Interpretação jurídica: convencidos, mas equivocados (Parte 3)

Share Embed


Descrição do Produto

Interpretação jurídica: convencidos, mas equivocados (Parte 3)




Atahualpa Fernandez(




Na lista dos grandes estafadores do direito figuram
alguns filósofos e juristas que, ao elaborarem suas
teorias, padecem da "síndrome do neologismo compulsivo":
uma esquizofrênica fascinação por inventar termos,
expressões e conceitos novos e sedudores (como se os que já
existem não são suficientes ou, quiçá, demasiados pobres
para abarcar seus delírios). Dá a impressão que este tipo
de adição nasce de um patológico desejo narcisista de crer
que são especiais, da falaz euforia egocêntrica de que
entre tantos filósofos e juristas como existem, são, de
alguma maneira, diferente de todos. Como se tivessem algo
de extraordinário, de invulgar, ainda que não sejam
consciente dele: um "it" esquivo, um exibicionismo
incontido, um fator "X", uma «inteligência» única. Tremenda
arrogância. O curioso é que este tipo de filósofo ou
jurista "tonto encuentra siempre otro más tonto que lo
admira". Louca sabedoria!




Na prática, não há qualquer hermenêutica, argumentação, dogmática ou
metodologia jurídica, por perfeita que seja, capaz de eliminar a realidade
de que uma interpretação/decisão não costuma ser mais racional que a
vontade, as emoções, as intuições, as experiências vitais e o conhecimento
de quem a produz. Os agentes principais da atividade interpretativa que
determinam sua dinâmica são indivíduos que basicamente respondem às
orientações de seus genes e de seus neurônios, assim como de suas histórias
pessoais, memórias, valores, aprendizagens, sentimentos, intuições e
influências procedentes do ambiente e da mentalidade comum.
Por certo que, em tema de interpretação e decisão jurídica, a lógica
pode indicar distintas possibilidades e rechaçar as variantes absurdas, que
a hermenêutica e a racionalidade seguramente ajudam a interpretar e aplicar
direito, e que não se deve desdenhar a importância de transformar nossos
vagos instintos em um conjunto explícito de argumentos jurídicos – ainda
que levem a maus resultados, não só porque os seres humanos são
incrivelmente deficientes no uso da razão, senão porque sistematicamente se
esforçam por argumentos que justificam e confirmam suas crenças e/ou suas
ações (H. Mercier).
Nada obstante, nenhuma teoria magistralmente especulativa, nem
filosofia prolixamente contemplativa, nem as espinhosas sutilezas de uma
suposta lógica ou metodologia perfeccionista, pode pesar mais que o
funcionamento real do mais limitado dos cérebros implicado na solução de um
problema no mundo real. Nossos erros cognitivos, nossos prejuízos, nossas
emoções e intuições morais, sem as quais não seríamos sequer capazes de
valorar e decidir, existem muito antes que os teóricos e filósofos do
direito propusessem as primeiras teorias e métodos para orientar a
interpretação jurídica.
Logo, se queremos insistir na racionalidade, de que não devemos "abrir
las puertas de la bodega para dejar que salgan los fantasmas de la
irracionalidad o las alimañas del decisionismo" (A. Nieto), adiante (algo
satisfatório deve ter este diálogo de surdos da perene racionalidade
jurídica). Ainda assim, é necessário saber de antemão que a racionalidade
custa, que raramente é uma atividade fácil, que ativá-la requer esforço
mental, atenção, deliberação e manipulação explícita da cognição (custosa
em tempo, energia e calorias), que pensar é um trabalho duro, que nossas
vidas diárias estão organizadas para economizar o pensamento e que um
intérprete racional nem sempre é aquele que tem uma visão do mundo mais
consistente, senão aquele que é capaz de contar as melhores histórias ou de
elaborar as mais barrocas das justificações. Como sugere David Hull, a
regra que parecem seguir os seres humanos consiste em comprometer-se com o
pensamento racional somente quando falha todo o demais; e normalmente nem
isso.
Tampouco é mais racional quem rechaça as emoções em nome de uma
inexistente razão desencarnada, senão aquele que é capaz de examinar e
assumir seus próprios prejuízos, debilidades, preferências, etc...etc., sem
a desvairada ilusão de pretender jugular a iniludível subjetividade que
caracteriza toda e qualquer atividade interpretativa/decisória. Todo
intento de separar, nomeadamente em sede de interpretação/decisão
jurídica, a racionalidade da personalidade que compreende está fatal e
tragicamente condenada ao fracasso. A neutralidade insana é tão remota que
resulta deprimente e tremendamente contrária a nossa marcada disposição
para projetar a própria subjetividade no mundo: somos, definitivamente, uma
idiossincrasia com patas.
Por outra parte, uma concepção mitigada e revisada da racionalidade
rebaixa o tom triunfalista e evangélico característico das teorias
hermenêuticas e da argumentação jurídica atuais. Argumentar publicamente
que o chamado "pensamento racional" constitui a essência da interpretação,
da decisão e do discurso jurídico reflete expectativas pouco realistas.
Nossas emoções e intuições são as que decidem, e logo a razão faz o que
pode para encontrar justificações: "Isto é justo ou injusto?", se pergunta
nossa mente primitiva a cada instante... "milésimas de segundo depois
tratamos de esboçar um juízo razoado" (H. Mercier). Relâmpagos irracionais
de intuição seguida por uma argumentação rigorosa e motivada pela
capacidade das pessoas em encontrar explicações e justificações post hoc
extraordinariamente bem, com rapidez, segurança e eficácia[1]. Animais
irracionais, como qualquer outro, que julgam e valoram movidos por seus
instintos sem necessidade de sabê-lo ou pensar neles, mas com um verniz de
racionalidade sobre os velhos móveis que adornam nossas emoções e
sentimentos.
Resumindo, temos uma mentalidade dual que sugere soluções intuitivas
imediatas, bastante antes que tenhamos pensado no assunto que nos ocupa, ao
que segue um segundo processo mais lento que examina a qualidade e a
viabilidade dessas soluções. Ainda que o segundo processo nos ajude a
justificar as decisões, apresentar estas justificações como as razões reais
é um flagrante embuste, para não dizer um disparate. É virtualmente
impossível desligar a interpretação e a tomada de decisões racional das
predisposições mentais, dos valores subconscientes, dos prejuízos, dos
sentimentos, das intuições e das emoções – "y el simples hecho de saber que
tales factores, actitudes e influencias pueden ser inapropriadas no les
resta fuerza de forma automática". (R. M. Hogarth)
Teorizar sobre a hermenêutica e a argumentação jurídica depreciando ou
ignorando deliberadamente a necessidade de tomar em consideração esta
evidência ou as aportações decorrentes das ciências do comportamento e da
cognição humana é o mesmo que pretender calcular ou medir o tempo
necessário para voar de um lugar a outro empregando a definição do tempo de
Heidegger como "maduração da temporalidade". Uma estafa ou um impulso de
mediocridade; ou, no melhor dos casos, elucubrações de juristas (em
princípio paradigmas de honestidade intelectual) vítimas do autoengano e
das hipóteses míopes. 
Não seria mais sensato e decente conhecer as verdadeiras causas pelas
quais tomamos decisões ou levamos a cabo a ação de interpretar (quer dizer,
saber de forma mais acabada, psicologicamente aceitável e
neurobiologicamente realista o que é e em que consiste interpretar e
decidir) em lugar de tentar manipulá-las? Claro que sim! O problema é que
dar-se conta da «fenomenologia» da interpretação/decisão, compatível com a
natureza física e biológica de nosso cérebro, implica assumir a evidência
de que somos, ao fim e ao cabo, nada mais que uns pobres animais
engendrados por obra e graça da evolução das espécies. Coisa que muito
poucos juristas estão dispostos a admitir.
Agora: Em que medida o isolamento teórico-dogmático do conhecimento
jurídico, o frenesi endêmico da filosofia e da ciência jurídica, constitui
um grave obstáculo para averiguar o que podemos saber e, a partir daí,
avaliar o que devemos e o que queremos fazer com a tarefa de interpretar e
de decidir? Por que os juristas, "cientistas" e/ou filósofos do direito
continuam ilhados das demais ciências e se resistem a evolucionar ou, se o
fazem, seus câmbios não provêm de nenhuma investigação científica séria?
Por que fogem dos fatos, rechaçam as evidências, ignoram as provas e
descuidam dos melhores argumentos quando desafiam "paradigmas" e interesses
estabelecidos? Por acaso não sabem que o retraimento disciplinar é um
indicador fiável da falta de cientificidade e honradez intelectual? Quanto
tempo os juristas tardarão para entender que não podem existir pensamentos
(ou sorrisos) sem cabeça? Até quando seguirão banhando-se nas águas
estancadas dos labirintos de uma erudição acadêmica que não conta com o
certificado de legitimidade das ciências dedicadas a aportar uma explicação
científica da mente, do cérebro e da natureza humana?
No contexto da fração pasmosamente pequena e distorcida do direito que
nos transmitem continuamente, e ainda que dando por assentado que vivemos
em um entorno social em que se pode dizer qualquer coisa das que não temos
nenhuma prova, o certo é que nos estão vendendo "ectoplasmas", sistemas
arbitrários de pensamento, um produto invisível e vazio de fundamentos
científicos sólidos, como se fora a quintessência do profundo, o
esclarecedor, o reflexivo: é a atividade eletroquímica de redes neuronais
no cérebro (dos circuitos físicos situados no córtex pré-frontal e em
outras partes do cérebro), e não os poderes ocultos de uma «pré-
compreensão» ("prejuízo", "causa primeira incausada", "círculo
hermenêutico", "ponderação" ou algo pelo estilo), a que condiciona e
determina o processo de interpretação e decisão jurídica. Mais além disso,
tudo é especulação.
Opino que buscar entender a mente do sujeito intérprete para ver o
mundo tal como o percebe e reconhecer o peso e a relevância das emoções,
das intuições e do entorno na atividade interpretativa e no processo de
tomada de decisão não somente pode ajudar a entender melhor ao ser humano
(ao ser humano que interpreta, argumenta e decide) e a «vulnerabilidade» de
seu «mundo interior», senão também a cambiar a noção de campo ou mundo
vital, com relevantes consequências à «falácia abstrativa» predominante na
hermenêutica jurídica que, ao desenhar modelos abstratos alheios à
realidade (mas que se consideram investidos de uma importância cósmica),
incorre com demasiada frequência no que P. Z. Myers denomina «o princípio
da mediocridade».




-----------------------
( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto
de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent
Researcher.
[1] Quer dizer, ainda que uma decisão implique alguma classe de
argumentação, justificação ou deliberação consciente/racional, o resultado
ou solução segue dependendo de um conjunto de intuições e emoções
irracionais – isto é, de processos cognitivos dos que não somos
conscientes. Uma espécie de "preguiça seletiva do razoamento", que consiste
no fato de que, quando o pensamento (razoamento) produz argumentos, produz
principalmente justificações «post hoc ergo propter hoc» de respostas
intuitivas e não é particularmente crítico com os argumentos próprios para
tratar de minimizar tanto "como pueda el sesgo de confirmación y otros
procesos de razonamiento defectuosos" (pelo contrário, afirmam E. Trouche
et al., quando o razoamento avalia os mesmos argumentos como se foram de
outra pessoa, demonstra ser tanto mais crítico como exigente). Com justa
razão, já dizia Christopher Hitchens: "Sospecha de tus propios motivos y de
todas las excusas". Precisamente, uma parte tanto fascinante como
desafiadora do pensamento crítico-racional é tratar de ser tão exigente com
os argumentos próprios como com os alheios. [Nota bene: Não discutirei aqui
a desesperada e arbitrária distinção que tem sido utilizada, no âmbito da
argumentação jurídica, para estabelecer que uma coisa é o processo mental
ou o conjunto de fatores capazes de explicar as causas, influências e/ou
circunstâncias como foi concebida ou gerada uma conclusão ou decisão
(«contexto de descoberta») e outra o conjunto de regras, critérios e
argumentos mediante o qual se justifica dita conclusão ou decisão
(«contexto de justificação»). Em minha opinião, decoberta e justificação,
na prática e/ou desde um ponto de vista operativo, não são dois atos
separados e estanques, senão que constituem um processo unitário, um
continuum, compondo uma indivisível e solidária unidade hermenêutica. O
ponto essencial é que, neste caso, uma concepção que seja «aproximadamente
correta» (não distinção) é mais útil para analisar o fenômeno da
interpretação que outra que seja «exatamente errônea» (distinção): uma
conclusão ou decisão pode ser perfeita em termos epistêmicos, analíticos
e/ou argumentativos, mas isto não exclui em absoluto a subjetividade, a
realidade da experiência pessoal dependente das características do entorno
e os condicionantes neurológicos e psicológicos (processos mentais internos
dos que não somos conscientes, não temos acesso e que regem uma porção
imensa da vida mental) que afetam sem dúvida o agente jurídico que a
produziu. Uma espécie de "racionalidade impura" ou "quase racionalidade"
(K. Hammond) que implica um compromisso do juízo entre intuição, emoção e
razão, e também entre diferentes variáveis socioculturais ou pistas
informativas procedentes do contexto em que se produz a conclusão ou
decisão.]
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.