Intervenções urbanas e processos de patrimonialização: as reelaborações da Pequena África na região portuária do Rio de Janeiro (1980 e 2000)

July 26, 2017 | Autor: Simone Vassallo | Categoria: Patrimonio Cultural, Antropología, Revitalization
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Comunicação Coordenada apresentada na 29a Reunião Brasileira de Antropologia, em Natal, de 3 a 6 de agosto de 2014. Eixo temático « Patrimônio, turismo e museus ».

Intervenções urbanas e processos de patrimonialização: as reelaborações da Pequena África na região portuária do Rio de Janeiro (anos 1980 e 2000)1 Simone Pondé Vassallo 2

Este trabalho

busca

analisar

as dinâmicas

subjacentes ao

processo

de

patrimonialização da cultura afro-brasileira na região portuária do Rio de Janeiro 3. Procuro, em particular, compreender como, a partir dos anos 1980, elaborou-se progressivamente um imaginário em torno dos três bairros que compõem a região – Saúde, Gamboa e Santo Cristo – como um território afrodescendente. Tal fato parece ficar evidente no constante uso da expressão Pequena África para referir-se atualmente a essa localidade. A Zona Portuária passa hoje por um importante processo de intervenção urbana, o Projeto Porto Maravilha. Nesse contexto, ocorre uma efervescência de atividades culturais – muitas delas relacionadas ao samba e ao carnaval – que valorizam a herança afro-brasileira da localidade. Tais iniciativas culturais não partem do poder público municipal – principal responsável pelo projeto de revitalização – mas não podem ser pensadas fora do contexto do projeto de intervenção urbana. Procuro, neste trabalho, analisar os processos subjacentes à elaboração dessas ações e representações, que contribuem para a consolidação do imaginário da região portuária como uma Pequena África. 1

Uma primeira versão desse trabalho foi publicada como “Interventions urbaines et processus de patrimonialisation : la construction d’un territoire noir dans la région du port de Rio de Janeiro (1980 et 2000)”. Paris, Les Carnets du Lahic, dossier Patrimonialisation de la culture afro-brésilienne (no prelo). 2 Simone Pondé Vassallo é professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGSOC) do Iuperj – UCAM. E-mail: [email protected] . 3 Agradeço a Faperj pelo financiamento da pesquisa que permitiu a elaboração desse trabalho, bem como o auxílio de Alessandra Taceli, bolsista de iniciação científica nesse projeto.

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Minha reflexão se concentra em dois momentos que considero particularmente relevantes nesse processo, os anos 1980 e os anos 2000, através da análise de quatro acontecimentos: nos anos 1980, a publicação do livro Tia Ciata e a Pequena África e o tombamento da Pedra do Sal; nos anos 2000, a reivindicação étnico-territorial do Quilombo da Pedra do Sal e a criação do Circuito Histórico e Antropológico de Celebração da Herança Africana. Parto de uma perspectiva que privilegia as relações de tensão e negociação entre lideranças do movimento negro, representantes do poder público, pesquisadores e agentes culturais. Partindo desta perspectiva, compreendo o patrimônio como um espaço de lutas materiais e simbólicas entre diferentes grupos e segmentos da população (Canclini, 1994). Na atualidade, estas lutas envolvem muitas vezes grupos politicamente minoritários para os quais o patrimônio pode se tornar um meio de se afirmar identidades e reivindicar direitos. No entanto, procuro ir além de uma definição meramente instrumental e entendo o patrimônio como um fato social total que engloba múltiplas dimensões: políticas, econômicas, identitárias, morais, religiosas, de parentesco, dentre outras (Gonçalves, 2007). As disputas em torno da aquisição de direitos constituem um dos aspectos da dimensão política do patrimônio, particularmente importante na atualidade. Inspiro-me na noção de « bens inalienáveis » (Weiner, 1992), ou seja, de bens de um valor extremo que contribuem para a afirmação da identidade de um indivíduo ou de um grupo, e que, portanto, não devem ser trocados. Para seus proprietários, tais bens são dotados de um caráter único, de uma importância percebida como suspensa fora do tempo presente, pois estabelecem laços com deuses, ancestrais, lugares sagrados e forças divinas. Através destas forças legitimadoras, um bem se eleva acima do fluxo das outras coisas que podem facilmente ser trocadas (ibid.) e se torna um alvo de permanentes disputas. Seu valor se intensifica não apenas por sua trajetória histórica (Sansi, 2013), mas também pela ameaça de perda devido às disputas pela sua posse. No mundo moderno, as características de um bem inalienável remetem frequentemente ao objeto aurático proposto por Walter Benjamim (2011), que encarna a autenticidade na época da reprodução técnica dos produtos culturais. A ideia de bens inalienáveis pode nos ajudar a refletir sobre a noção de patrimônio e a dimensão política que ela adquire na contemporaneidade. Acredito que a relação de posse entre um indivíduo ou grupo e seus bens não deva ser naturalizada. Ela emerge em certos contextos, quando uma nova configuração 2

política permite que esses bens (materiais ou imateriais) sejam percebidos por um indivíduo ou grupo como lhe(s) pertencendo. A partir de então, estes bens serão considerados como inalienáveis e serão disputados por todos os que os reivindicam. Assim, num novo contexto político, esta prática, objeto ou espaço adquire um novo significado. Trata-se, portanto, de levar em conta a dimensão processual das dinâmicas que dizem respeito ao patrimônio e aos principais agentes que o reivindicam. Neste trabalho, procuro compreender como, no contexto político dos anos 1980 e 2000, alguns espaços da região portuária do Rio de Janeiro começaram a ser percebidos como estreitamente associados à história dos africanos e seus descendentes e, portanto, reivindicados como um patrimônio dos afrodescendentes. De acordo com estas representações, estes espaços passam a ser pensados como dotados de um caráter único e uma autenticidade ligados à ancestralidade negra. Na medida em que estes novos sentidos emergem, estes bens são progressivamente valorizados e começam a ser reivindicados por militantes negros, por órgãos do poder público, por pesquisadores e por agentes culturais, dentre outros atores significativos neste processo. A expressão Zona Portuária, atualmente utilizada pela Prefeitura, designa os bairros Saúde, Gamboa e Santo Cristo. As primeiras grandes intervenções urbanas nesses bairros ocorreram na primeira década do século XX, quando o então Prefeito Pereira Passos, inspirando-se no Barão de Haussmann em Paris, realizou diversas obras de modernização da cidade e do porto. Este processo levou ao deslocamento de um importante número de moradores de baixa renda rumo à Cidade Nova, onde fica a Praça Onze, bem como para as primeiras favelas que então surgiam e para os subúrbios. Desde os anos 1980, os três bairros da região portuária são alvos de novos projetos de intervenção urbana. No entanto, as densas fronteiras sociais criadas por seus moradores e frequentadores não coincidem necessariamente com as que lhes são atribuídas pelo poder público. No contexto das disputas patrimoniais e dos projetos de revitalização que simultaneamente envolvem esses bairros, novas fronteiras simbólicas são construídas, inclusive as que compõem o território negro que passou a ser amplamente reivindicado nas últimas décadas.

Os anos 1980

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No início dos anos 1980, com o enfraquecimento da ditadura militar (1964-1985), as práticas democráticas foram progressivamente integrando as instituições do Estado e da sociedade civil. Os movimentos sociais começaram a se reestruturar, ao mesmo tempo em que diversos grupos de artistas, intelectuais e políticos valorizavam a cultura popular como um meio de denunciar a desigualdade e as relações de opressão existentes no país. Nesse contexto, em 1980, a FUNARTE criou o prêmio Lúcio Rangel de monografias, destinado às pesquisas sobre os grandes mestres da música popular brasileira. A monografia vitoriosa, do realisador Roberto Moura, foi publicada em 1983 com o título de Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. O livro de Moura conta a história dos negros baianos que migraram para o Rio de Janeiro na virada do século XX, logo após a abolição da escravidão, e se instalaram sobretudo nos arredores do porto, no bairro da Saúde. Com as obras de modernização, realizadas por Pereira Passos, muitos tiveram que se deslocar para a Praça Onze, então mais periférica, e outras localidades. Foi então que esta praça tornou-se uma referência fundamental para a música popular brasileira e para o samba que surgia como gênero musical. Nos anos 1940, esta praça também foi destruída para a construção da Av. Presidente Vargas. O termo “Pequena África” é retomado de uma expressão do músico e compositor popular Heitor dos Prazeres, que assim designava a região “que se estendia da zona do cais do porto até a Cidade Nova, tendo como capital a Praça Onze”, onde morava Tia Ciata (Moura, 1983: 92), uma importante liderança nesta localidade. Em sua casa se reuniam os grandes nomes da música popular. A narrativa de Roberto Moura não parece marcada por uma busca de raízes e autenticidades africanas. Sua reflexão gira em torno do papel dos baianos na modernização de uma cultura popular carioca “plástica” que incorporaria “elementos de diversos códigos culturais” (ibid, 86). O autor fala em “tradições redefinidas por essa situação precisa de encontro na sociedade brasileira da virada do século, (...) propiciada pela marginalização, pela miséria e pela tortuosa experiência nacional com a proletarização” (ibid., 86). E aponta que: “com os anos, a partir deles [dos baianos] apareceriam as novas sínteses dessa cultura negra no Rio de Janeiro, uma das principais referências civilizatórias da cultura nacional moderna” (ibid., 44). De acordo com Roberto Moura, o bairro da Saúde, debruçado sobre o cais do porto, consistia num atraente local de moradia para os imigrantes baianos que ali buscavam trabalho na estiva, abriam suas casas de santo, criavam suas rodas de samba e seus ranchos carnavalescos. As vizinhanças da Pedra da Prainha, depois conhecida como 4

Pedra do Sal, tornariam-se locais de intensa sociabilidade entre africanos – remanescentes do período do tráfico negreiro – e baianos.

Segundo o autor, “a partir da ocupação da Cidade Nova pela gente pobre deslocada pelas obras, que a superpovoava na virada do século, a praça [Onze] se tornaria ponto de convergência desses novos moradores, local onde se desenrolariam os encontros de capoeiras, malandros, operários do meio popular carioca, músicos, compositores e dançarinos, dos blocos e ranchos carnavalescos, da gente do candomblé ou dos cultos islâmicos dos baianos, de portugueses, italianos e espanhóis” (ibid., 58). As tias baianas, lideradas por Tia Ciata, “eram os grandes esteios da comunidade negra, responsáveis pela nova geração que nascia carioca, pelas frentes do trabalho comunal, pela religião” (ibid., 92). Em suas casas, “as grandes figuras do mundo musical carioca, Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Heitor dos Prazeres, surgem ainda crianças naquelas rodas onde aprendem as tradições musicais baianas a que depois dariam uma forma nova, carioca” (ibid., 102). E a casa de Tia Ciata, na Praça Onze, era a capital da Pequena África. Na obra de Moura, a Pequena África designa uma região sem fronteiras muito precisas que engloba a Saúde, o Centro e a Cidade Nova, onde moravam e se encontravam cariocas, baianos e africanos em processo de proletarização, que ali realizavam seus ritos sagrados e profanos. O livro de Roberto Moura parece encontrar ressonância junto a lideranças do movimento negro. Em 1984, um ano após a sua publicação, a Pedra do Sal foi provisoriamente tombada pelo INEPAC, órgão estadual de proteção do patrimônio, por solicitação do historiador e importante militante negro Joel Rufino dos Santos . Em 1987 ocorreu o tombamento definitivo. No material referente ao tombamento, podemos perceber que há uma valorização da dimensão étnico-racial da Saúde em detrimento da perspectiva mais modernizante e sincrética de Roberto Moura. Na documentação anexada ao processo de tombamento, a Pedra do Sal é considerada “testemunho cultural mais que secular da africanidade brasileira” e também “o mais antigo monumento que se pode vincular à história do samba carioca” 4. Neste material, a Pedra do Sal é referida como “um precioso monumento histórico das manifestações culturais negras da cidade do Rio de Janeiro” e como um “monumento religioso afro4

Lettre du Conseiller Marcelo Moreira de Ipanema, du 30 avril 1984, procès de classement de Pedra do Sal, quartier de Saúde.

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brasileiro” onde as tias baianas realizavam “festas de candomblé, recebendo lá também os ranchos que durante o carnaval vinham cumprimentá-las”. Diz ainda o documento que “todos, baianos e africanos, frequentavam o largo da Pedra do Sal (...). Era aí que as tias faziam as peixadas, os mocotós, as festas de São João”5. Joel Rufino dos Santos, encarregado da pesquisa histórica que compunha o dossiê de tombamento, fundamenta seus argumentos a partir de várias passagens do livro de Roberto Moura. Na sua carta às autoridades encarregadas do tombamento, o historiador afirma a importância da Pedra do Sal como um “raro testemunho da cidade negra” e enfatiza a importância do local como berço do samba : “lá se encontravam as célebres tias, cabeças de família extensa – Bibiana, Marcelina, Ciata, Bahiana... Pretas forras, foi nas suas ‘pensões’ que o batuque e o jongo se transformaram em partido alto e, logo, no amplo espaço da Praça Onze, no samba que conhecemos”. Neste mesmo material, Joel Rufino declara que “os moradores da Saúde, e seus migrantes, eram predominantemente negros baianos (...). A Saúde, debruçada sobre o Porto, era uma pequena Bahia (como a Bahia, por sua vez, era uma pequena África)” 6. O argumento de Joel Rufino retoma uma ideia nascida nos anos 1930 e amplamente difundida nos anos 1980 que faz da Bahia o locus da autenticidade das práticas culturais de origem africana. Essas representações emergem num contexto de rearticulação do movimento negro durante o processo de redemocratização do país. Neste momento, o movimento negro opta por privilegiar a dimensão cultural das práticas afro-brasileiras e a perspectiva afrocêntrica, que busca a pureza africana das atividades culturais em detrimento do que considera ser fruto de um sincretismo (Alberti & Pereira, 2007; Gomes, 2010; Guimarães, 2012). Seus militantes dirigem severas críticas à ideia de democracia racial, defendida inicialmente por Gilberto Freyre e alçada a símbolo das relações raciais brasileiras, supostamente mais amistosas e menos preconceituosas do que em países como os EUA e a África do Sul. Começa a ocorrer o que alguns pesquisadores chamaram então de “processo de reafricanização”, que engloba cultos de matriz africana (Dantas, 1988 ; Capone, 1999), grupos de capoeira (Vassallo, 2003), blocos de carnaval (Agier, 2000), dentre outras manifestações afro-brasileiras . A leitura de Joel Rufino dos Santos acerca da Saúde e da Pedra do Sal se insere nesse contexto, quando lideranças do movimento negro e das

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Document extrait du procès de classement de Pedra do Sal. Ibidem.

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expressões culturais afro-brasileiras se empenham em buscar espaços de autenticidade negro-africana. Temos então um deslocamento das fronteiras simbólicas da Pequena África. Se o livro de Roberto Moura privilegia a Praça Onze como sua capital, as lideranças negras dos anos 1980, em busca de símbolos de africanidade no novo contexto político de suas lutas, optam pela valorização da Pedra do Sal, na Saúde. Na medida em que a Praça Onze havia sido destruída para dar origem a grandes reformas urbanísticas na Cidade Nova, a Pedra do Sal emergia como vestígio e símbolo do território negro que havia existido. Apesar do livro de Roberto Moura ser uma das principais referências bibliográficas do processo, não é a sua perspectiva de uma “síntese cultural” que prevalece aqui, mas sim a afirmação da Saúde como um território negro-africano. Disputas semelhantes ocorriam no mesmo ano a nível nacional, quando o primeiro processo de tombamento de um terreiro de candomblé – o da Casa Branca, em Salvador – gerou inúmeras críticas de setores conservadores, num momento de flexibilização da noção de patrimônio junto aos órgãos do Estado (Velho, 2006). Em 1986, também graças às mobilizações do movimento negro, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) tombou a Serra da Barriga, local que havia abrigado, no século XVII, o Quilombo de Palmares, o grande símbolo da resistência negra na atualidade. Os movimentos sociais, recentemente reorganizados, começavam a incorporar as interpretações políticas das noções de patrimônio e cultura, veiculadas internacionalmente como fonte de reivindicação de direitos diante do Estado. Tais lutas se consolidam na Constituição de 1988, com a criação dos artigos 214 e 215, que falam dos direitos culturais e patrimoniais dos diferentes segmentos que formam a sociedade brasileira. Também estão por trás do decreto que institui a salvaguarda do patrimônio imaterial, em 2000. Em 1982, Leonel Brizola vence as eleições para o governo do Estado do Rio de Janeiro pelo PDT, com o apoio de várias lideranças do movimento negro e das camadas de baixa renda, que formam a sua base eleitoral. O antropólogo Darcy Ribeiro assume como vice-governador e Secretário de Estado de Ciência e Cultura. De acordo com Mariza Soares, “de 1982 a 1986 ocorre um progressivo estreitamento entre o Governo do Estado e o Movimento Negro explicado pela presença, dentro do PDT, de importantes lideranças do movimento. Engajadas em vários cargos do governo do Estado e do Município, essas lideranças conseguem validar, junto a uma parcela

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representativa do movimento, o esforço do governo do Estado em apresentar-se como arauto da negritude” (Soares, 1999: 128-129). Nesta época, a Saúde e a Praça Onze disputam o título de berço do samba. Ainda para esta autora, “a Saúde é vista pelos memorialistas como precursora da Praça Onze, que foi palco do carnaval carioca de 1912 a 1942” (ibid., 125). Em 1984, é inaugurada na Praça Onze a Passarela do Samba, idealizada por Darcy Ribeiro e projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Para Mariza Soares, o Sambódromo, como é também chamado, era pensado pela grande imprensa e pelo governo do Estado como um lugar do futuro, ao passo que o movimento negro buscava as suas raízes no passado e não se identificava com essa nova construção arquitetônica. É nesse contexto que surge a demanda de tombamento da Pedra do Sal, que encarna as raízes negro-africanas por oposição ao Sambódromo. Joel Rufino teria levado a ideia do tombamento a Darcy Riberio, que o apoiou. Dois anos depois, atendendo às reivindicações do movimento negro e com o intuito de valorizar a dimensão afrodescendente da Praça Onze, Darcy Ribeiro inaugurava a estátua de Zumbi nesta localidade. Creio ter sido esse contexto político de democratização e de veiculação das noções de identidade, cultura e patrimônio como meios de reivindicação de direitos que propiciou o início das leituras etnicizantes do bairro da Saúde, ou seja, o seu entendimento como um território negro. Poucos anos depois, o Centro Cultural José Bonifácio, igualmente na Saúde, tornava-se centro de referência da cultura afrobrasileira. Pouco depois, em 1987, foram realizadas as primeiras rodas de samba na Pedra do Sal, promovidas por Ângela Nenzy, que havia assessorado Roberto Moura nas pesquisas históricas visando a elaboração do seu livro. Ângela criou o Café e Bar João da Baiana, na Pedra do Sal, onde desenvolveu por três anos o projeto “Amigos de João da Baiana: cante na Pedra”. No material de divulgação, Ângela menciona a importância de seu evento para a “comunidade negra” e para a “retomada de consciência da importância cultural do centro da cidade e do bairro da Saúde”. Nestes relatos, João da Baiana, nascido no Rio de Janeiro em 1887, estivador, sambista, candomblecista e filho da baiana Tia Perciliana, encarna uma síntese das novas representações da Saúde e, em particular, da Pedra do Sal. Ele é descrito como “um zelador de santo batuqueiro que se formou sentindo todo o aconchego da vivência em grupo de negros místicos, quimbandeiros, guerrilheiros e insubordinados, capoeiras, na Pedra do Sal, na Saúde –

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na época, início do século, o grande centro de encontro dos estivadores e, também dos homens do samba; hoje local sagrado da memória negra” (INEPAC, 1984). Com as atividades de Ângela Nenzy, percebemos que a interpretação da Pedra do Sal e da Saúde como um território negro, cara ao movimento negro, se consolida progressivamente. O material produzido por ela é incorporado ao processo de tombamento definitivo da Pedra do Sal, em 1987.

Os anos 2000

Os projetos de revitalização do Porto se intensificam a partir da primeira gestão de César Maia na Prefeitura (1993-1996) e são retomados na sua segunda e terceira gestão (2001-2004 e 2005-2008). A chegada desse político representa uma guinada em termos de gestão urbana. Apresentando-se como um “síndico” que pretende manter a “ordem”, César Maia assume o poder com um discurso supostamente apolítico de “gestor”, em que declara poder fazer transformações mesmo sendo de direita. Sua atuação reproduz a tendência que David Harvey (2005) chama de empresariamento da gestão urbana, em que as cidades assumem um comportamento empresarial e subordinam seus fins à lógica do mercado. Para Harvey, tal processo vem ocorrendo nas últimas décadas, num contexto de desindustrialização em que as cidades buscam novas formas de se gerir e se sustentar economicamente. Esta tendência também se caracteriza por incorporar a cultura como elemento diferenciador das cidades, visando o desenvolvimento do turismo e a atração de um público globalizado. Neste sentido, « o patrimônio histórico, as tradições locais, a cultura popular e outros elementos têm se transformado em mercadoria altamente valorizada no mundo contemporâneo” (Botelho, 2005: 54). Os projetos de revitalização que vêm sendo realizados mundialmente nas últimas décadas tendem a se inspirar nessas tendências e Barcelona torna-se o grande modelo a ser seguido. Nesse contexto, diversos centros históricos e regiões portuárias – repletos de atraentes vestígios do passado para a indústria cultural e turística – tornam-se alvos, nas últimas décadas, de projetos de revitalização por todo o mundo. O interesse de Maia pela reforma na região portuária deve ser entendido nesse contexto.

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Em outubro de 2001, é oficialmente divulgado o Plano Porto do Rio, que visa a “recuperação” e a “revitalização” da área, através da alteração das condições de utilização e ocupação do solo e da construção de equipamentos culturais e esportivos. Por iniciativa da Prefeitura, são então construídas a Cidade do Samba e a Vila Olímpica da Gamboa. Boa parte do que foi previsto no projeto não se concretizou, mas contribuiu para transformações no espaço físico e nas dinâmicas de moradores e agentes culturais locais. Acredito que este projeto de revitalização e o seu sucessor, o Porto Maravilha, atualmente em execução, estejam na base das novas dinâmicas de patrimonialização da cultura afro-brasileira na localidade e contribuaem para a cristalização do imaginário que começa a se desenvolver nos anos 1980, o da Saúde como uma Pequena África. Nos anos 2.000, no contexto do Plano Porto do Rio, deflagra-se o conflito fundiário envolvendo moradores do sopé da Pedra do Sal e a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência – VOT. O conflito dá origem à reivindicação étnico-territorial do Quilombo da Pedra do Sal , cuja certificação de comunidade remanescente de quilombo foi concedida pela Fundação Palmares em 2005 7. Os quilombolas alegam que, devido ao projeto de revitalização, os imóveis em que moram – no entorno da Pedra do Sal e de propriedade da VOT – estão se valorizando demasiadamente e a VOT não tem mais interesse em mantê-los lá. Em 2006, como exigência do processo judicial envolvendo os quilombolas e a Igreja, foi elaborado o Relatório histórico-antropológico sobre o Quilombo da Pedra do Sal. O documento cita o livro de Roberto Moura e, tal como este, entrelaça a Pedra do Sal ao trabalho no porto, às rodas de samba, aos ranchos carnavalescos, ao povo-de-santo e às revoltas populares ocorridas na localidade. De acordo com o relatório, “para além do espaço material da Pedra do Sal, esse local de celebração representa simbolicamente a presença cultural dos afrodescendentes na cidade do Rio de Janeiro: um lugar de memória do samba, do candomblé e do trabalho negro no porto” (Mattos e Abreu, 2012: 25). Mas, ao contrário de Moura, a referência a um território étnico é explícita e se opõe a uma outra identidade cultural, a VOT, “católica, colonial e associada à presença portuguesa no bairro” (ibid.: 25). Segundo suas autoras, o grupo de moradores em questão “defende a manutenção e o revigoramento de uma memória afro-brasileira na 7

A Constituição de 1988 afirma o direito à propriedade fundiária dos que se consideram descendentes de quilombos. Tal fato dá origem a uma nova categoria jurídica, a de remanescentes de quilombos (Arruti, 2006).

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área (...) e tem por objetivo visibilizar um patrimônio cultural imaterial herdado de seus antepassados escravos e africanos” (ibid.: 24). Os quilombolas reivindicam ser os legítimos herdeiros das tradições negro-africanas veiculadas na Pedra do Sal na virada do século XIX para o XX, encarnando, no presente, o modo de vida dos negros que ali se reuniam no passado. Com o intuito de dar visibilidade ao pleito étnico e à identidade quilombola que reivindicam, fortemente relacionada ao samba, ao trabalho no porto e ao candomblé, alguns de seus integrantes criam então o projeto Sal do Samba, que organiza rodas de samba semanais na Pedra do Sal. Também começam a promover festas na Pedra do Sal em datas específicas, como no Dia da Consciência Negra (20 de novembro) , no Dia Nacional do Samba (2 de dezembro) e no Dia de São Jorge (23 de abril). Nestas comemorações, além de rodas de samba, são realizadas lavagens da Pedra do Sal pelo Afoxé Filhos de Gandhi e por integrantes de religiões de matriz africana. A atuação dos quilombolas atualiza e complexifica o imaginário da Pequena África na região portuária. A existência de um quilombo contemporâneo traz uma concretude presente a um modo de vida até então atribuído ao passado e relacionado à estiva, ao samba e ao candomblé. É também no contexto do Porto do Rio que várias atividades culturais, escolas de samba, blocos de carnaval e rodas de samba, na Pedra do Sal e em outras localidades da região, são criadas ou revitalizadas. Muitas não mobilizam nenhum discurso étnico, mas é interessante observar que todas fazem referência às tradições afro-brasileiras reivindicadas para a localidade. Estas atividades se intensificam na atualidade, com o novo projeto de revitalização, o Porto Maravilha, e têm um grande sucesso junto ao público. Com a valorização da localidade pelo poder público municipal é fundado, em 2005, o Instituto dos Pretos Novos – Museu Memorial (IPN). O Instituto foi criado pelo casal Merced e Petrúcio Guimarães que, em 1996, em meio a obras em sua residência na Gamboa, descobriu um sítio arqueológico no subsolo: o Cemitério dos Pretos Novos. De acordo com os historiadores e arqueólogos que trabalham atualmente no Instituto (Pereira, 2007; Honorato, 2008; Tavares, 2012), trata-se de um local que havia sido destinado ao sepultamento de cativos africanos que morriam no momento próximo ao desembarque, antes de serem vendidos como escravos. O cemitério teria funcionado entre a década de 1770 – quando o desembarque de cativos africanos foi transferido da Praça XV para a região do Valongo, no atual bairro da Saúde – e o ano de 1831, – 11

quando a proibição do tráfico negreiro transatlântico levou ao seu fechamento. O IPN foi criado pelo casal Guimarães com o objetivo de divulgar a história do cemitério e de denunciar o modo desumano pelo qual os sepultamentos foram ali realizados (Vassallo, 2013). O interesse despertado pelo sítio arqueológico Pretos Novos levou à criação do Decreto Municipal nº 24.088, de 5 de abril de 2004, que determinou a construção do Portal dos Pretos Novos, a ser instalado na Praça do Comércio, localizada na Saúde, onde no passado funcionava o mercado de escravos. Além disso, previa-se a criação de um Museu a Céu Aberto, composto pelo Centro Cultural José Bonifácio, o Cemitério dos Pretos Novos, os Jardins Suspensos do Valongo, a Pedra do Sal, as igrejas históricas, dentre outros. A intenção do Decreto era a de “demarcar as influências da cultura negra no território da cidade do Rio de Janeiro, em especial no bairro da Saúde e Gamboa”. Nem o portal e nem o museu a céu aberto foram criados, apenas algumas placas indicando sua importância histórica foram colocadas nesses locais. A descoberta do Cemitério dos Pretos Novos mobiliza historiadores e um arqueólogo que evidenciam o “Complexo do Valongo” (Honorato, 2008), que engloba o mercado de escravos, os locais de desembarque de cativos e africanos, o lazareto e o próprio cemitério. A atuação estes pesquisadore, do casal Guimarães e de representantes do poder público municipal contribuem para a ampliação dos limites do território étnico da Saúde, até então mais restrito à Pedra do Sal. O Projeto Porto Maravilha, atualmente em execução na região portuária, foi criado em 2009, quando Eduardo Paes assumiu a Prefeitura (gestão 2009-2012 e 2013-2016). Ele se inspira fortemente no de seu antecessor, César Maia, e reproduz a mesma percepção empresarial e mercadológica da cidade. Trata-se de um projeto de modernização que implica em enormes intervenções no seu espaço físico visando a adequação da cidade aos grandes eventos que irá abrigar: a Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e os Jogos Olímpicos, em 2016. O projeto prevê a requalificação de 5 milhões de metros quadrados e engloba os bairros Saúde, Gamboa, Santo Cristo e uma parte da Cidade Nova. Para tanto, criou por lei uma “Área de especial interesse urbanístico” – AEIU – que se submete a uma legislação específica e a uma gestão também própria que atua através de uma Parceria Público-Privada. A sustentação financeira do projeto provém da venda do aumento do potencial construtivo que, em diversas vias, chega a 50 andares. Se o projeto obtiver o êxito esperado pela Prefeitura, ele implicará numa enorme verticalização do antigo bairro. Trata-se de um dos principais projetos de 12

Eduardo Paes, que deseja que a Zona Portuária se torne o novo cartão postal da cidade, junto com o Corcovado e o Pão de Açúcar. Intervenções como a do Porto Maravilha inserem-se no que Neil Smith (2006) chama de “novo urbanismo”, caracterizado por um processo de “gentrificação generalizada”. Nos anos 1960, Ruth Glass (1964) analisava um processo espontâneo e localizado de gentrificação, promovido por setores da classe média londrina que buscavam residência em bairros proletários e que não contava com nenhuma participação significativa do Estado. Para Smith, o que ocorre hoje, ao contrário, é um movimento de revitalização que parte da iniciativa do Estado, mas que busca parcerias público-privadas para se financiar. Esta tendência se generaliza pelos diferentes centros urbanos de todo o mundo, com forte presença do capital globalizado e submissão dos investimentos dos governos locais às regras do mercado. No início das obras do Porto Maravilha, a arqueóloga Tânia Andrade Lima e o Historiador Carlos Eugênio Líbano Soares solicitaram ao IPHAN a escavação do Cais do Valongo e o pedido foi aceito. De acordo com estes pesquisadores, este teria sido um dos principais cais de desembarque de cativos africanos na cidade até que ocorresse a proibição do tráfico transatlântico. Em 1843, o Cais da Imperatriz foi construído sobre as pedras do Cais do Valongo, para o desembarque da princesa Tereza Cristina, futura esposa do Imperador D. Pedro II. Na primeira década do século XX, este segundo cais foi encoberto durante as obras de modernização do porto, na gestão de Pereira Passos. Quando o Cais do Valongo foi desenterrado, no início de 2011, seu bom estado de conservação – com uma estrutura de pedras de algumas dezenas de metros – atraiu os órgãos da Prefeitura responsáveis pelo Porto Maravilha e pela preservação do patrimônio, bem como da midia. Os relatos da arqueóloga e do historiador sobre a importância do sítio arqueológico encontrado mesclam-se progressivamente ao de outros pesquisadores e atores locais e vão sendo ampliados e reinterpretados tanto pela grande imprensa quanto pelas mídias alternativas. A partir de então, começa a se difundir um entendimento de que este local teria sido um dos principais cais de desembarque de cativos africanos no Brasil e nas Américas. O número de africanos ali desembarcados varia entre 500 mil e 1 milhão, de acordo com a versão. O desembarque teria durado de cerca de 1779 – quando foi transferido da Praça XV para lá – até 1831, quando o tráfico negreiro foi proibido. No mesmo ano, foi desativado o Cemitério dos Pretos Novos, também devido à proibição do comércio transatlântico de africanos.

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O interesse da arqueóloga Tânia Andrade Lima não reside na diversidade de usos do cais durante o seu período de funcionamento, mas sim na história dos africanos que por lá passaram. Para ela, a história da aristocracia já é suficientemente lembrada e valorizada, é preciso trazer à tona a memória silenciada dos africanos desembarcados e seus descendentes. Segundo ela, houve uma prática deliberada de apagamento da história do Cais do Valongo e a arqueologia deve ser contrária a essa atitude. De acordo com a pesquisadora: “Nós tínhamos a superposição de dois sítios arqueológicos: o Cais da Imperatriz sobre o Cais do Valongo (...). Os escravos foram esquecidos e, mais do que isso, eles foram deliberadamente apagados ao ser colocado sobre o Cais do Valongo o Cais da Imperatriz, num processo de superposição fortemente simbólico. Sobre a escória humana trazida da África foi colocada uma princesa européia, uma Bourbon, a Princesa

das

Duas

Sicílias.

Ela

pisando

sobre

os

negros”

(www.youtube.com/watch?v=RQP_8pn0U3E)”. Assim, graças a atuação de Tânia Andrade Lima, o significado do sítio arqueológico ganha novos rumos : passa a exprimir as relações de dominação sofridas pelos negros desde seu desembarque nas Américas. Tânia se inspira na prática do bioarqueólogo norte-americano Michael Blakey, responsável pelas pesquisas no African Burrial Ground, em Nova York, onde, no início dos anos 1990 foram encontradas ossadas de escravos e hoje se tornou patrimônio nacional. Para ele, a pesquisa em sítios arqueológicos deve contar com a participação do chama de « comunidade de descendentes » e deve contribuir em suas lutas por reconhecimento (Blakey, 2010). Ambos os pesquisadores acreditam que a arqueologia deva contribuir para trazer à tona as memórias de grupos discriminados e submetidos a intensas relações de opressão. Tânia considerou fundamental que as lideranças do movimento negro tomassem ciência do sítio arqueológico e de sua enorme importância histórica. Através da intermediação dos integrantes do Instituto dos Pretos Novos, promoveu uma primeira visita ao local com representantes do movimento negro. Nesse momento, Tânia deu-lhes longas explicações sobre a importância histórica do cais e mostrou-lhes inúmeros objetos encontrados durante a sua escavação arqueológica no local, então armazenados em containers nas imediações. Nesta ocasião foi redigida a Carta do Valongo, segundo a qual o cais de mesmo nome foi “o principal porto de entrada dos africanos escravizados trazidos para o Rio de Janeiro”. Através dessas ações, o movimento negro volta novamente os seus olhos para a Saúde. 14

A partir de então, integrantes do movimento negro e do IPN começam a se reunir para discutir o seu posicionamento em relação ao cais. Ao longo dessas reuniões, é elaborada uma Proposta de Carta Aberta de Reivindicações referentes ao Cais do Valongo, segundo a qual “por esse cais passou boa parte dos antepassados que deram origem ao maior grupo étnico do Brasil contemporâneo. Portanto, a ancestralidade de mais da metade da população brasileira tem ali uma forte referência simbólica”. Ao longo de 2011 e 2012, são organizados alguns eventos culturais e manifestações no entorno do cais, como uma marcha da CUT – Central Única dos Trabalhadores – no dia da Abolição da Escravidão e duas homenagens póstumas a Abdias Nascimento, grande liderança do movimento negro. Em maio de 2011, representantes do movimento negro levam até o cais a Ministra da Igualdade Racial Luíza Bairros, que, emocionada, declara publicamente: “é de chorar”. Alguns grupos de capoeira começam a organizar rodas no local. Durante o ano de 2011, algumas lideranças negras tentaram pressionar órgãos públicos para que fosse construído um memorial da diáspora africana no entorno do Cais do Valongo. Também reivindicaram a participação de um arquiteto negro na elaboração do projeto visando a exposição pública do cais. Através dessas ações, os integrantes do movimento negro demarcam simbolicamente o que consideram ser o seu patrimônio: o território negro que integra a região portuária. É nesse sentido que reivindicam uma participação efetiva nas decisões que dizem respeito ao cais. A partir das pressões do movimento negro, foram realizadas reuniões entre algumas de suas lideranças e de representantes do poder público municipal, através das quais foi se elaborando coletivamente a ideia da criação do Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana na Zona Portuária. Recuperava-se a ideia do Museu a céu aberto, de César Maia, com algumas modificações. A iniciativa foi levada ao Prefeito que, próximo ao Dia da Consciência Negra e no Ano Internacional dos Afrodescendentes, escolhido pela ONU, criou o Circuito Histórico e Arqueológico através do Decreto nº 34803, de 29 de novembro de 2011. Este inclui o Centro Cultural José Bonifácio, o Cemitério dos Pretos Novos, o Cais do Valongo e da Imperatriz, os Jardins Suspensos do Valongo, o Largo do Depósito – onde se localizava o mercado de escravos – e a Pedra do Sal. O Decreto também institui o Grupo de Trabalho Curatorial do Circuito da Herança Africana, encarregado da elaboração do conteúdo histórico do seu material de divulgação.

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A criação do Circuito incluia representantes da Prefeitura, do movimento negro, do Instituto dos Pretos Novos, da cultura afro-brasileira e de pesquisadores – sobretudo arqueólogos, historiadores e antropólogos. Durante essas reuniões, alguns militantes negros, que defendiam a existência de uma dimensão sagrada permeando o local, sugeriram que mães de santo definissem o símbolo do Circuito. Foram então convidadas Mãe Beata e Mãe Edelzuita, duas das mais prestigiosas lideranças do candomblé na cidade, e Mãe Celina, que havia ajudado a arqueóloga Tânia a interpretar objetos religiosos de origem africana encontrados nas escavações em torno do Cais do Valongo. As três ialorixás deveriam visitar o Cais do Valongo, o Cemitério dos Pretos Novos e a Pedra do Sal, considerados os locais mais importantes do Circuito, para que os orixás lhes comunicassem o símbolo a ser escolhido. Na visita das mães de santo ao IPN, realizada em 11 de maio de 2012, o historiador e arqueólogo Reinaldo Tavares, responsável por uma pesquisa sobre o cemitério, contoulhes que, devido ao grande número de cadáveres de africanos que não paravam de chegar, os corpos eram triturados, enterrados e, de tempos em tempos, incinerados, para abrir mais espaço. O cemitério também funcionava como um depósito de lixo para os moradores do entorno. Tanto as mães de santo quanto lideranças negras ali presentes – todas mulheres – se emocionaram e entenderam que se tratava de um local sagrado, onde estariam enterrados os seus antepassados. Na visita ao Cais do Valongo, Mãe Edelzuita declarou que todos os anos seria necessária uma lavagem no local, para trazer paz e conforto àqueles que, há mais de duzentos anos, clamavam por justiça. Disse ainda que sentiu uma grande força de Xangô, orixá responsável por cada homem, mulher, osso e pedra, e símbolo da justiça, e percebeu que a imagem deste orixá deveria sers o símbolo do Circuito. Para ela, na região do Valongo, onde fica a Saúde, está a raiz de toda a ancestralidade afro-brasileira (Vassallo, 2012). Em abril de 2012, o antropólogo Milton Guran (que havia participado das reuniões de elaboração do Circuito) e as historiadoras Hebe Mattos e Martha Abreu (autoras do Relatório Histórico e Antropológico do Quilombo da Pedra do Sal) tornaram público o Inventário dos lugares de memória do tráfico atlântico de escravos e da história dos africanos escravizados no Brasil, contendo o levantamento dos 100 lugares mais relevantes relacionados à escravidão dos africanos no país. Por ocasião da sua divulgação, Milton Guran declarou publicamente que, dentre os locais inventariados, considerava o Complexo do Valongo o mais relevante de todo o Brasil. 16

O trabalho integra a pesquisa “Rota do escravo: resistência, herança e liberdade”, promovida pela Unesco desde 1994 em vários países, com o intuito de promover o conhecimento e a reflexão sobre o comércio transatlântico de cativos africanos. Vários locais inventariados em diversos países foram reconhecidos como patrimônio da humanidade e, nesse processo, ganham destaque os locais de embarque e desembarque de cativos. Já está sendo encaminhada à Unesco uma solicitação de reconhecimento do Cais do Valongo como Patrimônio da Humanidade, por iniciativa da Fundação Palmares.

Alguns meses depois, o órgão da Prefeitura encarregado das obras do Porto Maravilha começou a oferecer visitas guiadas pela região portuária que incluíam certos pontos do Circuito da Herança Africana, com o intuito de desenvolver o potencial turístico da região e atrair um público de fora do bairro. O processo que conduziu à criação do Circuito da Herança Africana contribuiu ainda mais para a consolidação da Saúde como um território negro. O destaque dado ao Cemitério dos Pretos Novos, ao Cais do Valongo e ao mercado de escravos propicia a elaboração de um novo imaginário sobre a localidade, não só relacionado ao samba, ao trabalho na estiva e ao candomblé – como era o caso da Pedra do Sal – , mas também ao sofrimento e à dor do desembarque, da comercialização e do enterramento. A presença de representantes do poder público, de lideranças negras e de intelectuais na criação do Circuito da Herança Africana, bem como a sua constante veiculação na grande imprensa, consolidam as novas fronteiras do território negro que começavam a se esboçar com a descoberta do Cemitério dos Pretos Novos, ampliando-as para muito além do entorno da Pedra do Sal. Além disso, através da atuação de lideranças do movimento negro e do candomblé, ganha destaque a representação da região portuária como lugar por excelência da ancestralidade afro-brasileira – e, portanto, comolocal sagrado – , já que ali teria desembarcado a maioria dos africanos trazidos para o país e, com eles, os seus deuses e as suas culturas.

Conclusão

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Neste artigo, parti de uma análise processual que busca desnaturalizar as relações de posse entre um indivíduo ou grupo e os bens que reivindica para si, tentando compreender como elas emergem em certos contextos históricos e políticos. Para tanto, procurei analisar alguns momentos importantes na consolidação das representações da Saúde como um patrimônio afrodescendente. Se, para Heitor dos Prazeres, a capital da Pequena África se situava na Praça Onze, ela hoje parece se deslocar para a Saúde, que se torna um território negro. As estreitas analogias tecidas por Roberto Moura entre o grupo de baianos, o bairro da Saúde, a Pedra do Sal, o trabalho na estiva, a criação dos ranchos carnavalescos e as casas de santo são posteriormente retomadas e ampliadas por militantes negros, pesquisadores e agentes culturais locais. Elas hoje se cristalizam no novo contexto de intervenção urbana da região, em que começa a haver na localidade uma grande presença da midia, uma enorme entrada de verbas públicas e privadas e um interesse, por parte da Prefeitura, em desenvolver o potencial turístico da região portuária. O deslizamento semântico da Zona Portuária foi possível graças às transformações que ocorreram nas últimas décadas na sociedade brasileira, que englobam simultaneamente os projetos de intervenção urbana e o processo de redemocratização, que inclui a flexibilização da noção de patrimônio nas políticas públicas e as reivindicações políticas e identitárias por parte dos movimentos sociais. Tais mudanças de sentido ocorrem na confluência entre, “de um lado, o projeto neoliberal que se instala em nossos países ao longo das últimas décadas e, de outro, um projeto democratizante, participativo, que emerge a partir das crises dos regimes autoritários e dos diferentes esforços nacionais de aprofundamento democrático” (Dagnino, 2004: 140). Essas novas configurações políticas levam às reivindicações da Saúde – ou de algumas de suas localidades – como um patrimônio afrodescendente. É ao longo dessa trajetória que alguns de seus locais se tornam particularmente caros a certos atores sociais. Eles se tornam posses inalienáveis, suspensas fora do tempo, e encarnam os laços com divindades e ancestrais. No entanto, essa relação de propriedade não é dada de antemão, ela é progressivamente elaborada, ao mesmo tempo em que se torna alvo de disputas entre alguns setores da sociedade, como militantes negros, agentes da Prefeitura, pesquisadores e agentes culturais locais. Ela ocorre num contexto político que favorece a emergência de sentimentos de posse, identidade e pertencimento por parte de lideranças do movimento negro e de outros atores envolvidos no processo.

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