Interview: \"Nenhum refugiado pode ser impedido de entrar na fronteira\" / \"No refugee can be denied crossing a border\", 13.09.2015

June 30, 2017 | Autor: G. M. A. Rodrigues | Categoria: International Relations, Refugee Studies, United Nations, International Refugee Law, Refugees
Share Embed


Descrição do Produto

A-6

Cidades

A TRIBUNA

www.atribuna.com.br

Segunda-feira 14

setembro de 2015

Entrevista

Gilberto Rodrigues,

professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC

“Nenhum refugiado pode ser impedido de entrar na fronteira” DIVULGAÇÃO

RONALDO ABREU VAIO DA REDAÇÃO

De repente, a imagem de um menino sírio de 3 anos encontrado morto em uma praia da Turquia, há duas semanas, escancara ao mundo uma situação que já se tornou insustentável: a da crise humanitária no Oriente Médio e, em especial, na Síria. Para o professor de Relações InternacionaisGilberto Rodrigues, a imagem abriu uma “janela de oportunidade” aos refugiados que, em sua tentativa de escapar da sangrenta guerra civil que já se estende por quatro anos, se atiram em desespero ao mar para atingir a Europa – que os recebe de portas fechadas. Se a trágica foto de Aylan fez alguns países recuarem e abrirem suas fronteiras, a situação no Oriente Médio ainda está longe de se normalizar. Nesta entrevista, Rodrigues explica o contexto histórico recente para a atual crise, o surgimento do Estado Islâmico e a posição europeia de fechar as fronteiras. Qual o panorama histórico da atual crise de refugiados? A gente pode pensar na crise em camadas. Chegou agora na camada europeia, ocidental. Mas se nós formos pensar em termos de crise humanitária, ela já tem bastante tempo: começacom as invasões do Afeganistão, em 2001, e do Iraque, em 2003, realizadas pelos EUA e aliados, à revelia da ONU. O que geraram? Grandes deslocamentos de pessoas para as vizinhanças. A primeira questão fundamental quando a gente analisa migrações humanitárias é a vizinhança imediata. É o primeiro lugar para onde se vai em desespero: tenta-se cruzar as fronteiras secas ou úmidas, de preferência as secas. Nesse movimento, Paquistão e Líbano, por exemplo, receberam refugiados, e o Irã, demonizado por ser uma potência nuclear, mas sem autorização para entrar no clube, recebeu 2 milhões deles. São países pobres... Sim, estamos falando de países em desenvolvimento, que não têm o welfare state. E não reclamam, não criam problemas diplomáticos. Qual é a ponte que liga as invasões do Afeganistão e do Iraque, há mais de uma década, à Síria, que desde 2011 em guerra civil produz milhões de refugiados? São 4 milhões de refugiados, é a maior catástrofe humanitária pós-Segunda Guerra. Mas a Síria tinha um governo estável até a eclosão da Primavera Árabe (onda revolucionária popular iniciada em 2010 em países do Oriente Médio e Norte da África). Aliás, a Síria era não só estável, como previsível – isso é muito importante do ponto de vista das relações internacionais: a previsibilidade, você sabe o que acontece dentro das fronteiras. Com a Primavera Árabe, foi o grande momento de se questionar regimes autocráticos e aristocráticos, houve a queda do (Muamar) Kadhafi, na Líbia, do (Hosni) Mubarak, no Egito, e o Assad (Bashar AlAssad, ditador sírio desde 2000) balançou, mas não caiu, está bastante fragilizado. Assim, a área de Afeganistão, Iraque, Síria se torna um



Quem ajudou a criar o Estado Islâmico contra o Assad, na Síria, foram Inglaterra, França, Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes” lia, filhos, se não estiver desesperado.

Como é esse trabalho de contenção do fluxo migratório? Acampamentos, com logística, tendas, alimentos, sanitários. Com isso, as pessoas não sairiam dali, inclusive porque sempre há um fio de esperança de que a situação possa melhorar e eles irão voltar pra casa. Lembrando que a repatriação também é um princípio do Acnur, baseado em duas premissas: de que o conflito diminua a condições razoáveis e de que a pessoa queira voltar.

grande mapa convulsionado com a Primavera Árabe.

O Estado Islâmico, também um disseminador de instabilidade na região, é consequência disso? Hoje, o Estado Islâmico é o maior propulsor de refugiados, é o que comete os maiores crimes de guerra. E aqui entra a responsabilidade moral de alguns países. Quem ajudou a criar o Estado Islâmico contra o Assad, na Síria, foram Inglaterra, França, Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes. Os Estados Unidos, justiça seja feita, relutaram em fornecer armas, contribuíram com logística. Eles fizeram isso na tentativa de enfraquecer o suporte ao Irã, de quem a Síria é aliada. Ou seja, alguns dos países da Europa, que até há pouco relutava em receber os refugiados, contribuíram em grande parte para a crise. Uma coisa de que não se fala muito é a questão da responsabilidade. Uma crise envolvendo refugiados, pelo Direito Internacional gerido pela ONU, implica obrigação legal dos países de receber essas pessoas. A Convenção de Genebra, de 1951, que criou o Estatuto do Refugiado, diz que nenhum refugiado que alegue estar sendo perseguido não pode ser impedido de entrar na fronteira. No caso da Europa, em questões de fronteira, qualquer país do bloco age em nome dos 28.



O Brasil tem potencial enorme de recepção, mas não significa que tenhamos as políticas públicas adequadas para isso” Quando algum se nega a receber, o faz em nome da União Europeia (UE).

Tem-se observado um avanço de governos de extrema direita na UE, de orientação francamente xenófoba. Aliado a isso, o bloco vive há alguns anos uma severa crise econômica. O que pesa mais na hora de dizer ‘não’ a um refugiado? A crise econômica é o maior componente, que atinge o imaginário da opinião pública: estamos sem emprego, como vamos receber mais estrangeiros que, no fundo, vão competir com a gente? Não são só pessoas que vão recolher lixo, limpar estações de metrô. Nesses grupos há engenheiros, médicos, gente qualificada. Essa pressão da opinião pública obriga os governos a darem um freio. Às vezes parece que a ONU está muito passiva em relação a todo esse problema. Co-

mo você vê isso? Um dos motivos da crise aguda do momento na Europa é que o Acnur (agência da ONU para refugiados) não tem recursos para realizar logísticas em áreas de conflito. Por quê? Estruturalmente, o Acnur tem um problema financeiro: só 2% do orçamento da ONU vai para o Acnur. Isso equivale à folha salarial de quem trabalha lá. Todos os demais projetos, tudo, depende de doações dos governos. O que ocorre depois de 2008? Um decréscimo nessas doações, por conta da crise econômica. Em paralelo, houve a partir de então um recrudescimento na crise humanitária. Ou seja, aquela faixa em que a crise humanitária era contida, nos locais próximos aos epicentros dela, explodiu. Essas pessoas, sem ter alternativa, se lançaram ao oceano, em condições precárias. Ninguém faz isso, com a famí-

Qual impacto da foto do menino Aylan, de 3 anos, morto em uma praia da Turquia quando tentava chegar com a família na Grécia? Logo depois da publicação pelo mundo, vários países da Europa se comprometeram a receber um determinado número de refugiados por ano. A foto do menino teve impacto sobre a opinião pública, que se sensibilizou. Digo que a foto criou uma janela de oportunidades para o refugiado. Só que não fica aberta o tempo inteiro: a opinião pública tende a esquecer e a pensar nos seus próprios interesses. E, nas próximas eleições, veremos um aumento de partidos conservadores assomando ao poder na Europa. Voltando à xenofobia europeia: como um continente que nos últimos 200 anos se moldou por ideais igualitários pode ver surgir tais manifestações irracionais e até mesmo de ódio contra o outro? É interessante evocar a racionalidade europeia, porque nos faz lembrar que o primeiro documento internacional a reconhecer o estrangeiro como igual foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, na França, que depois se espalha por toda a Europa e passa a ser um baluarte das repúblicas ou dos governos democráticos. É uma contradição que a Europa rechace os estrangeiros. Mas, sobre isso, queria citar o Georges Duby (historiador francês, 1919-1996), que tem uma longa entrevista chamada Ano 1000, Ano 2000. No ano 1000, que ele considera o de formação da Europa, um dos medos é o do outro, do estrangeiro – esse medo é forjado pelo imaginário, intangível. E quem é o outro? É o que pode me escravizar, me matar, é o que traz doenças, que tem outra fé... o imaginário europeu contemporâneo carrega isso, que se reproduz, século após século, a partir da mesma imagem. O Brasil é um país multicultu-

ral por excelência e, recentemente, a presidente Dilma Rousseff disse que o País “está de braços abertos para acolher refugiados”. Estamos preparados para receber mais gente e de áreas de conflito? O Brasil tem potencial enorme de recepção, mas não significa que tenhamos as políticas públicas adequadas para isso. Temos oficialmente apenas 8.400 refugiados no Brasil. Isso é nada. O espantoso e incomum é que são divididos em mais de 70 nacionalidades. O que você considera que falte em políticas públicas? Quem define a política é o Governo Federal, mas o impacto é sentido por estados e municípios. Por exemplo, onde o refugiado vai tratar da saúde? No SUS, gerido localmente; nas escolas, a mesma coisa. Há três esferas de migração: refugiados, os migrantes humanitários, caso dos haitianos, e os migrantes econômicos, dos quais os bolivianos são um exemplo. Como o Estado brasileiro acolhe? Com ajuda da sociedade. Já começa quando o refugiado chega e precisa passar por entrevistas. Quem ajuda? O Cáritas, ligado à Igreja Católica, a Federação Islâmica etc. As políticas públicas dependem muito da sociedade civil para a integração. Para encerrar, você vê uma solução para a guerra civil síria a curto e médio prazos? E o que é preciso para isso? Seria preciso conversar com o Assad. Ele é ditador? Praticou crimes? Sim. Mas é previsível, é alguém com quem você pode sentar e será ouvido, o que não ocorre com o Estado Islâmico. Aliás, os Estados Unidos, a França, já estão realizando operações especiais, com drones, sem a anuência da ONU, para eliminar os chefes do Estado Islâmico, o que também é uma violação, porque nessas operações se admitem os efeitos colaterais. E o que é isso? Morte de civis. Isso é crime de guerra. Vivemos hoje um cenário de barbárie, que em nome de se matar a cabeça da hidra, acaba-se matando inocentes. Não se deve combater o Estado Islâmico como se estivesse em uma cruzada. Por isso, não vejo solução para curto prazo. Os refugiados vão continuar saindo, porque é a única alternativa.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.