Interpretação jurídica: convencidos, mas equivocados (Parte 1)

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Interpretação jurídica: convencidos, mas equivocados (Parte 1)




Atahualpa Fernandez(

Quando determinadas teorias hermenêuticas e
argumentativas essencialmente especulativas necessitam
incontáveis páginas para serem compreendidas, talvez seja
hora de rever ou voltar a desenvolver a teoria e a forma em
que se discutem em público. Até então, o que teremos é
uma clássica mentalidade de "torre de marfim": um grupo de
juristas acadêmicos que se encerram em uma habitação e,
absolutamente seguros de si mesmos, convencidos que sabem
mais que ninguém e completamente ignorantes do domínio de
qualquer conhecimento ou técnica científica, fazem
proclamas ao mundo anunciando suas teorias com fórmulas e
técnicas, conceitos e postulados, critérios e métodos
"confusogénicos para cualquier ser humano". Parece que
alguém necessita com urgência uma explicação sobre a
«navalha de Ockham».



A interpretação representa um verdadeiro banco de provas para o
jurista. Não é por acaso que constitua, falando com propriedade, matéria
de ensino: baixo o domínio ordenador da razão, é tratada como o campo dos
conceitos cognoscíveis e distintos, de regras e critérios, mediante os
quais um acervo de métodos com nomes elusivos, sombrios e incertos encontra
sua aplicação rigorosa. É o lugar das técnicas e das formas de argumentação
articuladas e reconstruídas sobre a mesa dos consumados agentes práticos do
direito, em benefício de quantos preferem ver a tarefa interpretativa como
uma atividade puramente racional, um artifício hermenêutico-metodológico
constituído por um conjunto de noções e de instrumentos forjados para levar
a cabo processos de decisões e conseguir resultados de maneira ordenada,
justificada, controlada, acabada, ponderada, razoável, objetiva, imparcial,
consciente e/ou, no limite do intolerável, neutra com relação à
neutralidade.
Tomar decisões, por outro lado, é o resultado do ato de interpretar e
usar a norma (princípios e regras) para orientar a conduta humana entre
múltiplos cursos de ação possíveis. A decisão determina o modo em que o
intérprete autorizado atua no mundo e seu grau de êxito em fazer frente aos
conflitos da vida social. E embora a norma jurídica não estabeleça a forma
das eleições individuais uma por uma, ao menos dispõe ou pode gerar
mecanismos de processo de informação que se reproduzirão fiavelmente como
resultado de classes particulares de eleições em casos e situações
específicas – ainda que em muitas ocasiões as barulhentas narrativas
engendradas por uma interpretação/decisão produzam um relato ou discurso
muito pouco sólido, mas que se dá por verdadeiro ou correto somente pelo
fato de que parece ter algum sentido.
A partir daí não resulta difícil inferir o porquê não interessa em
absoluto o estudo dos limites, das restrições e dos condicionantes da
capacidade humana de interpretar e de tomar decisões em si. Para quê? O que
realmente interessa é a "ingestão" ou compreensão – ainda que aproximada
e/ou defeituosa - dos critérios, regras, estratégias e métodos de
interpretação e de tomada de decisão, considerando as situações e os casos
concretos em que podem funcionar. Todo um instrumental de técnicas de
interpretação posto à disposição do agente jurídico com a finalidade de:
(i) obrigar a norma silenciosa a "falar"; e (ii) eliminar, camuflar,
manipular e/ou subtrair qualquer solução, decisão ou resultado devido às
perspectivas individuais, limitadas, singulares e particulares do sujeito
intérprete.
Desse modo, para as principais teorias sobre a interpretação jurídica,
o ato de manobrar o processo de tomada decisões "corretas" gira ao redor de
um axioma onipresente: os seres humanos são racionais. Segundo esta
concepção que constitui os cimentos de grande parte das teorias jurídicas
contemporâneas, os intérpretes (nomeadamente os juízes) são ou devem ser
(o que pressupõe que podem) racionais e objetivos em seus juízos de valor
acerca da justiça da decisão. Quer dizer, atendidos determinados
princípios, regras e critérios metodológicos, estão capacitados para
examinar o melhor que podem todos os elementos pertinentes ao caso e
ponderar, sempre de forma imaculada e aparentemente neutra, imparcial,
razoável, prudente e não emocional, o resultado provável que segue a cada
uma das eleições potenciais.
A opção preferida ("justa") é aquela que melhor se adequa aos
princípios, métodos, regras ou critérios de racionalidade, razoabilidade e
objetividade por meio dos quais a "ponderada" decisão foi gerada. Esta
sobrevalorada concepção da racionalidade jurídica está fundada na premissa
de que, como humanos, estamos todos dotados de um elevado grau de sentido
comum para prestar atenção às coisas que nos rodeiam, que nossa memória é
mais consciente, controlável e fiel do que é em realidade e que a
capacidade de racionalizar e/ou ponderar é um indicador fiável da precisão
de nossos juízos.[1]
Sendo honesto, este tipo de postura já não tem absolutamente nenhum
sítio na cabeça de uma pessoa sensata. Sejamos sérios e não nos entreguemos
ao discurso hermenêutico ou argumentativo imperante como o alcoolátra à
bebida. Por quê? Pois pelo simples fato de que a entranhada suposição da
racionalidade jurídica é equivocada, não somente porque os agentes reais do
direito não são tão racionais como se pretende (e tampouco funcionam como
se o fossem), senão também pela circunstância de que: (i) simplifica ao
extremo, artificializa e distorce a análise dos múltiplos fatores e
influências, inatas e adquiridas, que condicionam nossas interpretações e
nossas decisões; e (ii) elude a evidência de que a razão não cria valores,
"sino que se configura en torno a ellos y los lleva hacia nuevas
direcciones". (S. Blackburn)
Como explica Enrique P. Haba, as teorias dominantes sobre a
hermenêutica e a argumentação jurídica pecam não tanto por boa parte de
quanto dizem, senão sobretudo pelo que não dizem. São "teorizaciones
pseudodescriptivas – basadas en unas «intellectualist assumptions» – con
respecto a los razonamientos jurídicos. Así ellas conducen a apartar la
vista de los decisivos ingredientes de anti-racionalidad, legitimando los
modus operandi tradicionales de los operadores del derecho positivo… Una
«cirugía estética» frente a los razonamientos judiciales normales y sus
consecuencias prácticas".
É verdade, e o amável leitor (a) não tem por que sabê-lo, que no
submundo da filosofia/"ciência" do direito e principalmente após a aparição
do livro de Daniel Kahneman («Thinking, Fast and Slow»), alguns juristas
(como por iluminação espiritual de um "caminho a Damasco") começaram a
perceber, já agora com base em provas empíricas que assim o sustentam, que
o ato de interpretar/decidir poucas vezes é perfeitamente racional e que as
emoções não podem considerar-se (ao menos globalmente) como um elemento
perturbador da racionalidade. Por exemplo, há um grupo de juristas que
escrevem sobre os limites ou as restrições do entorno que influem na tomada
de decisões. Utilizando a noção de uma racionalidade limitada ou "impura"
desde esta perspectiva, se dão conta de que um organismo não tem uns
recursos nem um tempo ilimitados. Dadas estas restrições, a questão se
converte em saber e propor qual é a solução/decisão "óptima" ou correta.
Há outro grupo que em lugar de centrar-se nos limites do entorno se
centra nos da mente. Nele se incluem alguns juristas para quem o indivíduo
soe adquirir uma informação limitada e às vezes toma decisões baseando-se
unicamente em um ou dois critérios. Centram seus argumentos exclusivamente
na relação entre as ilusões cognitivas e o estudo da tomada de decisões,
donde se considera um prejuízo ou "erro" qualquer forma de conduta que dê a
entender que a pessoa passa por alto determinadas informações ou só faz uso
de poucos dados. Creem, diz Gerd Gigerenzer, "que la gente toma malas
decisiones por razones apriorísticas, a causa de prejuicios, errores o
falacias, y se centran en las limitaciones o restricciones mentales". Nada
obstante, estes autores não analisam as influências do entorno; quer dizer,
não tratam de relacionar a mente com seu entorno.
O inconveniente destas (inovadoras) propostas que emergem timidamente
na atualidade é que nenhuma aproveita com profundidade aquilo do que se
aproveita a mente humana, ignorando explicações alternativas:
(i) que a mente está imersa no entorno, que os limites da mente estão
relacionados com os do entorno, que esses limites se unem, e que para
entender devidamente a conduta humana é necessário ter em conta estas duas
restrições;
(ii) que, conquanto reconheçam o papel das emoções, sentimentos,
prejuízos, ideologias, etc...etc., a experiência de interpretar e eleger a
decisão «correta» ou «satisfatória» não é uma ficção, senão algo a todas
luzes orgânico, uma atividade mental associada a um estado biológico: uma
função do cérebro, uma consequência causada pela atividade fisiológica dos
tecidos de um cérebro moldado geneticamente ao longo da história evolutiva
de nossa espécie e aparelhado para pensar de certa maneira[2]; e
(iii) que as ilusões, os prejuízos, as falácias, os defeitos, as
emoções e/ou os erros (cognitivos) de juízo podem ter (ou melhor,
seguramente tem) um valor adaptativo, isto é, que quiçá desempenhem algum
papel importante que os juristas, furtivos devotos de algum tipo
inescrutável de racionalidade, não sabem ver.
Depois de tudo, a quem lhe gostaria ser julgado por um «psicopata com
toga»?
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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto
de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent
Researcher.
[1] Não analisarei aqui os problemas relacionados com os inconvenientes, os
limites e a natureza essencialmente subjetiva da "ponderação" como técnica
hermenêutico-argumentativa. Admito, contudo, que a ponderação consiste
fundamentalmente em um processo (subjetivo) de valoração das razões para
interpretar a norma de uma ou de outra maneira, no contexto de suas
interpretações possíveis. Porque, e aqui está o dado decisivo, nem os
princípios, nem as normas e nem os valores pesam ou valem "em si", nem as
circunstâncias do caso pesam ou valem "em si"; o respectivo "peso" e/ou
"valor" dá o juiz intérprete, ao sopesá-los, ponderá-los e interpretá-los.


[2] Nesse sentido, por exemplo, H. Bennett e G. A. Broe analisam o papel
das emoções nos processos de tomada de decisão judicial, avaliando uma
decisão da Suprema Corte de Austrália no caso Markarian v The Queen.
Partindo de uma crítica sobre a teoria jurídica tradicional, segundo a qual
se presume que os juízes não têm emoção operativa sobre os litigantes e
seus respectivos ou que, em todo caso, as emoções devem ser suprimidas de
forma ativa – o que reflete uma sabedoria de sentido comum, não comprovada,
de que a emoção distorce o raciocínio jurídico exigido pela função judicial
-, Bennet e Broe argumentam que, em contraste com esta presunção, contudo,
as recentes investigações da neurociência demonstram que a emoção é
suscetível de desempenhar um papel fundamental de facilitador na tomada de
decisão jurídica através da participação do córtex pré-frontal
ventromedial, em particular no que se refere às áreas do direito quando as
circunstâncias pessoais, sociais e morais são consideradas, áreas que
incluem o direito penal e a decisão condenatória. Como assinala A. Damasio,
a tomada de decisões implica, a nível cerebral, uma rápida representação
mental da série de possíveis situações e das consequências vinculadas a tal
decisão e nesse processo se ativam os componentes emocionais das
alternativas avaliadas, jogando estas assim um papel importante na eleição
da decisão mais vantajosa. «En las sociedades humanas – diz Damasio –
existen convenciones sociales y normas éticas por encima de las que ya
proporciona la biología. No obstante, a pesar de que esas convenciones y
normas se transmiten a través de la educación y la socialización, las
representaciones neuronales de la sabiduría que encarnan se hallan
inextricablemente ligadas a la representación neural de los procesos
biológicos reguladores innatos. Y la ligazón cerebral está formada por
conexiones entre neuronas».
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