INTERPRETAÇÃO, DECISÃO E REPRESENTAÇÕES CEREBRAIS: HERMENÊUTICA INGÊNUA

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INTERPRETAÇÃO, DECISÃO E REPRESENTAÇÕES CEREBRAIS: HERMENÊUTICA INGÊNUA

Atahualpa Fernandez

“El hombre -déjeme ofrecerle una definición- es el animal cuentahistorias”. Graham Swift

Por que em muitas ocasiões nossas narrativas sobre interpretação, decisão e racionalidade jurídica produzem uma teorização muito pouco sólida da que se depreende um relato que se dá por verdadeiro somente pelo fato de que parece ter algum sentido? Por que algumas teorias sobre hermenêutica jurídica, ao intentar explicar basicamente tudo, dão lugar a muitas conclusões absurdas e a uma série de conjecturas muito difíceis de comprovar com o rigor científico necessário? Por acaso não sabemos que a suposta plausibilidade de uma barulhenta narração não permite resolver adequadamente um problema? Jonathan Gottschall (The Storytelling Animal) afirma com fina contundência que todos somos uns “cuentahistorias”. Somos um primata ao que poderíamos chamar Homo fictus porque, nos demos conta ou não, somos uma criatura do imaginativo mundo de “Neverland”. O país da fantasia é nosso lugar e antes de que morramos haveremos passado décadas ali; e a hipótese mais admitida para este nosso «instinto narrador» é a do simulador virtual: todos aceitamos que as histórias servem para  Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídicocivilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

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evadir-se do mundo real, não são objetivas e em boa parte são um engano de nossa imaginação. De fato, estamos tão acostumados e influenciados pelo poder das histórias que na grande maioria das vezes as aceitamos tal e como se nos aparece e não nos fazemos mais perguntas. Por exemplo, no contexto da fração pasmosamente pequena e distorcida do direito que nos transmitem continuamente está a fantasia de que os seres humanos são «animais racionais». Um conto que entrou em nosso crânio, tomou o controle de nosso cérebro e nos levou a criar (e reproduzir) uma imagem de nós mesmos baseada no mítico «ator racional», apenas influenciado por pequenos e circunstanciais inconvenientes emocionais.

Esta sobrevalorada

concepção da racionalidade jurídica está fundamentada na premissa de que, como humanos, estamos todos dotados de um elevado grau de senso comum para prestar atenção às coisas que nos rodeiam, que nossa memória é mais consciente, controlável e fiel do que é em realidade e que a capacidade de razoar, précompreender, compreender, ponderar, etc. é um indicador fiável da precisão de nossos juízos. O único inconveniente é que esta entranhada narrativa de ficção é equivocada, reflete expectativas pouco realistas e constitui a principal causa do desgaste hermenêutico-metodológico de que padece o direito. E o mais expressivo sintoma deste acusado cansaço está relacionado com as críticas dirigidas à ideia mesma do ato de interpretar e decidir, do fenômeno hermenêutico em particular e do próprio conceito de racionalidade, procedentes não mais de teorias hermenêuticas encerradas em circularidades pseudocientíficas como evidência de exatidão, senão de critérios científicos, em particular dos provenientes das neurociências e das ciências cognitivas. Um conjunto de novos conhecimentos científicos que silenciosa e lentamente estão minando a parafernália barroca dos discursos que pecam por sua ingenuidade e/ou incompletude (como alguns discursos hermenêuticos), sem valor para coisa alguma salvo para enredar-nos em qualquer tipo de delírios filosóficos: somos animais limitada e problematicamente racionais. Todos, sem exceção, tomamos decisões baseadas em uma racionalidade limitada ou «impura», não em uma

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racionalidade pura ou ilimitada de quem toma decisões como se fora um deus omnisciente. A própria experiência consciente não é mais que uma fração do que sucede na mente e que não reflete todos os mecanismos que estão atuando e que são gerados por uma multitude de processos inconscientes. A afamada «pré-compreensão» não passa de um conceito esotérico para expressar o núcleo de uma das intuições ínsitas em nossa arquitetura cognitiva: a conata capacidade para interpretar («précompreender») os outros, para ler suas mentes, para ler o que há sob a superfície, antecipar acontecimentos e dar sentido ao que vemos (como esclarece Daniel Dennett, o cérebro humano é uma «máquina de antecipação», e «criar futuro» não somente é o mais importante que faz, senão que parece ser o traço definitório de nossa humanidade: a predição constitui a verdadeira entranha da função cerebral - R. Llinás). Ademais, somos prisioneiros de nosso corpo-cérebro; tudo o que pensamos ou experimentamos resulta da estrutura e do funcionamento de nosso cérebro. Este determina, condiciona e limita aquilo que percebemos e interpretamos: “qué información se toma, cómo se percibe, y cómo se interpreta, todo depende de la organización innata del organismo” (S. Pinker). E nada disso é (ou deveria ser) estranho ou diferente ao que à hermenêutica ou interpretação jurídica se refere, pelo simples fato de que os operadores do direito, sem exceção, não são menos pessoas de carne e osso que qualquer outro ser humano. Então, por que nos limitamos a analisar a atividade hermenêutica somente desde um ponto de vista meramente descritivo, poético ou especulativo e não (também) a partir das funções mentais que se põe em marcha nas operações efetivas levadas a cabo na tarefa de interpretar e aplicar o direito (M. Troper)? Parece razoável supor que a tarefa interpretativa seja concebida como extra-cranial, enquanto a cognição e a emoção (produtoras da subjetividade) não o são? Estudar as tarefas interpretativa e decisória não equivale a estudar e entender o cérebro? Se queremos saber, compreender e explicar adequadamente o afazer interpretativo, por que não assumimos que o avanço nas técnicas para o estudo do funcionamento cerebral está proporcionando um fecundo caldo de cultivo que convida a querer

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conhecer não somente como funciona o cérebro, senão também a mente, os juízos morais e a tomada de decisões? Já sabemos que as neurociências e as ciências cognitivas (entre outras áreas do conhecimento científico) estão começando a tocar questões que antes eram do domínio exclusivo de filósofos, psicólogos e juristas; questões sobre como a gente toma decisões e o grau em que ditas decisões são verdadeiramente «livres», imparciais, neutras, racionais, razoáveis, prudentes, ponderadas, etc. E embora não se trate de questões ociosas, muitos dos que trabalham no campo da hermenêutica jurídica continuam a dedicar-se ao que Lee Ross descreveu com muita lucidez como “«embotellador de fenómenos», porque elaboran sus teorías para que se adapten a lo que embotellan en ellas”. (D. Kahneman) Sendo honestos, este tipo de postura já não tem absolutamente nenhum sítio na cabeça de uma pessoa sensata. Sejamos sérios. São os circuitos físicos situados no córtex pré-frontal e em outras partes do cérebro, e não os poderes ocultos de uma «pré-compreensão» (“prejuízo”, “causa primeira incausada”, “círculo hermenêutico” ou algo pelo estilo), os que condicionam e determinam o processo de interpretação e decisão jurídica [1]. É apenas a tabula rasa que faz com que uma anacrônica confraria de sofisticados hermeneutas ou jus-metodólogos creia e siga pregando que nossos instintos são “biológicos”, mas que o pensamento e a tomada de decisão são alguma

1 Já se derramaram rios de tinta para explicar algo assim de simples e assim de bonito: “Aprendemos a predecir nuestro entorno, y nuestro organismo se anticipa respondiendo adecuadamente a los eventos ambientales que están por llegar. Se adapta al ambiente anticipándose a él. Esta capacidad de predecir lo que ocurrirá a continuación es muy valiosa en la vida de cualquier animal, también en la especie humana. Un organismo que no sea capaz de predecir los eventos importantes de su entorno y prepararse adecuadamente para ellos morirá joven. Como es lógico, además, la respuesta anticipatoria del organismo se adaptará a la perfección a lo que el organismo espera que vaya a ocurrir. Si fuera un estímulo doloroso, por ejemplo, lo que el organismo espera que ocurra tras una señal determinada, se pondrá en marcha una reacción de miedo que hará que se produzca inmediatamente una respuesta de huida. Y lo mismo para otros estímulos biológicamente significativos (estímulos sexuales, frío, calor, drogas, medicamentos, cobijo, etc.). Todos ellos producirán una respuesta del organismo que, de manera automática, se anticipará a la llegada del estímulo biológicamente significativo utilizando para ello señales del ambiente que ayudarán a predecirlo (H. Matute). *…+ Pero los humanos somos el único animal que puede contemplar su futuro, el único que puede desplazarse mentalmente por el tiempo, prever una variedad de futuros y elegir el que causará más placer y/o menos dolor. Se trata de una adaptación excepcional que, por cierto, está relacionada directamente con la evolución de los lóbulos frontales” (D. Gilbert).

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outra coisa, que surgem «diretamente» de... bom, não sabemos exatamente de donde. Que dúvida ainda cabe de que a interpretação e a decisão surgem da atividade eletroquímica de redes neuronais no cérebro? Por acaso não se interpreta e se decide com o cérebro? [2] A experiência de interpretar e eleger a decisão «satisfatória» não é uma ficção, senão algo a todas luzes orgânico: uma função do cérebro, uma consequência causada pela atividade fisiológica dos tecidos de um cérebro moldado geneticamente ao longo da história evolutiva de nossa espécie e aparelhado para pensar de certa maneira. Quer dizer, para poder interpretar e decidir, o cérebro tem que chegar a uma coalizão ou aliança de grandes conjuntos de neurônios («neurônios egoístas», «sinapses egoístas»), um nível de ativação e interação que representa a «melhor» interpretação de um determinado fenômeno (com frequência em competição com outras interpretações possíveis), e cujo resultado será uma decisão destinada a transmitir sua mensagem a um público específico em uma época e um lugar determinados. [3] Por dizê-lo de alguma maneira mais desafetada, a interpretação jurídica, tal como a conhecemos, é uma atividade levada a cabo por cérebros humanos: cada um dos intérpretes do direito é um ser humano proprietário e propriedade de um cérebro, 2 De fato, toda nossa conduta, nossa cultura e nossa vida social, tudo quanto fazemos, pensamos e sentimos, depende de nosso cérebro. O cérebro é a sede de nossas ideias e emoções, de nossos temores e esperanças, do prazer e do sofrimento, da linguagem, da moral, do direito e da personalidade. Se em algum órgão se manifesta a natureza humana em todo o seu esplendor, é sem dúvida em nosso volumoso cérebro. Lástima que nos recusemos a conhecê-lo melhor. (J. Mosterín). 3 Nota bene: Se está começando a aceitar a ideia de que o cérebro humano não encaixa na visão burocrática de um sistema com um controle hierárquico e muito bem organizado onde tudo está em ordem: se parece mais a uma anarquia com alguns elementos de democracia. Quer dizer, dado que todos os neurônios estão presos no cérebro, são células encarceradas, estes neurônios competem entre si para sobreviver, para ter influência. E isto prepara o terreno para a cooperação e as alianças. Às vezes pode lograr um estado de estabilidade e ajuda mútua, uma espécie de frente único e em calma, e tudo marcha sobre rodas; mas também é possível que as coisas se torçam, que alguma aliança se faça com o controle e acabemos sofrendo obsessões, delírios ou outros transtornos. Parece que a mente normal bem afinada, quer dizer, a mente organizada, não é o estado mental básico, senão que é um logro que somente se alcança quando tudo segue com normalidade. Isto supõe uma arquitetura e funcionamento cerebral muito diferente e quiçá o segredo de nossa maior capacidade para a criatividade e a imaginação, para pensar com originalidade: uma organização mais livre e anárquica, e que o preço que pagamos por isso é a vulnerabilidade às ilusões, a incoerência de nossas emoções, a ocorrência de “sesgos cogitivos”, a debilidade da razão, etc...etc. (D. Dennett; Sebastian Young)

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cada um deles tem algo diferente a comunicar; cada um, ao injetar sua peculiar e «somática» subjetividade no texto que interpreta, intenta transmitir sua visão de mundo (que há herdado ou adquirido) em suas próprias palavras e com o recurso de uma justificação razoavelmente convincente.

«Processo» de interpretação/decisão e «percepção» do ato de interpretar/decidir Mas, como o fazem? Como atua ou funciona o cérebro-mente na atividade interpretativa e como toma decisões? O primeiro que há que advertir é que não devemos confundir o processo de interpretação/decisão com nossa experiência do processo ou do ato de interpretar/decidir: igual que o calor como uma propriedade real dos objetos não é como nós o experimentamos (não é, nem tem muito que ver, com a sensação de calor), tampouco é necessário supor que nossas sensações enquanto estamos interpretando e tomando uma decisão são algo assim como uma «réplica exata» do que realmente está passando em nosso cérebro ao levá-las a cabo. Nossa sensação de calor é como é, em parte porque nos serve para fazer algumas distinções úteis entre os objetos que nos rodeiam; de modo análogo, nossa percepção do processo de interpretação/decisão será como é, em parte porque nos resulta biologicamente útil ter uma percepção assim, mas não porque seja uma representação «totalmente fidedigna» ou «real» dos processos neurológicos que sucedem em nosso cérebro ao interpretar e tomar uma decisão (J. Zamora Bonilla). Daí que é conveniente não confiar demasiado nas descrições fenomenológicas do processo de interpretação e decisão propostas pelas teorias hermenêuticas de moda, se queremos averiguar «por que» o percebemos como o percebemos. O que quero dizer é que, ao construir especulativamente esta experiência, ou esta representação, do processo de interpretação e tomada de decisão, os juristas avessos ou hostís à ciência o fazem criando, entre outras coisas, possíveis cursos de ação que existem apenas como cursos imaginários, e que somente existem em suas mentes. Se deixamos de lado as explicações vudus constataremos que há uma evidente brecha epistemológica, uma clara limitação do conhecimento das verdadeiras relações causais que se dão no interior do cérebro no ato de interpretar, uma autêntica indeterminação real dos processos cerebrais ou mentais relacionados com a

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tomada de decisões – ou seja, com as causas que não têm que com a «verdade» de nossas impressões ou sensações. Tampouco cabe argumentar aqui que o «salto» que vai desde nossas razões para atuar até nossa decisão de atuar (e também o «salto» que vai desde nossa interpretação até nossa decisão) é algo essencialmente distinto aos vínculos causais que se dão no resto dos processos cerebrais, de modo que o primeiro não seria propriamente falando «relações causais», senão «razões». Ser racional consistiria, pois, em algo assim como estar «submetido» ao poder das razões em lugar do poder das causas. A diferença aparente se deve, em parte, a que o ter tais ou quais razões para tomar certa decisão ou para sacar certa conclusão não costuma ser uma condição suficiente para que de fato decida ou conclua tal coisa; mas em parte também se deve a que nos dá a impressão de que a ordem das razões segue sua própria lógica, e teria que ser independente da ordem causal “por el que a nosostros nos ocurre que pensemos o decidamos de tal o cual manera - por ejemplo, que el resultado de una operación matemática sea uno determinado, tiene que ser independiente de las peculiaridades de los procesos cogitivos de quien la está resolviendo”. (J. Zamora Bonilla) Nada obstante, esta aparência se deve simplesmente a que o que consideramos (por exemplo) a «razão» de nossa decisão, ou seja, a constatação de certos fatos ou valorações cuja percepção nos conduz a concluir que devemos ou nos convém fazer tal ou qual coisa, não é realmente mais que uma parte das verdadeiras causas pelas quais tomamos a decisão ou levamos a cabo a ação de interpretar. A interpretação e a decisão sucedem em parte a causa de que nos encontramos em um estado psicológico que consiste em admitir as razões ou premissas, mas também em parte devido a certas outras conexões neuronais de cuja atividade não somos conscientes. Resumindo, entender e explicar parte de um todo está longe, muito longe, de pretender entender e explicar o todo. Não temos (tal com já assinalaram Spinoza e Hume) absolutamente nenhuma percepção consciente do vínculo causal e do processo que leva a nosso cérebro desde o estado que consiste em precatar-se da verdade de certas proposições, valorações ou interpretações e o estado que consiste em precatar7

se da verdade de alguma das conclusões ou decisões que derivamos daquelas – e se bem se mira, a causa não constitui um elemento acidental ou eventual da tarefa interpretativa/decisória, mas um elemento que a determina desde o princípio e no seu conjunto; na prática, causa e razões não são dois atos separados e estanques, senão que constituem um processo unitário, um continuum, compondo uma indivisível e solidária unidade hermenêutica. Dar-se conta desta «fenomenologia» da interpretação/decisão, compatível com a natureza física e biológica de nosso cérebro, implica assumir a evidência de que somos, ao fim e ao cabo, nada mais que uns pobres animais engendrados por obra e graça da evolução das espécies. Coisa que muito poucos juristas estão dispostos a admitir.

Lei e representações cerebrais Em segundo lugar, e não menos importante, todo este contexto estabelece que os operadores do direito vivem das representações e significados que se passam na mente, isto é, que são processados em suas estruturas cerebrais. Um motivo mais para que o juízo ético-jurídico, baseado não somente em raciocínios, mas também em emoções e sentimentos morais produzidos pelo cérebro, não pode ser considerado como totalmente independente da constituição e do funcionamento deste órgão que, em uma primeira aproximação, parece não dispor de uma sede única e diferenciada relacionada com a cognição moral, o razoamento e o juízo normativo que dita o sentido da justiça, senão de uma rede de regiões cerebrais que se ativam ao mesmo tempo quando uma pessoa formula um juízo ou toma uma decisão.[4] 4 No que respeita ao razoamento jurídico, provavelmente o trabalho mais ilustrativo seja a investigação de Oliver Goodenough sobre as áreas corticais associadas ao razoamento legal e a intuição moral. O trabalho começa recapitulando o clássico debate entre uma aproximação teorética ou “pura” à ciência do direito (que ele ilustra mediante o pensamendo de Langdell) e a aproximação mais sociológica ou “impura” do realismo jurídico de Karl Llewelyn e outros. A juízo de Goodenough, para dirimir debates deste tipo há que recorrer às investigações neurocientíficas: “Los avances en neurociencias y otras ramas de la biología del comportamiento proporcionan nuevas herramientas y la oportunidad de volver a las preguntas clásicas en la base del pensamiento jurídico”. Como se realizaria isto? Goodenough assume a teoria modular do cérebro e mostra uma série de estudos segundo os quais nosso pensamento sobre a justiça “tem lugar” em uma área cortical distinta da que se ativa no pensamento associado à aplicação do direito a partir de regras. Portanto, assinala, o pensamento baseado na justiça é independente do razoamento baseado em regras. O que

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Pois bem, as representações são, literalmente, «re-presentações»: conformam a linguagem do cérebro e o cérebro pensa em função delas (e é muito provável que o cérebro já contenha representações inatas – E. Spelke). O conceito de representação procede da teoria kantiana do conhecimento segundo o qual a realidade existe para cada um em particular somente em sua imaginação; ou seja, é somente sua representação. O mundo que vemos é um mundo concebido através da construção feita a partir de estímulos físicos por uma maquinaria que é nosso cérebro: a realidade objetiva é “realidade” entanto que realidade humana percebida pelo cérebro humano. Em neurociência se vem utilizando o termo representação de forma sistemática para aludir ao conjunto de correlatos neuronais que se dão em nosso cérebro do mundo exterior. Neste marco parece possível não somente aceitar a equivalência entre representação e padrão de atividade cerebral, senão também, e muito particularmente, intentar avançar no significado do conceito de representação com base no paradigma admitido pela neurociência. Isto é importante porque nos conduz ao conceito de estabilidade na atividade cerebral (recordemos a coalizão de neurônios e sinapses «egoístas» a que me referi anteriormente) como fator determinante da evolução dos padrões, por exemplo, no ato de compreender, interpretar e aplicar o direito. Para seguir nesta direção é útil imaginar um simples experimento que poderíamos fazer com uns quantos operadores do direito, com similar preparo intelectual e formação profissional, interpretando uma lei. Suponhamos que lhes mostramos a todos um mesmo texto legal (que envolva um dilema moral ou éticojurídico, por exemplo) e depois lhes pedimos que tratem de interpretar e compreender mostraria, segundo o mesmo autor, que ao pensar na justiça nos ajudamos de um algoritmo não verbal —como um programa de computador — que está definido por uma mescla de marcas genéticas, herança cultural e experiências pessoais. Pelo contrário, os sistemas de pensamento baseados na palabra, tais como o sistema legal, acionam um módulo meramente interpretativo do cérebro: “En actividades como la redacción de contratos, leyes o reglamentos, el módulo de interpretación sirve para procesar los materiales legales a través de uma fórmula basada en la palabra, [empleando] la lógica estructural implícita del sistema desarticulado en el que se genera la norma *legal+”. Em suma: o melhor modelo neurocientífico do juízo normativo disponível parece sugerir que o raciocínio jurídico implica um amplo recrutamento e emprego de distintas redes neuronais, diferentes sistemas de habilidades mentais (relacionados tanto com o pensamento racional como emocional) e fontes de informação diversas.

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seus matizes. Em seguida lhes pedimos que expressem com detalhes a posição pessoal de cada um sobre o referido enunciado normativo. Se realmente estes operadores têm semelhante preparação intelectual e formação profissional podemos supor que se expressarão de forma praticamente igual, a menos que o texto legal (ou dilema) contenha detalhes demasiado obscuros ou difíceis de interpretar. Por que? Pois pelo simples motivo de que estes operadores tiveram acesso a uma realidade tangível e objetiva do mundo exterior que se haverá armazenado como representação em seus cérebros em forma de padrões de atividade de distintas regiões cerebrais. Contudo, não há nenhuma razão de fundo que autorize pensar que as zonas cerebrais ativadas serão idênticas nos distintos intérpretes. Com toda segurança haverá um alto grau de correspondência no trabalho realizado por regiões cerebrais. Por exemplo, com toda certeza se haverá ativado o córtex cerebral ocipital quando os sujeitos visualizavam o texto legal, assim como o córtex frontal e o sistema límbico para poder levar a cabo a conduta relacionada com o processo

de

tomada

de

decisões.

Mas

se

descendemos

ao

nível

dos

neurotransmissores e os potenciais sinápticos, que constituem a linguagem de comunicação

dos

neurônios

(de

modo

que

maiores

quantidades

de

neurotransmissores liberados produzem maiores potenciais sinápticos), não há nenhuma razão para esperar que haja dois neurônios idênticos respondendo identicamente no momento da tarefa interpretativa. A demonstração mais simples disto é a redução ao absurdo baseada no fato de que não é previsível que haja dois cérebros, simplesmente, com o mesmo número de neurônios e conexões sinápticas que geram e determinam os processos cerebrais associados com a percepção, os padrões de pensamento e o sentido de ação (no caso, com o processo de interpretar, avaliar e decidir) . Um de nossos operadores pode ser jovem e outro mais velho, circunstância em que o processo de desaparição de neurônios já tenha iniciado. Cada um terá sua representação resultante de seu próprio padrão de atividade cerebral e das interações sinápticas produzidas pela experiência e pela história particular de cada cérebro (esta característica de câmbios se conhece com o nome genérico de plasticidade neuronal e pode estar na base da individualidade associada à experiência/aprendizado, dissociada do determinismo genético). Também é possível que ao realizar uma mesma tarefa em 10

distintas idades se ativem circuitos cerebrais diferentes porque se seguem umas estratégias cognitivas distintas [5] – sem dúvida, é uma possibilidade, mas há muitas outras que se pode contemplar. Nada disso quer dizer, evidentemente, que a realidade não exista objetivamente e que somente exista em nossa imaginação. Não! Significa, apenas, que nossas interpretações do mundo, a construção de nossa experiência subjetiva da realidade, estão ao serviço das narrativas baixo as quais opera nosso cérebro, narrativas que servem para que nos movamos pela vida com a convicção necessária para defender nossos pontos de vista (em certo sentido somos, além de escravos, os fabricantes dos significados e do sentido daquilo em que fixamos nossa atenção). Isto implica que o problema hermenêutico-filosófico segue vigente porque não se trata tanto de se existe uma realidade, senão dos critérios de percepção, interpretação e fundamentação dessa mesma realidade; isto é, dado que ninguém pode viver sua realidade (nem por certo interpretá-la) sem o concurso irrenunciável de sua atividade mental, detrás de dois cérebros distintos podem esconder-se mundos e formas de conceber e de sentir a realidade radicalmente diferentes: nossas percepções são o resultado de um processo neuropsicológico que combina o que percebemos com o que já pensamos, sentimos, sabemos, queremos e cremos, e ato contínuo utiliza essa combinação de informação sensorial e conhecimento já existente para construir nossa percepção da realidade. Dito de modo mais simples (e jurídico): porque não há dois cérebros que sejam iguais (nem sequer os de gêmeos idênticos), porque cada cérebro constrói a experiência subjetiva do mundo de maneira ligeiramente distinta dos demais cérebros, não há uma interpretação definitiva do que expressa qualquer norma, senão simplesmente uma interpretação dentro de nossas cabeças (uma construção pessoal), interpretação que se desencadeia através dos elementos externos que melhor

5 Um indivíduo com mais idade e experiência seguramente acumula um repertório de pautas que lhe permite identificar, classificar e categorizar situações de imediato, e saber com rapidez que é o que deve fazer e que decisão tomar. Na verdade, lhe permite emarcar e avaliar o caso concreto e este marco lhe diz que detalhes são importantes. Sabe o que pode passar por alto e em que deve centrar sua atenção. A experiência lhe diz quais são os objetivos importantes para que possa decidir em consequência (uma decisão intuitiva, entendendo por intuição sua maneira de utilizar a experiência acumulada). Quer dizer, “tomada de decisões baseada no reconhecimento” (G. Klein).

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estamos preparados para registrar. Depois, o problema que tem que afrontar o cérebro aqui é que os sinais procedentes do mundo (em nosso caso, da norma e dos fatos) não costumam representar uma mensagem codificada, senão que são potencialmente ambíguos, são dependentes do contexto e não vem necessariamente acompanhados de juízos prévios sobre seu significado. (G. Edelman) Assim as coisas, e dado que as representações têm um substrato material que são os correlatos cerebrais ou padrões de atividade neuronal que se estabelecem individualmente (moléculas impulsadas umas contra outras pelas interações eletromagnéticas entre elas), pretender com uma única «teoría del todo» explicar toda e

qualquer

atividade

interpretativa-decisória,

todo

e

qualquer

fenômeno

hermenêutico, de modo completamente ignorante do domínio de qualquer conhecimento ou técnica científica e sem a compreensão dos neurônios, das sinapses e do cérebro é tarefa estéril e uma enorme impostura intelectual.

Hermenêutica ingênua e o «princípio da mediocridade» Sobra dizer que ainda não há uma resposta clara acerca de como tem lugar todo este processo, uma vez que, para tanto, haveríamos de ser capazes de determinar, se é que é possível, o limite entre percepção, a emoção, a memória e a cognição. Mas o fato de saber de onde vem nossas interpretações e decisões, de entender que as causas de grande parte (ou da totalidade) dos processos de pensamento não são conscientes - quer dizer, que tem lugar fora da consciência -, pode ao menos ajudar-nos a controlar suas razões e seus efeitos em alguma medida. Porque apesar de que nos sintamos cômodos ao supor que podemos superar ou eliminar de nossos pensamentos determinadas influências das que não somos conscientes com esforço, vontade e/ou boas razões, o certo é que são muito difíceis (ou impossíveis) de evitar pelo simples motivo de que os processos neurofisiológicos são básicos. Para tratar de aclarar a complexidade da questão podemos recorrer ao exemplo de nossos intérpretes. Quando viram o texto legal se puseram em marcha seus circuitos visuais, o que significa que uma série de sinais navegarou desde seus olhos através das vias nervosas correspondentes até o córtex cerebral ativando, na mesma medida, o sistema límbico. Com toda segurança todos identificaram que se 12

tratava de uma lei porque previamente haviam visto objetos parecidos - quer dizer, dispunham de interações sinápticas modificadas ao efeito. E quando trataram de compreender os detalhes dessa lei em concreto tiveram que produzir-se novas modificações sinápticas para que suas respectivas percepções da realidade e suas características desvelassem as opiniões ou pontos de vista de cada intérprete. No fundo, um mero resultado (um produto emergente) de pautas de ativação neuronal das que sequer foram conscientes. Agora: Quando foi suficiente? Em que nível o processamento de informação se torna significado, conhecimento, consciência? Quanto teve que modificar as interações sinápticas para que se estabelecera a representação dessa lei? Como se decidiu que era suficiente? Que papel tem a memória na tarefa de interpretar e decidir? Tem estes presuntos processos ou séries de processos algum aspecto de caráter universal, no sentido de que contam com algum componente nuclear comum capaz de determinar em cada indivíduo sua particular valoração do que é ou deixa de ser justo? Será possível algum dia descrever esse processo ou processos (ou os componentes chave) em termos mais objetivos? Cabe buscar sua origem em algum padrão idiossincrásico de atividade neural que contenha ao menos alguma sequência espaço-temporal identificável compartida por todos os indivíduos? A diferença do que parece ocorrer na base neural das faculdades artísticas (J.-P. Changeux; R. Vigouroux), existem algumas áreas neuronais cuja intervenção específica seja em certo modo crítica e universal no marco da atividade amplamente distribuída que muito provavelmente subjaz – como em todos os processos cognitivos superiores (R. Vigouroux) – ao fenômeno da experiência moral e ao ato de interpretar/decidir? Em que medida contribui a herança, a experiência pessoal, a história de aprendizagem, as emoções e os sentimentos de cada indivíduo no pôr em marcha ou na ativação desse suposto padrão funcional? Podem ser de utilidade as modernas técnicas de neuroimagem não tanto para a localização estrita da sede cerebral de tal traço de atividade, senão, mais bem, para a identificação da implicação diferencial de certos circuitos distribuídos? Não é possível que as emoções e os chamados erros, defeitos ou

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armadilhas cognitivas desempenhem algum papel importante na tarefa de interpretar/decidir que unicamente os cientistas e juristas não sabem ver?[6] Simplesmente não o sabemos. Parece não existir no cérebro nenhuma área específica (e se houver a neurociência ainda não conseguiu descobrir) em que a neurofisiologia misteriosamente se torna psicologia. O que há é um padrão de ativação cerebral que pode implicar um número considerável de estruturas cerebrais e que em algum momento é suficiente como para que o sujeito-intérprete possa compreender o objeto interpretado: um trabalho que envolve múltiplas e distintas regiões do cérebro (não necessariamente conectadas por simples trajetos sinápticos ou sinapticamente distantes) contribuindo harmoniosamente para o todo (ou envolvidas em aspectos complementares da mesma tarefa: de cada região, segundo suas possibilidades; para cada uma, segundo suas necessidades – M. Rose). Ademais, seguimos sem entender como se produzem os fatos mentais mais triviais. Não sabemos o que ocorre no cérebro quando interpretamos, tomamos uma decisão ou quando aprendemos um número de telefone. Nem sequer acabamos de entender para que serve dormir ou sonhar. A informação topográfica de que dispomos não proporciona conhecimento algum sobre os mecanismos subjacentes nem permite averiguar ou compreender o que ocorre no cérebro, senão somente onde ocorre. 6 Particularmente com relação ao fenômeno jurídico (tanto no que se refere ao seu aspecto ontológico como metodológico de interpretação e aplicação do direito) o problema da localização dos correlatos cerebrais que ditam o sentido da justiça suscita as seguintes questões: Qual a relação existente entre os resultados da investigação neurocientífica sobre a cognição moral e jurídica e as perspectivas teóricas do direito? Em que pontos se podem enlaçar de modo presumidamente tão decisivo para que a neurociência cognitiva ponha em questão os resultados da compreensão e da realização jurídica? De que forma um modelo neurocientífico do juízo normativo no direito e na justiça oferece razões poderosas que poderão vir a dar conta da falsidade subjacente às concepções comuns da hermenêutica, da racionalidade e da psicologia humana? Que alcance pode chegar a ter essa perspectiva neurocientífica para o atual edifício teórico e metodológico da ciência jurídica? Ou, já que estamos, achará a neurociência as áreas ou redes cerebrais encarregadas da interpretação e da tomada de decisão ético-jurídica? Talvez nem sequer existam tais áreas específicas. A interpretação e a decisão obedecem a muitos fatores, tão diversos como a empatia, o momento, as circunstâncias, a ideologia, os princípios morais, a ética, as normas, a sensação de autonomia, o medo, a fome, a cultura, os costumes, o desejo, a madurez. A lista poderia ser interminável e nenhum destes fatores poderiam determinar de forma absoluta as decisões do ser humano. Em qualquer caso, dilucidar a dúvida por meio de métodos experimentais ou solucionar o problema com a ajuda de mecanismos empiricamente contrastáveis é algo que não podemos renunciar, sob pena de continuarmos a cometer os mesmos disparates filosóficos e hermenêuticos.

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Como explica Patricia Churchland, nem sequer sabemos como codificam a informação os neurônios; e isso é muito não saber. Em muitos casos, continua, “la variabilidad natural de la macroestructura no predice nada sobre la función del cerebro (quiero decir, en oposición a las causas de un disparo, por ejemplo). Todavía es más interesante que la variabilidad estructural a menudo no prediga nada sobre microestructura, que es dónde se encuentra la acción. O como lo diría un mercenario político: Es el cableado, estúpido. ¿Los escáneres cerebrales pueden apreciar el microcableado? No. *…+ Hagamos un brindis por la variabilidad, la adaptabilidad y el cableado del cerebro. Y mientras fluye el Chardonnay, celebremos todo lo que sabemos sobre el cerebro”. Mas a circunstância de que desconheçamos ou de que ainda não saibamos responder a muitos interrogantes não é, nem nunca será, motivo suficiente para que as teorias hermenêuticas não tenham em conta as evidências e os fatos já estabelecidos. Qualquer discurso hermenêutico que se limite a estabelecer sinistras combinações léxicas, conceituais, filosóficas e/ou meras tendências sociais para fundamentar seus argumentos resulta «tan útil y eficaz como una cucharada de miel», com um grau de ingenuidade ou rigor científico muito cercano ao zero absoluto e regido pelo que P. Z. Myers denomina «o princípio da mediocridade». Compreender como se realizam as conexões dos neurônios, as interações dinâmicas entre regiões múltiplas do cérebro ao estabelecer as redes que levam aos juízos morais - como no caso de alguns experimentos estéticos já levados a cabo (C. J. Cela-Conde et al.) [7] – ou buscar entender a mente do sujeito-intérprete para ver o 7 No século XVIII, filósofos escoceses e ingleses (Shaftesbury, Hutcheson, Hume e Smith) começaram a discutir alternativas ao racionalismo. Defenderam que as pessoas têm um sentido moral incorporado que cria sentimentos agradáveis de aprovação às ações benevolentes e os correspondentes sentimentos de desaprovação para o mal e o vício (J. Haidt). David Hume (1751) em particular propôs que os juízos morais são similares enquanto à forma aos juízos estéticos. Os dois derivam do sentimento, não da razão, e logramos conhecimento moral por uma “sensação imediata e um sentido interno afinado”, não por uma “relação de argumento e indução.” O intuicionismo em filosofia e os enfoques intuicionistas em psicologia moral, por extensão, mantêm que em primeiro lugar se tem as intuições morais (incluindo as emoções morais) e estas causam diretamente juízos morais (J. Haidt, J. Kagan, J. Q. Wilson, R. C. Solomon). Esta posição concorda com que a boa neurociência nos ensina do cérebro (A. Damasio, J. Ledoux, M. Gazzaniga, P. Churchland), “o que é particularmente interessante porque vários autores (por exemplo, T. Jacobsen) já postularam a eventual existência no cérebro de mecanismos compartidos pelos juízos estéticos e morais (isto é, entre a apreciação moral e estética sensu stricto). Portanto, a

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mundo tal como o percebe é necessário para ter uma ideia, ainda que limitada ou aproximada, das verdadeiras causas que nos levam a interpretar e decidir [8]. O realmente novo já está aí fora e negá-lo parece ser de um cinismo atroz e/ou de uma estupidez imperdoável e irredimível. O compromisso de compreender cientificamente a arquitetura e o funcionamento cerebral humano (as atividades que transcorrem no cérebro de uma pessoa quando esta está interpretando, decidindo ou formulando juízos de valor), de dirigir-se para dentro do cérebro e buscar ali os substratos neuronais responsáveis de nossos juízos morais, de nossas emoções, de nossos pensamentos, de nossas interpretações e decisões pode resultar efetivamente útil se o objetivo de tal empresa estiver voltado (i) a estabelecer a evidência de que é o cérebro, como uma máquina antecipadora, associativa, detectora de pautas e elaboradora de significado, que constrói o resultado de toda e qualquer interpretação, comparando automaticamente o contexto de suas experiências passadas com as percepções presentes e as expectativas de futuro, (ii) a analisar os múltiplos fatores e influências, inatas e adquiridas, que condicionam todo o processo de interpretação-decisão jurídica, e (iii) a desenhar uma metodologia jurídica o mais amigável possível com relação às limitações próprias da capacidade cognitiva do sujeito-intérprete. E uma vez que a ciência trata todo o tempo de estender os limites do que se conhece, os estudos procedentes das (boas) neurociências e das ciências cognitivas não somente proporcionarão um câmbio na imagem que temos do mundo e de nós mesmos - rebaixando o orgulho de determinados juristas empenhados em criar a história imaginária de uma hermenêutica ingênua e/ou acéfala -, senão que também constituirão uma oportunidade para refinar, estabelecer ou reinventar novos parâmetros hermenêuticos e critérios metodológicos a partir da construção conjunta coincidência entre as redes cerebrais morais e estéticas poderia ocorrer” (Camilo J. CelaConde et al.). 8 Outra maneira igualmente produtiva de investigar a mente seria fazê-lo desde a perspectiva da «cognição corpórea», que se baseia na ideia de que muitos pensamentos ou processos cognitivos não somente estão relacionados com o que sucede no cérebro, senão que também respondem a sensações físicas e a informação do corpo e de sua interação com o entorno. Se trata de uns processos cognitivos básicos que são muito similares aos de outros animais. Como assinala, Simone Schnall, “nos gusta creer que nuestra inteligencia nos hace muy especiales, pero procesamos el mundo que nos rodea de una manera muy parecida a como lo hacen otros seres vivos”.

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de alternativas reais e factíveis, devidamente assentadas sobre cimentos mais firmes e empiricamente consistentes. O que “devemos” ou o que “podemos” fazer e o que nos “cabe esperar” seguem sendo perguntas da filosofia que agora há que responder com a ajuda da boa ciência para saber de forma mais acabada, psicologicamente aceitável e neurobiologicamente realista o que é e em que consiste interpretar e decidir.

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