Introdução à Etnografia Têxtil: Da teoria ao campo.

July 25, 2017 | Autor: Stéphane Malysse | Categoria: Anthropology, Ethnography, Textiles, Marcel Mauss, Fashion
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Introdução à Etnografia Têxtil: Da teoria ao campo.

Índio Cheyenne Norte-Americano, E.S Curtis, USA, 1932.

por Stéphane Malysse

“A ciência etnológica baseia-se na observação das sociedades, com o objetivo principal de conhecer os fatos sociais. O etnógrafo sempre deve procurar ser exato, exaustivo: ele deve ter uma boa apreensão dos fatos que ele observa e das relações que se estabelecem entre eles, deve dominar o sentido das proporções e das articulações.” Marcel Mauss, Manual de Etnografia, 1926.

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A Etnografia têxtil é um capítulo da Antropologia voltado ao estudo da indumentária, que é entendida como fenômeno sociocultural, como fonte geradora de símbolos, objeto de representações e de modificações. Se por um lado a Etnografia Têxtil, procura inventariar e compreender as lógicas sociais e culturais encontradas na produção têxtil e nos seus usos sociais, por outro ela insere o corpo e seus signos vestidos no campo dos fenômenos socioculturais mais amplos. Essa introdução à Etnografia Têxtil responde sobretudo à questões praticas: “ensinar à observar e classificar os fenômenos sociais” e mais especificamente fenômenos têxteis ou signos sociais vestidos .

O Manual de Etnografia foi publicado em 1926 pelo antropólogo francês Marcel Mauss como uma versão editada das suas aulas de Etnografia. Escrito a partir das “Instruções de Etnografia descritiva” ou seja, do curso que o Marcel Mauss deu ano após ano no Instituto de Etnologia da Universidade de Paris de 1926 (data da sua fundação) até 1939, o manual que era destinados, sobretudo, aos novatos dessa disciplina, era ideal para a iniciação dos alunos no tema. Essa introdução nasceu também do curso de etnografia têxtil que estou ministrando no Curso de Têxtil e Moda da USP Leste e de uma pesquisa no campo dos diversos modos de vestir-se nas culturas não ocidentais. Nessa introdução, partes do Manual do Mauss são traduzidas (sempre em itálico) para esboçar as grandes linhas do método etnográfico e iniciar os alunos de Moda à etnografia em geral ; isso sem deixar de pensar nas especificidades da etnografia têxtil.

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Ao ministrar aulas e palestras de Antropologia para um publico não especializado e geralmente interessados pelos fenômenos têxteis, me pareceu essencial insistir sobre o fato social total, ou seja ao estudar a produção têxtil de uma sociedade não se pode isolar esses signos sociais do conjunto que forma a sociedade como algo total (como um todo), com sua morfologia, as relações especificas que ela desenvolve entre tecnologia e estética e sobretudo com sua forma própria de se pensar e se organizar enquanto sociedade.

O fenômeno têxtil, tais como outros fenômenos sociais é um fenômeno total, ao mesmo tempo biológico, psicológico e cultural, cujas relações com outros aspectos de uma dita sociedade formam uma tecelagem complexa e antropologicamente amarada. Não se pode estudar somente a natureza dos fios para entender a tradição das tapeçarias marroquinas... Da mesma forma, não se pode estudar os fenômenos sociais ligados ao vestir sem observar a sociedade na qual tal forma de vestir ocorre. Como o explicava Marcel Mauss em 1926, “O etnógrafo sempre deve procurar ser exato, exaustivo: ele deve ter uma boa apreensão dos fatos que ele observa e das relações que se estabelecem entre eles, ele deve sobretudo dominar o sentido das proporções e das articulações.” Para trabalhar com etnografia têxtil, ou seja estudar os fenômenos têxteis e de moda através de uma metodologia etnográfica, o pesquisador deve primeiramente ampliar seus horizontes, deixar de lado sua especialidade e temática, para apreender da cultura da qual ele quer estudar as formas têxteis de modo exaustivo e sobretudo exato.

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Constituir coleções de roupas étnicas, sem ter noção da sociedade na qual elas são produzidas e usadas, impede qualquer pretensão à uma pesquisa em Etnografia têxtil... Não se pode estudar a tradição têxtil peruana a partir de um poncho. Será preciso esquecer totalmente deste item e aprender a ver a cultura peruana através dos olhos dos nativos e dos papeis sociais desempenhados pelo poncho nas suas vidas para iniciar uma verdadeira etnografia têxtil... Ou seja, a roupa sem o homem que a usa não diz nada além das suas especificidades técnicas e estéticas...

Como já se pode imaginar, o trabalho do etnógrafo é um trabalho árduo, pois um etnógrafo têxtil deve ser ao mesmo tempo: economista, historiador e matemático ; medico, biólogo e psicólogo ; engenheiro têxtil e entrevistador... como também romancista capaz de evocar a vida de uma sociedade inteira. A meu ver, a grande dificuldade consiste em tirar o foco, exclusivamente, dos fenômenos têxteis e passar a enxergar os fenômenos sociais como um todo. Mauss dizia que “o jovem etnógrafo que vai fazer pesquisa de campo deve saber o que ele já sabe para trazer a tona o que ele não sabe ainda.” Da mesma maneira o jovem etnógrafo têxtil deve ser capaz de ampliar sua visão, abandonar os vícios de interpretação visual de sua área, para entender que a etnografia é sempre uma pesquisa comparada, baseada na comparação dos fatos e não das culturas, dos signos têxteis e não simplesmente das roupas...

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Pigmeu AKA versus Homem de Patagônia (1930)

No seu texto Para que vestir-se? (1978), Maurice Leenhardt explica que a vestimenta é ao mesmo tempo: proteção, ornamento e signo. Informação visual e suporte de comunicação, a roupa inscreve-se, simultaneamente, na construção da aparência humana ao mesmo tempo enquanto objeto e signo a ser decifrado. De fato, ele mostra que o signo vestido não funciona em sentido único mais sim na reciprocidade das aparências: é através dessa intercomunicação visual que as aparências são decodificadas e muitas vezes harmonizadas. Numa sociedade, o signo vestido é ao mesmo tempo receptor e emissor, pois cada grupo cultural se comunica consigo mesmo através de cada indivíduo e da sua aparência “vestida”, construindo assim na visibilidade uma certa confirmação cultural: uma cultura (re)vestida. A vestimenta é um fato cultural primordial pois ela fala ao mesmo tempo das normas, dos valores e das referências que fundam a existência tanto das sociedades quanto dos indivíduos.

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Toda sociedade é composta de uma “massa humana”. O estudo desta sociedade enquanto “massa humana” forma o que chamamos de morfologia social, que inclui a demografia e a geografia humana, cuja importância parece capital à realização de uma boa Etnografia Têxtil. Antes de pensar na produção têxtil de uma sociedade, deve-se ter um conhecimento de base da morfologia social desta sociedade...

A primeira dificuldade é sempre a de recortar o grupo, ou seja determinar o grupo social a ser estudado. Por exemplo, um aluno querendo estudar a produção têxtil na Índia, não pode considerar a Índia como uma sociedade homogênea, mais sim delimitar o grupo social que ele vai estudar, geograficamente e socialmente. Vários meios existem para determinar e delimitar o grupo a ser estudado, mais para a Etnografia Têxtil me parece importante concentrar-se em alguns aspectos:

O corpo –

Uma das primeiras impressões que temos ao estudar um grupo social que não é o nosso é composta pelas diferenças ligadas às aparências. Diferenças inscritas no próprio corpo (a cosmética e suas modificações corporais) ou também adicionadas ao corpo (roupas e acessórios...) A cosmética corresponde a toda a beleza adicionada ao corpo e pode até, para estrangeiros parecer desfiguração. Nada é mais relativo que as normas estéticas e a beleza não tem absolutamente nada de universal. Ao evidenciar a variedade das aparências humanas, Mauss insiste sobre a

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necessidade, para o pesquisador, de esquecer temporariamente as normas estéticas da sua própria cultura (geralmente ocidental) para evitar as deformações ou desfigurações ligadas ao seu próprio estranhamento: se nada é universal em termos de beleza, não se pode julgar esteticamente o Outro com padrões estéticos que não fazem parte da cultura a qual o Outro pertence. Esse relativismo estético é muito importante no inicio de uma pesquisa, pois ele permite evitar muitos etnocentrismos.

Mulher pigmeu BAKA (África Central, 1987)

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A moradia –

Mulher Ndebele pintando sua casa ( África do Sul, 1990)

O território comum à um grupo de homens relativamente grande, reconhecido e unido por laços sociais é geralmente significativo de uma sociedade e da sua moradia. Mas esse critério pode ser insuficiente quando países são compostos de diversos povos (como no caso da Índia) Em outros casos, a diminuição das sociedades sobreviventes é bastante nítida para que o critério do território seja suficiente (como no caso dos Índios brasileiros por exemplo). Em todos os casos, as relações entre as casas e as vestimentas permitem identificar um estilo cultural e esboçar as primeiras pistas de pesquisa.

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O estudo das casas fornece uma visão concreta da demografia da sociedade observada : grandes fragmentos da estrutura social aparecem de forma nítida nessa organização espacial. Nesse aspecto da morfologia social se deve observar as bases geográficas da vida social: mar, montanha, lagoa, rio... Fenômeno essencialmente arbitrário, a habitação caracteriza uma civilização mais do que um território determinado. A arquitetura aparece como uma arte típica, criação por excelência. Portanto a habitação será estudada como Industria do conforto e da proteção. De fato, a habitação pode também ser entendida como um modo de consumo. O jovem pesquisador não deve procurar logo a casa típica (ou a roupa típica): cada casa tem seu sentido próprio, tal como cada roupa tem o seu. Seria absurdo classificar uma sociedade por um único tipo de habitação ; é preciso ver, visitar, conviver com todos os modelos de habitação desta sociedade, com todas suas variações individuais e suas variações locais: casas de usos gerais ou de uso especial, de uso humano ou de uso não humano, individual ou coletiva... Somente apos este estudo prévio, o jovem pesquisador poderá desenvolver a noção de casa-tipo sem correr o risco de confundir uma casa de rico de uma casa de pobre. Pois existem essas diferenças em quase todas as sociedades.

Na perspectiva de uma Etnografia têxtil completa seria muito interessante relacionar o estilo da casa com o estilo da vestimenta. Como aparece bem no caso da tribo Ndebele da África do Sul, essa metodologia comparativa pode trazer muitas similitudes entre as duas áreas. De outro lado, me parece essencial também incluir na pesquisa o estudo das ditas roupas de casa ( banho, mesa, cama, decoração, tapetes...) pois essa produção têxtil revela também muito sobre a cultura têxtil do grupo estudado.  

A língua - é um excelente critério, mas muito delicado ; pois é muito difícil determinar um dialeto ou uma língua especifica sem possuir as capacidades filológicas adequadas... Ou seja, fica complicado para o etnógrafo têxtil dominar as línguas faladas pelos grupos dos quais ele quer estudar a produção têxtil e seria prudente pedir ajuda aos linguistas especializados

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nestas línguas... como no casa das diversas línguas indígenas brasileiras. Falar a língua das pessoas que o etnógrafo estuda é essencial para realizar entrevistas e simplesmente perguntar sobre as formas de vestir.

A vestimenta - A identificação de um conjunto de tradições têxteis e de modos de vestir-se, incluindo indicações relativas aos signos exteriores: roupas, cabelos, tatuagens, joias... pode ser um excelente fio condutor para determinar o grupo social a ser estudado. A distinção entre roupas masculinas e femininas e entre roupas do cotidiano e festivas pode ajudar a delimitar mais ainda o tema da pesquisa...

Família Nenet (Mongólia, 1998)

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Os movimentos da população devem ser estudados e contextualizados pela Historia: a historia das migrações. A procura de um mundo melhor, em certos casos, pode incentivar toda uma população a emigrar. Estudar em detalhe os processos de emigração e imigração e os tipos de filtros culturais de uma sociedade em relação a outra poderá ser de grande ajuda para se identificar influencias em termo de produção têxtil e de incorporação de novos modos de vestir.

Neste primeiro momento de definição e delimitação do tema de etnografia têxtil a ser estudado, Mauss nos oferece conselhos metodológicos muito importantes:

ð Sempre passar do concreto (uma roupa, um acessório) ao abstrato (a crença, aspecto religioso ou cultural ao qual esses itens são associados...)

ð Evitar sempre as explicações individuais: o observador estrangeiro nunca pode saber qual é a causa de um fenômeno; sua tarefa é somente de registrar esse fenômeno e recolher as explicações dadas pelos nativas da sociedade estudada.

Nisso tudo, as relações entre os fenômenos os mais materiais e os fenômenos os

ð

mais espirituais se encontram a cada instante.

ð E finalmente: Nunca esquecer do Moral quando estudar algo Material, e vice-versa.

       

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Como começar o estudo da cosmética?   Como para o estudo da vestimenta que vamos ver a seguir, parece importante ter uma metodologia ao mesmo tempo objetiva e capaz de enquadrar as observações as mais subjetivas. Seguindo novamente os princípios metodológicos de Mauss, iremos sempre do mais concreto ao mais abstrato: podemos trabalhar de baixo para cima, dos pés à cabeça, pois os pés em contato com o solo (proteção, adaptação...) representam a parte concreta da construção da aparência enquanto o rosto e a parte de cima da cabeça (que pode ser coberta ou não) representa em muitas culturas uma relação com os deuses, uma transcendência.

Mulher Kamayura (Brasil, 1972)

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Neste primeiro passo, o que importa é organizar a descrição da forma mais completa e objetiva possível, anotando e registrando todos os elementos de cosmética visíveis no corpo, com o apoio da fotografia. Mauss nos lembra de anotar os dados exatos da cena e da pessoa observada, pois sem essas informações nossa observação perderia sua validade. Me parece importante também insistir sobre a necessidade de descrever o contexto da observação, pois esses dados participam das condições reais da observação.

Modificação corporal 1+ modificação corporal 2 + modificação corporal 3 + (...) = Look cosmético geral.

A partir deste momento, devera ser feito um inventario das modificações corporais, observando todas as regras que permitem a realização de um bom inventario : -

Onde?

-

Quem?

-

Quando?

-

Como que?

-

Sobre quem?

-

Para quem?

-

Porque?

-

Como ?

-

O que é bonito nele? Porque? (perguntar diretamente à pessoa observada)

-

O que significa? (Anotar a simbólica de cada decoração e perguntar se necessário com a pessoa observada)

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-

Quem pode usar essa decoração ? Quando ? Porque ? Como ?

-

Quem pode usar essa marca ? Quando ? Porque ? Como ?

O observador das praticas cosméticas devera distinguir as cosméticas publicas das cosméticas privadas, permanentes das temporárias, decorações totais ou parciais do corpo, tais divisões não sendo necessariamente respeitadas por cada cultura e ou individuo.

Ao apresentar essas subdivisões, Mauss indica que a observação é organizada conceitualmente antes de ser realizada no campo, ou seja, uma observação se prepara anteriormente à observação in situ. Ele também indica que essa organização é feita sobretudo para ajudar o observador e não necessariamente é uma divisão que faz sentido para a cultura ou o individuo observado.

Mulher no Congo (1999)

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Para as decorações temporárias, recolher todos os materiais: óleos, urina, sabão, cuspes, salivas, sangue que é usado para colar ou decorar; as tatuagens ou pinturas corporais podem indicar o clã, a família, o individuo; às vezes elas podem indicar também um momento importante: uma cerimonia dramática, funerária, iniciação ou guerra.

Para as decorações permanentes, podemos observar primeiramente as cicatrizes e deformações. A tatuagem é um signo social, um símbolo... Sempre estudar o símbolo e o valor religioso e jurídica da marca: existe um direito e uma obrigação para com a marca e ninguém pode escapar destes de forma impune...

Estudar cada deformação individual, organizando os dados por gênero, idade, clã. Indicar o grau de profundidade da deformação: até a epiderme? Até a derme ? Estudar as deformações dos ossos: deformação dos dedos, ablação do pequeno dedo, dos dedos de pé... Deformação do crânio, das orelhas... Alargamento ou afinamento do nariz. Tirar fotografias das deformações. Muitas vezes as populações que praticam a deformação do crânio são populações que usam berços. A busca e a valorização da gordura nas mulheres caracterizam todo o mundo turco e uma grande parte do mundo negro. Amputação do seio, na tribo das Amazonas. Deformação do sistema piloso: o crescimento do cabelo, dos pelos pubianos pode ser relacionado com a vegetação. O tipo de corte capilar é determinado pelo nível social, o clã, a família, a idade... Mistura de cabelos e chapéus. Finalmente estudo da depilação. As aberturas dos orifícios do corpo são pontos perigosos que muitas culturas tendem a proteger: deformação dos olhos, dos cílios, coloração do olho. Deformação da boca, da língua, ablação de dentes... Deformação do nariz, das orelhas... Deformação dos órgãos sexuais: a cicatriz deve tornar o órgão bonito e limpo mais é também uma marca tribal: a circuncisão é uma forma de tatuagem, pois ela é antes de tudo uma operação estética. Esse conjunto de deformações e cicatrizações merece o nome de tatuagem, pois são deformações permanentes que não se pode apagar ulteriormente. Todas esses formas primitivas de

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escrita devem ser estudadas como tais, de forma social e individual pois se o símbolo tatuado é conhecido e entendido, já pode ser considerado como escrita.

Mulher pigmeu Aka (África central, 1988)

Cada indivíduo assina seu corpo, culturalmente e individualmente, através de vários signos vestidos que ele incorpora a sua aparência, e que também são signos do corpo. Seria vão procurar as origens das múltiplas decorações corporais ou signos do corpo aplicados pelas culturas na pele de seus membros, pois eles fazem parte da condição humana e, seja de uma forma ou de outra, as sociedades sempre modificaram as aparências dos seus membros (especialmente os femininos) de acordo com suas estéticas e crenças. De fato, não existe sequer uma cultura humana cujo corpo é deixado no seu estado natural: o nu é sempre vestido, seja por pinturas ou roupas... a pele vira texto cultural a ser lido e decifrado.

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Matéria de identidade individual e coletiva, sexual e cultural, o corpo é este espaço que se da à apreciação dos outros. Coberto de signos, o corpo é ao mesmo tempo assinado pela cultura e ele assinala a estética incorporada ao outro. O olhar alheio confirma este verdadeiro encontro analisando todos os signos do corpo que não são os mesmo do que os do seu grupo. A aparência, construída como um palimpsesto, sobrepõe histórias tradicionais e pessoais, elementos tradicionais e elementos híbridos, elementos que assinalam uma relação vivida com uma cultura preexistente. Os signos do corpo são marcas de distanciamento com a natureza e com as outras comunidades culturais; elas permitem mandar mensagens simultâneas sobre a etnia, o gênero, a idade, a beleza, a fecundidade, o valor pessoal, a hierarquia social, a religião... Os adornos como roupas e joias são signos provisórios que permitem uma grande variedade de significações e de interpretações...

Mulher no Congo (1999)

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Os signos do corpo são particularmente utilizados para marcar os diferentes ritos de passagem, tais como o nascimento, a passagem à adolescência, o casamento, o luto, a morte... destacando-se desta forma do uso cotidiano que pode ser feito desses adornos. Entre poder e sedução, entre feminilidade e masculinidade, cada grupo cultural estabelece sua gramática de apresentação de si e escolhe uma estética capaz de exibir a importância do indivíduo no seu grupo (e por extensão do grupo em relação aos outros) e ao mesmo tempo de revelar o seu caráter único e singular. A estética, a beleza são competitivas e sempre ativas, pois elas procuram influenciar o outro com seus belos discursos e seduzir, no sentido de influenciar a sua avaliação....

Rei Ashanti, Costa do Marfim, 1924.

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Neste contexto, o papel da arte decorativa, arte de criar as joias ou na criação têxtil e indumentária, procura apoiar os processos de visualização do prestígio individual, sendo que a imagem que fica na mente do outro é a imagem incorporada, agida, vivida e não simplesmente o grafismo ou o design do adorno. Porque ele se aplica ao enfeite do corpo humano, que raramente fica imóvel ou mudo, o adorno é uma arte visual feita tanto de sons e de movimentos que de traços formais estáticos. A dimensão dinâmica da decoração corporal e das roupas usadas por cada grupo cultural é ligada à cartografia erótica de uma forma extremamente codificada. A estética é uma versão visível da ética de um grupo cultural que nos convida a perceber que a margem de manobra de cada um na construção de sua própria aparência está sempre submetida às regras coletivas que orientam a organização social e cultural. Neste sentido, as marcas corporais são signos corporais permanentes e definitivos que colocam em evidência a função social da pele. A pele é socialmente analisada, lida como um texto: o fazer parte de um grupo social é marcado na pele, na roupa, nos gestos, nas expressões faciais...

Nanook of the North, Flaherty, 1931.

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Como começar o estudo da vestimenta?   Passamos aqui da cosmética (signos do corpo) à adição de ornamentos no corpo (signos no corpo). A noção de vestimenta corresponde sempre à procura de uma beleza artificial, constante e cheia de símbolos. Uma parte do tempo vivido é dedicado à vestimenta. A posição da mulher em relação à vestimenta já evolui muito e nunca para de mudar. A vestimenta, bem mais do que uma proteção, é uma decoração. A ausência de vestimenta deve ser notada tal qual a sua presença, sendo que as partes do corpo visíveis mudam de um grupo social para outro. A vestimenta varia consideravelmente seguindo as idades, o gênero, as festas e cerimônias. A vestimenta deve ser estudada sempre dos pés à cabeça, sem que se esqueça de seu outro lado (as costas). A vestimenta deve ser estudada como um conjunto (Look geral) e também em cada detalhe (desconstrução do Look em diversos itens...)

Proceder por inventário sem esquecer nenhum detalhe = Observação. Qual é o efeito procurado através dessa vestimenta ? = Entrevista.

A vestimenta sempre tem o seu valor, simbólico, econômico, pessoal... Ela pode ser usada como moeda, como signo de riqueza: Muitas tribos de Índios do Norte dos USA contabilizam sua riqueza em cobertores, cuidadosamente guardados em cofres de madeira, propriedade exclusiva do clã e reserva de símbolos específicos de sua cultura, como se fosse uma biblioteca têxtil. Em outros contextos, como na Ásia do Sudeste ou no caso dos Haoussa da Nigéria, o indivíduo carrega no corpo o máximo de ornamentos e vestimentas para demostrar seu estatuto social.

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O pesquisador não pode deixar-se enganar pelas aparências...

pois

todas as vestimentas e joias podem não pertencer necessariamente à pessoa que as usam: distinguir a possessão da exposição implica, mais uma vez, que se estabeleça um dialogo com a pessoa vestida desta maneira.

As decorações se acumulam geralmente nos pontos críticos do corpo que representam as aberturas do corpo: lábios, orelhas, olhos, pescoço, cintura... Existe uma vasta historia das decorações de cabeça. O chapéu é tanto uma proteção quanto uma decoração. Existem muitas joias que são também sonoras e usadas para emitir sons com os movimentos do corpo ou até tocar musicas...

Podemos começar por distinguir as vestimentas usadas de dia, das vestimentas usadas de noite ; roupas de trabalho, roupas de cerimônias, geralmente mais numerosas e decoradas. A matéria prima será determinada pelo meio natural, pelo clima e pelas variações climáticas...

Objeto de consumo muito lento, a vestimenta representa um verdadeiro capital. Serve de proteção nas viagens, no dia-dia, na luta ; defende da floresta, da chuva, dos insetos... Órgão de proteção, a vestimenta pode ser estudada segundo a parte do corpo que ela cobre.

Podemos organizar o estudo da vestimenta sempre observando de baixo para cima, seguindo desta forma um dos princípios de observação legado por Marcel Mauss: sempre proceder do mais concreto ao mais abstrato. Desta vez, a parte superior do corpo (em cima da cabeça) representa a parte mais abstrata da vestimenta (religião, crença, status, ritos de passagem...) enquanto a parte inferior (os pés) trata do contato com o solo e as condições concretas de vida.

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Decoração da vestimenta. – Tinturas e decorações tiveram um imenso papel no desenvolvimento das vestimentas pela pesquisa de matérias primas que lhe são associadas. A influência da moda em termo de vestimenta parece imensa. As vestimentas são características classificatórias das mais seguras: assim a vestimenta iroquesa é praticamente idêntica à vestimenta chinesa. Aqui entram também as influencias das idades, dos sexos, da época...

As vestimentas podem também ser classificadas a partir de suas matérias primas:



Vestimentas de pele (estudar as formas de trabalhar o couro para as vestimentas mais também para as bolsas, recipientes...)



Vestimentas de folhas (que se encontram na Polinésia e na Indonésia; as culturas papou Kiwaï e nas culturas pigmeus conhecem a capa de chuva vegetal)



A casca de figueira batida (ou tapa) é usada em Oceania e na maior parte da África. No caso dos pigmeus, a arte do tapa é muito importante.



As vestimentas de palha se diferenciam mal das vestimentas de palmeiras. Quase todas as vestimentas de festas tradicionais em Melanésia e África são feitas assim.



Vestimentas de fibras vegetais entrecruzadas, forma primitiva do tecido, tanto como material quanto como utilização.



Vestimentas de feltro, onde as fibras que se cruzam no tecido são simplesmente prensadas e coladas. O feltro é conhecido em toda Ásia do Norte e América do norte. Não atinge resultados notáveis, exceto em China e no Tibet. Normalmente, o feltro não é muito resistente, ele se rasga facilmente e absorve líquidos.

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Tecidos.

Mulheres da Corte, África do leste, 1925.

O estudo de qualquer tecido passa obrigatoriamente pelo estudo da matéria prima:

Os têxteis animais são de lã (considerada impura pelos Egípcios) ; em pelos de cabra ou de camelo ; em crina de cavalo ; a seda de origem animal (verme) tem sido usada na China desde o terceiro milênio antes JC, mais ela foi introduzida na Grécia por Alexandre O Grande, em Roma por César.

Nos têxteis vegetais, podemos começar pelo linho, muito apreciado pelos Celtas e Germânicos, cuja produção foi reduzida na Idade Media pelo cultivo de cereais – As telas de linho voltam na Europa a partir do século XV ; o algodão, cuja história não é muito clara : planta abissínia, que passou pela Índia, porque não foi cultivada no seu pais de origem e tornou-se a base da indústria têxtil na Índia? Não sabemos. Bom lembrar que as primeiras fábricas de algodão na Inglaterra aparecem somente no meio do século XVII.

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O estudo de qualquer tecido passa pelo estudo do fio e das técnicas de fiação.

Fiação:

Comunidade  de  chinchero  (Peru,  2013)

A primeira matéria usada como base de fiação parece ter sido os pelos, como os cabelos humanos em toda Austrália. A fiação pode ser extraordinariamente fina: como no caso dos fios destinados ao trabalho das gazes (região de Ghaza), que se encontram tanto no mundo árabe quanto no mundo egípcio ou hindu.

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Tecelagem:

Comunidade  de  chinchero  (Peru,  2013)

Após da fiação propriamente dita, vem a tecelagem. A tecelagem é uma indústria que se encontra em todas as sociedades, fora as regiões onde não há matéria prima (Polinésia, Melanésia, Austrália...) Certas civilizações hoje desaparecidas, produziram admiráveis tecidos (Paracas). A tecelagem é uma invenção importante da humanidade. O primeiro tecido marcou uma nova era da humanidade. Para entender a tecelagem, estudaremos todos os instrumentos de tecelagem. Anotar os modos de encaixe das diversas peças e prestar atenção aos pontos mortos durante o uso desses instrumentos. Qualquer movimento técnico chega à um ponto de pausa. Observaremos cada movimento de cada posição do instrumento ; as relações entre as partes do corpo e o instrumento em cada fase da tecelagem. Fotografias e desenhos ajudam a descrever esses processos técnicos. Quem tece? Onde e quando? Ideologia da tecelagem? Os Maori e os Berberes conhecem um verdadeiro culto à tecelagem.

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Classificação dos tecidos - Tecidos simples, tecidos cruzados, penteados... Nos tecidos compostos, por exemplo os tecidos de plumas, distinguir o tecido que constitui a base e a parte que forma a decoração. Um veludo pode ser comparado a uma tapeçaria.

Tingimentos . – Quando os fios são tingidos antes da tecelagem, a decoração é feita através das cores dos fios. Podemos distinguir o tingimento do fio do tingimento do tecido inteiro, no qual muitas vezes aparece o procedimento da reserva (o tingimento atinge somente uma parte do tecido trabalhado) Distinguir a tintura à base de elementos naturais (animal ou vegetal) da tintura química à base de produtos minerais. Quem aplica as tinturas ? Como ? Porque desta maneira? Para qual resultado?

Comunidade  de  chinchero  (Peru,  2013)

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Princípios metodológicos da Etnografia têxtil:

“ É essencial não deduzir nada a priori: observar, não concluir nada.”                                                                                                                                                                              Marcel Mauss, 1950.

Para estudar as vestimentas e os diversos códigos da indumentária é importante pensar primeiro no conjunto (Look geral) e depois na construção do look por cada peça, que representa a menor unidade da indumentária.

Peça 1+ peca 2+ peça 3 + (...) = Look vestimenta geral Modificação corporal 1+ 2 + 3 + (...) = Look cosmético geral. =>

Look vestimenta geral + Look cosmética geral = Look Completo

Diversos suportes de significação de uma peça : •

material utilizado



cor



ornamentação



maneira de usar a peça

ð As vezes os menores detalhes das vestes podem ser carregados das significações mais importantes.

ð Polissemia dos signos das vestes : a mesma peça usada num contexto diferente pode mudar completamente de significação.

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Como classificar os significados das vestes? •

conteúdo isolado (material, decoração, símbolos...)



relações formais entre eles (relação entre as diversas peças)

Neste momento me parece importante criar uma ficha de etnografia têxtil a partir de fotografias coloridas, mostrando, preferencialmente frente e verso, dos pés à cabeça, os looks completos das pessoas observadas.

Nas fichas devem aparecer as seguintes informações:

Analise sociocultural do grupo social ou da etnia à qual pertence a pessoa observada: 1. Nome do grupo 2. Região ocupada 3. População estimada 4. Estilo de vida ( Nômade / Seminômade / Sedentário / Urbano / Rural...) 5. Religião 6. Línguas e dialetos 7. Divisão hierárquica 8. Hábitos alimentares 9. Hábitos de moradia 10. Trabalho e vida cotidiana 11. Produção cultural 12. Papeis de gênero

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Analise geral de um look:

1. Analise do contexto: ð

Material de observação: Observação direta? Fotografia? Desenho?

ð

Local/data de observação

ð

Situação de observação

2. Analise do look feminino e do look masculino: ð

Descrição (dos pés à cabeça)

ð

% nu e vestido ( dos pés à cabeça)

ð

Analise da silhueta ( comprimento, largura, volume, fechamento, forma, ajustamento, movimento...)

ð

Predomínio de cor(es)

ð

Grau de detalhamento na composição

ð

Variedade de peças do look

ð

Variedade de adornos no look

ð

Variedade das modificações corporais

ð

Posição dos signos vestidos no corpo

ð

Observações diversas

3. Motivações para vestir-se:

29    

ð

Designação hierárquica

ð

Ritos de passagem

ð

Proteção do corpo

ð

Religiosidade

ð

Diferenciação de gênero

ð

Diferenciação de trabalho

ð

Diferenciação de classe social

ð

Simbólica cultural

ð

Moda especifica

O que é comunicado através da vestimenta?

Antropólogo francês com pigmeus AKA (África central, 1923)

ð o que é individual e remete à situação biológica da pessoa vestida e a sua situação em relação ao grupo (sexo, idade, estatuto social, rito da passagem, religião, estado civil...) = Noção de pessoa “vestida”. ð o que remete a outras pessoas (os filhos, o marido/esposa, o grupo cultural...) = situações que não dependem dos indivíduos mais sim da divisão social. Cada sociedade faz recortes na realidade social para escolher de comunicar tal ou tal elemento através das roupas: Quais são as motivações dessa escolha? O que isso significa culturalmente? Socialmente? Individualmente? ð O significado riqueza apresenta características especificas pois sua representação nunca é estritamente convencional e a sua simbólica varia muito com os diferentes contextos... O que parece riqueza para um grupo social pode aparecer pobreza para outro... ð Atualmente, a hipertrofia do signo de moda implica um recuo de todos os outros signos à favor do que podemos chamar de signo de moda, materializado pela imagem de marca (ou etiqueta) da cada peça vestida. A vestimenta neste ultimo caso tende a ser um discurso sobre a moda em si e uma forma de afirmar sua relação individual em relação à ela...

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Como bem explica François Laplantine na sua Descrição Etnográfica, a especificidade da etnografia não esta ligada às sociedades estudadas ou etnias nem a objetos particulares ou temas etnográficos nem as teorias utilizadas mais sim a um projeto de pesquisa: “o estudo do homem como um todo, quer dizer em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos seus estados e em todas as épocas”. A Etnografia é o estudo mais cientifico possível da pluralidade das culturas, estudo no qual a metodologia de pesquisa é fundamental: a qualidade do estudo depende, sobretudo, do rigor e da inventividade metodológica.

Cada tema de pesquisa, cada peça do vestuário ou da decoração corporal devera produzir uma metodologia apropriada ao estudo deste elemento tanto como símbolo social isolado que pode entrar numa coleção de etnografia têxtil (antropologia material) quanto reinserido no seu contexto social de uso (antropologia cultural). Entre teoria e experimentação, entre influências e invenções, o jovem etnógrafo deve sempre colocar-se na posição de aprendiz de uma nova cultura, e a sua metodologia de pesquisa o ajudará a não se perder nesse percurso inicial... Sua situação é a mesma que de uma pessoa não iniciada que deve usar pela primeira vez uma peça de vestuário complicada de se vestir, como o sári indiano por exemplo. Não é indiano quem quer, porque o processo para incorporar a cultura tradicional indiana levaria anos... Portanto, nessa conversão existencial, o etnógrafo deve se colocar, em relação à sociedade observada, numa atitude de impregnação e de aprendizagem, ele deve com muita humildade, colocar-se na pele de quem não sabe nada ainda...

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Bibliografia

BOREL Marie-France 1992. - Le vêtement incarné: les métamorphoses du corps. - Paris: Calmann-Lévy. 258 p. DELAPORTE Yves 1975-1976. - "Vêtement et acculturation: l'exemple lapon". - L'ethnographie (Paris) 69/72, p. 187-205 1979. - "Communication et signification dans les costumes populaires". - Semiotica (La Haye) 26, p. 65-79 1980. - "Le signe vestimentaire". - L'Homme (Paris) 20(3), p. 109-142 1982. - "Teddies, rockers, punks et Cie: quelques codes vestimentaires". - L'Homme (Paris) 22(4), p. 49-62 1991. - "Le vêtement dans les sociétés traditionnelles", in: Jean POIRIER (dir.), Histoire des moeurs I, p. 961-1031. - Paris: Gallimard. - (Encyclopédie de la Pléiade) DUFLOS-PRIOT Marie-Thérèse 1976. - "Paraître et vouloir paraître: la communication intentionnelle par l'apparence". - Ethnologie française (Paris) 6(3/4), p. 249-264 1981. - L’apparence individuelle et la représentation de la réalité humaine et des classes sociales, Cahier internationaux de Sociologie, vol LXX, 1981, Paris. LAPLANTINE François 2004. - A descrição etnográfica, Editora terceira margem. SP LEENHARDT Maurice 1978. - "Pourquoi se vêtir". - Journal de la Société des océanistes (Paris) t. 34, n(o) 58/59, p. 3-7 [Paru précédemment dans L'amour de l'art, 1932, n(o) 58/60] MAUSS Marcel 1926.- Manuel d’Ethnographie, Gallimard, Paris.

     

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