Interpretação jurídica: convencidos, mas equivocados (Parte 4)

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Interpretação jurídica: convencidos, mas equivocados (Parte 4)




Atahualpa Fernandez(




Não há que ser tão crítico e/ou incomplacente com o tipo
agonizante de jurista que reluta em manter-se ao dia com os
desenvolvimentos científicos pertinentes. Deve resultar
intimidante e insultante, quando se é jurista toda a vida,
reconhecer de repente que os neurocientistas, psicólogos,
biólogos, antropólogos, etc., sabem algumas coisas importantes
acerca do funcionamento interno da mente que podem ter um
impacto direto sobre tudo o que sabem fazer. Ninguém quer voltar
a começar de novo. Também é provável que simplesmente não creia
– ou, no pior dos casos, não lhe importe - que seja necessário
compreender, dentro de um marco intelectualmente rigoroso e
comprovado empiricamente, de que forma os intérpretes "reais"
emitem juízos e tomam decisões para explicar o fenômeno
hermenêutico. Como disse em certa ocasião Einstein: "Si juzgas a
un pez por su habilidad para trepar árboles, vivirá toda su vida
pensando que es un inútil." Malditos juristas!




O importante, em minha opinião, é abraçar seriamente a ideia de que a
interpretação requer sempre uma conjunção de razão e sentimento, e que
nenhum antecedente de educação pessoal, nenhuma lealdade profissional,
nenhuma teoria com seus deslumbrantes neologismos[1] ou metodologia
detalhista é capaz de refrear. Os instintos, as intuições, as memórias, as
emoções e as experiências de outros, transmitidas formal e informalmente
através de normas e instituições, geram e modulam nossos desejos, nossas
preferências, nossas visões (prévias) do mundo, nossas opiniões, nossas
necessidades e nossas circunstâncias.
A consciência do intérprete, que deve ser necessariamente levada em
conta (e cuja intimidade e subjetividade são o selo mais distintivo e
genuíno), não dispõe apenas do "componente" do conhecimento, senão também
do "componente" emotivo-volitivo. E dado que a interpretação/decisão
depende tanto do que passa na mente do intérprete como de sua relação – sua
relação causal – com o que passa no mundo, toda e qualquer teoria
hermenêutica ou da argumentação jurídica, para que suas propostas
programáticas e pragmáticas sejam reputadas aceitáveis, deveria fazer uso
deste conhecimento, e não ignorá-lo, usurpá-lo ou destruí-lo.
O desejo ou a fantasia hiperracionalista de demonstrar que todas
nossas interpretações e decisões se baseiam, em última instância, em
premissas exclusivamente racionais é uma enorme equivocação e devemos
abandoná-la[2]. A articulação co-constitutiva da afetividade e da razão,
empiricamente contrastável, intervém em toda a interpretação, compreensão,
justificação e aplicação de uma vontade alheia, sobretudo naqueles domínios
em que o "caso concreto", o "caso da vida real", surge ao intérprete com
uma variedade e uma multiplicidade desconcertantes.
E se admitimos que o direito é um conjunto de hábitos interpretativos
coletivamente desenvolvidos, não encontraremos muitas dificuldades para
perceber que as atuais teorias acerca da hermenêutica, da interpretação e
da argumentação jurídica parecem ser, hoje, a mais flagrante e patética
expressão de um estridente anacronismo, pelo simples motivo de que partem
de um completo, absoluto e injustificável desconhecimento do funcionamento
do cérebro/mente humano: qualquer intérprete autorizado (jurista, filósofo,
cientista...), por muito sofisticado e experiente que pareça, é tão
vulnerável e tendente "al sesgo a favor de las propias ideas y teorías como
cualquier otra persona común"(J. Haidt). Insisto que continuamos a manejar-
nos, em tema de hermenêutica, interpretação e argumentação jurídica, de
filosofia e ciência do direito do século XXI, baseados em uma psicologia
humana impossível, com uma ideia de natureza humana procedente do século
XVII e com os métodos do século XIX.
Continuamos persistindo em formular construções doutrinárias e/ou
propostas metodológicas cuja principal característica e "utilidade" são a
de servir como mero mecanismo de legitimação posterior à decisão.
Continuamos escravos do anelo de outorgar caprichosa e autoritariamente às
interpretações e decisões jurídicas um aspecto de racionalidade, de
razoabilidade, de ponderabilidade, de objetividade, de neutralidade e valor
epistemológico que do contrário jamais teriam. À semelhança "de una
cortesana, la racionalidad está a disposición de cualquiera. No hay
argumentación que no pueda ser defendida acudiendo a lo «racional» (o, en
todo caso, a lo «razonable»)". (P. E. Haba)
Por muito difícil que pareça, é preciso aceitar que a interpretação
jurídica, tal como a conhecemos, constitui uma atividade levada a cabo por
seres (cérebros) humanos rodeados e atravessadas por pensamentos fundados
em ilusões ou «sesgos» cognitivos, inclinações pessoais e apofenias, em
mitos culturais e valores sociais de grupo, em estereótipos tomados
voluntária ou involuntariamente e em crenças, dogmas, teorias ou
explicações falsas, mas amplamente divulgadas e admitidas. De uma forma ou
outra, todos estes fatores incidem e condicionam o resultado de suas
interpretações, destinadas a transmitir suas mensagens (todas contextuais)
a um público específico em uma época e um lugar determinado. O que talvez a
gente não se dê conta é que o "processo inferencial está condicionado por
seus objetivos, de que somente estão acedendo a uma parte de seu
conhecimento relevante, de que provavelmente acederiam a diferentes crenças
e regras (de inferência) se tivessem objetivos distintos, e de que
poderiam, inclusive, ser capazes de justificar conclusões opostas em
ocasiões diferentes". (Zika Kunda)
Para dizê-lo de uma forma mais despretensiosa, cada um dos intérpretes
do direito é um ser humano, cada um deles, com suas limitações,
deficiências, debilidades e imperfeições, tem algo diferente a comunicar,
cada um intenta transmitir sua visão de mundo a partir da construção de uma
justificação acerca de sua idiossincrásica interpretação. Cada um deles, de
certo modo, adultera, corrige, matiza, intensifica ou transforma os textos
que interpreta. A imagem do intérprete inteiramente despersonalizado passa
por alto da realidade; todas as interpretações e decisões sobre o direito
se inspiram no ponto de vista de alguém, na perspectiva de um ser humano
único cuja recopilação de experiências passadas lhe serve como contexto,
lente e trajetória para valorar sua experiência presente e, dessa forma,
alterar o texto interpretado. Somente intérpretes intelectualmente
limitados (estúpidos) creem tomar cada norma ou princípio de forma literal
e/ou por meio de uma racionalidade «pura».
Esta simples evidência ilustra eficazmente os curiosos malabarismos
que os intérpretes, sempre baixo os baluartes defensivos do "Estado de
Direito" que superam aos da mais poderosa fortaleza medieval, podem chegar
a fazer com os critérios, princípios, regras ou métodos interpretativos
para inferir as decisões que valoram como positivas e que na maioria das
vezes trabalham a favor de suas peculiares convicções, torcendo de forma
arbitrária o significado que atribuem à informação que tomam do mundo.
E dado que há maneiras alternativas de interpretar ou moldurar o que
encontram na norma, os intérpretes parecem ser bastante adictos a encontrar
a decisão (justificações e argumentos) que lhes convêm, um objetivo que na
maioria das vezes lhes leva a afilar, limar e modificar seletivamente a
mensagem normativa: não tanto pelo uso indiscriminado, etéreo e vicioso da
festejada e libérrima "ponderação", mas principalmente por meio de uma
diarréia argumentativa incessante. Nestas tendenciosas inclinações das
interpretações relativamente sutis podem encontrar-se muitos dos defeitos
mais significativos da pretendida racionalidade jurídica.


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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto
de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent
Researcher.
[1] Já atentaram com o devido cuidado que na lista dos grandes estafadores
do direito figuram alguns filósofos e juristas que, ao elaborarem suas
teorias, padecem da "síndrome do neologismo compulsivo", quero dizer, uma
esquizofrênica fascinação por inventar termos, expressões e conceitos novos
e sedutores (como se os que já existem não são suficientes ou, quiçá,
demasiados pobres para abarcar seus delírios). Claro que a arte de enganar
com palavras a si mesmo ou a outros é uma peculiaridade humana primitiva e
um meio eficaz contra o espectro do grande vazio gerado pela estupidez. Mas
tenho a impressão que este tipo de adição nasce de um patológico desejo
narcisista de crer que são especiais, da falaz euforia egocêntrica de que
entre tantos filósofos e juristas como existem, são, de alguma maneira,
diferente de todos. Como se tivessem algo de extraordinário, de invulgar,
ainda que não sejam consciente dele. Um it esquivo, um exibicionismo
incontido, um fator "X", uma «inteligência» única. Não é um talento, uma
quimera nem uma virtude. É outra coisa, algo singular, transcendente e
inefável. Um asterisco invisível que pende sobre suas iluminadas cabeças,
como o protagonista de um "videogame".Tremenda arrogância. O curioso é que
este tipo de filósofo ou jurista "tonto encuentra siempre otro más tonto
que lo admira" (Sherlock Holmes). Louca sabedoria!
[2] Sublinho que a razão, como afirmação da própria subjetividade, não é
uma capacidade natural, uma disposição inata, senão um desideratum do qual
- isto sim - somos conscientes por nosso natural equipamento cognitivo, que
pode ser explicado pelos milhões de anos de evolução biológica que pesam
sobre nós. Quer dizer: o ser humano não é racional por natureza. Isto forma
parte do mito da razão que a filosofia chegou a conceber e a idolatrar em
determinados momentos históricos e/ou em certas propostas de seus
pensadores. Bertrand Russell reconheceu este despropósito intelectual com
as siguintes palavras: "El hombre es un animal racional o, por lo menos,
así se me ha dicho. En el transcurso de una larga vida he buscado
diligentemente pruebas a favor de esta afirmación, pero hasta ahora no he
tenido la suerte de toparme con ellas, aunque las busqué en muchos países
esparcidos en tres continentes. Por el contrario, he visto al mundo
hundirse cada vez más en la locura". Na realidade empírica, o comportamento
do ser humano se ajusta aos processos mentais que operam de forma
subconsciente, automática, espontânea e sem uma consciência deliberada. Da
mera prolongação ideal do comportamento humano não surge a racionalidade no
julgar e proceder de seus juízos, eleições e decisões. Como explica muito
bem Massimo Piatelli Palmarini: "Simplemente, «la» razón no es una
«facultad» congénita, que actúa en nosotros de manera espontánea y sin
esfuerzo. El juicio racional moviliza muchas facultades distintas, a veces
en conflicto entre sí. La racionalidad no es, pues, un dato psicológico
inmediato, sino más bien un complejo ejercicio que tiene que ser
conquistado primero y mantenido después con un cierto coste psicológico.[…]
La racionalidad ideal es ideal." Em suma: a razão há que ser assumida e
praticada desde a consciência de sua complexidade e de seus limites, que
são naturais ao estar enterradas suas raízes no tão pouco racional húmus de
nossa psique, no compromisso que muitas de nossas tendências e capacidades
mentais mantêm com o (evolucionado) «desenho humano».
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