INTERPRETAÇÃO CONFORME E INTERPRETAÇÃO DE ACORDO COM A CONSTITUIÇÃO: PRECEDENTES DO STJ E CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

June 4, 2017 | Autor: L. Krassuski Fortes | Categoria: Constitutional Law, Judicial review, Controle De Constitucionalidade, Civil Procedural Law
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INTERPRETAÇÃO CONFORME E INTERPRETAÇÃO DE ACORDO COM A CONSTITUIÇÃO: PRECEDENTES DO STJ E CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

Luiz Henrique Krassuski Fortes1•

Sumário 1. Introdução; 2. Jurisdição nas Teorias Clássicas e sua Insuficiência; 3. Estado Constitucional, Controle de Constitucionalidade e Funções da Jurisdição; 4. Interpretação Conforme, Declaração Parcial de Nulidade sem Redução do Texto e Interpretação de Acordo; 5. Conclusão; 6. Bibliografia. Palavras-chave: Interpretação Conforme; Interpretação de Acordo; STJ; Precedentes; Controle Difuso.

Introdução O sistema de controle de constitucionalidade no Brasil possui características que deixam um enorme campo para reflexões. Pode-se discutir desde a estruturação técnica do processo constitucional e do diálogo interinstitucional envolvendo os vários atores na democracia constitucional, até o diálogo intra-institucional travado no judiciário. Essa última possibilidade é rica em razão de se adotar um sistema de controle difuso que convive com uma Corte Constitucional que é órgão de cúpula do judiciário e perante a qual são manejadas ações cujo objeto é a questão constitucional. Investiga-se aqui a possibilidade de se harmonizar a técnica da interpretação de acordo com a Constituição - imposição a todos os órgãos do judiciário, inclusive às cortes supremas, vistas como cor1 •

Mestrando (PPGD-UFPR). [email protected]

DOI: 10.17931/dcfp_v2_art12

Luiz Henrique Fortes • 157 tes de precedentes2 - com o controle difuso de constitucionalidade, poder-dever do qual também estão investidos os juízes. Pode um juiz deixar de aplicar um precedente do STJ (órgão que deve formular precedentes sobre o direito federal) ignorando-o ao realizar controle de constitucionalidade, no caso concreto, da legislação federal que seria em tese aplicável? Pode o juiz se afastar da interpretação de acordo feita pelo STJ sem superar o precedente?

Jurisdição nas teorias clássicas e sua insuficiência Dada a sua forte presença na reflexão doutrinária brasileira sobre o processo civil, analisaremos as teorias construídas por Chiovenda, Carnelutti e Calamandrei. Para Chiovenda a jurisdição é voltada para a atuação da vontade concreta da lei. A chave para a sua compreensão é a substituição da atividade intelectual de todos os cidadãos pela do juiz, que afirma a existência ou inexistência da vontade da lei em relação às partes, bem como a torna efetiva3. Contata-se, assim, que legalidade e jurisdição estão intimamente conectadas, vez que a sujeição do cidadão à jurisdição nada mais é do que uma faceta da sujeição à lei4. Assim, a preocupação chiovendiana é a atividade do juiz enquanto desdobramento direto da soberania5. Isso evidencia a importância da sua teoria para consolidação do processo como instituto de direito público. Ao mesmo tempo, a jurisdição como manifestação da soberania mostra-se em seu nascedouro ligada à ideia de lei como produto da vontade geral6 (uma única e segura vontade soberana estatal)7. Assim é possível compreender porque para o autor a função jurisdicional é declaratória, inserindo-se entre os detentores de uma Marinoni, O STJ; Mitidiero, Cortes. Chiovenda, Instituições, 3. 4 Chiovenda, Instituições, 35. 5 Chiovenda, Instituições, 4. 6 Chiovenda, Instituições, 7. 7 A lei como garantia da segurança e da igualdade é para ele clara: “I giudici rigorosamente fedeli alla legge danno ai cittadini maggior garanzia ed affidamento che non i cercatori di novità spesso tutte soggettive ed arbitrarie”. Chiovenda, Istituzioni, 36. 2 3

158 • Interpretação conforme e interpretação de acordo com a Constituição teoria dualista da sentença perante o ordenamento jurídico (ela está “fora” deste, não tendo a função de completá-lo8). Carnelutti, por sua vez, ao invés de assentar sua reflexão no quadro das funções estatais partiu da ideia de conflituosidade, atribuindo-lhe a função de justa composição da lide9. Vê-se, aqui, um olhar dirigido principalmente às partes, em que a sentença, resultado da jurisdição, torna concreta a norma abstrata e genérica, fazendo “particular” a lei para os litigantes ao compor a lide10. É uma concepção adepta da teoria unitária do ordenamento jurídico11. Se esse aspecto constitui distanciamento de Chiovenda, não significa que inexista ponto de contato entre ambos. Isso porque “(...) ao afirmar que a sentença produz a norma individual, quer dizer apenas que o juiz, depois de raciocinar, concretiza norma já existente, a qual, dessa forma, também é declarada”12. Ou seja, mesmo Carnelutti esboçou uma teoria ligada à centralidade da lei, e a um modelo específico de compreensão da soberania. Calamandrei aproxima-se bastante de Chiovenda, ressaltando o caráter público da atividade jurisdicional. Para ele, porém, só existiria legítima e autêntica jurisdição na sentença declaratória, que individualiza a lei abstrata pelas mãos do juiz13. É adepto da teoria unitária do ordenamento jurídico, o que, porém, também não significa que para ele a sentença tenha um verdadeiro caráter criativo14. Dessa forma, é evidente o acoplamento das três concepções a um dado modelo de estado (estado de direito liberal) e às suas justificações para o exercício do poder. Assim, não se pode esquecer que as teorias clássicas são fruto de um dado ambiente político e cultural (entre o XIX e XX) que tinha como centro a afirmação do poder estatal. Foi a partir do modelo constitucional radical15 (de matiz Marinoni, Teoria, 38. Carnelutti, Sistema, 40. 10 Carnelutti, Diritto, 53-55 e 65-67. 11 Marinoni, Teoria, 38. 12 Marinoni, Teoria, 38. 13 Marinoni, Teoria, 41. 14 Marinoni, Teoria, 41. 15 Fioravanti, Costituzionalismo, 70-85. 8 9

Luiz Henrique Fortes • 159 francês com assento na filosofia rousseauniana), que teve início a consolidação do léxico moderno da soberania, do individualismo e da vontade geral. Nessa afirmação do moderno se desenvolve a ideia de absolutismo parlamentar e de império da lei em contraposição ao “império dos homens” e da pluralidade de ordens que representava a ideia de equilíbrio, típica da constituição mista16. A lei, para não violar a liberdade e a igualdade formal dos cidadãos, passa a dever guardar as características da generalidade e da abstração. Afirma-se o positivismo e difunde-se ideologicamente a identificação direito-lei. A atividade do jurista se limita à sua descrição e, no momento aplicativo, à busca da vontade do legislador17. A lei como aceleração do moderno (Fioravanti), é devida no plano ideológico à construção hobbesiana. O direito passa a ser fruto da conexão entre a lei do soberano, agora transformado em assembleia, e o princípio da igualdade. Quem ousasse contestá-la é maculado como partidário da antiga ordem18. A lei servirá como garantia dos direitos individuais e do princípio da igualdade, sendo responsável pela criação da nova sociedade - dos livres e iguais - muito mais do que a própria constituição no primeiro momento de afirmação do moderno19. Retomando a abordagem conceitualista de Chiovenda, pode-se ver como a própria reconstrução da jurisdição foi um modo de subverter a relação entre o poder do juiz e a vontade das partes que subjazia ao código então vigente na Itália. Ou seja, a sua teoria representava, ao fim e ao cabo, a concretização de um dado e novo modelo de organização social que estava em fase de afirmação e consolidação. Tarello esclarece que a política do direito subjacente à Chiovenda não era genérica, mas sim específica de uma reforma do processo civil em sentido autoritário20. Uma questão que passou a preocupar a teorização liberal do estado de direito é a extensão do controle do poder como parte Costa, Soberania, 105-130. Marinoni, Teoria, 29-30 e 99. 18 Fioravanti, Costituzionalismo, 93. 19 Fioravanti, Costituzionalismo, 96. 20 Tarello, Quattro buoni giuristi, 245. 16 17

160 • Interpretação conforme e interpretação de acordo com a Constituição mais íntima do léxico da soberania21. Ou seja, como seria possível introduzir alguma forma efetiva de supremacia da norma constitucional. Os perigos da soberania popular já encontravam reflexão no constitucionalismo americano e em especial nas teorizações de John Adams. Explica Costa que com Adams, sem renunciar ao fundamento último da soberania popular, dilui-se a potencialidade perigosa recorrendo ao federalismo e ao equilíbrio entre poderes22. Por essa razão, atribuem-se aos princípios constitucionais valor de normas inderrogáveis, tuteladas pelo controle que o juiz exerce sobre a atividade do legislativo23. Uma nova conexão histórica entre constituição, direito e poder, porém, ocorre curso do século XX. Como exemplo, pode-se pensar na passagem da mera garantia pela lei para a inviolabilidade no plano dos direitos, na ampliação dos direitos em matéria social (trabalho, educação, assistência social) e a presença do controle de constitucionalidade das leis. Colocada no ápice do ordenamento, a Constituição impõe diálogo entre sociedade civil e poderes estatais para a sua concretização, que substitui a fundamentação de legitimidade a priori do fruto do trabalho do parlamento), de modo que se deve repensar, a partir da própria normatividade constitucional, a ideia de igualdade. Assim, apesar do inegável valor das teorias clássicas sobre a jurisdição, constata-se sua insuficiência para dar conta do fenômeno no estado constitucional, em especial da jurisdição constitucional, que claramente não se satisfaz com uma aplicação irrestrita e acrítica das noções tradicionais do processo civil.

Estado constitucional, controle de constitucionalidade e funções da jurisdição O estado constitucional e a democracia dele emergente, não são puramente baseados no princípio majoritário-parlamentar, abrindo espaço para novos locais para proteção dos direitos fundamentais, notadamente o controle de constitucionalidade. A supremacia da constituição faz a cisão dos “dois corpos do Costa, Soberania, 153. Costa, Soberania, 112. 23 Costa, Soberania, 112. 21 22

Luiz Henrique Fortes • 161 povo”, entre aquele que escolhe os seus representantes no parlamento e aquele que estabelece em sua constituição as regras fundamentais de sua existência24. A reafirmação da ideia de supremacia está ligada significado primeiro de democracia constitucional, que é a sua compreensão como garantia e limite. Ela está fundada nos direitos fundamentais e em seu caráter inviolável, ou seja, eles não estão ao sabor de algo fluido como a vontade política25. Reconhecem-se nos novos textos constitucionais o princípio da indivisibilidade dos direitos fundamentais, sejam eles civis políticos ou sociais, constatada a necessidade de liberdade em uma esfera pessoal dotada de uma proteção mínima que permita o exercício da cidadania ativa, com relevância coletiva26. É possível falar em uma verdadeira virtude cívica necessária à democracia. Não existe supremacia da Constituição sem uma sociedade política bem organizada e ativa. Bem por isso Fioravanti diz que “(...) é verdade que podemos contar com a Constituição como protetora dos nossos direitos, como limite à exorbitância de todos os poderes, sejam públicos ou privados, mas não podemos jamais nos esquecer de que também a Constituição, por seu turno, conta conosco”.27 Como visto, portanto, os direitos fundamentais (em especial o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como centro axiológico do sistema) são a principal marca distintiva do estado e da democracia constitucional. O nexo entre justiça constitucional e democracia tornou-se indissolúvel, representando verdadeira reversão da compreensão anterior que as viam como grandezas incompatíveis, vez que a vontade expressa do povo ou de seus representantes não poderia sofrer censura da parte de ninguém, muito menos de juízes despidos de legitimação democrática.28 Hoje, porém, não se adota pelo mundo essa visão simplificada de democracia constitucional. Ela se preocupa com os direitos das minorias, políticos e sociais, bem como com a tutela dos valoFioravanti, Público, 10. Fioravanti, Público, 11. 26 Fioravanti, Público, 11. 27 Fioravanti, Público, 24. 28 Zagrebelsky e Marcenò, Giustizia, 63. 24 25

162 • Interpretação conforme e interpretação de acordo com a Constituição res políticos fundamentais que não podem ser deixados à mercê de uma vontade totalitária.29 É para a efetiva tutela dos ideais do estado constitucional que foram potencializados os mecanismos de controle de constitucionalidade das leis expandidos ao longo do século XX30, de modo a se dar a adequada tutela aos direitos fundamentais. Partindo desse ponto de vista é que o papel da jurisdição e do processo devem ser colocados em pauta e rediscutidos. Aponta Mitidiero que a passagem do estado de liberal para o constitucional implicou três alterações no que diz respeito ao direito, de modo que o próprio processo deixasse de ser refletido apenas a partir do perfil subjetivo, de solução dos casos31. A primeira ocorreu na teoria das normas, com o reconhecimento da força normativa dos princípios, superando-se a identidade positivista entre norma e regra jurídicas. A segunda, na técnica legislativa, superando-se o dogma da legislação geral, abstrata e com fattispecie bem delimitadas, em favor de uma técnica casuística e aberta, empregando-se para tanto conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais. E, por fim, no próprio significado da interpretação jurídica, em razão do caráter lógico-argumentativo e não cognitivista do direito, pressupondo-se que a atividade jurisdicional diz respeito à reconstrução do sentido normativo dos enunciados fático jurídicos32. Chiassoni problematiza a questão explicando que a própria fidelidade à lei no sentido cognitivista, ou seja, de fidelidade a um conjunto de preceitos com sentido unívoco e anteriores à interpretação (e aplicação judicial), não é nada além de um ideal irrealizável. O máximo que se pode realisticamente esperar a partir de uma perspectiva não cognitivista é a fidelidade aos valores que o intérprete assume como sendo fundamentais e incorporados no direito positivo, à luz dos quais se pode perseguir a “fidelidade à lei” não mais em uma perspectiva mecânica, mas ativa. Ou seja, exige-se a constante colaboração dos intérpretes em um processo de nomopoiese que não se exaure na produção fundamental de disposições pelo

Zagrebelsky e Marcenò, Giustizia, 63. Cappelletti, Repudiating, 38-40. 31 Mitidiero, Cortes, 13. 32 Mitidiero, Cortes, 13-15. 29 30

Luiz Henrique Fortes • 163 legislador.33 O não cognitivismo se justifica: pela pluralidade de métodos hermenêuticos concorrentes; pela linguagem do direito, decorrente de vagueza atual ou potencial dos conceitos, além da ambiguidade sintática, semântica e pragmática; pelo perene fluir, cultural, econômico, científico, tecnológico, decorrente da natureza humana, que favorece interpretações evolutivas não existentes no momento de entrada em vigor da lei e o pluralismo de valores ético-normativos34. Nesse sentido, conclui que a solução não cognitivista é a melhor fundada de um ponto de vista teórico, ao trazer à luz o caráter inevitavelmente decisório da interpretação dos textos jurídicos por parte não apenas dos juízes, mas dos demais responsáveis pela aplicação do direito.35 Lembre-se que no campo teórico passou a haver maior embate entre as posições formalistas e antiformalistas (muitas vezes bastante simplificadas a partir de uma contraposição entre positivismo e pós-positivismo). O atual momento pode ser caracterizado, em linhas bastante gerais, por diversos autores que buscaram discutir de forma aprofundada a existência de uma ligação entre direito e moral, e, em especial, o problema da interpretação e aplicação de princípios jurídicos, cuja normatividade é reconhecida, porém, sobre os quais recaem desacordos razoáveis. Esses embates estão ligados ao ambicioso modelo constitucional atual, denominado por muitos de neoconstitucionalismo36, tendo um foco bastante centrado no judiciário. Sarmento e Souza Neto sintetizam que são depositadas nesse poder “(...) enormes expectativas no sentido de concretização dos Chiassoni, Tecnica, 145-146. Chiassoni, Tecnica, 144. 35 Chiassoni, Tecnica, 147. 36 Ressalte-se que não se pode falar em um único “neoconstitucionalismo”, uma vez que este não corresponde a uma única “concepção teórica clara e coesa, mas [sim a] diversas visões sobre o fenômeno jurídico na contemporaneidade, que guardam entre si alguns denominadores comuns relevantes”, entre os quais o reconhecimento da força normativa dos princípios, a rejeição ao formalismo puro, a irradiação das normas constitucionais pelo ordenamento, uma reaproximação, em maior ou menor grau, entre Direito e Moral e a judicialização da política, como esclarece Sarmento, Constitucionalismo, 233-237. 33 34

164 • Interpretação conforme e interpretação de acordo com a Constituição ideais emancipatórios presentes nas constituições contemporâneas”37, valorizando a irradiação das normas constitucionais por todo o ordenamento jurídico, bem como uma atuação forte no sentido de construir os pressupostos necessários para a proteção e implementação dos direitos fundamentais e da democracia.38 Cabe indagar, portanto, quais as funções devem ser efetivamente desempenhadas pela jurisdição, e seu veículo atuador, o processo civil. Mitidiero argumenta que a dignidade humana e a segurança jurídica são os dois vetores que fundamentam a organização do processo voltado à tutela dos direitos mediante decisão justa e, ao mesmo tempo, à universalização das razões da decisão, implicando a formação de precedentes. Nesse sentido, diz: “Do ponto de vista do Estado Constitucional, o fim do Processo Civil só pode ser reconduzido à tutela dos direitos mediante a prolação de uma decisão justa e a formação e respeito aos precedentes. Daí que a tutela dos direitos que deve ser promovida pelo processo tem uma dupla direção - dirige-se às partes do processo e à sociedade em geral. Os meios de que se vale o processo para obtenção desse escopo são igualmente dois: a decisão justa - acompanhada, em sendo o caso, de todas as técnicas executivas adequadas para sua efetividade - e o precedente judicial”.39 Ou seja, o processo existe para dar tutela aos direitos, promovendo a dignidade da pessoa humana, o que não se dá, porém, em uma dimensão puramente particular ou privatista, “(...) como se a ordem jurídica não fosse impactada pelas razões elaboradas pelos juízes em suas decisões”,40 ou seja, em uma dimensão que feche os olhos para a imposição constitucional da universalização das razões através do precedente, garantindo, a um só tempo, a realização da igualdade, da imparcialidade, da coerência do direito e da segurança jurídica. Esse duplo discurso se reflete na distribuição das funções das diversas cortes existentes no país, reconhecendo as cortes de vértice brasileiras (notadamente o STJ) como cortes supremas, “(...) vinculadas a uma compreensão não cognitivista e lógico-argumentativa do Direito, [em que] a jurisdição é entendida como reconstrução e outorga Sarmento e Souza Neto, Direito Constitucional, 205. Sarmento e Souza Neto, Direito Constitucional, 206. 39 Mitidiero, Cortes, 17. 40 Mitidiero, Cortes, 25. 37 38

Luiz Henrique Fortes • 165 de sentido a textos e a elementos não textuais da ordem jurídica e o [seu] escopo consiste em dar unidade ao Direito mediante a formação de precedentes, entendidas as razões adotadas nas decisões como dotadas de eficácia vinculante”41. A compreensão dessa dupla função é a mais adequada aos ideais do Estado Constitucional e à democracia constitucional.

Interpretação conforme, declaração parcial de nulidade sem redução do texto e interpretação de acordo A questão intra-institucional proposta na introdução do artigo constitui tema não abordado pela literatura sobre precedentes. A questão é potencializada pela ausência de precisão conceitual da doutrina, que trata indistintamente da interpretação de acordo com a Constituição e da interpretação conforme a Constituição dotada de efeito vinculante (art. 28, Lei 9.868/99), o que parece se justificar apenas a partir do fato de o Brasil adotar um modelo de controle difuso de constitucionalidade, incidental e principal. Durante muito tempo houve grande confusão entre duas técnicas de decisão da jurisdição constitucional: a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de nulidade sem redução do texto. E permanecem ainda imprecisões conceituais no que diz respeito à própria interpretação conforme, vista ora como interpretação, ora como técnica de decisão na jurisdição constitucional. Essa confusão categorial merece maior atenção a fim de que se possa definir de modo mais claro o diálogo entre a jurisdição constitucional (difusa) e a jurisdição ordinária, a qual deve seguir os precedentes do STJ sobre o direito infraconstitucional federal. Um exemplo de como as coisas podem se misturar e gerar confusões a partir da utilização do mesmo nome (interpretação conforme) para dois fenômenos distintos aparece na obra de Barroso. Para o autor a interpretação conforme se destina a um só tempo à preservação da validade constitucional de determinados dispositivos legais cuja interpretação aparenta inconstitucionalidade, bem como à atribuição de sentido à legislação infraconstitucional, a cargo de todos os juízes, conectada à máxima efetividade da Constituição. Para ele, portanto, a interpretação conforme é tanto técnica de interpre41

Mitidiero, Cortes, 32 e 79-127.

166 • Interpretação conforme e interpretação de acordo com a Constituição tação jurídica, quanto instrumento específico de controle de constitucionalidade, este último reservado, sobretudo, ao tribunal constitucional.42 Partindo da distinção legal das categorias (Lei n. 9.868/99), Marinoni, esclarece que a interpretação conforme a Constituição não constitui um método de interpretação, mas sim uma técnica de controle de constitucionalidade que impediria a declaração de inconstitucionalidade da norma mediante a afirmação de que há um sentido possível ou interpretação compatível com a Constituição43. A distinção conceitual entre interpretação conforme a constituição e declaração parcial de nulidade sem redução de texto reside no fato de que a primeira está no âmbito de interpretação e, na segunda, no de aplicação da norma. Dessa forma, na primeira exclui-se a possibilidade de outras interpretações, declarando-se aquela que se reputa conforme, ao passo que na segunda se discute o próprio âmbito de aplicação da norma, declarando-se que em determinadas hipóteses a aplicação da norma em si é inconstitucional44. E aqui recorde-se de Barroso. Ao tratar a interpretação conforme como instrumento específico do controle de constitucionalidade a cabo, sobretudo, do Tribunal Constitucional, deixa as portas abertas para que todo juiz realize a interpretação conforme a Constituição como técnica de decisão no exercício da jurisdição constitucional. Isso é no mínimo curioso, já que, desconsiderando os precedentes, as decisões dos juízes de primeiro grau não são vinculantes para além do caso concreto decidido. A distinção conceitual entre interpretação conforme e declaração parcial de nulidade sem redução de texto não resolve o problema da interpretação conforme (interpretação propriamente dita e técnica de controle de constitucionalidade). Ingo Sarlet esclarece que quando não se tratar de interpretação conforme enquanto técnica de controle não se está propriamente diante de interpretação conforme a constituição em sentido estrito, mas sim “(...) de outra coisa, que, consoante sinalado, poderá até ser reconduzida à noção ampla de uma interpretação conforme a constituição”45. A importância de se proceder ao refinamento teórico dos Barroso, Direito Constitucional, 101. Marinoni, Teoria, 59. 44 Marinoni, Teoria, 60. 45 Sarlet, Marinoni e Mitidiero, Direito Constitucional, 229. 42 43

Luiz Henrique Fortes • 167 dois fenômenos e suas repercussões práticas foram percebidas por Mendes ao tratar da equiparação conceitual entre declaração de inconstitucionalidade e interpretação conforme no sentido amplo. A primeira dificuldade constatada refere-se “(...) à conversão de uma modalidade de interpretação sistemática, utilizada por todos os tribunais e juízes, em técnica de declaração de inconstitucionalidade”46, o que implicaria, por exemplo, a necessidade de respeito ao full bench (art. 97, da Constituição), nos julgamentos realizados pelos tribunais locais. O que se pode concluir é que tratar dogmaticamente de forma distinta a interpretação conforme como uma técnica de decisão de controle de constitucionalidade e a interpretação da lei que leva em conta a Constituição, ou seja, procurando dar a máxima efetividade aos preceitos constitucionais através da interpretação permite uma melhor solução para o problema. A interpretação de acordo, assim, nada mais é do que decorrência da obrigação de o juiz interpretar as normas legais de acordo com os direitos fundamentais e sua eficácia irradiante, resultado direto da sua dimensão objetiva.47 Declaração de inconstitucionalidade, técnicas de decisão existentes na jurisdição constitucional e o dever de interpretar o direito à luz da Constituição, portanto, não se confundem. E o juiz ordinário, por mais que exerça ao mesmo tempo a jurisdição ordinária e o poder de controlar a constitucionalidade das leis, não pode, sem a adequada justificativa, se afastar dos precedentes firmados pelas cortes supremas a que está subordinado. Isso em razão da estruturação hierárquica do sistema de distribuição da justiça e do duplo discurso da jurisdição e do processo no estado constitucional (dar efetiva tutela aos direitos e implementar a segurança jurídica a partir dos precedentes). Assim, se, é reconhecida a importância da interpretação de acordo como decorrência do dever de o julgador interpretar o direito à luz da constituição e a competência aos tribunais superiores para dar unidade ao direito mediante a formação de precedentes, fica claro que as razões adotadas no precedente constituem interpretação de acordo que não pode ser simplesmente ignorada pelos demais juízes sequer sob o pretexto de fazer, diretamente, controle de cons46 47

Mendes, Branco e Gonet, Direito Constitucional,1.189. Marinoni, Tutela, 39-40.

168 • Interpretação conforme e interpretação de acordo com a Constituição titucionalidade do dispositivo de lei aplicável ao caso. Isso, ao fim e ao cabo, é ignorar a reconstrução da norma operada pelo precedente aplicável. Como esclarece Sorrenti, para dar efetividade à interpretação da lei à luz da constituição é indispensável não apenas preencher a exigência de possuir um pensamento crítico, mas que integre as condições do pensamento sistemático.48 É preciso juntar o ponto de vista externo (compreensão sistemática do direito, perspectiva geral-universal, em que se inclui o precedente) com o ponto de vista interno ao caso (as suas particularidades). É somente assim que a regra adequada ao caso pode aspirar ser não apenas uma irracional exceção irredutível à lógica do sistema, mas sim uma regra generalizável de decisão, constituindo a particularidade da aplicação ao caso, mas também a concretização de um universal. Essa é dotada de controlabilidade e objetividade, na forma mínima hoje realizável de intersubjetividade entre decisões judiciais.49

Conclusão Conclui-se, portanto, que não pode um juiz deixar de aplicar precedentes do STJ sobre o pretexto de realizar o controle de constitucionalidade no caso concreto através de interpretação à luz da constituição, sem que efetivamente demonstre a especificidade do caso sob julgamento, fazendo a distinção em relação ao precedente firmado pelo STJ, superando-o argumentativamente. Nesse sentido o projeto de novo Código de Processo Civil reconhece que não se considerará fundamentada qualquer decisão judicial que “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos” e “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento” . É necessário que a interpretação do STJ definida como de acordo com a constituição efetivamente se projete sobre os demais 48 49

Sorrenti, Costituzione, 84. Sorrenti, Costituzione, 85.

Luiz Henrique Fortes • 169 juízes e tribunais, sob pena de se afrontar a segurança jurídica e, em especial, a coerência do direito e a igualdade50, valorizando o diálogo intra-institucional entre corte suprema e demais juízos.

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Marinoni, O STJ, 98.

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