Introdução à interface entre paleoantropologia e neurociência cognitiva: O que os vestígios de nossos antepassados nos dizem sobre nossas mentes?

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Introdução à interface entre paleoantropologia e neurociência cognitiva: O que os vestígios de nossos antepassados nos dizem sobre nossas mentes? Hélio Tonelli (Material de apoio para a disciplina de Psicopatologia do Adulto do Curso de Psicologia da FAE-Curitiba) Neste texto serão introduzidos alguns conceitos relativos ao desenvolvimento de nossa capacidade de pensar e também de comunicar nossos pensamentos a outras pessoas, levando em conta as informações acumuladas a partir do estudo de vestígios deixados por nossos antepassados em suas cavernas e outros habitats. Estudando este material, paleoantropólogos puderam sugerir interessantes hipóteses a respeito de como nós, seres humanos, acabamos por desenvolver nossa mente moderna e tudo aquilo que dela derivou. Toda esta informação é também muito valiosa para se compreender a origem de muitos dos sintomas psicológicos afligindo as pessoas com transtornos mentais. Adicionalmente, a compreensão de como nossa mente tem sido configurada há milhares de anos gera muitos insights a respeito de técnicas de reabilitação cognitiva para transtornos psicológicos e psiquiátricos. Um bom exemplo é o emprego de práticas simples de imitação de emoções na recuperação de pacientes com esquizofrenia ou autismo, condições clínicas em que existem sérios problemas afetando o processamento de emoções, por exemplo, seu reconhecimento e identificação. Sabemos que dificuldades de decodificação de emoções podem estar por trás de muitos pensamentos patológicos naqueles indivíduos. E também sabemos, ao estudarmos como viviam e se expressavam nossos antepassados, que uma cultura em que a imitação foi a principal maneira de se transmitir conhecimento precedeu uma cultura baseada em simbolismo e linguagem. A inclinação mental à imitação é mais primitiva que a inclinação mental ao simbolismo e aquela pode ter favorecido esta. A propensão à imitação seria, pois, um aspecto cognitivo vestigial do tipo de mente de nossos antepassados. Antes de nossos antepassados começarem a usar a linguagem para se comunicarem entre si e para aprenderem ou ensinarem, eles imitavam uns aos outros (e também a outros animais e outros fenômenos naturais). Por conseguinte, explorar terapeuticamente a imitação visando à recuperação da capacidade simbólica e do pensamento parece uma boa ideia, não só por se tratar de uma estratégia baseada no treino de uma antiga capacidade 1

mental humana, mas também por sua simplicidade e segurança (é bem possível, ainda, que supervisionar pacientes em exercícios de reabilitação baseados em imitação de emoções não traga efeitos adversos), além de custo relativamente baixo, já que exercícios de treino imitativo não exigem maiores investimentos, além de terapeutas esclarecidos a respeito destas técnicas e interessados em ajudar seus pacientes. Apesar destas vantagens, estas técnicas ainda não são amplamente utilizadas do ponto de vista clínico, sendo conhecidas mais em ambientes acadêmicos e laboratórios de reabilitação cognitiva. Muitos dos portadores de graves patologias afetando o pensamento, como os pacientes esquizofrênicos, apresentam severo comprometimento do processamento semântico, ou do significado de símbolos, como são as palavras. Em um indivíduo saudável, alguma flexibilidade na alocação de significados a determinados termos permite uma amplificação das capacidades de compreensão do mundo. Analisemos um exemplo prático: a palavra homem pode expressar dois significados, 1. Um indivíduo do sexo masculino; ou 2. Todos os indivíduos da espécie humana, independentemente de seu sexo. A compreensão de qual o melhor significado dependerá do contexto em que esta palavra é utilizada e aí é que a flexibilidade de que falei entra em jogo. Se nosso aparato cognitivo está saudável, ele será capaz de compreender rápida e espontaneamente a diferença semântica existente entre as duas frases a seguir: O homem mata sua esposa. O homem chega à Lua. Portadores de transtornos mentais como a esquizofrenia não costumam ter a mesma facilidade para compreender adequadamente o que as duas sentenças expressam, podendo até mesmo ficar aflitos e perplexos frente à ambiguidade gerada neles por estes tipos de sentenças. Na verdade, estes desafortunados indivíduos estão sujeitos a sofrer tanto de um empobrecimento da capacidade simbólica, quando seus pensamentos se tornam extremamente concretos e, em consequência, sua capacidade de compreender significados é rígida; quanto de uma hiperinclusão simbólica, situação na qual suas mentes parecem incapazes de decidir qual o melhor sentido de uma expressão. Para estas pessoas, o mundo pode ser um local carregado de duplo sentido. Atualmente 2

existem

muitos

trabalhos

científicos

discutindo

as

possíveis

alterações

do

processamento semântico em indivíduos portadores de esquizofrenia e até mesmo em sujeitos vulneráveis a esta condição 1. Vamos, então, começar nossa jornada de um passado distante até os dias de hoje, procurando compreender como chegamos até aqui, norteando nosso comportamento através de capacidades mentais sem precedentes na natureza, e que abrangem nosso pensamento, uma poderosa memória, nossa aptidão para o planejamento e para a reflexão, as habilidades simbólicas e uma “avidez” para a elaboração de modelos mentais do mundo. Com certeza, este tipo de conhecimento nos auxiliará a entender de que formas prejuízos a estas poderosas funções mentais geram sintomas do pensamento. O pensamento e a linguagem são elementos que distinguem a mente humana das de outros animais, inclusive dos chimpanzés, nossos descendentes mais próximos e com os quais compartilhamos praticamente 98% de carga genética, e demais primatas antropoides, classificação a que pertencem os gorilas, orangotangos e bonobos. Através da linguagem não só comunicamos o que pensamos e compreendemos o que pensam as outras pessoas. Além de possibilitar que comuniquemos nossas ideias com alta fidelidade, ela favorece algo muito interessante: a manipulação de ideias entre seres humanos. A linguagem tem a propriedade de alterar nosso pensamento, através da “inoculação” de novas ideias a sistemas de crenças já existentes e mudanças em nossas crenças alteram o modo como contemplamos o mundo e também como nos comportamos. O gradual desenvolvimento de uma aptidão mental para a simbolização em nossos antepassados foi o alicerce a partir do qual se estabeleceu a disposição para pensar e, em seguida, comunicar ideias. Grosso modo, a simbolização é um recurso mental em que alguma coisa visível representa outra coisa, que, ao menos naquele momento, encontra-se invisível ou inacessível aos sentidos. Um exemplo banal utilizado por autores de histórias em quadrinhos é o da lâmpada acesa acima da cabeça de um personagem, simbolizando que ele acaba de ter uma ideia. O pensamento simbólico e a linguagem foram determinantes para a configuração da cultura humana, a qual aos poucos foi se transformando numa poderosa estratégia de acúmulo de conhecimento. Uma cultura cuja essência é a acumulação e a transmissão de 3

conhecimento foi fundamental para que a espécie humana se capacitasse a ocupar praticamente todas as extensões territoriais do planeta, um fato impensável para qualquer outro ser vivo. No entanto, estas sofisticadas habilidades simbólicas e linguísticas e, em conseguinte, a propensão ao acúmulo de conhecimento, não surgiram repentinamente, mas foram sendo “instaladas” ao longo de milhões de anos a partir de modificações físicas em nossos ancestrais. Tais modificações físicas, é importante deixar bem claro, não tinham necessária ou primariamente algo a ver com a construção de uma cultura ou de um aparelho mental como o humano. Esta é a perspectiva evolucionista da linguagem e do pensamento, segundo a qual, a origem de ambos deve ser explicada tendo-se em mente a similaridade estrutural de nosso cérebro com o cérebro dos demais mamíferos superiores, principalmente os primatas antropoides. Isto é, não existe nenhuma novidade em nossa estrutura cerebral que explique o porquê pensamos e falamos; toda a explicação para esta pergunta tem que levar em conta modificações funcionais nas estruturas cerebrais pré-existentes. Já houve correntes de pensamento opondo-se a esta perspectiva, as quais alegam que o estudo de fenômenos mentais como a consciência e o pensamento foge ao alcance das ciências naturais, pois, pelo menos em princípio, eles podem parecer descontínuos do ponto de vista evolucionário. Mas não vamos nos ocupar delas aqui. Há muito tempo se considera que o aparecimento da cultura humana tal qual ela é tenha relação com alterações anatômicas dos hominídeos, as espécies humanas que antecederam a nossa (Homo sapiens sapiens) e que incluem os australopitecinos, o Homo erectus, o Homo habilis e o Homo sapiens arcaico. O estudo arqueológico destas alterações, observáveis nos restos mortais dos hominídeos, é fundamental para o entendimento de como chegamos até aqui e toda a informação disponível a respeito de suas consequências comportamentais é baseada nos estudos dos vestígios deixados por eles em seus habitats. Ossos, artefatos, utensílios e formas primitivas de expressão artística foram extensivamente estudados por arqueólogos e antropólogos, que tentaram correlacionar seus achados com o aparecimento da cultura humana moderna. Bipedismo, polegar opositor, aparato vocal elaborado e um cérebro de tamanho avantajado (ou maior encefalização) em relação aos de outras espécies são as alterações anatômicas mais levadas em conta pelos cientistas envolvidos no estudo do advento da mente humana moderna e suas capacidades cognitivas. 4

No entanto, tais alterações físicas não seriam por si só suficientes ou indispensáveis para o desenvolvimento da linguagem e do pensamento, pois muitas delas podem ser encontradas em algum grau em espécies não humanas e incapazes de se expressar através da linguagem. Além disso, muitos humanos que, por razões de doença ou de anormalidade genética, não desenvolvam ou percam uma ou mais destas características anatômicas, mantém suas capacidades cognitivas e linguísticas. Muitas das alterações anatômicas discutidas a seguir foram fatores importantes no “desenho” evolucionário de nossas capacidades mentais modernas, as quais são dotadas de poderosos “simuladores” ou “geradores” de “cópias” do mundo, com o que podem ser comparados os produtos da atividade representacional do cérebro humano: as imagens, crenças e memórias. Antes de nos aprofundarmos um pouco mais na análise de tais alterações anatômicas, façamos um rápido apanhado sobre as origens de nossa espécie. Uma breve história de nossos ancestrais O ser humano moderno é uma espécie extremamente recente. Para termos uma ideia disso, pense que o Homo sapiens atingiu o último estágio de encefalização (o aumento da relação entre o tamanho do cérebro e o tamanho do organismo como um todo) há 200 mil anos. No entanto, somente há 100 mil é que ele começou a produzir ferramentas mais elaboradas, impulsionando uma revolução cultural que permitiu o surgimento de rituais, mitos, arte e organização social, que são carregados simbolicamente e, certamente têm forte relação com o refinamento de nossas aptidões cognitivas. Apesar de tudo isso, modernidade comportamental só aconteceu há cerca de 50 mil anos. Considerando que os australopitecinos viveram na África entre quatro e um milhão e meio de anos atrás, e que, portanto, ocuparam seu espaço naquele continente por cerca de dois milhões e meio de anos, fica mais fácil imaginar o quão recente tem sido nossa existência e a despeito disso, como somos tecnologicamente desenvolvidos. Mais algumas comparações, a fim de facilitar a visualização de proporções: os australopitecinos viveram na terra por um período de tempo 12,5 vezes maior do que já ocupamos o planeta desde o surgimento de nossa espécie. Caso pudéssemos garantir que sobreviveremos no mínimo por todo o tempo que os australopitecinos existiram, 5

teríamos certeza que nossos descendentes estarão por aqui no ano 2.302.013 dC. Mas as comparações não precisam parar por aqui; estes números consideram apenas a mais antiga espécie ancestral. Se levarmos em conta a linhagem dos primatas em geral, eles estão aqui há mais de 60 milhões de anos. Quanto aos populares dinossauros, os primeiros deles apareceram há mais de 200 milhões de anos e foram extintos há cerca de 65 milhões de anos (portanto, os homens das cavernas jamais conviveram com eles). De fato, é muito tempo, se compararmos com nossos meros 200 mil anos. Apesar do recente surgimento do Homo sapiens, em um curtíssimo período de tempo – para não dizer um intervalo desprezível de tempo, levando-se em conta e época em que a vida surgiu na Terra, há cerca de três bilhões de anos – fomos capazes de façanhas tecnológicas perto das quais nenhuma outra espécie chegou: por exemplo, estamos aptos a sobreviver em praticamente qualquer região do planeta, porque nossas tecnologias nos permitem contornar as dificuldades impostas por estes habitats. Outras façanhas do Homo sapiens incluem a domesticação de plantas e animais, o que mudou consistentemente nosso estilo e nossos hábitos de vida, a arte, a ciência e a progressiva sofisticação de nossos “utensílios”, que hoje em dia são verdadeiras extensões poderosas de nossas memórias; tudo isso sem contar que já fazemos expedições, tripuladas ou não, ao espaço. Façamos um breve resumo de como tudo isso acabou acontecendo, enfocando um pouco a história de nossos ancestrais, pois ela reflete as mudanças que aos poucos foram se configurando em seus corpos e mentes, e que acabaram por constituir nossa mente moderna. Afirmei acima que os primatas surgiram há mais ou menos 60 milhões de anos. Com o passar do tempo eles foram se diversificando e evoluíram para um variado grupo de animais bem adaptados. Há cinco ou seis milhões de anos, uma das espécies de primatas passou a desenvolver características divergentes das demais e que abrangiam principalmente a propensão ao bipedismo. Esta linhagem de macacos bípedes, normalmente chamada de nosso ancestral comum com os demais primatas, é que posteriormente evoluiu para espécies com cérebros maiores, as quais utilizavam utensílios, desenvolveram habilidades cognitivas poderosas e a linguagem, além de uma elaborada cultura. A primeira e a mais primitiva destas espécies abrange os australopitecinos, que viveram na África entre quatro e 1,5 milhões de anos atrás. É possível que tenham 6

existido diversas espécies de australopitecinos, mas, de forma geral, elas eram tão semelhantes anatômica e comportamentalmente, que são estudadas como uma só. Estes hominídeos primitivos foram adotando gradualmente a postura bípede porque desenvolveram alterações da pélvis e dos ossos longos dos membros superiores e inferiores. Muito se fala que a postura bípede liberou as mãos destes indivíduos para a produção de artefatos, mas os australopitecinos não foram muito competentes em tal atividade. Tudo indica que eles não produziram utensílios, embora tenham sido capazes de lidar com mais destreza que outros primatas com objetos que encontrassem na natureza e que tivessem alguma utilidade. Por exemplo, eles eram menos desajeitados para atirar uma pedra do que outros primatas. Alguns autores afirmam que a nova postura adotada pelos australopitecinos foi mais adequada para a administração da estrutura familiar daquela espécie, que era mais parecida com a estrutura familiar humana do que com a de outros primatas e envolvia maior estabilidade social e cooperação entre os indivíduos, tanto na obtenção de alimentos quanto no cuidado com os mais novos. Além disso, ao adotarem o bipedismo, os australopitecinos foram obrigados a encontrar alternativas às alturas das árvores para se protegerem de predadores. Assim, eles tiveram que interagir e cooperar mais entre si – e, por conseguinte, comunicarem-se – para que se adaptassem adequadamente a seu novo habitat. Não há dúvida de que a maior demanda por interações sociais e cooperação, embora ainda incipiente em relação à observada nos grupos de hominídeos mais recentes, torna o ambiente social destes indivíduos mais complexo do que o de outros primatas. Um ambiente social mais complexo exige maior capacidade de processamento cerebral. Isso porque quando se vive em um grupo em que as interações sociais são cruciais, os indivíduos deste grupo não devem estar aptos apenas a atuarem de forma colaborativa, mas também de conseguirem detectar sinais sugestivos de sabotagem, por exemplo. Este tipo de ambiente impõe uma pressão evolutiva que seleciona indivíduos com cérebros maiores. Indivíduos mais encefalizados apresentam comportamentos mais sofisticados, maiores níveis de formação de conceitos e de representações mentais, e, em consequência, maior habilidade para solução de problemas. Voltando aos australopitecinos, é importante lembrar que, embora tivessem uma estrutura social que em muitos aspectos se aproximava da humana, do ponto de vista cognitivo assemelhavam-se muito mais aos outros primatas que ao Homo Sapiens. O 7

aparecimento do gênero Homo envolveu um grande passo em termos de encefalização. O Homo habilis surgiu há dois milhões de anos nas planícies ao leste da África Central, por onde andava ereto, pesando cerca de quarenta quilos. Ainda tinha uma aparência muito semelhante à dos australopitecinos, diferindo deles pelo cérebro proporcionalmente maior e porque era um pouco mais habilidoso na manufatura de instrumentos a partir de pedras, além de possuir uma face mais achatada. No entanto, alguns autores consideram o Homo habilis mais uma subespécie australopitecina do que do gênero Homo propriamente dito; outros afirmam que o Homo habilis é uma espécie limítrofe de hominídeos, uma transição entre os australopitecinos e o Homo erectus. O Homo erectus, encontrado entre um milhão e meio e 300 mil anos atrás, já apresentava características humanas bem mais evidentes: o tamanho de seu cérebro podia chegar a cinquenta a oitenta por cento do tamanho do cérebro do homem moderno; além disso, já tinha uma face ainda mais achatada do que a de seus ancestrais. Também era mais alto e pesado e manufaturava intensivamente utensílios e ferramentas. A base de seu crânio é um pouco mais fletida do que as de seus antecessores e esta alteração anatômica faz com que a laringe altere sua posição para um nível um pouco mais baixo no aparelho respiratório. A importância desta variação na anatomia do aparelho respiratório superior consiste na liberação da respiração exclusivamente nasal, característica dos demais primatas, e na possibilidade de seu controle voluntário, um passo importante para o desenvolvimento da fala. O Homo erectus também tinha uma estrutura social complexa e estável, usava o fogo continuamente e foi o primeiro hominídeo a migrar. Espalhou-se da África para a Europa e Ásia, onde pode ter chegado pela primeira vez há meio milhão de anos. Após esta época, as populações de hominídeos da África, do oeste da Europa e do leste da Ásia começaram a se diferenciar a ponto de os esqueletos mais recentes (entre 130 e 40 mil anos) de hominídeos destas regiões serem classificados como espécies distintas. A população que permaneceu na África é denominada Homo ergaster, uma espécie que há aproximadamente 800 mil anos evoluiu para Homo antecessor o qual, por sua vez, há 500 mil anos deu origem ao Homo heidelbergensis, cujos vestígios foram encontrados na Europa. Os Neandertais (Homo neanderthalensis) são uma das duas linhagens de hominídeos originárias do Homo heidelbergensis (alguns autores consideram que esta espécie possua traços pré-neandertais) e viveram na Europa por 300 mil anos. Estes hominídeos compartilhavam 99,5% de nossa carga genética. Alguns paleoantropólogos 8

sugerem, inclusive, que as espécies mais tardias de Homo erectus, como os Neandertais e o Homo heidelbergensis sejam classificadas como Homo sapiens arcaico. Os Neandertais costumam ser lembrados por sua robustez física; eles eram, de fato, muito mais musculosos do que o ser humano moderno e seus braços e mãos eram particularmente fortes. Além disso, sua capacidade craniana era comparável, ou até mesmo superior à do Homo sapiens e há evidências de que, além de enterrarem seus mortos, faziam-no colocando flores e alimentos juntamente do morto, o que sugere que tinham rituais ligados a crenças em vida após a morte. É possível que estes indivíduos produzissem representações mentais, mesmo que arcaicas, não apenas de vidas além da morte, mas da própria morte, da importância de se assistir os mortos, etc. Tudo indica que eles estavam, à sua maneira, pensando... Os Neandertais também confeccionaram utensílios e viveram em grupos sociais complexos. É interessante notar que no passado mais de uma espécie do gênero Homo coexistiram e até mesmo se encontraram. Por exemplo, Homo habilis, Homo erectus, Neandertais e Homo sapiens coabitaram regiões da Terra por milhares de anos. Existem fortes evidências de que os eventuais encontros não tenham sido necessariamente amigáveis. Para se ter uma ideia de que tipo de convivência pode ter sido esta, os Neandertais, que ocuparam a Europa por cerca de 300 mil anos, foram extintos há cerca de 28 mil anos, com boas chances de terem sido mortos pelos humanos modernos. Apesar desta suspeita, há quem acredite que pelos alguns destes encontros possam ter sido pacíficos e, digamos, até mesmo amorosos, havendo os que apostem em cruzamentos entre Neandertais e Homo sapiens. A espécie Homo sapiens moderna provavelmente evoluiu a partir do Homo sapiens arcaico, há mais ou menos 150 mil anos, no leste ou no sul da África. Sua distinção dos demais hominídeos abrange não só características físicas, como o maior índice de encefalização já alcançado por um hominídeo, mas também os rudimentos de pensamento simbólico, a inclinação à expressão artística e o uso de ornamentos. Há cerca de 120 mil anos, grupos de indivíduos da espécie deslocaram-se para o norte do continente africano, caracterizando a primeira migração. Todavia, ainda na África, há 80 mil anos, existem evidências arqueológicas sugestivas da existência de pensamento simbólico e de comunicação, na forma de arte, ornamentos bem elaborados e de ferramentas e utensílios, sugerindo melhora das técnicas de caça. Portanto, alguns grupos de indivíduos da espécie Homo sapiens devem ter permanecido no continente 9

africano após a primeira migração, partindo dali somente há 60 mil anos, num movimento chamado de segunda migração. A partir dali, a espécie passou a ocupar praticamente todas as regiões do planeta: chegaram à Europa e à Ásia entre 120 e 60 mil anos atrás; à Austrália há aproximadamente 40 mil anos, às Américas há 15 mil anos e, por último, ocuparam ilhas do Pacífico, há 2 mil anos. Os instrumentos e artefatos produzidos pelos primeiros Homo sapiens foram, ainda, bastante primitivos e utilizados principalmente no processamento de alimentos elaborados com plantas e carne de pequenos animais. Nos primeiros milênios de nossa existência, não fomos grandes caçadores, pois ainda não tínhamos desenvolvido uma mente apropriada para o tipo de cooperação exigida de indivíduos envolvidos na captura de grandes animais. As grandes caçadas podem ter sido um grande indutor de comportamentos cooperativos e tais comportamentos podem ter se configurado através do desenvolvimento de uma habilidade de comunicação superior, baseada em uma cultura em que a capacidade simbólica ocupava um lugar de destaque. Todavia, o período de rápida evolução cultural, no qual floresceu uma elaborada expressão artística envolvendo instrumentos musicais, negócios e rituais místicos, o que se costuma chamar de modernidade comportamental, só aconteceu há cerca de 40 ou 50 mil anos, numa fase da trajetória do Homo sapiens chamada por Jared Diamond

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de

Grande Salto para Frente (Great Leap Forward) ou Revolução do Paleolítico Superior. É nesta fase que aparecem vestígios arqueológicos de modernidade comportamental, como o uso de roupas feitas com peles, técnicas mais sofisticadas de caça, pinturas em cavernas retratando o cotidiano daquelas pessoas, evidências de enterro dos mortos, uso de adereços e confecção de imagens. Estes vestígios envolvem o aperfeiçoamento dos utensílios utilizados no dia a dia: agulhas feitas de ossos eram empregadas para costurar as vestimentas que eram sustentadas por botões, também confeccionados de ossos. Anzóis primitivos eram empregados nas pescarias. Os vestígios também indicam a existência de pensamento simbólico, pelo significado das joias, enfeites e imagens, das pinturas rupestres e de um possível sentido de crença em vida após a morte, sugerido pelas características dos rituais observados nos funerais. Estes rituais passam a distinguir os funerais através do enterro dos mortos portando objetos pessoais, após terem sido adornados e maquiados, como que se fossem preparados para outro estágio de sua existência. Revela-se aí, uma preocupação com o destino dos mortos, ou de sua alma. É evidente que os achados arqueológicos deste período mostram indivíduos com 10

uma mente progressivamente mais elaborada, capaz de imaginar, projetar e, finalmente, produzir coisas em graus cada vez maiores de funcionalidade e de especificidade, bem como de refletir a respeito da morte, e possivelmente a respeito de seres superiores diretamente envolvidos com a existência humana e com a ocorrência de fenômenos naturais como tempestades, nevascas e doenças, a quem se poderia recorrer visando a minimização de sua frequência e de seus efeitos trágicos. Certamente eles estavam acumulando e atualizando crenças. O Grande Salto para Frente sinaliza, então, um momento a partir do qual a espécie Homo sapiens “deslancha” do ponto de vista comportamental e tecnológico, apesar dos indivíduos deste período não serem em nada diferentes anatomicamente das espécies mais antigas. O Grande Salto marca o momento do impulso inicial dado à cultura humana através do aprimoramento da capacidade de acumular conhecimento e, para alguns especialistas no assunto, é o momento em que surgiu a linguagem. O psiquiatra inglês Timothy Crow sugeriu que a esquizofrenia é o preço que o Homo sapiens paga pela linguagem 3. O que ele quis dizer com tal afirmação não foi apenas que a esquizofrenia é um transtorno mental decorrente do mau funcionamento de estruturas neurais diretamente envolvidas na produção e na compreensão da linguagem mas que ela se trata de uma doença afetando a circuitaria neuronal relacionada ao que faz de nós o que somos: seres com uma impressionante capacidade simbólica. Em seu artigo, Crow afirma que estas estruturas se organizaram de forma peculiar no Homo sapiens, deixando seu cérebro “lateralizado”. A lateralização do cérebro já havia sido descrita no século XIX pelo ilustre médico francês Pierre Paul Broca e consiste, do ponto de vista anatômico, em uma assimetria do órgão visível a olho nu, em que sua largura é maior à direita na região frontal, e à esquerda na região occipito-temporal. Do ponto de vista funcional, a lateralização abrange um processo de crescente especialização hemisférica, onde há uma dominância para a linguagem costumeiramente “deslocada” para o hemisfério esquerdo. Esta especialização é com frequência acompanhada por uma preferência pelo uso da mão direita para tarefas que requeiram controle motor fino. Mas a linguagem não é processada somente pelo hemisfério esquerdo, apenas alguns aspectos dela o são nesta região, e estes aspectos são os aspectos temporais da fala. A expressão temporal aqui usada nada tem a ver com a região temporal do cérebro, mas com o ritmo e a cadência da distribuição dos fonemas 11

característicos da fala, os quais são variáveis temporais. Mas o que faz o cérebro direito enquanto o esquerdo cuida destes aspectos temporais? Ele processa outro tipo de informação, mais abstrata e envolve principalmente as intenções e as emoções “embutidas” nos discursos de nossos interlocutores. Crow afirmou que esta modalidade de informação teria um caráter espacial. Para compreender melhor o conceito de espacialidade da linguagem, sugiro ao leitor o belo livro de Oliver Sacks, Vendo Vozes: uma viagem ao mundo dos surdos 4, a respeito da linguagem de sinais dos surdosmudos, em que ele descreve a fascinante sintaxe espacial por eles utilizada. Em seu trabalho, Crow lembra que existem proporcionalmente mais homens canhotos do que mulheres canhotas e que esta relação pode estar por trás das diferenças cognitivas entre os sexos (sim, elas existem, embora não pareça “politicamente correto” fazer este tipo de afirmação nos dias de hoje): mulheres parecem ter melhor fluência verbal do que homens e eles, melhores habilidades espaciais. Adicionalmente, o fato de a maioria dos canhotos ser do sexo masculino sugere que nós, homens, temos uma tendência a enxergar o mundo usando mais o lado direito do cérebro, enquanto elas, o esquerdo. Diferenças de sexo à parte, de acordo com Crow, cada hemisfério cerebral parece “pensar” de um jeito distinto; todavia, é a troca de informações entre eles que torna nossa linguagem (e, por conseguinte, nosso pensamento) algo tão poderoso. Uma das possíveis explicações para os transtornos do pensamento na esquizofrenia pode decorrer de um defeito neste intercâmbio hemisférico ou, como gostam de afirmar alguns neurologistas, de “desconexões” entre o cérebro direito e o esquerdo. É verdade que, para compreendermos o que as pessoas falam, não é suficiente que sejamos capazes de decodificar fonemas e características sintáxicas de seus discursos, ou seja, os aspectos temporais da fala de Crow. Temos que ser hábeis na interpretação do viés intencional de nosso interlocutor; por exemplo, entender o teor emocional de seu discurso e, de certa forma, rastrear sua mente como que tentando “adivinhar” aonde ele quer chegar antes que termine de falar. De forma muito simplificada, poderia afirmar que a todo o momento em que nos relacionamos com outras pessoas concentramo-nos na tarefa de decifrá-las: quais são suas intenções, desejos e crenças? Evidentemente, nem sempre podemos confiar cegamente naquilo que os outros nos dizem. Nem sempre eles realmente têm as intenções, desejos e crenças 12

que nos dizem ter. Ao nos relacionarmos com outras pessoas também levamos em conta outras pistas valiosas a respeito de suas mentes e que são providas por outras fontes que não a linguagem. Assim, somos muito hábeis em interpretar automática e rapidamente o significado emocional de entonações de voz características da prosódia. Prosódia é a “musicalidade” do discurso, a qual conduz uma carga muito importante de informações acerca dos estados mentais e intencionais de quem fala. Também somos peritos em reconhecer o significado emocional veiculado pela ação dos delicados músculos da mímica facial, os quais, da mesma forma que a prosódia, frequentemente dizem mais a respeito das pessoas do que aquilo que elas verbalizam, na medida em que estão por trás das várias emoções que somos capazes de expressar através da face. Levando em conta isso, muitos pesquisadores têm concentrado esforços na compreensão do valor do processamento da informação social (agrupada por Crow sob o rótulo de “aspectos espaciais da comunicação”) na configuração do pensamento normal e patológico, bem como no emprego de técnicas de reabilitação de indivíduos com graves prejuízos deste processamento mental. É importante lembrar, contudo, que o trabalho de Crow apostava que a esquizofrenia deveria ter sua origem a partir de uma mutação genética intimamente relacionada ao surgimento da linguagem no Homo sapiens. O argumento que ele utilizou para justificar seu palpite foi o de que, sendo a esquizofrenia um transtorno mental grave, ela deveria ter levado inexoravelmente à extinção dos indivíduos acometidos, graças à diminuição de suas oportunidades de reprodução em relação a indivíduos saudáveis, o que, contudo, não aconteceu. Para Crow, a persistência da doença até os dias de hoje pode ser explicada admitindo-se que tal transtorno seria um subproduto indesejável de características cognitivas muito favoráveis ao Homo sapiens, sugerindo que estas características sejam aquelas que permitiram o surgimento da linguagem na espécie. Já sabemos que a linguagem e os aspectos pré-linguísticos de uma mente capaz de pensar simbolicamente têm forte relação com a diáspora do Homo sapiens a partir da África para praticamente toda e qualquer região do planeta. Uma mutação relacionada a uma reestruturação de circuitos neuronais beneficiando a capacidade de simbolizar e de se expressar linguisticamente, conclui Crow, só poderia ter surgido antes do início das migrações da espécie pela Terra, há 200 mil anos. Reforçando o palpite de Crow de que a esquizofrenia estaria associada a certa vantagem adaptativa estão algumas evidências de que algumas pessoas muito criativas ou bem 13

dotadas cognitivamente expressariam apenas traços da esquizofrenia, ou seja, características cognitivas e comportamentais muito parecidas com as apresentadas por esquizofrênicos, sem, contudo, a mesma gravidade (diz-se em psiquiatria que estas pessoas têm traços esquizotípicos de personalidade) ou teriam um parente em primeiro grau com esquizofrenia 1. Outra hipótese interessante é a de que em sociedades primitivas, indivíduos psicóticos pudessem ter um papel de líderes carismáticos, já que apreciariam o mundo de forma diversa da maioria de seus companheiros (pelas particularidades em seu processamento semântico) e poderiam ter tido um papel de reorientar o grupo com base em suas percepções peculiares. Caso esta tenha sido mesmo uma das vantagens adaptativas do fenótipo psicose, é mais provável que o que aconteceu tenha alguma relação com o fenômeno descrito na literatura como vantagem heterozigótica. Tal fenômeno está bem estabelecido na anemia falciforme, uma condição afetando as células vermelhas do sangue, ou eritrócitos. Na anemia falciforme, que é causada pela ação de dois genes alelos, os eritrócitos perdem seu formato arredondado e assumem uma forma de foice quando são expostos a baixas condições de oxigênio. Como este novo formato dos eritrócitos não é tão eficiente no transporte de oxigênio aos tecidos, as pessoas afetadas pela anemia falciforme podem ter sérios problemas decorrentes da má oxigenação de suas células. Ocorre que existem indivíduos que só herdam um dos alelos, isto é, eles são heterozigóticos para a anemia falciforme, e não apresentarão a doença, apesar de possuírem o traço falciforme. Além de não desenvolverem a anemia falciforme, estas pessoas têm uma vantagem sobre as demais: em áreas endêmicas para Malária, elas possuem maior resistência à infecção pela doença. Talvez o exemplo mais popular de vantagem heterozigótica seja o da anemia falciforme, ainda que outros existam. Voltando aos nossos antepassados, é mais provável que os líderes carismáticos de que falei acima tenham sido esquizotípicos (os heterozigóticos para “o gene” da psicose) e não esquizofrênicos (os homozigóticos); e que as vantagens que garantiram a passagem destas características gerações adiante incluíssem criatividade, liderança, empatia, misticismo e outros atributos mentais indispensáveis aos futuros chefes de sociedades que viveram numa época em que a ciência ainda não existia. É importante termos em mente que em sociedades primitivas não há meios científicos de se prever uma catástrofe natural ou lidar com ela, bem como de se tratar uma enfermidade ou um indivíduo seriamente ferido e que, portanto, o melhor a fazer é contar com a esfera mística, especialidade dos líderes espirituais.

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Voltando a Crow, parece simplista acreditar que uma condição clínica tão complexa como a esquizofrenia possa ser explicada por um gene ou por uma única mutação. Atualmente, a pesquisa genética já identificou diversos genes relacionados à esquizofrenia, apesar da maioria deles ter pequeno efeito sobre a expressão da doença. É interessante notar que uma parte significativa das principais variações genéticas já estudadas refere-se ao funcionamento do neurotransmissor dopamina 5, que tem sido a principal substância produzida pelo organismo implicada na origem da esquizofrenia, apesar dos muitos esforços científicos visando a compreensão do papel de outros neurotransmissores cerebrais, a exemplo da serotonina e do glutamato. Independentemente da quantidade e da qualidade das evidências mostrando que alterações de sistemas de neurotransmissão como o dopaminérgico, o serotonérgico e o glutamatérgico estão, de fato, relacionadas ao surgimento da esquizofrenia, existem ainda outros importantes obstáculos a serem transpostos, os quais consistem de grandes desafios da neurociência. Trata-se de explicar como agem estas substâncias no processo de geração de crenças e como as avarias nestes sistemas de neurotransmissão provocam os distúrbios do pensamento da esquizofrenia e de outros transtornos mentais. A próxima pergunta, portanto, é: como a dopamina (ou a serotonina ou o glutamato) está envolvida na construção do pensamento e demais funções cognitivas e como suas disfunções geram sintomas? Embora existam alguns modelos explicativos de como isso acontece, todos são, ainda, insuficientes. E, mesmo que atualmente seja possível manipular alguns destes sistemas artificialmente, por exemplo, através do uso de drogas antipsicóticas, que dificultam a ação da dopamina em determinadas regiões do cérebro, nem todos os portadores de esquizofrenia melhoram ao usá-las. Há ainda muito que aprender até que possamos explicar detalhadamente de que forma o tecido cerebral “constrói” o pensamento e nos capacita para a linguagem. Dopamina e outros neurotransmissores são fundamentais neste processo, mas não há dúvida de que também é importante levar em conta outras fontes de informação, como as derivadas do estudo dos vestígios deixados por nossos antepassados e da reflexão a respeito de seus hábitos, rituais, do emprego de suas ferramentas, além do exercício de correlacionar estes achados e insights com as variações anatômicas observadas nas diferentes espécies do gênero Homo, a fim de conjecturar a respeito de como estes indivíduos pensavam e de como teriam sido suas mentes e de quais foram os eventos

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críticos levando aquele tipo de mente a evoluir para um tipo de mente como o nosso. Por isso, vou me estender um pouco mais sobre estas variações anatômicas. O que nossas diferenças anatômicas com os demais primatas e mamíferos nos dizem a nosso respeito? Somos diferentes anatomicamente dos demais primatas antropoides e dos demais mamíferos. Ao contrário das outras espécies, andamos confortavelmente sob duas pernas e nossas “patas dianteiras” já não tem nenhuma função de locomoção, sendo utilizadas para tarefas envolvendo controle motor fino. Por esta peculiaridade tão marcante é que o bipedismo tem sido considerado uma importante característica citada por anatomistas e por paleoantropólogos para distinguir seres humanos de outros animais não apenas do óbvio ponto de vista físico, mas também do ponto de vista cognitivo. Aristóteles já incluía o bipedismo juntamente da capacidade de pensar e da razão como as características mais marcantes de nossa natureza. Como pensamento e razão desde muito cedo foram considerados atributos de um cérebro proporcionalmente grande, o próximo passo foi tentar explicar que tipo de relações há entre cérebros avantajados e andar sob duas pernas. Um cérebro maior tem mais capacidade de processamento e de memorização, isso é intuitivo. Logo, seres com cérebros maiores são capazes de solucionar problemas mais complexos. Em vista disso não parece difícil, em princípio, compreender como nossas capacidades mentais possam ter se sofisticado tanto, já que nosso cérebro é o proporcionalmente maior dentre todas as outras espécies. Nossa memória é melhor do que a de outros primatas, que parecem viver presos ao presente, na medida em que não podem, como os humanos, correlacionar eventos do passado a eventos do presente, intuindo a respeito de eventos futuros. Pelo menos não da forma sofisticada que nós, humanos, podemos. O psicólogo Merlin Donald, ao estudar comparativamente a cultura humana e a cultura dos primatas antropoides 6, lança mão de uma estratégia muito interessante. Ele nos faz imaginar que tipos de cópias do mundo seriam gerados nas mentes dos primatas não humanos (lembro que representação mental é o nome dado pelos psicólogos cognitivos a estas cópias) e afirma que, embora eles tenham muitas habilidades fantásticas, seu comportamento, por mais complexo que pareça, carece de reflexão, é concreto e vinculado às situações vivenciadas naquele instante. Eles teriam respostas “de curto prazo” ao ambiente porque “vivem inteiramente no presente, numa 16

série de episódios concretos, sendo o elemento mais avançado de seu sistema de representação de memória o de representação de eventos”. Donald afirma que primatas não humanos vivem em uma cultura episódica e nós, em uma cultura simbólica. Suas cópias mentais do mundo assemelhar-se-iam muito mais a um tipo de memória que os humanos também têm, e que é chamada de memória episódica. A memória episódica armazena informações de eventos específicos, acontecidos em um local bem determinado de tempo e de espaço, e é rica em conteúdos perceptuais. Exemplos de memória episódica incluiriam as lembranças do primeiro dia em que você foi à escola, de seu casamento, do dia da morte de algum parente, etc. Outro tipo de memória, chamado de memória procedural, é ligado ao aprendizado de ações, como dirigir um automóvel, andar de bicicleta ou jogar tênis, atos que não exigem nenhum tipo de rememoração em termos perceptuais para serem executados, apenas de regras motoras ou algoritmos para a execução daquela tarefa. A memória procedural é mais arcaica que a episódica, ambas mobilizam diferentes mecanismos neurais e, sem sombra de dúvida, ao contrário da memória procedural, apresentada por muitos organismos simples, a memória episódica envolve algum grau de formação de imagens ou de cópias, o que implica em algum tipo de consciência. Como deve se comportar um ser dotado exclusivamente de memória procedural? Por não produzir cópias do mundo, agindo com base em programas motores pré-existentes, este ser não tem um comportamento tão flexível quanto o de seres que podem variar sua navegação pelo mundo com base nas simulações que fazem dele. Nós, humanos, além de equipados com sistemas de memória procedural e episódico, temos uma forma dominante da memória, que é a memória semântica, cuja essência é a simbolização. Definitivamente, este tipo de memória fez a diferença na configuração de nossa cultura simbólica. Todavia, dizer que os primatas têm apenas uma cultura episódica não é o mesmo que dizer que eles são “piores” do que nós. Com sua memória episódica estes seres estão muito bem adaptados a seus nichos ecológicos. O biólogo evolucionista britânico Mark Pagel afirma que “um chimpanzé é melhor do que você em ser um chimpanzé” 7. O cérebro de primatas como os chimpanzés e os gorilas desenvolveu-se no tamanho ideal e com a capacidade de processamento compatível com a vida que levam: eles não precisam, para serem chimpanzés e gorilas, de mais do que uma mente episódica. Já uma mente dotada de aptidões cognitivas elaboradas, como a capacidade simbólica, uma poderosa memória semântica, recursos autobiográficos, sofisticados “aparelhos 17

geradores e atualizadores de crenças”, pensamento e linguagem, evoluiu em um ambiente mais complexo, em que seus portadores interagiam intensamente. E um importante produto deste tipo de interação foi o compartilhamento de informações entre os indivíduos, numa situação em que interagir é vital, pois é através das interações sociais que se aprende como sobreviver. Esta situação de intercâmbio de informações favoreceu o acúmulo de conhecimento e sua gradual sofisticação, até atingirmos, em um curtíssimo período de tempo, o nível de sofisticação tecnológica que dispomos atualmente. Até agora falei do cérebro, mas, o que podemos dizer a respeito da relação entre o bipedismo e outras alterações anatômicas, como o aparato vocal peculiar dos humanos e a configuração de nossa mente? A compreensão da relação entre mudanças na anatomia além do cérebro e o aparecimento de uma capacidade cerebral de acumular informação não nos parece tão intuitiva. De fato, a ponderação sobre o papel deste tipo de alteração anatômica no desenho de nossa mente moderna nos auxilia a compreender como ela foi se transformando no que é; e é bem possível que muitas destas alterações possam ter precedido o aumento das dimensões de nosso cérebro e até mesmo ter criado uma pressão evolutiva para selecionar indivíduos com maior capacidade de processamento cerebral, embora existam aqueles que argumentem o contrário. Portanto, temos aqui um problema do tipo “ovo-galinha”, ou seja, teria sido o aumento do tamanho do cérebro que fez com que os hominídeos adotassem a postura bípede ou a postura bípede é que favoreceu o aumento do seu cérebro? Vamos tentar entender as bases gerais deste quebra-cabeça. Não há dúvida de que a liberação das mãos pela postura bípede possibilitou que elas pudessem ser utilizadas para a manipulação e confecção de utensílios. Além disso, o aumento da destreza motora e um polegar opositor foram adaptações essenciais para o desenvolvimento de mãos mais “competentes” para a criação e manipulação de utensílios que facilitaram a vida de nossos antepassados. Como vimos, o Homo habilis, há cerca de dois milhões de anos, foi o hominídeo que primeiro apresentou uma habilidade destacada de desenvolver artefatos e utensílios em relação aos demais, embora esta fosse ainda muito primitiva. No entanto, a vida das espécies do gênero Homo foi adicionada de uma característica importante envolvendo o processo de concepção destes utensílios, os quais melhoraram funcionalmente ao longo do tempo, 18

conforme mostram os achados arqueológicos. Esta característica se baseia na transmissão e no acúmulo de informação entre os hominídeos. Ou seja, cada indivíduo recebe de outro, mais experiente, uma “fórmula” sobre como manufaturar aquele utensílio e, portanto, não precisa reinventá-lo sempre que dele precisar. Evidentemente, as primeiras fórmulas não foram passadas de forma simbólica, como são as receitas escritas, mas através de todos os comportamentos associados aos procedimentos de confecção destas peças por indivíduos mais experientes, a serem (literalmente) imitados pelos “neófitos”. O fato de os hominídeos mais jovens (ou os menos capacitados) terem aprendido a fazer seus utensílios inicialmente imitando hominídeos mais capacitados nas técnicas de sua manufatura, acabou por determinar o aperfeiçoamento dos artigos produzidos. O mecanismo é simples, mas os resultados podem ser surpreendentes: na medida em que as fórmulas eram passadas por gerações de aprendizes, havia chances de que indivíduos mais criativos as aperfeiçoassem intencionalmente. No entanto, também havia a chance de que erros no processo de imitação acidentalmente melhorassem o produto final, da mesma forma que as mutações genéticas podem ser favoráveis a um ser vivo. A passagem de conhecimento entre indivíduos da mesma espécie é denominada aprendizagem social, um processo que exige maior capacidade de processamento cerebral do que a observada nos primatas antropoides. Imitar, uma ação essencial para o aprendizado social, é uma coisa tão banal em nossas vidas, que não nos damos conta do quão complexo isso é do ponto de vista neurofisiológico. A imitação envolve diversos passos a serem computados pela mente: a compreensão do significado das ações das outras pessoas, a habilidade de reproduzir cada etapa motora do processo que é imitado e a memorização e reprodução dos passos motores do processo original na ausência de um modelo; para citar apenas alguns destes passos. O que poderia ser dito, então, a respeito da complexidade em nível neural de formas ainda mais sofisticadas de aprendizagem social, as quais envolvem pensamento simbólico e linguagem? Poderíamos dizer, embora de forma muito simplificada, que as complexas relações entre a adoção da postura bípede pelos hominídeos e o aumento das dimensões de seu cérebro podem ter se dado da seguinte forma: ao serem liberadas da função de locomoção, as mãos puderam ser utilizadas na produção de artefatos e utensílios. No começo, os utensílios foram extremamente simples, como uma pedra a ser atirada ou utilizada no processamento de alimentos, mas foram ficando cada vez mais complexos. 19

A utilidade e a extrema funcionalidade do emprego destes utensílios no cotidiano dos hominídeos os incorporou à cultura, com uma crescente necessidade de que sua produção se mantivesse continuamente. A produção destas ferramentas envolveu a aprendizagem social, através da observação (e da imitação) das ações de indivíduos mais qualificados na produção destes objetos. Processos neurais distintos e complexos entram em jogo quando um indivíduo observa as ações de outro, tenta decodificá-las, entende-las, reproduzi-las, imitá-las e memoriza-las, o que, por sua vez, exige um cérebro cada vez mais poderoso. Mudanças culturais, mesmo que muito primitivas, selecionaram aqueles sujeitos mais aptos a imitarem e a reproduzirem os passos na confecção de utensílios. E os selecionados foram os que tinham “mais cérebro”, ou seja, os mais encefalizados. Insistirei um pouco mais em uma faceta importante da imitação, a da necessidade de compreensão das ações do outro. Ela envolve outra característica humana que, de tão arraigada em nossa natureza, nem percebemos sua importância e complexidade. Compreender outra pessoa significa entender o significado intencional de seus gestos e de sua postura corporal, de forma muito parecida com o que foi dito acima a respeito da prosódia e da interpretação das sutis contrações da musculatura facial. Este processo envolve a elaboração de uma cópia mental da pessoa com que se relaciona, incluindo suas supostas intenções, desejos e crenças (os aspectos espaciais da linguagem, segundo Crow), cuja finalidade é prever seu comportamento. É evidente que a formação de um nível tão complicado de cópia mental exija um cérebro poderoso, em que reservatórios de memória incluam não só os aspectos episódicos do evento (neste caso, os aspectos perceptuais do relacionamento com outros indivíduos), mas também suas características semânticas (quais os significados não manifestos dos gestos ou expressões faciais e que tipos de comportamentos eles permitem prever?). Da mesma forma que o desenvolvimento de um tipo de cérebro em que aptidões imitativas pudessem ser sofisticadas o suficiente para capacitarem uma espécie para o aprendizado social (outras espécies não humanas imitam, mas não aprendem socialmente), as mudanças no aparato vocal propiciaram o surgimento da linguagem falada. No entanto, a linguagem falada foi precedida para uma inclinação mental para a simbolização.

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A simbolização tem como essência a atribuição de um significado a um determinado ícone ou símbolo. As relações entre o símbolo e o seu significado não são, na maioria das vezes, evidentes, na medida em que a atribuição do significado pode ser um processo aparentemente arbitrário. Um símbolo, por sua vez, pertence a qualquer modalidade sensorial, embora os mais utilizados por nossa espécie sejam símbolos visuais e auditivos. A linguagem falada baseia-se, essencialmente, na emissão de vocalizações com teor simbólico. Todavia, a capacidade de emitir sons de forma voluntária depende da possibilidade de se suprimir a respiração e a supressão da respiração só é possível em arranjos anatômicos específicos do aparelho respiratório. Vimos acima que quando a laringe é mais alta, como em outros primatas não humanos, isso não é possível e que mudanças anatômicas na base do crânio no gênero Homo acabaram por “baixar” sua laringe, tornando realizável a supressão voluntária da respiração. Um processo envolvendo a progressiva aquisição de algum controle voluntário sobre a emissão de sons que inicialmente eram involuntários pode ter precedido a linguagem falada. Em alguns primatas não humanos vocalizações são emitidas juntamente de emoções suscitadas por determinados estímulos ambientais tais como “águia”, “leopardo” ou “serpente”. Imagine uma espécie qualquer em que uma vocalização, que vou chamar de “v”, fosse inicialmente emitida de forma involuntária, em associação, por exemplo, à emoção desencadeada por um encontro com uma serpente. Uso o exemplo de uma vocalização hipotética, mas poderia falar em uma postura corporal ou um conjunto de expressões faciais que sinalizassem o mesmo risco. Sabemos que emoções suscitam respostas corporais e cognitivas específicas nos indivíduos que as têm e que tais respostas podem servir como sinalizadores de perigo a outros indivíduos daquela mesma espécie. Se alguém próximo de você está apavorado, você reconhece isso imediata e automaticamente ao ver a expressão facial desta pessoa e não precisa, portanto, ter o mesmo tipo de exposição àquela ameaça para que tome as providências para salvar sua pele. O mecanismo deste processo envolve uma resposta mediada

por

um

núcleo

cerebral

denominado

amígdala,

especializado

no

reconhecimento de pistas ambientais sinalizando riscos. Dentre outras funções, a amígdala detecta sinais sociais de perigo e normalmente tais sinais são expressões (faciais ou vocais) de emoções primitivas, como o medo, a raiva e o nojo. Portanto, o

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trabalho da amígdala faz com que sejamos capazes tanto de sinalizar quanto de reconhecer riscos em potencial. Poderíamos considerar estas reações primitivas de reconhecimento do medo em expressões faciais ou vocalizações como formas primitivas e instintivas de simbolização, onde o símbolo é composto pelo conjunto de movimentos dos músculos faciais ou emissões vocais característicos de reações de pavor, e o significado, algo como “existe ameaça por perto”. Não há necessidade de aprendizado, basta algum amadurecimento neural para que tais recursos adaptativos entrem em ação. Voltando à nossa espécie hipotética, imagine agora que uma mutação fosse capaz de fazer com que indivíduos desta espécie pudessem passar a emitir a vocalização v de forma voluntária, ou seja, em outras condições além do desafortunado encontro com uma serpente. Perceba a conveniência de um indivíduo, que, por uma razão qualquer, esteja mais habituado a este tipo de encontro (e que obviamente tenha sobrevivido aos que já teve), e por isso seja capaz de identificar locais onde serpentes são mais encontradiças. E que faça parte do repertório comportamental dos mutantes aptos a emitir voluntariamente a vocalização v alertar seus companheiros sobre os riscos destas perigosas paragens, mesmo na ausência de serpentes. Lembre-se de que v é um sinal compreendido instintivamente por aquela espécie, que a decodifica de imediato como “presença de serpente”. E uma última suposição, a fim de complementar meu exemplo: que um grupo destes indivíduos está explorando uma região rica em recursos para sua subsistência, e que esta empreitada deve ser feita cautelosamente, pois há indícios de que a região esteja infestada por cobras. Diante deste panorama, em que explorar implica tanto em risco de ser envenenado por uma cobra quanto no benefício de achar uma nova fonte de alimentos, é fácil entender que o sujeito ideal para explorar um local como aquele não pode ser tão assustado a ponto de sair correndo diante de qualquer ruído ou movimento, nem tão destemido a ponto de se arriscar desnecessariamente. O sujeito ideal para explorar aquele local deve ter um equilíbrio entre motivação para explorar, competência para controlar seu medo e capacidade de fazer tudo isso sem arriscar desnecessariamente sua vida. O ideal, evidentemente, é que ele entenda a sinalização que está sendo emitida pelo sujeito mais experiente, o qual, com a vocalização v parece querer dizer “continuem explorando, mas com cuidado, pois pode haver serpentes por aqui”. Mas como não existe mágica na natureza, é necessário encontrarmos uma maneira de explicar como a vocalização v pode passar a ser 22

adequadamente entendida por aqueles que a ouvem. Acho que a adequada decodificação da vocalização v pode surgir como um subproduto do atrevimento dos indivíduos que não saem correndo diante dela e continuam a explorar o ambiente apesar dela. Da mesma forma que quando andamos nas ruas e nos aproximamos de um grupo de pombos ciscando alimentos e observamos que alguns deles levantam voo muito antes de uma aproximação arriscada e outros parecem desafiar nossa presença, afastando-se preguiçosamente de nossos passos, nossa espécie hipotética tem indivíduos mais e menos “ansiosos”, ou temerosos de risco. Pois bem, creio que os mais destemidos são aqueles com maiores chances de entenderem literalmente a mensagem da vocalização v e se beneficiarem de todas as consequências disso, simplesmente porque eles terão as chances de atestar pessoalmente que a vocalização v não significa necessariamente “presença de serpente”, pois não vão se evadir diante dela. Qual a diferença entre os apavorados e os destemidos, em termos mentais? Maior flexibilidade cognitiva, isto é, uma propensão para “adiar” ações motoras pré-programadas e inconscientes de proteção à vida, “desafiando” o medo e o desejo de fugir dali em razão de um bom propósito. Acho que é possível dizer que estes indivíduos têm uma capacidade mais sofisticada de representar o mundo em suas mentes, que os faz deixarem de agir por puro instinto. Não creio que seja forçoso dizer que eles têm maior capacidade simbólica e semântica, na medida em que, da mesma forma que os pombos que insistem em não voar apesar de minha passagem, parecem conseguir manipular melhor o ambiente – não gastando sua energia em voos desnecessários – por conta das melhores “cópias” que elaboram dele. Também é preciso lembrar que há limites nesta ponderação e considerar que excesso de audácia pode significar avaliação inadequada de risco, decorrente de “cópias defeituosas” ou excessivamente favoráveis do ambiente. Note que meu exemplo (bastante simplificado, concordo) tenta contar uma possível história a respeito do surgimento e da seleção de uma habilidade simbólica um pouco mais elaborada do que aquelas com que aquela espécie hipotética já nasceu equipada. Nele, usamos nossa imaginação para pensar, basicamente, no encontro de dois tipos de “vantagens” em indivíduos daquela espécie: de um lado, a possibilidade de emitir um ruído voluntariamente frente à percepção da possível presença de uma ameaça (evidentemente seria razoável argumentar que, além do controle voluntário de uma vocalização, uma capacidade de avaliação de riscos na ausência de risco proximal e um desejo de auxiliar os companheiros da mesma espécie em uma jornada mata adentro deveriam, também, ser considerados como importantes na motivação a se comportar daquela forma naquela 23

circunstância, mas esta é uma outra discussão), de outro, a capacidade de decodificar com algum grau de precisão o significado daquela vocalização, bem como a de guardar na memória aquele significado para um outro momento. É claro que este exemplo (repito, melhor seria dizer que se trata de uma especulação) serve muito mais como um exercício ilustrativo e bastante simplificado do que um relato preciso daquilo que deve ter acontecido. Ele tem como principal finalidade auxiliar na compreensão de como eventos cruciais do dia a dia de uma espécie podem agir de forma determinante na seleção de determinados tipos de capacidades mentais. Mutações genéticas associadas a alterações cognitivas desta ordem acontecem aleatoriamente e são selecionadas quando resolvem algum problema importante, geralmente relacionado à sobrevivência de um indivíduo. Citei indivíduos lidando com serpentes, mas poderia ter falado de caçadas: por exemplo, imaginemos um grupo de hominídeos que desenvolvesse uma capacidade além da normal de interagir entre si na empreitada de caçar um grande animal. Este grupo se organizaria de forma a dividir atribuições caso quisesse aumentar sua eficiência. Sua organização dependeria de capacidades simbólicas e de construir as cópias ou representações mentais do mundo e também das ações de seus companheiros, que dirigissem seu comportamento e que fossem úteis na preservação de suas vidas. Um dos importantes tipos de cópias que precisariam ter em mente diz respeito às cópias das mentes dos outros integrantes daquele grupo durante a caçada. Saber como meu companheiro deverá agir e reagir, levando em conta seu papel no momento da caçada, norteia minhas próprias ações e reações frente às diversas variáveis que ali estão em jogo e que podem alterar todos os movimentos de cada um dos indivíduos envolvidos naquela tarefa. Mas existem outras esferas do comportamento de nossos ancestrais que também nos ajudam a entender o desenvolvimento de nossas capacidades simbólicas. Os rituais nos dizem muito a respeito delas. Vimos que os Neandertais, além do Homo sapiens, enterravam seus mortos e juntos deles deixavam ornamentos, objetos pessoais e flores, como se os estivessem preparando para uma vida além da morte ou para o encontro com alguma entidade sobrenatural existente após a morte. Rituais como estes sugerem que as duas espécies deviam manifestar algum tipo de preocupação com temas como para onde vão os mortos ou porque as pessoas morrem. As supostas inquietações de nossos antepassados permitem alguma reflexão acerca da natureza de suas e de nossas mentes; sobre o que eles poderiam estar pensando e baseado em que estariam agindo? 24

Evidentemente ainda não temos respostas a muitas perguntas, apesar de já termos sido capazes de, cientificamente, desvendar verdadeiros mistérios e resolver muitos problemas que assombraram a espécie humana. Por exemplo, podemos prever com precisão cirúrgica a ocorrência de catástrofes naturais e, por conseguinte, salvar muitas vidas; também conseguimos desenvolver tratamentos eficazes para doenças infecciosas que antes dizimavam milhares de indivíduos. Algumas destas doenças, inclusive, foram erradicadas da maior parte do planeta. Nossa tecnologia nos permite enviar veículos não tripulados para locais muito mais distantes do que a Lua, a fim de saciarmos nossa curiosidade a respeito da existência ou não de vida além da Terra. Todas estas conquistas e muitas outras envolvem a compreensão de regras a respeito de como funciona o universo, como as leis da termodinâmica, a lei da gravitação universal e as leis da conservação da energia, para citar apenas algumas, as quais foram decifradas por mentes inspiradas, semanticamente privilegiadas, e também por muito estudo e experimentação. Esta riqueza cultural e tecnológica também foi acumulada através do aprendizado social, um processo que abrange a troca de informações entre seres capazes de elaborar e de compartilhar representações mentais altamente sofisticadas do mundo. Tal capacidade parece ter tido sua origem a partir da aquisição de características físicas e mentais não necessariamente atreladas a um objetivo de se construir uma mente sofisticada ou uma cultura avançada. E, certamente, ao longo do tempo, também tem colaborado para a configuração de nossas mentes modernas. O pensamento é, sem sombra de dúvidas, feito a partir das cópias do mundo que mantemos em nossas mentes, de um jeito altamente plástico, na medida em que a experiência permite torná-las cada vez mais elaboradas e úteis para nossas vidas. Nosso pensamento e nossa capacidade de criar cópias mais sofisticadas foram se desenvolvendo juntamente com alterações em nossos corpos que não tinham nada a ver com a “intenção” de se projetar uma mente como a humana. O pensamento, esta característica mental indissociável de nossa própria natureza, surgiu na mente humana em íntima relação com estas mudanças físicas, que foram adaptadas ao longo de milênios para o uso em outros propósitos, que não a pura reflexão. Apesar de ainda estarmos muito distantes de conseguirmos explicar os mecanismos cerebrais subjacentes ao pensamento, toda a informação proveniente do estudo do material deixado por

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nossos antepassados em seus habitats tem sido de grande auxílio na compreensão desta estupenda capacidade cognitiva. Conclusões A espécie humana tem uma capacidade única de ocupar e sobreviver em quaisquer habitats do planeta, por mais hostis que sejam as condições encontradas. Isso porque, com mentes dotadas de alta capacidade simbólica e criativa, além de uma habilidade única de compreender as mentes de outros humanos, desenvolvemos, através da aprendizagem social, uma cultura em que tecnologias avançadas puderam florescer, ampliando a adaptabilidade da espécie. O processo de modernidade comportamental, associado ao desenvolvimento de manufaturas, da arte e rituais, bem como de técnicas sofisticadas de caça, recebeu um impulso na chamada Revolução do Paleolítico Superior, ocorrida há cerca de 50 mil anos. Esta aceleração deveu-se à sofisticação de nossa capacidade de gerar representações mentais com maiores propriedades preditivas, incluindo, também, representações mentais das mentes de terceiros, o que acabou por aprimorar o aprendizado social e, consequentemente, as chances de sobrevivência do Homo sapiens. Algumas modificações na estrutura física de nossos ancestrais parecem ter íntima relação com o surgimento da mente humana moderna. Dentre elas, o bipedismo, um polegar opositor, a capacidade de controlar voluntariamente a respiração (que acabou por permitir que a linguagem se desenvolvesse) e o aumento tamanho do neocórtex. Referências bibliográficas 1. Tonelli HA. How semantic deficits in schizotypy help understand language and thought disorders in schizophrenia: a systematic and integrative review. Trends Psychiatry Psychother. 2014 June; 36( 2 ): 75-88. 2. Diamond J. The Third Chimpanzee. The evolution and future of the human animal. Harper Perenial. New York NY, 2006. 3. Crow TJ. Is schizophrenia the price that Homo sapiens pays for language? Schizophr Res. 1997 Dec 19; 28(2-3):127-41. 4. Sacks O. Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. Companhia das Letras, São Paulo, 2010. 26

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