Intervenção na Assembleia da Custódia de Santa Clara de Assis de Moçambique - Agosto 2015

June 8, 2017 | Autor: Alfredo Manhiça | Categoria: Poverty, Spirituality, Religious Life
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1 Intervenção na Assembleia da Custódia, 17 -21 de Agosto de 2015 ADMINISTRAÇÃO E USO EVANGÉLICO-FRANCISCANO DOS BENS

Introdução Refletir sobre a administração e uso dos bens é refletir sobre um dos temas que interessa, não só a nossa Custódia, mas também a Ordem na sua generalidade, a Igreja e as sociedades humanas em geral. A percepção da questão como difusa e generalizada pode levar, erroneamente, a concluir que não valha pena, a um nível inferior, como este, procurar resolver um problema de natureza geral. Na verdade, o único modo de enfrentar um problema generalizado é sempre partindo de um determinado ponto. Além disso, os efeitos dum problema generalizado afectam os interessados, não em forma generalizada, mas em forma particular, pelo facto dos interessados partirem de posições diferenciadas e por dispor de meios de amortecimento diferenciados. Para esta importante questão, o Definitório Geral dos Frades Menores constituiu uma Comissão de Formação Sobre o Uso Transparente, Solidário e Ético dos Nossos Recursos Económicos e, por sua vez, esta Comissão produziu um subsídio intitulado – A Administração Franciscana da Economia (2014). Na sua página introdutória, este documente salienta que nas dinâmicas económicas e financeiras se refletem escolhas fundamentais da nossa vida que devem ser marcadas pelo voto da pobreza que prometemos e por um estilo de vida sóbrio, fraterno e solidário. Adverte ainda o mesmo documento que “por dinheiro ou pelos recursos naturais que podem fornecer dinheiro (para além de poder) os homens são capazes de explorar outros homens e ficar indiferentes à fome e à miséria em que vivem tantos milhões de pessoas” (Pag. 9). A nível interno (na Custódia) o interesse pelo tema da “administração e uso dos bens” encontra a sua relevância no lema do Capítulo da Custódia de 2014 - Consolidar a Nossa Presença em Moçambique -, que convida-nos a refletir sobre o nosso testemunho de vida, sobre o valor da menoridade, sobre o valor da solidariedade, sobre o valor do trabalho como meio que transmite a graça de partilha de dons e talentos e, convida-nos sobretudo a revalorizar a partilha e a contribuição de cada irmão para o bem da fraternidade: o “dom do trabalhar seja feito com fidelidade e devoção” (Rb 3,11-15). As deliberações deste Capítulo, como também as do Capítulo precedente, 2011, (só para citar os mais recentes), que visam melhorar a administração dos bens económicos e financeiros a nós confiados ou resultantes do nosso trabalho, permanecerão mera quimera se não encontrarem a sua materialização na nossa maneira quotidiana de aquisição desses mesmos bens ou recursos financeiros, na quantificação de bens que acumulamos, na determinação da modalidade do uso do nosso património ou dinheiro e no modo como compartilhamos o que temos. Terminologia Com o termo “Economia” se designa uma ciência que estuda os processos de produção, distribuição, acumulação e consumo de bens materiais. Se entende também à contenção ou moderação nos gastos, a poupança. A palavra “economia” deriva da junção dos termos gregos “oikos” (casa) e “nomos” (costume, lei) resultando em “regras ou administração da casa, do lar”. O conceito de economia engloba a



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noção de como as sociedades utilizam os recursos para produção de bens e a forma como é feita a distribuição desses bens entre os indivíduos. Consciente da impossibilidade de produzir uma quantidade infinita de bens, proporcionais aos ilimitados desejos e necessidades humanos a economia observa o comportamento humano em decorrência da relação entre as necessidades dos homens e os recursos disponíveis para satisfazer essas necessidades. A ciência econômica tenta explicar o funcionamento dos sistemas econômicos e as relações com os agentes econômicos (empresas ou pessoas físicas), refletindo sobre os problemas existentes e propondo soluções. Economia e Humanização A economia é um indicativo do nível de organização e desenvolvimento dos grupos humanos, sociedades ou Estados. Um grupo humano ou uma sociedade cuja economia é fundamentalmente de subsistência – hand to mouth – é considerado subdesenvolvido. O adjetivo “subdesenvolvido” não deve, neste caso, ser entendido como qualificativo, mas sobretudo como descritivo das expectativas que a tal sociedade pode permitir-se construir em relação ao futuro. De facto, com este tipo de economia, esta dada sociedade fica exposta a qualquer tipo de variabilidade climática, choques causados pelos ciclos produtivos internos e externos, mudanças políticas internas e externas, ou qualquer crise de equilíbrio. O grupo ou sociedade humana cuja característica da própria economia é “hand to mouth”, pode não perceber o estado de vulnerabilidade em que vive até que seja vítima de qualquer tipo de acidente ou calamidades naturais, ou doenças insólitas. Os grupos humanos e sociedade incapazes de acumular a riqueza não podem sequer sonhar um futuro que pretenda ser melhor do que o presente colectivo. A falta da acumulação da riqueza limita também as ambições e projeções colectivas. Vida Religiosa e Posse dos Bens Materiais Entre os vários estilos de organização humana, as famílias religiosas, inspiradas pelo Evangelho, distinguem-se pela renúncia individual do possesso dos bens materiais, através do voto de pobreza, sem, todavia, renunciar o processo colectivo, o uso e usufruto dos mesmos. Seguindo Cristo que, sendo rico e todo-poderoso, fez-se pobre por amor incondicional aos homens, por meio do voto de pobreza, os consagrados não podem ter bens pessoais, renunciam aos bens que já tinham e dispensam tudo o que poderiam ter como remuneração do próprio trabalho e colocam à disposição da própria Ordem ou Instituto religioso. O voto de pobreza liberta o religioso da avidez de acumular, da sede insaciável de ter sempre mais. Protegendo o religioso de qualquer tipo de posse, o voto de pobreza ajuda-o a não absolutizar, nem a residência que o acomoda, nem a atividade profissional que exerce, nem as compensações que merece, sejam elas materiais ou psicológicas: “Os frades não se apropriem de nada, nem de casa nem de lugar nem de qualquer outra coisa” (RegB 6, 1). Não se trata de uma ascese egocêntrica, mas de uma caminhada de justiça, solidariedade, amor pelos outros e com os outros; de uma caminhada de liberdade pessoal e comunitária que torna mais fidedigna a própria vocação. O Mestre e Senhor da messe e da vinha enviou os discípulos a evangelizar como peregrinos, sem apropriar-se do seu trabalho, da sua gente, ou dos seus resultados.



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A disciplina da vida religiosa sempre encorajou os consagrados a trabalhar com generosidade e seriedade, fazendo frutificar as qualidades e os dons que o Senhor deu a cada um, mas o sucesso nunca foi o único critério de medida a ser considerado: o religioso é chamado sempre a confrontar-se com o projeto evangélico e comunitário de vida para que se torne testemunho e sinal de pertença ao Senhor e não ao próprio trabalho, de modo a estar pronto, como Abraão, os Apóstolos e Francisco de Assis, a deixar a própria terra para buscar horizontes desconhecidos. A Custódia de Moçambique: Com certeza que a nossa Custódia não constitui exemplo do ideal religioso que aqui acabamos de apresentar. Muitas vezes as nossas relações fraternas são perturbadas (para não dizer minadas) pela falta de liberdade do espírito em relação ao uso e administração do dinheiro e dos bens materiais. Algumas vezes não se consegue distinguir entre o necessário, o útil e o supérfluo. Facilmente deixamo-nos enrolar pela lógica consumista do mundo, pecando, desse modo, por injustiça ou por falta de solidariedade em relação aos nossos próprios irmãos (para não falar dos indigentes); esquecemos de “restituir” tudo a Deus, como quer Francisco (RegNB 17, 17); e negligenciamos a dependência no uso do dinheiro. De facto, alguns entre nós (queira Deus que não seja a maioria) têm dificuldades em pôr em comum a remuneração recebida pelo próprio trabalho (muitas vezes desejado e procurado porque rentável!), ou qualquer doação recebida. Com este comportamento tornamo-nos administradores diretos dos “nossos bens”, atentando, desse modo, não só contra a Regra, mas também contra a convivência pacífica na fraternidade. As Dificuldades da Mudança do Comportamento Uma análise retrospectiva das discussões e conclusões dos nossos últimos Capítulos, sobretudo o último, mostram quanto cada um de nós se sente desgastado pelo modo como usamos e administramos os nossos bens. Mas - estranhamente - embora todos estejamos desgastados, mostramos pouca vontade de mudança do comportamento. A vontade individual e coletiva de mudança de comportamento pode estar refém de condicionamentos históricos, antropológicos, psicológicos e sociopolíticos. De facto, a nossa história de sociedades organizadas em grupos étnicos ou tribais e, posteriormente, de colonizados podem ter impedido o desenvolvimento do conceito do bem comum e do sentido de pertença. A ausência de sentido de pertença pode ter nutrido, em nós, o modelo de obediência de escravo, em detrimento do modelo de obediência de homem livre. Além disso, nas culturas moçambicanas, a pobreza não só não é um valor como também é motivo de vergonha, de falta de autoestima e de sentimento de inferioridade. Em contrapartida, um dos grandes sinais de sucesso de quem atuou uma feliz transição da condição tradicional para o estado de civilizado, através dos estudos, por exemplo, é, precisamente, a acumulação de bens e o seu poder de redistribuí-los. O período que vai da independência até aos nossos dias foi marcado por uma sistemática supressão dos valores espirituais, como a sabedoria, a honestidade, a lealdade, a transparência, e a exaltação do sucesso material: a desonestidade e a drenagem dos bens institucionais em favor dos privados, e o seu utilizo para traficar influências passou a ser percebido como virtudes a serem



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cultivados. Este é o ambiente histórico, psicológico e sociocultural no qual muitos de nós crescemos e viemos para a vida religiosa. Remar "Contra-maré" Se é verdade que, por um lado, os homens são vítimas da própria história, das próprias estruturas sociopolíticas e econômicas, que lhes condicionam no pensar e no agir, por outro lado, os mesmos homens, intervindo nas estruturas existentes ou no Status quo, introduzem novo modo de pensar e de agir e, portanto, uma nova cultura. Podemos partir de dois pressupostos base para aviar o processo de reforma: 1. Que os que professaram a Regra franciscana estão predispostos a conformar as próprias vidas segundo as suas exigências. 2. Que o vício reside no "modus operandi" e não na vontade. As sociedades humanas, conscientes do distância existente entre “voluntà volente e la voluntà voluta”, dá-se normas e estabelece estruturas capazes de fazê-las observar. Nas últimas décadas, para desencorajar abusos da parte dos administradores do bem comum e esconjurar possíveis resistências passivas da parte dos cidadãos, os povos se impõem mecanismos de controlo.

Frei Manhiça

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