Intervenção Externa em Guerra Civil (a convite de Governo e a Convite de Oposição

June 4, 2017 | Autor: Jose Pina-Delgado | Categoria: International Security, Use of force in international law and international relations
Share Embed


Descrição do Produto

Intervenção Externa em Guerra Civil (a convite de Governo e a Convite de Oposição) José Pina Delgado Juiz do Tribunal Constitucional de Cabo Verde Professor Graduado do Departamento de Direito e de Estudos Internacionais Instituto Superior de Ciências Jurídicas & Sociais I. A intervenção a convite, seja do governo ou da oposição, acontece quando um ou mais Estados são chamados a interceder em situação internas de distúrbios, insurreição, ou guerra civil. As suas origens são antigas e, por isso, frequentemente discutidas pela doutrina, nalguns casos estando intimamente ligadas a relações mantidas entre certas potências e Estados clientes ou, como revela o caso africano, antigas colónias (em especial as francesas). O seu pano de fundo – o conflito interno – não é, enquanto tal, coberto estruturalmente pelo Direito Internacional – embora, naturalmente, possam estar debaixo de certos elementos regulatórios ligados aos seus ramos que protegem a pessoa humana – porque nem o uso interno da força é proibido pelo artigo 2 (4) da Carta das Nações Unidas, nem há uma proibição ancorada no Direito Internacional geral de rebelião. II. Como, ademais, vige um princípio geral de não intervenção, ao qual se deve acrescer o princípio da soberania, o princípio da proibição do uso da força e o direito à autodeterminação dos povos, a intervenção em conflitos internos deve ser vista como uma exceção a essa norma, circunscrita a certas situações e limitadas por certas condições. A única situação em que o regime pode mostrar-se mais problemático é a da guerra civil, pois em relação a outros tipos de conflito interno de menor intensidade, nomeadamente o número 2 do artigo 1º do ‘Protocolo Adicional II às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949, Relativo à Protecção das Vítimas dos Conflitos Armados Não-Internacionais de 12 de Dezembro de 1977’ descarta o interesse do Direito de Guerra em situações de “tensão e de perturbação interna, tais como motins, actos de violência esporádicos e outros atos análogos”. Nestes casos, a inferência óbvia é a de que as autoridades estaduais podem renunciar à sua soberania e solicitar intervenção externa para auxiliá-las a combater ameaças internas. A única limitação é que não se o faça de forma contrária ao Direito Internacional de Proteção da Pessoa Humana.

1

III. Já as situações que podem configurar-se como guerra civil ou que se encontrem debaixo do conceito de conflito armado não-internacional, têm suscitado regimes diferentes, com a utilização de critérios ou nuanças normativas próprias. No século XIX, por influência vestefaliana, consolidou-se a distinção entre a rebelião, a insurreição e a beligerância, que geravam níveis diferentes de legitimação da intervenção de terceiros em determinado conflito. Numa situação de rebeldia, reconhece-se ao governo legitimidade para tratar os grupos rebeldes como uma organização criminosa, permitindo-se-lhe, assim, que possa, eventualmente, solicitar intervenção externa e submetê-los com exclusividade às suas leis e mecanismos de manutenção da ordem; se, no entanto, estes forem classificados como insurretos, nomeadamente porque podem ter pretensões de poder e pode haver uma escalação da violência, ficam num estado intermediário com base no qual o Estado terceiro decide (livremente) se lhe vai reconhecer ou não direitos; finalmente, caso fossem reconhecidos como beligerantes, nomeadamente porque estão a ocupar efetivamente uma parte substancial do território nacional, porque mantêm forças armadas em luta pelo controlo do Estado, porque conduzem as suas operações conforme as regras de guerra aplicáveis, porque têm uma liderança estruturada e responsável e porque é necessário definir o seu estatuto, o efeito desta situação seria o de internacionalizar o conflito por meio de uma ficção de soberania partilhada entre os contendores, mas sem que fosse possível ficar muito cristalino se isto criaria um impedimento geral à solicitação de intervenção ou se, contrariamente, criaria um quadro de permissão geral de solicitação de intervenção como se fosse um conflito interestadual. IV. Todavia, depois da II Guerra Mundial, a invocação do Estatuto de Beligerante tem sido mais rara, pelo menos para efeitos do Direito Internacional da Segurança, não se centrando na internacionalização de facto do conflito resultante da divisão do território entre o governo e os rebeldes que pretendem conquistar o poder. Outrossim, a discussão passa a remeter à determinação da autoridade que, de facto, juridicamente ou por presunção, representa o Estado e pode legitimamente solicitar intervenção externa, em particular porque, em última instância, é através dessa base que se pode justificar a exclusão da ilicitude de um ato que é objetivamente ilícito (volenti non fit injuria), nos termos enunciados pelo artigo 20 do Projeto de Artigos sobre Responsabilidade do Estado por Facto Ilícito e que, em tese, violaria, o importante princípio da proibição do uso e da ameaça do uso da força previsto pelo artigo 2 (4) da Carta das Nações Unidas em conjunto com o princípio da não intervenção.

2

Tradicionalmente, o critério territorial levava a que a entidade (pessoa, partido, grupo) reconhecida que controlasse, com efetividade, o território de um Estado seria considerada o seu representante legítimo. Isto permitia aquela pudesse solicitar intervenção enquanto estes elementos estivessem presentes, mormente enquanto o seu controlo territorial não fosse objectivamente colocado em dúvida, por manifestantes organizados, insurgentes ou rebeldes, em casos de distúrbios internos ou levantamentos armados, mais ou menos clandestinos, ou ainda por atividade criminal generalizada. Caso, todavia, tal efeito decorresse, pressupondo-se que a) o grupo opositor tinha conseguido território; b) conseguia mantê-lo efetivamente, ou seja de forma consistente e duradoida; e c) começava a erguer estruturas de poder e de governação, colocar-se-ia em dúvida a representação legítima do Estado, obstando-se a que o governante em funções poderia solicitar auxílio externo. Por conseguinte, o domínio territorial questionado geraria uma proibição total de intervenção em guerra civil, tanto para a oposição como para o governo, mantendo-se a Comunidade Internacional expectante em relação aos desfecho da contenda interna, e significando isto que a ausência de certeza sobre o representante do Estado resultava cristalinamente numa proibição de intervenção. V. Os rigores de tal regime clássico de tratamento da intervenção em guerras civis sempre foram mais aparentes do que reais. O sistema sempre se tentou ajustar à realidade internacional, tendendo à integração de algum pragmatismo, o que se manifestou com a aceitação da figura da contra-intervenção destinada a reequilibrar uma relação jurídica afetada pela violação dos deveres de não intervenção para auxiliar uma das partes, mesmo que esta fosse o Governo. Permite, a propósito, o regime jurídico tradicional aplicável, que, havendo solicitação de intervenção por parte de um dos contendores e sendo esta materializada, autorizaria, reciprocamente, que a outra parte também a requeira e ela seja consentida. No período da Guerra Fria em particular isto terá estado na base das intervenções nas guerras civis em Laos (1959-1975), Iémen (1962-1970), Vietname ((1961-1975), Chade (1969-1972 e 1975-1993), Angola (1975) e Afeganistão (1979-1989). Todavia, nem sequer é seguro que tal permissão se mantenha em vigor, juntando-se às várias dúvidas que a figura tem gerado no Direito Internacional da Segurança contemporâneo. A reação negativa da Comunidade Internacional ao efeito cascata gerado pela figura da contra-intervenção em situações ocorridas em África na década de noventa do século passado é sintomática não só do efeito de intensificação do conflito, como também da generalização do mesmo. Foi isto

3

que aconteceu, em menor medida, em Angola, com a intervenção de Cuba pelo lado do MPLA e da África do Sul pelo lado da UNITA, além do apoio logístico e militar que foi sendo fornecido aos dois lados por países vizinhos e a participação, direta ou indireta, das duas superpotências; e de forma acentuada na caso da República Democrátia do Congo, em que se gerou uma pequena guerra civil africana com a participação de vários países vizinhos, designadamente Ruanda, Uganda, Angola, Zimbabúe, Namíbia etc. Fenómeno similar repete-se, em alguma medida, no atual conflito sírio. VI. Seja como for, este não é o único problema que confronta o regime jurídico de regulação da intervenção em guerra civil na atualidade. Regista-se, igualmente, um problema estrutural de alteração do critério básico da sua validação, que se prende com a autoridade legítima para solicitar os dois tipos de intervenção. Se, antes, o critério era basicamente territorial, houve um movimento de revisão rumo a uma base mais legitimista, à qual não é alheia a ascensão da democracia como regime preferencial de governo na ordem internacional. O que aconteceu foi que o critério territorial foi abandonado de forma ostensiva em duas situações. Primeiro, em casos nos quais um regime democrático eleito e em funções é vítima de uma tentativa de derrube por forças armadas, oficiais ou rebeldes, o que vem acontecendo, incrementalmente, desde o fim da Guerra Fria, é que a Comunidade Internacional tem desconsiderado completamente o critério territorial, mantendo, por vezes artificialmente, a capacidade de o governante legítimo, ainda que reduzido ou nulo o seu domínio espacial, de requerer intervenção externa como representante idóneo do seu Estado na arena internacional. O caso de Serra Leoa na década de noventa é elucidativo, pois o Presidente Kabbah, mesmo sem controlar parcela alguma do território do país, submetido, na altura, ao domínio da Revolutionary United Front de Foday Sankoh, pode solicitar apoio externo decisivo na reversão desse quadro com o beneplácito das organizações universais, regionais, sub-regionais e de Estados terceiros. Segundo, mas ligado ao primeiro aspeto, certo tipo de organização, por mais que domine um determinado território, mais uma vez por aplicação de critérios diferentes do territorial, não só fica inibida de requerer intervenção externa, sem embargo de manter domínio efetivo sobre determinado espaço habitado e onde cria estruturas de governação, como igualmente está sujeita a que qualquer pedido feito por movimento oposicionista, por menos controlo que demonstre ter sobre os mesmos elementos, seja entendido como lícito pelo Direito Internacional. É o que decorre da análise da situação

4

do Afeganistão pré-intervenção de 2011, em que se desconsiderou o Taleban em prol da Aliança do Norte, e, agora, na Síria, em que ao Daesh/Estado Islâmico, a mesma anátema foi lançada, com efeitos similares a decorrerem. Situação similar passou-se com os independentistas tuaregues que derrotaram as forças armadas malianas, detiveram de forma consistente vastas parcelas de território, ocuparam cidades importantes e declararam a independência do Estado de Al-Azawad, e, todavia, ainda assim, a comunidade internacional aceitou de bom grado uma intervenção francesa solicitada pelo governo instalado em Bamako. Tal ficou a dever-se, em parte, ao facto de as milícias do povo nómada se terem aliado a forças da Al Qaeda no Magrebe Islâmico. Não sendo bem um critério legitimista democrático positivo como o outro anteriormente descrito, não deixa de ter base legitimista negativa axiológica, a partir do momento em que certas entidades tidas por hostis humanis generis, em razão da sua rejeição de valores básicos do sistema internacional, são consideradas inaptas a gozar dos mesmos direitos que são reconhecidos a outras. Seja como for, num caso ou noutro, desenha-se na atualidade um sistema em que a prerrogativa de requerer intervenção em situações de guerra civil depende muito mais da legitimidade do que do facto de a entidade que a faz ser governo ou oposição e de controlar todo o espaço, uma parcela ou nenhuma parte de território. Não obstante essa tendência, o facto é que uma grande nebulosidade marca o regime jurídico hodierno aplicável à intervenção em guerra civil por Estados. O conceito de representante legítimo do povo substitui, assim, a legitimidade ancorada no domínio territorial efetivo como critério de aferição da correção do pedido de intervenção. VII. Naturalmente, a situação descrita só cobre os casos que envolvem intervenções dos Estados, já que no que diz respeito a entidades que portem, por delegação, poderes públicos, o regime jurídico-internacional de regulação é diferente. Tal será a situação que envolva o Conselho de Segurança das Nações Unidas, o qual pode, ao abrigo da leitura mais expandida dos seus poderes e do Capítulo VII da sua Carta, que se tem cristalizado no pós Guerra Fria, determinar que um conflito interno ameaça a paz e segurança internacional, e aprovar decisão de utilização de medidas militares, como já fez em diversas situações, nomeadamente as que envolveram Haiti, Somália, Bósnia e Líbia. Também é o caso da União Africana que, por via do seu tratado constitutivo, está autorizada a intervir a pedido dos Estados membros para restaurar a ordem, atendendo a que, nos termos do artigo 4 j) da versão revista desse instrumento, reconhece-se o

5

“direito dos Estados Membros de pedirem a intervenção da União, com vista à restauração da paz e segurança”. VIII. Também não se aplica o mesmo regime a guerras de libertação colonial, as quais foram internacionalizadas por decisões reiteradas de órgãos das Nações Unidas. Assim, pelo menos as guerras de independência mais tardias das colónias européias em África e na Ásia, nomeadamente as que envolveram as possessões ultramarinas lusitanas, foram feitas ao abrigo destes regime especial bastante permissivo para esses movimentos e para os países que os auxiliassem, ou seja, sem os critérios territoriais e sem constrangimentos ao envolvimento externo na guerra pelo lado dos independentistas. O mesmo sistema foi expandido para recobrir os movimento de resistência aos movimentos segregacionistas instalados na África do Sul e na Rodésia do Sul. IX. Este regime também não se confunde com os que governam outros tipos de intervenção materialmente similares, no sentido de envolverem a entrada e a presença de forças estrangeiras em território nacional por motivos internos, como são o caso da intervenção para a proteção de nacional em risco no estrangeiro, as intervenções humanitárias unilaterais e as intervenções para mudança de regime. A razão para essa diferença de tratamento radica nas motivações e nos objetivos, pois ao passo que as intervenções externas em guerra civil visam apoiar um dos beligerantes no seu esforço de conquista ou de retenção do poder, aquelas visam, por ordem respetiva, o resgate de nacionais em risco num determinado país, a proteção dos próprios cidadãos do país objeto da intervenção em situação de violação massiva aos seus direitos humanos mais básicos e para impor um determinado regime. Tais situações podem apresentar-se sobrepostas em situações concretas, por exemplo, uma intervenção para resgatar nacional pode ocorrer em contexto de guerra civil e o objetivo de um Estado apoiar um dos beligerantes pode estar relacionado com a sua intenção de mudar o regime do país, mas as distinções de sua natureza e do consequente regime aplicável devem ser retidas. X – O direito constitucional da maior parte dos países, nomeadamente de Portugal, não se tem ocupado diretamente desta figura, mas são sempre aplicáveis as cláusulas mais restritivas referentes à proibição da ingerência nos assuntos internos dos outros Estados (CRP, art. 7 (1)), à solução pacífica dos conflitos (CRP, art. 7 (1)) e à autodeterminação dos povos (CRP, art. 7 (3)), embora sejam aplicáveis princípios mais intervencionistas como o da solidariedade (CRP, art. 1 (1) e o do “reconhecimento do direito à insurreição contra todas as formas de insurreição” (CRP, art. 7 (3)), de modo que a

6

determinação de orientações constitucionais nesta matéria só é realmente possível analisando-se as circunstâncias de cada caso.

Referências CHRISTAKIS, Théodore & BANNELIER, Karine, “Volenti non fit injuria? Les effects du consentement à l’intervention militaire”, Annuaire Français de Droit International, v. 50, 2004, pp. 103-137. DOSWALD-BECK, Louise, “Legal Validity of Military Intervention by Invitation of the Government”, British Yearbook of International Law, v. 56, 1985, pp. 189-252. FOX, Gregory, “Intervention by Intervention” in: WELLER, Marc (ed.), The Oxford Handbook of the Use of Force in International Law, Oxford, Oxford University Press, 2015, pp. 816-840. LIEBLICH, Eliav, International Law and Civil Wars: Intervention and Consent, London, Routledge, 2014. NOLTE, George, Eingreifen auf Einladung: Zür völkrrechtlichen Zulässigkeit des Einsatzes fremder Truppen im internen Konflikt auf Einladung der Regierung, Berlin, Springer, 1999.

7

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.