados; na blogosfera o número de sites pessoais se multiplica, chegando na metade de um dia à mais de 2.5 milhões de posts2; vlogs e

podcasts já são concebidos como a nova linguagem para a produção de conteúdos em vídeos e áudio. Passo a passo as audiências migram para a rede, e com elas seguem o mercado midiático; são os tempos dos múltiplos mercados e narrativas,

que coabitam a rede com os cidadãos – só que desta vez numa relação mais

equilibrada, em que o espectador é dotado de protagonismo3. E é neste panorama que emergem os fenômenos mais recentes: as redes sociais digitais.

Número obtido através do site http://www.internetlivestats.com/watch/blog-posts/ Isso congrega o próprio conceito de convergência, definido por Jenkins (2009) como processo que “altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos”. 2 3

REDES SOCIAIS DIGITAIS Nos dias atuais, falar em redes sociais é o mesmo que tecer referência a

plataformas de interação em rede, tais como Facebook, Twitter, entre outros.

Entretanto como explica Santaella (2010), “o conceito de redes não se limita às redes sociais” digitais. “estas são um dos tipos possíveis de rede”. Na mesma obra,

citando Licoppe e Smoreda (2005 apud Santaella, 2010), aborda como surgem os primeiros estudos de rede e sociedade:

desde os trabalhos empíricos seminais em redes sociais que surgiram nos anos 1970, a análise estrutural das redes sociais entrou na agenda das investigações sociológicas sobre ações individuais e fenômenos coletivos.

Entendendo que o conceito de rede social é muito amplo, Licoppe e

Smoreda (2005 apud Santaella, 2010) buscam definir alguns polos em que o conceito pode ser apreendido: como um conjunto de laços sociais; como trocas realizadas por meio de gestos e atos de linguagem, e que podem assumir distintos formatos e gêneros; ou por meios técnicos que fazem a mediação das interações.

Pode-se então afirmar que as redes sociais compreendem vínculos,

linguagens e meios de interação. Com base nesta observação, assimilando que o virtual não se opõe à realidade4, e que o ciberespaço apenas virtualiza as relações

sociais, chega-se a conclusão que as redes sociais digitais seriam então uma mimese das redes sociais – dos laços e das interações em sociedade – estando, entretanto,

atravessadas,

permeadas

pelas

características

intrínsecas

ciberespaço: a desterritorialização, o alcance, difusão global (viralidade).

do

Partindo deste entendimento da constituição das redes sociais digitais,

sustentadas pelos vínculos (que se tecem e se agregam por meio da identidade), pela linguagem (através da livre expressão, da capacidade comunicativa) e pelos

meios de alcance global (que habilitam a propagação de discursos e interatividade), serão analisadas as abordagens do documentário Levante! ao tratar de

manifestações populares ocorridas em diferentes capitais do mundo, e que em

Levy (1996) diz que uma tecnologia intelectual, exterioriza, objetiviza, virtualiza uma função cognitiva, uma atividade mental, citando como exemplo que a escrita virtualiza a memória. Nos dias atuais, lógica semelhante pode ser observada com a appficação das tarefas diárias, e com a replicação/exteriorização das vivências em ambiente virtual. 4

comum compartilham da forma de organização e mobilização: por meio das redes sociais digitais.

LEVANTE! Com direção de Susanna Lira e Barney Owen, Levante! foi realizado em

parceria pelas produtoras Modo Operante e Embaúba, de modo independente, com uma ajuda de co-produção de R$300.000,00 (trezentos mil reais) pela TV Futura, em

virtude de ter sido o projeto de documentário vencedor do 5º Pitching DOC5. Por esta mesma razão, teve sua estreia veiculada pelo Canal Futura, indo ao ar em 25 de junho de 2015. Após a exibição de estreia, foi também veiculado no Festival de

Cinema do Rio (2015) e está disponível na íntegra em seu site oficial e no Youtube,

no canal da TV Futura. O vídeo, curiosamente, não parece ter sido muito difundido nas redes sociais (talvez em razão do tempo de duração de 52’), obtendo até o presente momento, 15.881 visualizações.

Assim, pensado para revelar o potencial das redes de interação e das

tecnologias móveis quando utilizadas para iniciativas populares, e tomando como

referência manifestações distintas em quatro pontos do mundo, o documentário Levante! se constrói aos moldes do fenômeno que se propõe narrar: de modo

colaborativo. Tendo sido elaborado por meio de contribuições pessoais de cidadãos e coletivos / organismos sociais, com imagens obtidas por estes das intervenções

populares em que estiveram engajados, o vídeo em seu decorrer, intercala estes

registros pessoais com os depoimentos dos próprios contribuidores, participantes ativos das mobilizações, ou que de alguma forma denunciam / propagam os conflitos

existentes nas regiões em que vivem. São esses novos agentes sociais engajados em causas coletivas, cujas vivências são atravessadas pelas tecnologias, que – como citado no vídeo por um dos membros do Mídia Ninja – se “transformam em mídia”.

Pitching DOC é uma iniciativa do Canal Futura, que seleciona anualmente um projeto de documentário para auxiliar na co-produção. Teve início em 2010. 5

CIDADÃO-MÍDIA Tendo como foco quatro movimentos específicos em partes distintas do

mundo, o documentário tem início com as manifestações ocorridas no Brasil,

destacando as iniciativas coletivas que emergiram no decorrer das mobilizações,

como o Mídia Ninja6, grupo que aposta em narrativas fundamentadas na experiência

dos cidadãos, caracterizando-se como mídia independente e colaborativa. Pelo veículo foram registradas (e são exibidas na produção) as Jornadas de Junho e a

Greve dos Garis do Rio de Janeiro, ambos os movimentos que tiveram sua validação ancorada pela mídia independente, ao serem apresentados por outras

perspectivas, diferente da veiculada usualmente pela mídia hegemônica, que omite

ou desqualifica estas mobilizações. Para o colaborador do Mídia Ninja, o grupo cria uma “nova estética de produção de conteúdo”, onde todos se sentem capacitados a contribuir, bastando um celular com câmera e conexão à rede; aqui, todo cidadão com um celular / câmera na mão é uma mídia em potencial. Esta nova estética

redeu ao Mídia Ninja cerca de 200 colaboradores ativos, e essa nova forma de

produção de conteúdos foi capaz inclusive, de reverter o discurso da grande mídia sobre os protestos de junho de 2013, cuja abordagem transitou dos “atos de

violência” para “atos de democracia”7 e também para denunciar abusos de autoridade cometidos pela força policial.

Do Brasil, a produção segue para o México, com a cobertura do movimento

Yo Soy 132, mobilizado por estudantes através das redes sociais para protestar contra o Governo de Henrique Peña Neto, a princípio candidato e depois Presidente eleito. Algumas características interessantes mostradas pelo documentário através

de depoimentos, é primeiramente, o fato desta mobilização ter sido a primeira experiência política de rua dos jovens estudantes envolvidos; segundo, a

demonstração do modo de operação da mídia tradicional (que assim como o próprio Peña Neto, então candidato a presidente) desqualifica e deslegitima o movimento,

afirmando que se trata de uma investida de adversários políticos, estando atrelado a propósitos eleitorais; e por fim, o potencial uso das redes para rebater essas

alegações: através de vídeos postados no Youtube, estudantes se identificam e NINJA abrevia “Narratinvas Independentes, Jornalismo e Ação”. Essa mudança discursiva foi notória nas críticas do comentarista Arnaldo Jabor, no telejornal noturno da Rede Globo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p72M2KuZEjg 6 7

afirmam que agiram de modo intendente, não sendo motivados por partidos ou

interesses de terceiros, senão por sua própria pauta: se opor à violência por parte do Estado em um caso ocorrido em San Salvador Alenco, onde duas pessoas

morreram e mulheres foram violentadas por policiais. A partir dos 131 vídeos

postados (que rapidamente viralizaram na rede), os apoiadores começam a usar a

hashtag #YoSoy132. E assim, o movimento se estabelece. As manifestações do #YoSoy132 foram fortalecidas através de outras ocorrências graves, como

assassinatos e atentado à dignidade humana: como o assassinato de três estudantes e desaparecimento de mais 43 em 26 de setembro de 2014 em

Ayotzinapa, região rural do México. Este caso contribuiu para o fortalecimento e união dos movimentos sociais no país, inclusive o #YoSoy132.

Do México, o documentário passa à Faixa de Gaza, região marcada por

conflitos e que vive sitiada pela força militar de Israel, sob constantes bombardeios –

situação crítica que motivou Noor Harazeen, mulher e palestina, a expor ao mundo o

que acontecia em sua cidade. Não dispondo de recursos, iniciou postando vídeos no Youtube, sendo o primeiro canal palestino a apresentar relatos da situação em Gaza

(em inglês). Tendo a iniciativa sucedido, começou a levantar fundos para seu canal,

o que permitiu a contratação de uma produtora para auxiliar na captação dos vídeos,

que passariam também a ser transmitidos com melhor qualidade. O primeiro registro feito junto à produtora coincide com o início da última guerra da região, quando em 9

de julho 2014 aviões israelenses bombardeiam um carro no centro da cidade, matando 3 pessoas. O vídeo captado no momento do bombardeio logo viralizou, atingindo 100 mil acessos nos primeiros dias.

Os conteúdos produzidos por Noor e exibidos no documentário, além de

denunciar a situação de guerra (por si só, abusiva) explicita os crimes de guerras

que são cometidos (e pouco veiculados), que fazem dos civis alvos através dos bombardeios

de

hospitais,

escolas

e

dizimação

de

vizinhanças

inteiras.

Compartilhando de sua indignação, a jovem Farah Baker, de 16 anos, também se

utiliza das redes sociais, em especial o Twitter, para retratar seu cotidiano, no intuito

de fazer outras pessoas entenderem como é viver em Gaza. Um dos posts mais tocantes e que bem representam o sentimento de viver em uma região de conflito,

falam de como aos 16 anos, Farah entre momentos de tensão e desesperança, já sobreviveu a 3 guerras.

De Gaza, Levante! segue para a última locação: Hong Kong. Na China,

jovens estudantes com apoio da população, vão às ruas em luta pela democracia,

pelo regime de eleições diretas para escolha do Chefe do Executivo. Hong Kong, uma cidade-estado, diferente das demais regiões da China, goza de certa autonomia em sua estrutura política e econômica, fruto de acordos firmados entre a China e Grã-Bretanha no momento em que a cidade (antiga colônia britânica) foi reintegrada

à República da China em 1997. A autonomia de Hong Kong em tese deveria permitir a eleição de um representante Executivo com amplas candidaturas e por voto direto;

entretanto a República interviu impondo apenas candidatos “pré-selecionados” pelo Congresso Nacional do Povo, rompendo com o caráter independente da cidade e

levando às ruas milhares de estudantes de setembro à dezembro de 2014. As manifestações ficaram conhecidas como a Revolução dos guarda-chuvas8. Assim como no Brasil, em Hong Kong mídias alternativas foram os principais meios de cobertura dos protestos, a exemplo do Apple Daily9, que colaborou com imagens para o documentário.

O LUGAR DOS CIDADÃOS-MÍDIA Após uma breve exposição dos fenômenos e abordagens teóricas que

envolvem a obra, e transitando por algumas das passagens trazidas pelo documentário, parte-se agora para a análise do conteúdo com base em sua proposta e na relação que constrói com seu público espectador; para tanto, serão

utilizados os conceitos de lugar de fala e modo de endereçamento, abordados por Gomes (2006) e Amaral (2004).

Para uma melhor compreensão do conceito de lugar de fala10, cabe uma

breve exposição sobre o conceito de discurso, e de sua relação com poder. Segundo Tilio (2008), o discurso está intimamente relacionado com a atuação social, O nome do movimento surge da resistência às investidas de força por parte dos policiais contra os manifestantes, que entre balas de borracha, jatos d’água e bombas de gás, tinham apenas em mãos para se defender, os guarda-chuvas. 9 O Apple Daily se intitula a mídia mais anti-governista da China. Nas manifestações de Hong Kong, utilizaram drones para captação de imagens panorâmicas, que mostravam a dimensão das ocupações. 8

Amaral (2004), para favorecer o entendimento do conceito desmembra as palavras, separando e definindo particularmente lugar e fala, com base nos estudos de Bourdieu, sugerindo a definição da ocupação de um espaço por meio de apropriações expressivas. 10

visto que é através do discurso as interações acontecem – e através destas

interações se constroem significados, que por sua vez, estão na base das estruturas, conforme cita Fairclough (1992 apud Tilio, 2008):

O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que a moldam e a restringem direta ou indiretamente: suas normas e convenções, assim como as relações, identidades e instituições que se encontram por trás destas.

Estando o discurso relacionado às estruturas sociais, pode-se entender

então o intuito de quem interdita os debates e de quem os promove, sabendo que

intermediando os discursos atuam diretamente sobre a sociedade, por meio da

manutenção ou equalização do poder; sobre esta prática para manutenção do poder infere Van Dijk (2009) que “Si el discurso controla las mentes y las mentes controlan

la acción, para quienes ocupan el poder controlar el discurso es absolutamente

essencial”. Mas, e quando a inciativa é de outra ordem? E quando se abre espaço para a diversidade discursiva e os temas que permeiam o debate público?

Representações sociais em voz, nome, corpo e ação são encontradas no

documentário Levante!, onde pode-se identificar, o lugar de fala é ocupado pelos agentes sociais: cidadãos, em especial jovens e estudantes, que ocupam as ruas e as redes, por direitos, conscientização e para denunciar os abusos cometidos em

nome do poder, seja na esfera governamental (de gestões democráticas ou não), midiática, ou de outras esferas de conflitos sociais.

Segundo Gomes (2006), uma das formas de se acionar o lugar de fala, é

pelo enquadramento11; no documentário, observa-se em cada depoimento a predominância da figura do entrevistado, geralmente enquadrado em plano fechado, quando não, em plano médio com destaque para sua figura no recorte da cena. Isso

confere um caráter de propriedade sobre o que está sendo proferido pelo agente da fala; fica sugerido que a produção pretende naquele momento captar a atenção do

espectador para ouvi-lo, e que sua fala se constitui um discurso legítimo, conforme explica Pinto (1989 apud Amaral, 2004):

“Quem fala, além de enunciar uma sentença, está envolvido

em situações nas quais seu discurso possui um valor. [...] A A autora traz a referência aos estudos de teoria do cinema das subject positions, ou o lugar do sujeito na leitura audiovisual. 11

fala, para ser levada em consideração e ser escutada, deve ter legitimidade”.

Outro ponto a ser considerado é a ausência de um interlocutor, da figura

mediadora, o que reafirma a proposta do vídeo ser um ceder o espaço para o debate público, para a expressão de discursos que em geral, não têm lugar na esfera

midiática tradicional. As transições no vídeo são marcadas apenas pelas imagens e brevemente por algum texto, sucinto e descritivo.

Sobre as formas como o documentário realiza a entrega do conteúdo ao

público, pode-se afirmar que busca criar uma identificação com o espectador. Nutre uma aura de representação à medida que indexa no vídeo valores e

posicionamentos daqueles que foram as vozes das manifestações populares ocorridas nos últimos anos, e que como já mencionado, não possuem voz na mídia

tradicional. No entanto, não permanece só na esfera da identificação. Ao mesmo

tempo que fala aos movimentos e agentes sociais, que de alguma forma se reconhecem entre os protagonistas sociais do documentário, mostra-se também

habilitado para dialogar com os que se sentem alheios àquelas experiências, como se lhes educassem o olhar. Para estes, perpassa uma aura é de desmistificação, de

desconstrução do imaginário marginal e estereotipado construído em torno das mobilizações sociais, rompendo com a pecha de ilegitimidade cunhada às

representações, e os reconfigurando como reivindicações democráticas. Por esta

característica de duplo endereçamento, pode-se afirmar que a obra cumpre com o seu propósito.

Outras referências ficam por conta do atravessamento da tecnologia nas

iniciativas populares. Levante! passa a ideia de que mobilizações do porte que apresenta, com as características que apresenta (baseadas na auto-comunicação, e auto-organização),

estão

intimamente

relacionadas

à

tecnologia

móvel

e

comunicação em rede, o que não deixa de ser verdade. Há um leve tom de elogio às

redes sociais digitais, ao que novamente se afirma, é justo e cabível, mas poderiam ter oferecido um contraponto, trazendo breves observações ao final da obra, sobre as novas configurações (hegemônicas) das empresas de mídias digitais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O que há em comum entre as mobilizações do Brasil, México, Gaza e Hong

Kong? Pode-se afirmar sem erro, que é o potencial uso das tecnologias móveis, da

comunicação em rede e sua cultura colaborativa, viral e universalizante. Contudo, mais importante, existem as pessoas, a conscientização política e humanista, a mobilização, o engajamento motivado pelo sentimento de injustiça que incita a luta

por direitos; pessoas que fazem uso dessas ferramentas e ocupam um lugar de resistência às estruturas hegemônicas – desta vez, com um amplo potencial de disseminação de seus discursos.

Levante! à primeira vista parece ter como objetivo realizar uma abordagem

mais voltada às tecnologias sociais e em rede, mas intencionalmente ou não, acaba

por destacar a expressividade popular que se apropria destas novas ferramentas. Ao invés de se debruçar sobre o poder das mídias, acaba por reforçar o poder do povo

ao usá-las, evitando cair nos tentáculos do determinismo tecnológico e promovendo

um discurso de liberdade e empoderamento das esferas sociais, que são potencializados por essa novas mídias – mas, novamente, não determinados por elas.

Traçando um paralelo entre a abordagem teórica inicial e o que é

apresentado pelo documentário, podem-se encontrar muitos pontos de conexão. A exemplo, o poder de resistência e contestação popular que fez do ciberespaço um

ambiente de tensionamento, uma esfera de contra-poder, de ruptura com a

destituição dos antigos sistemas de comunicação: na rede, as vozes são múltiplas, autônomas, falam de muitos para muitos; com as tecnologias móveis, os agentes

sociais são também detentores dos meios de produção e emissão e conteúdos, são uma mídia em potencial, são o exercício da contra-comunicação.

Essa esfera, entretanto, não está livre das intervenções do Estado e poder

econômico. Observando o potencial das redes e as mudanças de hábitos dos consumidores, diversas empresas e a mídia tradicional compreendem o ciberespaço como um ambiente propício para expandir suas estruturas – ainda que desta vez,

não o façam com exclusividade, o que torna a relação mais horizontalizada. O

Estado por sua vez, como a princípio, mantém sua concepção do ciberespaço como ferramenta estratégica de poder e controle, e isto fica explícito com iniciativas como

a lei CISA (Cibersecurity Information Sharing Act), aprovada no Congresso

Americano e amplamente contestada pelas principais empresas de tecnologia, por legalizar a quebra de privacidade, concedendo ao Governo livre acesso a quaisquer informações privadas dos usuários.

Fator que também merece menção é rumo seguido pelas empresas de

comunicação digital, que resgatam os mesmos moldes das mídias tradicionais;

Facebook, Google e Twitter (para citar as mais influentes), têm seus negócios sustentados pela veiculação de propagandas. Outra característica dos old ways é a

concentração de capital através da aquisição de empresas e incorporação de pequenos start-ups; Facebook por exemplo, adquiriu o Instagram e o Whatsapp;

Google adquiriu o Youtube, Blogger, Waze; Twitter comprou o Periscope. E assim vão surgindo os novos conglomerados de mídia.

É certo que as plataformas de interação dessas empresas são só algumas

das possibilidades dentre tantas no ciberespaço; assim como é verdade que ainda está por se conhecer o que virá adiante – especialmente quando se fala em um mercado de constante transição, onde a inovação é palavra de ordem.

Até lá, certamente, muitas mudanças. Até aqui, nos ajudou a rede.

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