Interpretação constitucional à moda da Hidra de Lerna: direitos como \" cabeças interpretativas \"

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Interpretação constitucional à moda da Hidra de Lerna: direitos como "cabeças interpretativas" – Por Tiago Gagliano Pinto Alberto
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Por Tiago Gagliano Pinto Alberto – 18/10/2016
Richard Rorty sugere, em "Filosofia e o espelho da natureza", que em uma galáxia distante existe uma sociedade bem parecida com a nossa, os antipodianos. Seres de inteligência e perspicácia bem assemelhada às nossas que guardam, no entanto, uma pequena, porém decisiva diferença: não conseguem sentir algo e se expressar a partir do que sentem; assim, ao invés de, após uma topada em uma pedra, falarem que o dedão está doendo, dizem que as fibras-C foram estimuladas. A sensação de dor, nesse ponto, lhes é estranha, porque receberam educação focada na neurologia e bioquímica[1], o que lhes impede de exercer os aspectos cognitivos da mente semelhantes aos terráqueos.
Conquanto o filósofo sugira a existência de uma sociedade alienígena, o relato bem poderia ser de fácil descrição no ambiente em que vivemos. Há muito no contexto social para que possamos enriquecer a nossa fala, a expressão de nossos pensamentos e as sensações que temos a respeito de qualquer coisa, jurídica ou não. Se formos algo colonizados pelo tecnicismo, correremos o risco de perder sensações; ao invés de dor, felicidade, amor e paz, diremos estímulo de algum músculo ou fibra.
Agora trazendo esse pensamento ao campo jurídico.
Há algum tempo diversos segmentos doutrinários vêm sugerindo a necessidade de racionalização das decisões judiciais; aliás, essa necessidade se situa para além da decisão judicial, alocando-se no sistema jurídico como um todo. Como sabemos, temos uma Constituição da República pluritemática, descomprometida com uma linha de pensamento único, ou viés de ação unidirecional; ao revés, dotada de regras de valores representativos de linhas de ação difusas, pluridirecionais e focadas ora em valores substantivos, ora procedimentais, a Carta Magna abre ensejo a muitas formas de ver a mesma coisa, com ou sem tecnicismos, a partir de vários pontos de vistas e sob incontáveis formas.
Isso é bem interessante sobretudo para o direito, porque denota uma abertura para a sociedade, que alimenta o jurídico e é por ele alimentada diariamente, a cada manifestação de pensamento, de consagração de pontos de vistas diversos, de ideias em princípio divergentes, ou inicialmente conflituosas.
Ocorre que, paradoxalmente, esta abertura parece dificultar justamente o que pretende ensejar: a realização de direitos. Se, ao revés de soluções delineadas sob a óptica binária do sim/não, tivermos um amplo leque de possibilidades hermenêuticas a explorar, viabilizar-se-á a apresentação, por vezes retórica, de inúmeros vieses da questão conflituosa, possibilitando que, ao final, inúmeras soluções se tornem possíveis, factíveis e pragmaticamente viáveis. A interpretação passa a ser algo como a Hidra de Lerna, com a diferença de que não se tratam de cabeças, senão várias interpretações que surgem a partir de uma interpretação proscrita.
Tomemos, para ilustrar essa questão, o julgamento do caso RE nº. 657.718 pelo Supremo Tribunal Federal, que trata da concessão de medicamentos de alto custo ou sem registro na Anvisa. Atualmente, a interpretação majoritária perpassa pela concessão de medicamentos postulados pelos cidadãos como decorrência da eficácia vertical dos direitos fundamentais, ou seja, hauridos da força normativa diretamente extraída da Carta da República.
Levada a questão à Suprema Corte, no entanto, não temos, por ora, uma definição da questão; nos votos já proferidos, ao contrário, surgiram diversas "cabeças interpretativas" que, sob diversos vieses, analisam ponderações alusivas ao embate principiológico entre direitos, às possibilidades financeiras do Estado, à confiabilidade de exames e protocolos etc. As soluções apresentadas aparentam criar um ambiente de racionalidade e coerência na fixação de parâmetros, cuja cientificidade faria Auguste Comte aplaudir pela aplicação estrita da Lei do Terceiro Estado como sugere em "Curso de Filosofia positiva", para definição da possibilidade de realização ou não de um direito constitucional de natureza fundamental.
Ao que parece, o Supremo Tribunal Federal encontrou argumentos antipodianos para definir a questão, olvidando-se que por detrás da estimulação das fibras-C encontra-se algo que nós, terráqueos, sentimos: a dor. Não parece adiantar muito definir racionalmente algo que somente pode ser sentido individualmente ou em família; que só pode ser discutido na intimidade da relação médico-paciente; que encontra na ausência de obtenção do direito constitucionalmente assegurado o seu efeito colateral mais delicado e decisivo.
Será, então, que o segredo da interpretação de direitos constitucionalmente assegurados estaria no campo pragmático, decisionista, ou simplesmente emocional? Calma, não cheguemos a este extremo. Talvez a questão possa encontrar algum contorno na forma de ver a Constituição e o seu impacto na vida dos cidadãos, a partir da perspectiva dos intérpretes.
Carlos Santiago Nino, sempre atual, sugere que a interpretação da Constituição seja levada a cabo como a construção de uma catedral, ou seja, uma obra monumental que não foi iniciada pelo engenheiro que a conduz e tampouco será por ele finalizada. Ao momento em que a realiza, deve conservar os traços gerais definidos pelo projeto originário, porém sem descurar dos aportes pessoais que venha a deixar por oportunidade de sua intervenção. Sob o enfoque constitucional, este ensinamento sugere, como nos diz Nino, que a interpretação de direitos constitucionais se verifique tendo por base dois momentos: o primeiro, em que se observa a estrutura geral da Carta e o segundo, em que a leitura moral entra em cena, definindo questões pontuais e mais sensíveis[2].
Esta é, em minha opinião, a lacuna que atualmente se verifica no campo de interpretação da Constituição à moda da Hidra de Lerna. A definição de direitos encontra-se difusa, pontual, turva ou mal definida, porque justamente o primeiro dos planos mencionados por Nino não está sendo observado. As diversas "cabeças interpretativas" estão surgindo a partir da definição do "chão de fábrica da Constituição", para fazer uma paráfrase à sala de máquinas da Constituição mencionada por Roberto Gargarella; e, nesse ambiente, termos diversas "cabeças interpretativas" significa termos diversas Constituições, o que não é racional, objetivo ou estável. E, pior, a necessária alteridade cede passo, nesse quadrante, à uma pretensa cientificidade haurida do positivismo metodológico cujas mossas são, atualmente, bem evidentes. O STF torna-se, assim, antipodiano.
A questão não está somente na forma de interpretação de direitos constitucionalmente assegurados, mas no objeto da interpretação em conexão com a sua forma. Há que se ter racionalidade, sem descurar da alteridade, mas, mais que isso, há que se definir o espaço viável para interpretação; não se pode reconstruir a Constituição a cada Acórdão.
E, para tanto, talvez uma interessante solução passe pela sugestão de Nino: preserva-se a estrutura básica dos direitos constitucionalmente assegurados, sem qualquer discussão quanto à sua viabilidade; e depois, somente depois, examina-se o seu contorno no ambiente estatal e a possibilidade de adjudicação. No exemplo-base tratado neste texto: interpretações admitidas não no trato do direito constitucional à saúde definido pela Constituição[3], mas apenas no tocante à sua forma, ou seja, juridicidade.
A prevalecer a interpretação no primeiro dos momentos, teremos tantas Constituições quanto "cabeças interpretativas" nascerem da Hidra. E, nesse ambiente, a alteridade terá decerto pouca valia e cada vez mais estimularemos, e com maior intensidade, as fibras "C" na sociedade.
E você, o que acha?
Um grande abraço a todos. Compartilhem a paz!

Notas e Referências:
[1] RORTY, Richard. A Filosofia e o espelho da natureza. Tradução de Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 80-95.
[2] NINO, Carlos Santiago. Una teoría de la justicia para la democracia. Hacer Justicia, pensar la igualdad y defender libertades. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2014, p. 38-51.
[3] Ou seja, definido o tratamento e a atuação do Estado, este haverá de ser observado, independentemente de orientações positivistas metodológicas traduzidas por recomendações científicas exaradas por Agências ou órgãos estatais.


Tiago Gagliano é Pós-doutorando pela Universidad de León/ES e pela PUC/PR. Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.

Imagem Ilustrativa do Post: Hydra // Foto de: jchapiewsky // Sem alterações
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