\"Intimidade e reflexão: Repensando a década de 1890\"

June 5, 2017 | Autor: Rafael Cardoso | Categoria: Art History, Brazilian Studies, Brazilian History, Women and Gender Studies, 19th-Century Art
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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Apesar dos avanços inegáveis entre pesquisadores e especialistas nos últimos dez anos, ainda se costuma presumir excessiva continuidade entre a Academia Imperial de Belas Artes e a Escola Nacional de Belas Artes, sua sucedânea. A noção de uma emenda perfeita entre as duas instituições está subsumida na grafia “AIBA/ENBA”, freqüentemente adotada por estudiosos para facilitar generalizações aplicáveis a ambas as siglas. Precisamos problematizar essa barra. Há continuidade, sim, entre as duas entidades, sem dúvida; mas há também diferenças suficientes para que mereçam discussão e análise como instituições distintas, produtoras de práticas, estruturas, discursos e sentidos diversos em termos de ensino, exposição e até mesmo posicionamento estético e político. Felizmente, novas pesquisas estão em curso que tenderão a esclarecer melhor os meandros da transição entre AIBA e ENBA, dando conta das rupturas e mudanças, talvez pela primeira vez na historiografia dessa área.2 Os únicos interessados em manter a falta de diferenciação entre essas instituições são os grupos comprometidos com a desgastada contraposição entre um ‘academismo’ retrógrado e um ‘modernismo’ revolucionário, ambos reduzidos a categorias monolíticas e portanto enganosas.

intimidade e reflexão: repensando a década de 1890 rafael cardoso

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O presente texto não pretende discutir a reforma da Academia e sua transformação em Escola Nacional, ocorrida no período crítico da transição republicana entre 1889 e 1890. Basta lembrar que essa mudança não foi imediata, e nem fruto de qualquer unanimidade. Como todo o resto do processo de consolidação da República, deu-se aos trancos e barrancos. Passou quase um ano entre a nomeação da comissão encarregada de elaborar projeto de reforma da AIBA, em 30 de novembro de 1889, e os dois decretos que deram existência legal à ENBA, ambos datados de novembro de 1890. Nesse período de interinidade, surgiram pelo menos três projetos de reforma, apoiados por grupos concorrentes. Agravando ainda mais a precariedade desses doze meses, foi deflagrada em abril a revolta aberta contra a Academia que resultou na criação de cursos livres no barracão do Largo de São Francisco, realizados entre os meses de julho e outubro, segundo relatos em jornais da época. Contando com Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoedo como principais articuladores entre os professores e com Eliseu Visconti e João Baptista da Costa como lideranças estudantis, o chamado episódio do ‘Ateliê Livre’ configura o que há de mais próximo a uma dissidência, propriamente dita, na longa história do ensino oficial de arte no Brasil.3 470

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Os embates institucionais costumam atrair bastante interesse da parte dos historiadores, porquanto evidenciam as fissuras do sistema. No presente caso, no entanto, faz-se importante não perder de vista que a crise de transição entre AIBA e ENBA reflete um panorama maior de expansão e fortalecimento do meio artístico como um todo. A relativa decadência da Academia tem por paralelo a ascendência de outras instâncias e instituições, correspondendo a uma maior diversidade, complexidade e amadurecimento de público, crítica, artistas e outros agentes novos como galerias. Entre 1880 e 1890, a AIBA se afundava em dificuldades orçamentárias e imbróglios políticos que impediram a realização regular das exposições gerais e dos prêmios de viagem, além de sofrer queda de matrículas e supressão do curso noturno. O pedido de demissão do moribundo diretor Nicolau Antônio Tolentino, em março de 1888, deu lugar à direção pouco convincente do engenheiro Moreira Maia, o qual permaneceu no cargo até sua própria morte em julho de 1890 (exaurido, possivelmente, pelo esforço heróico de realizar a primeira Exposição Geral em seis anos, inaugurada em março daquele ano), deixando a casa acéfala. Enquanto isso, o meio artístico local experimentava uma efervescência e um pluralismo nunca antes vistos. Após o retumbante sucesso das exposições do Liceu de Artes e Ofícios, a qual revelou a obra de Georg Grimm, e da individual de Almeida Júnior, recém regressado da Europa, ambas em 1882, os amantes de arte da Corte imperial assistiram a uma sucessão de exposições em galerias como as casas De Wilde, La Glace Élégante e Insley Pacheco, dentre as quais vale citar as individuais de Arsênio da Silva, Aurélio de Figueiredo e Firmino Monteiro, em 1883. A partir de 1886, esse movimento intensificou-se, com a realização das exposições de Facchinetti e Henrique Bernardelli, nas salas da Imprensa Nacional, e de Castagneto, na galeria Vieitas, assim como exposições estudantis na própria Academia. O circuito expositivo paralelo aos Salões já estava definitivamente consolidado a essa altura, permitindo inclusive a maior regularidade de uma crítica de arte que revelou, nesses anos, Felix Ferreira, Gonzaga Duque e Oscar Guanabarino, entre outros.

cidade efervescente, oferecendo diversas opções de lazer e de entretenimento. Escrevendo em 7 de julho de 1872, n’A Semana Ilustrada, o colaborador que assinava ‘Ninquem’ emitia o juízo: “Agora o povo fluminense não tem razão de queixa. Há divertimentos para todas as classes.” Dentre estas, ele destaca a “exposição de belas-artes para os competentes” e a “rua do Ouvidor para os vagabundos e elegantes”. Com um misto bem carioca de ironia e otimismo, o articulista assevera: “O Rio de Janeiro é na verdade uma Babilônia pela variedade das distrações que proporciona, quando não o seja pela quantidade dos portentos de pedra e de carne que encerra.”4 Esta opinião não era compartilhada por todos, é claro. Em seu grande livro O Rio de Janeiro: Sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades, de 1877, Moreira de Azevedo critica duramente a falta de “gosto artístico” prevalente e denuncia os próprios artistas, que “vivem essa vida de indiferença e marasmo que nada concebe e produz.”5 Contudo, a simples existência de um livro como o seu demonstra uma consciência que é reflexo do amadurecimento cultural característico da década de 1870. Talvez a avaliação de Moreira de Azevedo fosse menos severa se ele tivesse escrito após a “batalha das Batalhas” que dominou a percepção jornalística do Salão de 1879, colocando em confronto as obras A Batalha de Avahy, de Pedro Américo, e Primeira Batalha dos Guararapes, de Victor Meirelles. O furor público em torno dessas obras gerou uma freqüência impressionante aos salões da Academia e suscitou a publicação dos textos que consolidaram a crítica de arte no Brasil.6 É possível identificar um amplo movimento, entre as décadas de 1870 e 1890, de progressiva intensificação da vida cultural e intelectual da Corte que corresponde ao ingresso do Brasil – ou, pelo menos, de uma parcela de suas elites – no mesmo regime de modernidade que era irradiado a partir de centros como Londres e Paris desde a década de 1850, pelo menos. Essa gradativa mudança de hábitos envolve a busca consciente do lazer e do entretenimento, conceitos fundamentais para a construção da própria idéia de modernidade, assim como uma ênfase crescente no espetáculo como forma de organização social. De modo concomitante, o meio artístico do Rio de Janeiro foi palco de uma liberalização de costumes, quase silenciosa, mas nem por isso menos impressionante. A recepção dada à tela A pompeiana, de João Zeferino da Costa, quando de sua exposição no Salão de 1879, surpreende pelo pouco escândalo provocado por um nu tão gratuito e ousado. Em comparação com o frisson causado cerca de quinze anos antes pela pequena A carioca,

Na verdade, é preciso recuar no tempo mais um pouco ainda para localizar a origem desse movimento. Se o meio artístico brasileiro mostrava sinais de amadurecimento no final dos anos 1880, já era possível antever a promessa desse fruto na década anterior. As páginas das principais revistas ilustradas da década de 1870 traem uma percepção nova e surpreendente do Rio de Janeiro como uma 471

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de Pedro Américo, passou batido o grande nu de Zeferino, mesmo sendo claramente provido de carga sexual. Tirante a bombástica censura de Gonzaga Duque – emitida oito anos depois do fato – A pompeiana foi alvo mais de elogios do que de críticas, evidenciando o relaxamento de velhos padrões moralistas que passava a vigorar na Corte no período pós-Guerra do Paraguai.

de representação e até de auto-representação. Após a aparição, em 1862, do volume, Brasileiras célebres, de autoria de Joaquim Norberto de Silva e Souza, sobreveio a tentativa de dar consistência histórica ao papel da mulher na formação social brasileira, culminando com a publicação, em 1899, do livro influente Mulheres ilustres do Brasil, de Ignez Sabino. Em paralelo a essa consciência incipiente da mulher como agente da história nacional, surge toda uma série de representações de protagonistas femininas nas páginas da literatura brasileira – geralmente, escritas por homens –, as quais buscam explorar a intimidade e a psicologia das mulheres. São bons exemplos dessa tendência alguns romances de José de Alencar, como Lucíola (1862) e Senhora (1875), ou do Visconde de Taunay, como Manuscrito de uma mulher (1873) e O declínio (1899), entre outros. Acompanhando esse olhar masculino para o universo feminino, o mesmo período também testemunhou o surgimento de um número razoável de mulheres artistas, as quais participaram em crescente número das Exposições Gerais da AIBA – a partir de 1844, quando a pioneira Emma Gabrielle Piltegrin Gros de Prangey expôs cinco obras. Dentre as muitas mulheres cujos nomes aparecem nos catálogos dessas exposições, até o final do período imperial, estão: Adele Moreau, Amelia Moreau, Angela Hoxse, Cornélia Ferreira França, Delphine Malbert, Francisca Breves, Guilhermina Tollstadius, Henriette Gudin, Isabel Alberto, Isabel Henninger, Isabel Labourdonnais Gonçalves Pinho, Joana Teresa Alves de Carvalho, Josefina Houssay, Júlia Labourdonnais Gonçalves Roque, Julieta Adelaide dos Santos, Julieta Guimarães, Luiza Hoxse, Madame Saint de Julien, Margarida Fortunata de Almeida, Maria Adelaide Portugal Saião Lobato, Maria Adelaide de Vasconcelos, Maria Antônia Abreu Lima, Matilde Bosísio, Maria Cochrane de Araújo Gondin, Raquel Haddock Lobo, Rosa da Mota, Virginia Lombardi, e ainda diversas senhoras e senhoritas listadas sob anonimato, ou somente pelas iniciais ou pelo primeiro nome. Em alguns poucos casos, uma expositora era identificada como “artista amadora”, designação atribuída, por exemplo, a Francisca A. Torres, filha do Visconde de Itaboraí, quando de sua participação no Salão de 1866. Merece destaque, nessa considerável seara de artistas mulheres, Abigail de Andrade, cuja aparição, primeiramente na exposição do Liceu em 1882 e depois no Salão de 1884, obteve merecido reconhecimento, dando ótimo início a uma carreira interrompida por sua morte precoce em 1889.10

O sentido de traçar esse lento movimento ocorrido ao longo das décadas anteriores é de chamar a atenção para a existência de um novo público consumidor de arte e cultura, o qual se encontrava consolidado na década de 1890. Geralmente englobado por termos genéricos como ‘elite cultural’ ou ‘burguesia urbana’, esse segmento social corresponde melhor à idéia de “uma ilha de letrados”, desenvolvida por José Murilo de Carvalho em A construção da ordem (1980). 7 Grupo por demais reduzido para figurar com destaque das análises socioeconômicas ortodoxas, essa camada constituída por grandes comerciantes prósperos, funcionários públicos, militares de alto patente, profissionais liberais, homens de letras, seus familiares e agregados, exerceu contudo um papel primordial nos rumos políticos da época. Foi, notoriamente, em seu seio que o abolicionismo e o republicanismo encontraram seu primeiro abrigo, refundindo os próprios parâmetros de nação e estado nos anos 1888 e 1889. É curioso reparar o quão pouco esse grupamento social tem sido considerado na historiografia da arte brasileira, dada sua importância inegável na imprensa, na literatura e em outros campos afins. Afinal, os primeiros colecionadores particulares de arte eram oriundos precisamente desse segmento, ao lado da nobreza propriamente dita, com a qual muitas vezes ele mantinha vínculos por casamento ou pelos meandros intrincados do sistema de honrarias imperiais.8 Ademais, diferentemente do grupo conhecido pela alcunha “homens de letras”, o público freqüentador de exposições e consumidor de obras de arte era de gênero misto. O amadorismo – ou apreciação de arte e sua prática em âmbito privado – era visto como uma ocupação aceitável para mulheres, dentro da rígida separação de gêneros da época, e era até incentivado. Isto posto, o meio artístico fornece um estudo de caso de extrema relevância para iluminar um dos mais obscuros “recônditos do mundo feminino” na história da sociedade brasileira.9 Vale ainda uma pequena digressão, a título de definir melhor a especificidade desse novo público de arte. O mesmo período entre as décadas de 1870 e 1890 compreende a cristalização no Brasil de uma noção distinta de universo feminino, digno

A existência desse público ilustrado – não somente letrado, mas ilustrado, no mais perfeito sentido do 472

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termo – explica o paradoxo aparente da ascendência e fortalecimento do meio artístico no exato momento em que a Academia enfrentava seu período mais crítico de declínio e crise, chegando quase à extinção. A tirar pelas indicações de propriedade e proveniência que figuravam dos catálogos dos Salões, os novos colecionadores de arte eram não somente Suas Majestades e Suas Altezas Reais, viscondes, barões e comendadores, mas um número nada desprezível de pessoas sem título algum, inclusive umas poucas mulheres. Isto só pode ter afetado a produção artística, à medida que os artistas vivem de sua arte e, por conseguinte, são obrigados a produzir aquilo que o público consumidor é desejoso de adquirir e capaz de absorver. Na hipótese plausível de que tenha se repetido, no Brasil, a mesma tendência das classes médias européias de preferir quadros menores de paisagem, natureza-morta e costumes às grandes telas históricas, religiosas ou mitológicas, deveria ser possível detectar um aumento de obras do primeiro tipo.11 A predileção pela pintura de costumes e assuntos domésticos, em detrimento dos grandes temas históricos, é claramente sinalizada como prova de atualidade por Gonzaga Duque, em A arte brasileira (1888), como parte de sua avaliação da tela Arrufos (1887), de Belmiro de Almeida:

sob o título brasileiro de O descanso da modelo, e a obra de maior sucesso da exposição.14 De modo geral, nota-se um aumento de cenas de interior doméstico, ao longo do último quartel do século 19 brasileiro, pelo menos tirando pelos dados disponíveis nos catálogos dos Salões. É notável que tenham ganhado popularidade, nas décadas de 1880 e 1890, quadros que retratam cenas de ateliê. Além das produções citadas de Almeida Júnior – e ainda outras do mesmo pintor como Ateliê em Paris (1880) e O importuno (1898) –, diversos outros artistas renderam-se aos encantos dessa temática, na esteira do sucesso de Descanso da modelo. Enquanto nenhuma cena de ateliê figura da lista de quase 400 obras expostas no Salão de 1879, a Exposição Geral seguinte, de 1884, inclui obras desse subgênero de autoria de Abigail de Andrade, Almeida Júnior, Belmiro de Almeida e Oscar Pereira da Silva (cópia d’O descanso do modelo). Em anos seguintes, o mesmo assunto renderia obras marcantes do pincel de artistas como Henrique Bernardelli, Pedro Weingärtner, Raphael Frederico e Rodolpho Amoedo, entre outros, tornando-se corriqueira após 1900. As cenas de ateliê são especialmente interessantes por serem representações auto-reflexivas: obras que falam sobre o fazer artístico e geralmente se dirigem a quem se interessa pelos bastidores do ofício. Guardadas as diferenças, sua recepção tem algo em comum com o modo como o público de cinema hoje aprecia e consome os chamados making of’s, filmes que documentam a produção de outros filmes. No complexo panorama de relações de gênero do último quartel do século 19, as cenas de ateliê também detêm um interesse peculiar pelo modo em que retratam as relações entre homens e mulheres. O aspecto mais chamativo do quadro O descanso do modelo é a contraposição entre o pintor vestido e as costas nuas da “bela rapariga morena como a casca da caneleira”, no dizer de Felix Ferreira.15 Não por acaso, esse confronto entre vestido e despida recorre n’O importuno, do mesmo Almeida Júnior. Pela atipicidade da situação retratada, a cena de ateliê apresenta uma das poucas instâncias, à época, em que a intimidade do espaço privado era dada a ver publicamente, com o agravante de misturar homens e mulheres em relações ambíguas e francamente sugestivas de uma transgressão das normas convencionadas para a convivência respeitável entre os sexos. Para quem duvida do potencial explosivo dessa combinação de homens trajados e mulheres peladas, é só lembrar que a transferência dessa situação de um interior para o

Os assuntos históricos têm sido o maior interesse dos nossos pintores que, empreendendo-os, não se ocupam com a época nem com os costumes que devem formar os caracteres aproveitáveis na composição dessas telas. Belmiro é o primeiro, pois, a romper com os precedentes, é o inovador, é o que compreendendo por uma maneira clara a arte do seu tempo, interpreta um assunto novo. Vai nisto uma questão séria – menos a de uma predileção do que a de uma verdadeira transformação estética. O pintor desprezando os assuntos históricos para se ocupar de um assunto doméstico, prova exuberantemente que compreende o desideratum das sociedades modernas [...]12 Gonzaga Duque erra, intencionalmente ou não, ao atribuir a Belmiro o pioneirismo nessa atitude. Outros o fizeram antes: notadamente, Almeida Júnior, que causou furor no Rio de Janeiro com sua exposição individual de 1882, atraindo mais de mil visitantes por dia, segundo o relato de Felix Ferreira. Duas obras de destaque nessa exposição eram justamente pinturas de gênero – ambas, aliás, representações de cenas de ateliê – Um cantinho de atelier,13 e Pendant le repos, tela consagrada

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ambiente externo condicionou um dos grandes embates do século 19 sobre a imoralidade das imagens: o caso do quadro Le déjeuner sur l’herbe (1863), de Manet.16

representação das figuras femininas, até então bastante rígido, quando não ausente. Surgem na arte brasileira das décadas de 1880 e 1890, talvez pela primeira vez, numerosas representações de mulheres, com direito à profundidade e à agência psicológicas. Tal constatação aplica-se às já citadas cenas de ateliê e, com maior perfeição, a imagens de contemplação feminina como Moça na janela (1891), de Aurélio de Figueiredo (Coleção Fadel), Retrato de senhora (1895), de Henrique Bernardelli (Pinacoteca do Estado), ou às absortas leitoras de Almeida Júnior em Leitura (1892) e Saudades (1899) (ambas, Pinacoteca), todos estes representativos da geração de pintores que então chegava ao reconhecimento popular. De modo menos evidente, ela poderia ser aplicada também a imagens nada inovadoras, em termos estilísticos, como os quadros de Pedro Américo, Judith rende graças a Jeova por ter conseguido livrar sua pátria dos furores de Holofernes (1880) e Moisés e Jocabed (1884) (ambos, Museu Nacional de Belas Artes). Embora mostrem mulheres de ação e atitude, essas telas ainda estão fortemente comprometidas com o regime antiquado de pintura histórica e mitológica, e foram produzidas lado a lado com exemplos os mais descarados de voyeurismo pictórico como a nova versão d’A carioca (1882), O noviciado (1894) e A primeira culpa (1898), todos do mesmo pincel. 18 Não é possível – e nem desejável, aliás, por ser maniqueísta – sugerir uma dualidade rígida opondo uma geração ‘acadêmica’, de saída, a uma nova geração, sensível ao universo feminino.

Quão fascinante, então, é constatar a existência de cenas de ateliê pintadas por artistas brasileiros, nesse período, em que o gênero é invertido e a mulher representada como pintora! É o caso de pelo menos duas telas bem conhecidas: No ateliê (1884), de Pedro Weingärtner (hoje na coleção Sérgio Fadel), e Moça pintando (1894), de Almeida Júnior, pequeno óleo sobre madeira em que o espectador observa por cima do ombro de uma pintora absorta no esforço de evocar uma paisagem. Se a ‘economia de trocas simbólicas’ usual das cenas de ateliê costumava passar pela oportunidade de franquear ao olhar masculino a representação de um corpo feminino despido e vulnerável, como entender esses quadros em que mulheres aparecem não somente completamente vestidas, mas ainda engajadas ativamente na produção da própria obra de arte? Nitidamente, existe aí uma inversão de valores que não pode ser dissociada do surgimento do público ilustrado citado acima, compreendendo a participação constante de mulheres no mesmo, ainda que minoritária. Esse novo público buscava uma outra representação da mulher, condizente com sua crescente sofisticação e cosmopolitismo. A existência de recônditos femininos dentro do meio artístico dessa época demanda uma avaliação do fenômeno sob a ótica daquilo que Griselda Pollock definiu como “espaços da feminilidade” na arte oitocentista:

Sem querer exagerar a contraposição, mesmo assim, é notável o engajamento da pintura brasileira nas décadas de 1880 e 1890 com a representação desses “espaços da feminilidade”, reflexo certamente de mudanças mais amplas nas práticas sociais que cercavam a visibilidade das mulheres na sociedade – em especial, na chamada ‘boa sociedade’. Um quadro como Más notícias (1895),19 de Rodolpho Amoedo (MNBA), é simbólico não somente desse olhar diferenciado para a psicologia feminina, como também de uma nova pintura, elegante e mundana, que então despontava com grande força nas principais capitais do mundo. Os nomes mais representativos dessa tendência são James Tissot e John Singer Sargent, artistas que compartilhavam um olhar atento às nuanças do universo feminino e da alta sociedade, recheando seus quadros de evocações ricas de moda e interiores, retratando com grande sensibilidade as alegrias das noites de gala e o tédio dos dias de ócio. São representações freqüentemente decorativas, às vezes frívolas, nas quais a mulher é vista como objeto de fruição masculina, sim, mas

Os espaços da feminilidade são aqueles a partir dos quais a feminilidade é vivida como posicionamento no discurso e na prática social. Eles são produtos de uma sensação vivenciada de localização, mobilidade e visibilidade sociais, inserida nas relações sociais de ver e ser visto. Formados no interior das políticas sexuais da visão, eles delimitam uma determinada organização social do olhar que, por sua vez, se volta para assegurar uma determinada ordenação da diferença sexual. A feminilidade é tanto condição quanto efeito.17 No caso brasileiro, não se está a falar de estratégias de representação especificamente femininas, discerníveis no espaço pictórico pela recorrência de cacoetes de proximidade e compressão, como aquelas que a autora atribui às produções de artistas como Mary Cassatt e Berthe Morisot. Por espaços da feminilidade, entende-se aqui uma relativa flexibilização do regime tradicional de 474

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com direito a alguma agência e muita profundidade psicológica. Em contraponto com as autorepresentações femininas que passaram a grassar com maior desenvoltura nos salões europeus, essas obras vêm sendo resgatadas pelos historiadores da arte como uma preciosa documentação visual de uma das mudanças mais importantes dessa época: o início da emancipação da mulher na sociedade industrial.20

primeiro passo em direção a uma nova organização social que permitisse maior pluralidade, diversidade e heterogeneidade. Se a dimensão psicológica de algumas obras de arte dessa época continua a ser subestimada ou até negada, isto tem muito mais a ver com os preconceitos da historiografia posterior do que com qualquer deficiência das obras. Do movimento republicano em diante – passando por positivistas e marxistas, desenvolvimentistas e neoliberais, com igual fervor – a aposta ideológica de muitos tem sido na história do Brasil como fruto de movimentos coletivos e de forças impessoais como raça e classe ou geografia e economia. Tal postura pressupõe a reificação do conceito abstrato que atende pelo nome de ‘Povo’ (com direito à maiúscula inicial). Para boa parte de nossa tradição estudiosa da sociedade, tudo que fosse outro do que isso seria alienação. Renegada foi e continua a ser a história de nossas diferenças e individualidades, das idiossincrasias que demarcam a identidade de cada um, da solidão essencial que nos eleva acima da nacionalidade e nos remete à condição humana. A própria noção de uma cultura brasileira, una e autônoma, presume a existência de um substrato ‘popular’, o qual precisa ser problematizado, em especial no que diz respeito à arte, à criação e à memória.22

Sargent e Tissot moviam-se ambos no circuito internacional de arte que então começava a despontar entre Paris, Londres e Nova York, movido por crescentes interesses mercadológicos – em especial, o influxo de ricos colecionadores americanos no cenário artístico europeu. Como eles, muitos outros – artistas franceses, ingleses, americanos e de outras nacionalidades, inclusive brasileiros – passavam a integrar um meio artístico cosmopolita, de fato. Treinados de modo geral pelos mesmos mestres parisienses, esses artistas participavam de um circuito de ensino e exposição cujas partes se comunicavam e permeavam cada vez mais, ainda que tenha permanecido altamente segmentado e hierarquizado até a eclosão consciente do moderno, por volta de 1900.21 Em torno do sistema mundial de academias, começava a existir uma comunidade de estruturas e práticas, o que propiciava a possibilidade de repercutir discursos e tendências em escala internacional. Será tão surpreendente assim constatar que alguns artistas brasileiros, bebendo diretamente nas mesmas fontes que seus colegas de outras nacionalidades, tenham trazido de volta ao Brasil as mesmas preocupações que então agitavam o resto do mundo ocidental?

Ainda rege nossas idéias sobre cultura um mito de morenice normativa, mais afeito às aspirações nacionalistas de românticos e modernistas do que sensível às transformações inegáveis da contemporaneidade globalizada. Diante do colossal constructo histórico da brasilidade, folclórica e genérica, o individual e o particular perdem qualquer relevância. Face a tão gigante paradigma, tudo aquilo que passa pela cabeça da moça do quadro, a que recebeu as más notícias, seriam tolices e futilidades. A primeira ironia disso é que essa brasilidade ‘de raiz’ foi inventada e incensada por uma intelectualidade urbana e minoritária, para aplicação seletiva ao ‘outro’ rural e majoritário. A segunda ironia é que essa moça e seu criador somos nós: os ilustrados produtores e consumidores da cultura erudita no país do populacho. A ironia maior é que nem por isso a legítima criação popular é respeitada, de fato. Será que não está na hora de nos permitirmos perguntas mais matizadas, a fim de obtermos respostas mais precisas? Afinal, a afirmação exacerbada da nacionalidade fazia sentido em uma época quando a identidade pátria sofria ameaças de desagregação, fosse por regionalismos ou por concorrência externa. Hoje, a existência da cultura brasileira não é mais mero objeto de anseio ou

Examinando mais detidamente um quadro como Más notícias, além dos outros citados que tratam da temática de contemplação feminina, percebese uma nova busca pela interioridade, pela intimidade e pela reflexão. A voga das cenas de ateliê atesta igualmente a esse movimento. A arte brasileira começava a se voltar para dentro: não somente para o interior do país (os caipiras de Almeida Júnior), conforme sempre destacou nossa historiografia, mas para o interior das casas e das almas também. Aí, temos uma informação preciosa sobre a transformação da elite ilustrada da sociedade brasileira nessas primeiras décadas republicanas. Vencidas as etapas de consolidação da nacionalidade e de engajamento com um projeto de mudança política, o meio artístico finalmente refletia o amadurecimento suficiente para se dedicar a explorar aquilo que é mais propriamente do âmbito da arte: as agruras da condição humana. O olhar diferenciado para o universo feminino é um 475

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especulação, mas uma realidade incontornável e poderosa. Diante dessa constatação, o melhor que se faz por nossa história cultural é parar de entoar o coro triunfal e prestar atenção aos acordes menores, até agora abafados. Se o Brasil quer mesmo ser um país de todos, é necessário que se reconheça o valor de cada um... ou, no caso, de cada uma.

Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1990. Cf. Miriam Andrade de Oliveira, As pintoras das Exposições Gerais da Academia Imperial das Belas Artes e Escola Nacional de Belas Artes na Primeira República. 180 Anos de Escola de Belas Artes: Anais do Seminário EBA180. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. pp. 333-340. 11 Seria interessantíssimo, como projeto de pesquisa, que se fizesse uma tabulação estatística entre os assuntos dos quadros e a condição social de seus donos, para averiguar se realmente existe qualquer correlação, nesse sentido. 12 Gonzaga Duque. A arte brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995. p.212. 13 Este quadro, em coleção particular, depois ganhou o título espúrio O modelo e teve sua data erroneamente atribuída como 1897 no livro Almeida Jr. (1985), editado pela Art Editora como parte da série popular, “Grandes artistas brasileiros”. 14 Felix Ferreira. Belas artes: Estudos e apreciações. Rio de Janeiro: Baldomero Carqueja Fuentes, 1885. pp.116123. 15 Ibid., p.120. 16 Para um aprofundamento dessa discussão, ver Marcia Pointon, Naked Authority: The Body in Western Painting 1830-1908 (Cambridge: Cambridge U.P., 1990), pp.113134. 17 Griselda Pollock, Vision and Difference: Femininity, Feminism and the Histories of Art (Londres: Routledge, 1988), p.66. [tradução minha] 18 Ver Liana Ruth Bergstein Rosemberg, Pedro Américo e o olhar oitocentista (Rio de Janeiro: Barroso Edições, 2002). 19 Para uma análise desse quadro, ver meu livro A arte brasileira em 25 quadros (1790-1930) (Rio de Janeiro: Record, 2008), pp.108-115. 20 Ver, entre outros, Elaine Kilmurray & Richard Ormond, orgs., John Singer Sargent (Princeton: Princeton U.P., 1998); e Nancy Rose Marshall & Malcolm Warner, James Tissot: Victorian Life/Modern Love (New Haven: Yale University Press, 1999). 21 Uma idéia da complexidade desse circuito pode ser depreendida de livros como: John Milner, The Studios of Paris: The Capital of Art in the Late Nineteenth Century (New Haven: Yale U.P., 1988); Annette Blaugrund et alii, Paris 1889: American Artists at the Universal Exposition (Philadelphia & Nova York: Pennsylvania Academy of the Fine Arts & Harry N. Abrams, 1990); e Rafael Cardoso [Denis] & Colin Trodd, orgs., Art and the Academy in the Nineteenth Century (Manchester & New Brunswick: Manchester U.P. & Rutgers U.P., 2000). 22 Ver Lélia Coelho Frota, Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, século XX (Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005), pp.16-18. Cf. Afonso Carlos Marques dos Santos, A invenção do Brasil: Ensaios de história e cultura (Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007), pp.59-69, 87-95.

Notas Professor associado da PUC-Rio, Departamento de Artes & Design. 2 Promete, nesse sentido, o projeto de doutorado de Camila Dazzi, “A Reforma de 1890” – Da polêmica em torno de sua concepção à forma como se deu sua implementação na Escola Nacional de Belas Artes (1889-1900), em curso na EBA/UFRJ. Para o estado da arte sobre esse assunto, ver Arthur Valle, A pintura da Escola Nacional de Belas Artes na 1ª República (1890-1930): Da formação do artista aos seus modos estilísticos. (Tese de doutorado inédita, EBA/UFRJ, 2007), esp. pp.40-47. 3 Ver Ana Maria Tavares Cavalcanti, Os embates no meio artístico carioca em 1890 - antecedentes da Reforma da Academia das Belas Artes, 19&20: A Revista Eletrônica de Dezenovevinte, v.2, n.2 (abril 2007) Disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/criticas/embate_ 1890.htm. Acesso em 1 jul. 2008 4 Ninquem, Um pouco de tudo, A Semana Ilustrada, n.604 (07/07/1872), pp.4827, 4830-4831 5 Moreira de Azevedo. O Rio de Janeiro: Sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades. Rio de Janeiro: Brasiliana, 1969. v.2, p. 215. 6 Para uma discussão mais alongada desse episódio, ver meu artigo Ressuscitando um velho cavalo de batalha: Novas dimensões da pintura histórica do Segundo Reinado, 19&20, a revista eletrônica de Dezenovevinte, v.2, n.3 (julho de 2007). Disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/ criticas/rc_batalha.htm. Acesso em 1 jul. 2008 7 José Murilo de Carvalho. A construção da ordem: A elite política imperial. Rio de Janeiro: Ed.UFRJ & RelumeDumará. 1996. pp. 55-82. 8 Sobre a formação social desses clãs aristocráticos, ver Eul-Soo Pang. In Pursuit of Honor and Power: Noblemen of the Southern Cross in Nineteenth-century Brazil. Tuscaloosa: U. Alabama Press. 1988. esp. parte II. 9 Embora falem de outra época, o termo é pego emprestado de: Marina Maluf & Maria Lúcia Mott, Recônditos do mundo feminino. Nicolau Sevcenko, org. História da vida. privada no Brasil 3. República: Da Belle Epoque à Era do Rádio. São Paulo: Cia das Letras, 1998. 10 Carlos Roberto Maciel Levy. Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. 1

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