Introdução a Plutarco. Vidas de César. São Paulo: Estação Liberdade, 2007,

September 17, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Plutarch, Historia Antiga, República Romana, Plutarco, Julio Cesar
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1 Publicado em: FUNARI, P. P. A. . Introdução a Plutarco. Vidas de César. São Paulo: Estação Liberdade, 2007, v. , p. 131-135.

Introdução a Plutarco e a Vida de Júlio César Pedro Paulo A. Funari1

Plutarco nasceu, provavelmente, pouco antes de 50 d.C., na cidade de Queronéia, na Beócia, em família antiga e ilustre. Seu avô, Lâmpria, se havia destacado pelo interesse variado, da Botânica à Filologia e à História. Seu pai, Autóbulo, era um amante da Filosofia. Essas heranças familiares foram importantes para a formação inicial de Plutarco, que se viu atraído pelos estudos, em geral, e pela reflexão filosófica e moralizante, em particular. Na juventude, foi a Atenas para seguir os ensinamentos do filósofo acadêmico Amônio, o que lhe renderia uma ligação duradoura com Atenas, coroada pela concessão honorária da cidadania ateniense. Em Atenas, ele entrou em contato com as escolas filosóficas e, contrário à doutrina de Epicuro, interessou-se pela peripatética, em particular pela ética. Ainda que tenha estudado a matemática, física, ciências naturais e medicina, dedicou-se com afinco à Filosofia de matriz platônica.

Viajou pela Grécia e pelo Egito e, entre 75 e 90, esteve em Roma várias vezes, onde conseguiu a cidadania romana, patrocinado por Lúcio Méstrio Floro, de quem ganhou o nome de família, Méstrio. Tornou-se amigo de diversos intelectuais e políticos, em grande 1

Professor Titular de História Antiga da Universidade Estadual de Campinas.

2 parte por meio do patrocínio de Méstrio , amigo do imperador Vespasiano. Seu maior promotor foi o conselheiro do imperador Trajano, Q. Sósio Senecião, a quem dedicou obras como as Vidas Paralelas, na qual se inclui a biografia de Caio Júlio César. O patrono teve importantes cargos políticos e militares sob Domiciano e Trajano, além de ter sido amigo e mesmo protetor do jovem Adriano. Plutarco, contudo, preferiu voltar à sua cidade natal, uma cidadezinha, e à Beócia, que valorizava por ter sido o berço de poetas estimados, como Hesíodo (c. 700 a. C.) e Píndaro (518—438 a.C.), assim como de Epaminondas (morto em 362 a.C.), aos olhos de Plutarco modelo de virtude. Casado com Timossena, tiveram cinco filhos, ao menos, três deles mortos cedo. A partir de 90, dividiu-se entre Queronéia e Delfos, o grande santuário grego, umbigo do mundo, sacerdote laico do templo de Apolo, por mais de vinte anos, desde 95. Estava encarregado de organizar os Jogos Píticos e presidir as assembléias da liga dos povos da Grécia central. Temos notícias de mais de 250 títulos de livros escritos por Plutarco, dos quais 101 nos chegaram completos e 30 em fragmentos. Morreu na década de 120 d.C.

Dentre as obras de Plutarco, suas Vidas Paralelas, composição tardia, constituem uma inovação, em ambiente grego. Como gênero literário, distingue-se da História e parece responder a um interesse antes romano, do que grego. Os antecedentes latinos, como são as Hebdômades de Varrão (116-27 a. C.) e os Homens Ilustres de Nepo (99-24 a.C.), ambos de finais da República Romana, parecem ter inspirado Plutarco no sentido de escrever uma comparação sistemática. Os estudiosos, em particular a erudição de língua alemã, procuraram remontar o gênero biográfico a Isócrates (436-338 a.C.) e Xenofonte (428-354 a.C.), como parte de um exercício de encômio. Mencionam-se, ainda, as influências de Aristóteles e de seus seguidores, em busca de ensaios eruditos sobre a vida dos filósofos.

3 Embora Plutarco afirme ter aprendido tardiamente a língua latina, não parece descabido aventar a hipótese que tenha se inspirado em Varrão e Cornélio Nepos, como maneira de mostrar que, para cada romano ilustre, se podia comparar um heleno notável. A comparação sistemática (sýnkrisis), de toda forma, representa um novo conceito.

Como gênero literário e por sua ambição, seria mais apropriado associar as Vidas à Filosofia do que à História. Em primeiro lugar, o próprio Plutarco adverte que:

“Se os meus leitores notarem que não reproduzo, por completo e detalhadamente, os grandes feitos célebres, mas que, em geral, apresento apenas um resumo breve, que esses leitores não me recriminem. Na verdade, não escrevo uma obra de história, mas biografias. Não são sempre os grandes feitos mais marcantes que revelam melhor as qualidades e defeitos dos homens. Uma atitude ou palavra banal, um gracejo, tudo isso permite-nos melhor conhecer o caráter, do que um combate com muitos mortos” (Plutarco, Vida de Alexandre, 1).

Plutarco refere-se, nesta passagem, à tradição historiográfica que remonta a Tucídides (460-400 a.C.), com sua ênfase na descrição acurada dos acontecimentos e deixa claro que ele se preocupa com uma questão de ordem filosófica, antes que histórica: o caráter, matéria da ética. Obra filosófica, portanto, a biografia ainda que relacionada ao encômio, vai além. Busca ser quase o exato inverso da historiografia, já que as vidas aparecem na História como elemento para a compreensão dos acontecimentos históricos, enquanto na Biografia são os eventos a ilustrar o caráter, ou éthos, de um personagem. Inserido na tradição peripatética e nos escritos aristotélicos sobre a ética, Plutarco considera

4 que a virtude moral não é um dom natural nem apenas algo aprendido, mas uma mescla. Por isso, o biógrafo procura sempre descrever a infância e a tenra educação do biografado. A parte central da vida não é tratada com rigor cronológico, já que a ênfase está na descrição do desenvolvimento do seu caráter. O final da vida e a morte, por outro lado, merecem particular atenção, por permitir uma avaliação moral do conjunto da vida.

Tudo isto é bem perceptível na biografia de Júlio César, a começar pela provável perda dos parágrafos iniciais, pois os manuscritos que chegaram até nós começam abruptamente com a chegada ao poder de Sila, quando César já estava com vinte anos de idade. Em seguida, no decorrer do relato da sua vida, há diversas divergências de datas com outras fontes, como no famoso caso da referência ao choro de César ao se comparar a Alexandre (Plutarco, Vida de César, 11), já que a informação de Suetônio (Div.Iul. 7) e Cássio Dio (37,52,2) faz mais sentido, pois a questura de César na Hispânia, em 67 a.C. coincidiu com os trinta e três anos do personagem que se comparou ao Alexandre que morreu com essa idade. Por fim, a vida conclui-se com a seqüência ao assassinato e com o julgamento moral de que o assassínio de César não havia agradado aos deuses.

Uma questão preocupou, de maneira obstinada, a historiografia alemã: a Quellenforschung, ou busca das fontes de Plutarco em suas vidas. Como Plutarco não pretendeu escrever História, essa preocupação moderna torna-se ainda mais difícil, já que as imprecisões no decorrer da biografia de um personagem como Júlio César não se devem tanto à falta de consulta às fontes, como à preocupação moralizante do autor. Como Plutarco mesmo afirma conhecer mal o latim, muitos estudiosos enfatizaram sua falta de atenção para com as obras latinas. Contudo, na vida de Júlio César há diversas referências a

5 fontes latinas, como, logo no primeiro parágrafo, quando se refere aos “muitos Mários”, ao ecoar Suetônio (1), nam Caesari multos Marios inesse. A leitura da Guerra das Gálias de Júlio César parece evidente em diversos passos, como no capítulo 20, 8, calcado no latino scuto ab nouissimis uni militi detracto (BG 2, 25,2) e vertido aqui como “César, apoderando-se de um escudo e passando entre os que combatia à sua frente”. O caso mais célebre é o da expressão “vim, vi e venci”, mencionada por Suetônio (Diu.Iu. 37) e apresentada por Plutarco com um breve comentário (JC 50). Muitos comentadores, contudo, pensam que Plutarco sempre consultou versões gregas e que a elas se reporta.

Os méritos filosóficos e literários das biografias de Plutarco não podem ser subestimados, nem sua influência, consubstanciada na expressão vernacular “varões de Plutarco”. Rejeitado, em grande parte, pela historiografia positivista como fonte histórica pouco confiável, Plutarco encontrou, nas últimas décadas, um renovado interesse também por parte da moderna ciência histórica, interessada nas identidades e nas particularidades, temas de eleição de Plutarco. Sua posição ambígua, entre a Grécia e Roma, entre a cidadezinha natal e os grandes centros, parece, em nossos dias, fascinante. As reflexões da teoria social, nas últimas décadas, têm ressaltado como as identidades sociais são fluidas e múltiplas e o mundo romano, em particular, tem sido revisto. A globalização que vivemos, com a interação das identidades sociais, tem servido para entender um mundo romano também às voltas com a diversidade. Neste contexto, Plutarco encarna muito bem essa fluidez de identidades, cidadão de muitas cidades, grego, mas romano, filósofo, mas sacerdote e líder local, amigo da elite romana, mas também orgulhoso herdeiro da Hélade.

6 O personagem retratado, Júlio César, também tem sido revisto pela historiografia de nossa época, igualmente à luz das identidades múltiplas e fluidas. Patrício e aristocrata, mas popular, general, mas “rainha da Bitínia”, conquistador de terras e mulheres, mas emotivo e lacrimoso, romano até a medula, mas falante do grego em seu íntimo, preocupado com a res publica, mas dictator. César, pintado por Plutarco aparece associado a Alexandre, os dois grandes luminares da Grécia e de Roma, ambos ligados à ordem do divino (ta theîa), como se explicita nos parágrafos finais de ambas biografias. Para o leitor moderno, imerso nas contradições das identidades múltiplas, a vida do Júlio César de Plutarco constitui uma jóia particular.

Campinas, agosto de 2006.

Para aprofundamento dos argumentos suscitados por esta introdução, as seguintes obras podem ser consultadas com proveito:

Dench, Emma. Romulus´Asylum. Roman identities from the age of Alexander to the Age of Hadrian. Oxford, Oxford University Press, 2005. Erbse, Harmut. Die Bedeutung der Synkrisis in den Parallelbiographien Plutarchs. Hermes 84: 398-424, 1956. Funari, Pedro Paulo A. A vida quotidiana na Roma Antiga. São Paulo, Annablume, 2003. Hingley, Richard. Globalizing Roman Culture. Unity, diversity and empire. Londres, Routledge, 2005.

7 Leo, Friedrich. Die griechisch-römische Biographie nach ihrer litterarischen Form. Leipzig, Teubner, 1901. Mossman, Judith (ed.). Plutarch and his Intellectual World.London and Swansea, Classical Press of Wales and Duckworth, 1997. Pelling, Christopher 1997 "Plutarch on Caesar's fall" in Mossman, Judith (ed.). Plutarch and his Intellectual World.London and Swansea, Classical Press of Wales and Duckworth, 1997, pp. 215-234. Scardigli, Barbara. Die Römerbiographien Plutarchs: ein Forschungsbericht. Munique, Beck, 1979.

Agradecimentos Agradeço a Richard Hingley, assim como menciono o apoio institucional do Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP, o CNPq e a FAPESP. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor.

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