Introdução ao Estudo Genético de Duplo Passeio, de Teixeira de Pascoaes

May 24, 2017 | Autor: Patricia Franco | Categoria: Textual Criticism
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Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Introdução ao Estudo Genético G de Duplo Passeio, Passeio de Teixeira de Pascoaes

Dissertação issertação de Mestrado em Crítica Textual Patrícia Baltazar da Silva Franco Orientadora: Prof.ª Dra. Cristina Sobral

2015

Patrícia Baltazar da Silva Franco

Introdução ao Estudo Genético de Duplo Passeio, de Teixeira de Pascoaes

Tese apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Mestre em Crítica Textual

Área de Concentração: Filologia e Língua Portuguesa

Orientadora: Prof.ª Dra. Cristina Sobral

Lisboa 2015

Resumo Teixeira de Pascoaes (pseudónimo de Joaquim Teixeira de Vasconcelos) é um escritor com um riquíssimo espólio literário e cuja obra, sobretudo a prosa, que corresponde à segunda e última fase da sua carreira, tem permanecido pouco estudada em Portugal, apesar de ter tido uma boa recepção fora do país. O trabalho aqui apresentado tem como objectivo ser uma introdução ao estudo do seu processo de escrita a partir dos materiais do seu espólio literário, pela primeira vez utilizado para uma abordagem genética. Partindo de uma descrição geral do espólio, constitui-se o dossier genético da narrativa Duplo Passeio e procede-se à descrição material (localização e história, suporte, escrita) dos seus quatro testemunhos manuscritos, um dos quais, incompleto, é aqui identificado pela primeira vez. Estabelece-se fundamentadamente a ordenação cronológica dos testemunhos e apresenta-se a edição genética de dois deles. Contribui-se para o conhecimento da génese e da recepção desta obra com recurso à correspondência pessoal do autor, nomeadamente com representantes de algumas casas editoras. São apurados ainda novos factos relativos à tradução alemã do texto e às relações do autor com o seu tradutor e amigo, Albert Thelen, em quem era depositada bastante confiança e dada grande liberdade no trabalho de tradução. Analisam-se alguns aspectos do processo de escrita de Pascoaes, nomeadamente a evolução do título de Duplo Passeio e a génese do passo central da narrativa, o Cristo de Travassos, no qual o encontro com uma criança está na origem de uma revelação religiosa para Teixeira de Pascoaes. Demonstra-se que escrevia e reescrevia as suas obras em busca da palavra ou expressão ideal, mas sem alterar a estrutura narrativa, e verifica-se que o processo criativo levava, por vezes, ao aproveitamento de segmentos de uma obra noutra, como acontece entre Duplo Passeio e a biografia O Penitente (Camilo Castelo Branco), em que ocorre bifurcação genética. Palavras-chave: Teixeira de Pascoaes, Duplo Passeio, Crítica Textual, edição genética, dossier genético

Abstract Teixeira de Pascoaes (pseudonym of Joaquim Teixeira de Vasconcelos) is a writer with an extremely rich literary estate. His work, particularly the prose, which corresponds to the second and last phase of his career, has been little studied in Portugal, despite having had a good reception abroad. The work here presented intends to be an introduction to the study of his writing process based on his literary estate, for the first time used in a genetical approach. Starting from a general description of the literary estate, the genetic dossier of the novel Duplo Passeio is constituted and the four handwritten testimonies, one of which, incomplete, is for the first time identified here, are materially described (localization, history, material support, handwriting). The chronological order of the testimonies is established and the genetic edition of two of them is given as well. Resorting to the author's personal correspondence, for example with the representatives of some publishing houses, it contributes to the knowledge of the genesis and the reception of the novel. In addition, new facts are determined concerning the German translation of the text and the author's relationship with his translator and friend, Albert Thelen, in whom Pascoaes deposited quite confidence, giving him great liberties in the translation work. Some aspects of the writing process of Teixeira de Pascoaes are analised, namely the evolution of the title of Duplo Passeio and the genesis of the central episode of the novel, the Travassos Christ, in which the encounter with a child contributes to Teixeira de Pascoaes religious revelation. It is demonstrated that he wrote and rewrote his works in search of the ideal word or expression, but without changing the narrative structure. More: the creative process took him sometimes to use segments of a work in another, as between the novel Duplo Passeio and the biography O Penitente (Camilo Castelo Branco), whose genetic process is interconnected. Key Words: Teixeira de Pascoaes, Duplo Passeio, Textual Criticism, genetic edition, genetic dossier

Índice Introdução ................................................................................................................... 6 1. O Espólio de Teixeira de Pascoaes .......................................................................... 9 2. A Narrativa Duplo Passeio ....................................................................................... 12 2.1. Produção, Publicação e Recepção................................................................... 12 2.2. Tradução ......................................................................................................... 25 3. Os Manuscritos: Descrição Material ....................................................................... 32 3.1. Manuscrito A ................................................................................................... 33 3.1.1. Localização e História .............................................................................. 33 3.1.2. Suporte.................................................................................................... 34 3.1.2.1. Acidentes do Suporte ..................................................................... 35 3.1.3. Escrita ...................................................................................................... 35 3.2. Manuscrito B ................................................................................................... 36 3.2.1. Localização e História .............................................................................. 36 3.2.2. Suporte.................................................................................................... 37 3.2.2.1. Acidentes do Suporte ..................................................................... 38 3.2.3. Escrita ...................................................................................................... 38 3.2.4. Folha Solta Junto ao Manuscrito B ......................................................... 40 3.3. Manuscrito C ................................................................................................... 42 3.3.1. Localização e História .............................................................................. 42 3.3.2. Suporte.................................................................................................... 43 3.3.2.1. Acidentes do Suporte ..................................................................... 44 3.3.3. Escrita ...................................................................................................... 44 3.4. Manuscrito D ................................................................................................... 51 3.4.1. Localização e história .............................................................................. 51 3.4.2. Suporte.................................................................................................... 52 3.4.2.1. Acidentes do Suporte ..................................................................... 52 3.4.3. Escrita ...................................................................................................... 52 4. Seriação dos Testemunhos...................................................................................... 54 5. Questões de Génese ............................................................................................... 58 5.1. O Título ............................................................................................................ 58 5.2. Bifurcação Genética ........................................................................................ 60 5.3. Evolução Entre Estados Genéticos .................................................................. 72 5.3.1. A Génese do Cristo de Travassos ............................................................ 76 Conclusão .................................................................................................................... 86 Bibliografia .................................................................................................................. 87

Introdução Entrei pela primeira vez em contacto com Teixeira de Pascoaes há pouco tempo, através do manuscrito de Duplo Passeio que se encontra na Biblioteca Nacional (BN). Chamou-me a atenção o facto de ser muito rico em emendas, o que o torna à partida muito interessante para um estudo genético. Considerando a Crítica Genética como uma área da Crítica Textual, na qual esta dissertação se inscreve, proponho-me aqui a fazer a introdução ao estudo da génese de Duplo Passeio. Para tal, começarei por fazer a constituição do dossier genético. Dado este conceito não ser pacífico, importa esclarecer qual o seu significado nesta dissertação. Segundo Pierre-Marc de Biasi (2011: 67-68), dossier genético é o conjunto dos documentos e manuscritos relacionados com a escrita de uma determinada obra (planos, cenários, apontamentos, cadernos, esboços, desenhos, notas de leitura, marginália, fragmentos de redacções anteriores, notas de documentação, rascunhos, cópias, provas corrigidas, etc.). Biasi considera que o dossier genético é um conjunto compacto que importa organizar criticamente de forma a obter um conjunto estruturado, a que ele chama ante-texto. Para Grésillon (1994), no entanto, dossier genético e ante-texto são sinónimos. O termo ante-texto (avant-texte) foi proposto e definido por Jean Bellemin-Noël (1972: 15): l'ensemble constitué par les brouillons, les manuscrits, les épreuves, les « variantes », vu sous l'angle de ce qui précède matériellement un ouvrage quand celui-ci est traité comme un texte, et qui peut faire système avec lui. Grésillon (1994: 109), não colocando de parte este termo, prefere antes dossier genético por considerá-lo mais neutro, na medida em que ante-texto nos remete imediatamente para a noção de texto, e a crítica genética, tal como esta autora a entende e descreve, visa essencialmente, não o texto, não o resultado final, mas o processo da escrita. Dossier genético é o conjunto dos documentos escritos que testemunham a elaboração progressiva do texto (Lebrave e Grésillon, 2009), é o conjunto de todos os testemunhos genéticos conservados de um projecto de escrita ou de uma obra, classificados em função da sua cronologia de etapas sucessivas (Grésillon, 1994: 242). 6

Concordo com Grésillon. Não vejo necessidade de fazer, como Biasi, uma distinção entre ante-texto e dossier genético. Considerando-os como sinónimos, prefiro, pelas mesmas razões dadas por Grésillon, o termo dossier genético, pelo que o utilizarei ao longo da dissertação. A constituição do dossier genético é a primeira fase de todo o estudo genético, na medida em que define a cronologia dos vários testemunhos genéticos, seriando-os. Procurei ainda obter informação de génese externa, nomeadamente através da correspondência de Pascoaes. Segundo Biasi (2011: 67-68), o dossier genético pode ser enriquecido por documentos como a biblioteca pessoal do escritor, cartas recebidas, contratos de edição, actas ou documentos oficiais, etc. Importava tentar perceber qual o contexto da redacção de Duplo Passeio. Estes elementos, bem como a exogénese, complementam o dossier genético e informam-nos acerca das condições externas nos quais se situa uma génese (Grésillon, 1994: 25). A exogénese designa todo o processo de escrita consagrado a um trabalho de pesquisa, de selecção e de integração que se concentra em informações de uma fonte externa para a escrita. Autógrafo ou não, qualquer cópia ou nota de um documento, todo o material citado ou intertextual pertence à exogénese, como por exemplo recortes de jornais, fragmentos de textos impressos, notas de leitura e cartas de amigos fornecendo informações (Biasi, 2007). Ao longo desta dissertação apresentarei alguns destes elementos. O estudo genético deve prosseguir com a análise do modo como o texto se vai alterando ao longo do processo de escrita. Para essa análise, é fundamental a edição genética dos testemunhos. Uma edição deste género é muito útil, na medida em que apresenta por ordem cronológica um determinado processo de escrita, que, como já foi referido, é a principal finalidade da crítica genética. Até que ponto, por exemplo, existem emendas sucessivas num determinado ponto da narrativa? Fazer uma edição genética implica a decifração da escrita sequencial do texto e a sua exposição de uma forma mais acessível, legível e facilmente estudável. Uma edição vertical visa reconstituir o processo de escrita de uma ponta à outra do itinerário genético, através da publicação de todos os estágios da génese (Biasi, 2011: 170-171). Para esta obra, é preferível optar-se por uma edição horizontal. Neste tipo de edição, publica-se apenas os documentos que correspondem a um momento determinado da génese de uma obra. Uma edição horizontal inclui sempre uma parte 7

mais ou menos importante de verticalidade. A camada de escrita da qual se ocupa a edição horizontal possui as suas próprias temporalidade e espessura: não foi escrita de forma instantânea, possuindo, portanto, a sua própria história genética (Biasi, 2011: 156-158). As características do dossier genético de Duplo Passeio não permitem fazer uma edição vertical dos testemunhos. Por exemplo, há parágrafos inteiros que são completamente reestruturados em apenas um dos testemunhos, o que torna a edição horizontal — e, consequentemente, a sua leitura — suficientemente complexa. A edição vertical, juntando todas as variantes ocorridas no processo de escrita, seria pouco eficiente, na medida em que o seu resultado seria muito denso e ilegível. Em casos como Duplo Passeio, o ideal é fazer-se a edição horizontal de todos os testemunhos. Fazer a edição de todos os manuscritos, tendo em conta a sua dimensão, não seria exequível numa dissertação de mestrado. Tendo conhecimento da existência de três manuscritos da obra, optei por editar o segundo mais antigo, dado o mais antigo dos três não se encontrar completo. Entretanto pude identificar quatro folhas de um quarto manuscrito, até agora desconhecido e aparentemente anterior a todos os outros. Porque se trata apenas de um fragmento, e pela novidade da sua identificação, será também editado. Procederei, portanto, à edição do primeiro e do terceiro manuscritos. Sem a edição genética de todos os testemunhos e dada a quantidade de emendas em cada um deles, não será possível fazer um estudo muito aprofundado, que envolva, por exemplo, a classificação de todas as variantes de todos os manuscritos. Em qualquer estudo focado num determinado objecto, é esse objecto que o guia. É o que acontece num estudo genético, que inevitavelmente é orientado pelos dados

que

os testemunhos

genéticos

oferecem.

Abdico,

portanto,

necessariamente, de um estudo genético com ambições de exaustividade. Proponho-me, porém, analisar verticalmente alguns passos seleccionados da narrativa e, para isso, editarei também o texto que lhes corresponde nos manuscritos segundo e quarto. Pretendo, assim, revelar a riqueza do dossier genético de Duplo Passeio, deixando para estudos futuros o muito que ainda fica por estudar.

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1. O Espólio de Teixeira de Pascoaes O núcleo principal do espólio de Teixeira de Pascoaes, que inclui numerosos autógrafos e correspondência, a biblioteca pessoal do escritor, pinturas e peças de mobiliário desenhadas por Pascoaes, foi adquirido pelo município de Amarante à família do escritor a 29 de Abril de 2013 (Câmara Municipal de Amarante, Arquivo de Notícias, 07-05-13). O Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea (ACPC) recebeu em depósito e inventariou grande parte deste espólio (D3, 59 caixas, 5050 documentos) em duas fases, por acordo assinado entre a Biblioteca Nacional e Maria Amélia Teixeira de Vasconcelos, representante dos herdeiros. Na primeira fase (Novembro de 1987 a 18 de Dezembro de 1990) esteve depositada a correspondência, consultável na BN em 21 bobines de microfilmes, e na segunda fase (30 de Novembro de 1994 a Fevereiro de 1998) foi a vez dos autógrafos e do resto da correspondência, consultáveis em 39 bobines de microfilmes (Duarte e Oliveira, 2007: 129-130). Na Biblioteca Nacional encontram-se o manuscrito Um Passeio (F. 3597), doado em 1982 por Beatrice Thelen, a quem fora oferecido pelo escritor em Abril de 1942, e um conjunto de cartas trocadas entre Teixeira de Pascoaes e Albert Vigoleis Thelen e entre este e familiares do primeiro (F. 6190), doadas por Olívio Caeiro em Fevereiro de 1992. Estes elementos faziam parte da colecção de manuscritos avulsos do ACPC e integram desde 1998 o acervo Esp. N63, ocupando uma caixa (Duarte e Oliveira, 2007: 115). A Biblioteca Pública Municipal do Porto possui vários manuscritos e correspondência do autor. Por se encontrarem dispersos por vários acervos internos, esta instituição optou por reunir e divulgar publicamente a totalidade dos documentos, nomeadamente através da sua digitalização e disponibilização na Internet (BPMP, 2011). A afilhada de Teixeira de Pascoaes, Maria Adelaide Barros Teixeira, tem em sua posse alguns manuscritos, alguns deles inéditos. A este respeito consta o seguinte no testamento do escritor: «Lega ainda à mesma sua afilhada Adelaide as seguintes obras, dele testador: Idílio Pastoril, Dois Jornalistas, O anjo e a Bruxa, O Senhor Fulano, Uma Fábula e Cartas a uma Poetisa, pois deve ao amor que lhe consagra os últimos lampejos da sua inspiração.» Alguns destes manuscritos estariam até há pouco tempo 9

na posse da família do escritor, nomeadamente cinco versões de Cartas a Uma Poetisa e o manuscrito de Idílio Pastoril, junto ao qual se encontra outro texto, Cartas a Um Poeta (Queirós, 2015). Por este motivo, os microfilmes destes manuscritos podem ser consultados na BN, que os tratou documentalmente, como já foi referido. António Cândido Franco (2006: 77) escreveu o seguinte acerca de Pascoaes: [...] autor que a si próprio se chamou de maníaco do verbo e foi emendador e rascunhador impenitente.

Isto já acontecia na juventude do escritor: [...] o conhecimento dos textos do jovem Pascoaes mostra-nos um autor radicalmente preocupado com a elaboração verbal, e com a reescrita constante dos seus textos e, o que é mais, mesmo já depois de dados à estampa, perfeitamente indiferente à sacralidade e à intangibilidade do que já foi escrito e publicado. (Franco, 1996: 76)

Os parágrafos seguintes contêm informação importante acerca do processo de criação de Pascoaes: [...] atendendo a que o tecido foi entrançado com fios que passam indiscriminadamente de livro para livro, como facilmente se vê com o poema que começa por ser publicado com capa dura e acabou depois por integrar sucessivamente o miolo de duas colectâneas líricas de Pascoaes —, um excurso sobre o Sempre acaba inevitavelmente também por ser, dado que o texto aí continua, um itinerário de leitura de livros como À minha alma ou Terra Proibida. A originalidade em Pascoaes, se retivermos o caso das transformações de um poema como aquele que foi publicado nos primeiros meses de 1898, é nitidamente um processo de assimilação de textos anteriores, no caso homo-autorais, mas que noutros casos podem até ser hetero-autorais, textos esses que vão sendo sugados e absorvidos para camadas sempre mais profundas, estratos depositados no fundo intestinal do poema, que só afloram à superfície de forma latente, afloramentos cujos indícios ou vestígios já desapareceram, e só depõem a favor do intenso e continuado labor do Poeta que parece ter amassado as palavras com o mesmo cuidado, o mesmo esforço e até o mesmo amor com que se amassa, ou amassou, manualmente o pão[...] 10

[...] Desenterrar os palimpsestos que Pascoaes foi laboriosamente deixando para trás do seu torno, enterrando-os debaixo do que nos dava a ler, fazendo deles a matéria gasta e negra do poema mas também o seu húmus, a turfa em que secretamente eles deitavam a raiz, é descer à selva escura das versões, mina sem luz e raramente visitada, cujos corredores sinuosos e profundos, elásticos como os intestinos da terra, se transformam rapidamente em labirintos de ecos. Chegar finalmente ao fundo da mina[...] é chegar ao hipograma ou ao arquigrama — uma matriz que é simultaneamente esqueleto exumado, estrutura projectual e residual, e fantasma de névoa —, a partir do qual o texto se foi convertendo no que é, organismo complexamente activo, máquina viva e arfante. (Franco, 1996: 104-106)

Estas palavras de António Cândido Franco são esclarecedoras, porque partem de estudos de Jacinto do Prado Coelho (na edição das Obras Completas de Teixeira de Pascoaes) e de Ilídio Sardoeira (Pascoaes um Poeta de Sempre, 1951) que cruzam diferentes edições e mesmo obras diferentes. Uma simples vista de olhos pelo inventário do espólio feito na BN ajuda-nos a perceber que Pascoaes reescrevia consecutivas vezes as suas obras. Só para dar alguns exemplos, de Marânus existem oito manuscritos (dois dos quais incompletos e um deles contendo a tradução para francês feita pelo autor, incompleta), duas provas tipográficas da primeira edição e dois exemplares da segunda edição com emendas autógrafas; d'O Bailado existem seis manuscritos (dois deles contendo apenas o prólogo), um exemplar da primeira edição com emendas e folhas coladas e dois exemplares da segunda edição com emendas autógrafas; d'O Empecido e do Livro de Memórias existem cinco manuscritos; de São Paulo existem seis manuscritos (um com algumas páginas dactiloescritas e outro simultaneamente autógrafo e alógrafo); e de São Jerónimo e a Trovoada existem oito manuscritos (um contendo apenas o prefácio, e três contendo também páginas dactilografadas), três dos quais contêm algumas páginas escritas por mão alógrafa. Todos estes testemunhos estão bastante emendados. É notório que Pascoaes dedicava muito tempo a aperfeiçoar os seus textos, mesmo após serem impressos.

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Valerá certamente a pena fazer-se estudos genéticos de algumas destas obras. Pascoaes (1985: 106), em O Penitente, escreveu o seguinte: Uma obra a realizar absorve-nos, por completo. Entregamo-nos de todo à geração dum filho, e o resto do mundo não existe.

O escritor, que não tinha filhos, via na sua obra o seu principal legado. Encontra-se disponível, portanto, um espólio rico, cujo estudo genético, nunca empreendido, pode esclarecer a evolução do pensamento e o processo de construção literária de um autor que tem despertado o interesse, quer pelo valor poético da sua obra, quer pela sua dimensão filosófica.

2. A Narrativa Duplo Passeio 2.1. Produção, Publicação e Recepção Teixeira de Pascoaes escreveu Duplo Passeio na sequência de uma viagem de carro de Amarante a Montalegre com os amigos Ângelo César e António Duarte. O ano que consta na primeira edição é 1937: «Assim me aconteceu, num dia de julho de 1937, às seis horas da manhã» (pág. 13). No entanto, nos dois testemunhos anteriores, o ano indicado é, ora 1939, ora 1935. Podemos concluir que o ano que o texto da 1ª edição atribui ao passeio, 1937, está correcto e que os outros anos teriam sido escritos de memória. O mês indicado no Manuscrito B é Agosto (fl. 2), que no manuscrito seguinte é cancelado e substituído na sobrelinha por Julho (fl. 3), e assim passa a constar em todos os estados genéticos posteriores. Numa carta1 a Ângelo César que faz parte do espólio de avulsos da BN, Pascoaes diz o seguinte2: 07-09-1937 Escrevo-lhe ainda estonteado pelo fantasma do Gerês a contemplar-nos pelo olho rubro do sol. Mas este passeio será o assunto duma longa epístola que tenciono escrever-lhe.

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Cota A/5410. Ao longo desta dissertação a grafia será actualizada nas transcrições, excepto quando fazem parte da descrição material dos testemunhos ou quando pretendem demonstrar a génese da novela. 2

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Agora, é para lhe agradecer o seu interesse pela minha obra ou pelo meu filho.

Novamente a identificação da obra com um filho. A correspondência que faz parte deste espólio não inclui mais nenhuma carta a respeito deste assunto, pelo que ficamos sem saber se Pascoaes chegou a escrever a longa epístola, como tencionava. O que sabemos é que este passeio serviu de inspiração à narrativa que viria a ser publicada sob o título Duplo Passeio. Como não podia deixar de ser, o escritor enviou um exemplar ao seu amigo, como atesta a carta de Ângelo César datada de 1 de Abril de 19423: Bem-haja pelo envio do seu Duplo Passeio. Estou a lê-lo sofregamente. Na estrada, fui eu quem levou o Pascoaes, levantando apenas a pobre e terrena poeira dos caminhos. Agora, é o Pascoaes quem me leva a mim, rasando as estrelas, envolvendo-me, em êxtase de espírito, nas divinas poeiras do céu... Estou ainda em Travassos; contraria-me a lentidão dos olhos, pois toda a minha ânsia é a de correr o livro até ao fim, sem demoras. Para o ler, tive de interromper a narrativa homérica das atribulações de Ulisses. Só um livro como o Duplo Passeio, em carne viva e em espírito vivo, poderia diluir na minha lembrança as saudades da Odisseia... Grande livro! Louvado seja Deus por se deixar assim entrever no milagre das palavras que são o barro de que se faz aquela verdade que é (segundo o Pascoaes) calor — aquecendo e luz — alumiando. Para o elogio do... Verbo?!

Estas palavras de Ângelo César comprovam que Pascoaes se inspirou num episódio real para escrever este livro, e que foi ele que conduziu o automóvel em que seguiam. Pascoaes tencionava publicar esta narrativa na Livraria Tavares Martins, que já editara algumas das suas obras, São Paulo (1934) e Napoleão (1940). Uma carta4 desta editora, assinada por Américo Martins, explica o porquê de isto não ter acontecido:

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Cota D3/64, consultável na BN em microfilme: F. 5516, bobine 1. Cota D3/4677, consultável na BN em microfilme: F. R. 133, bobine 2. 13

29-10-1941 Fiz hoje as contas da edição de 1000 exemplares da obra Duplo Passeio. Fiquei aterrado! O livro custar-nos-ia 7034$00 e os 900 exemplares para a venda render-nos-iam 7560$00. Junto lhe remeto o orçamento da tipografia ao qual se deverá juntar: Direitos de Autor ........................................... 1200$00 Anúncios nos Jornais (o mínimo) .................. 1000$00 Como vê, o negócio é impraticável. Como o meu Amigo vem na 2.ª feira ao Porto falaremos sobre o assunto.

Esta resposta da editora Livraria Tavares Martins demonstra que o livro daria prejuízo, pelo que não podia publicá-lo, o que terá levado Pascoaes a optar por fazer uma edição custeada por si. Poucos dias depois, inicia as negociações com António de Sousa, da Tipografia Civilização, do Porto, como podemos verificar pela correspondência recebida pelo escritor que foi adquirida pela Câmara Municipal de Amarante: 8-11-19415 Comunico a V. Ex.ª que na próxima segunda-feira envio as provas do livro — 1.ª folha — e o mais que se puder, além da folha. Por estar a terminar a impressão de um outro romance, não pude ser mais breve, do que peço desculpa a V. Ex.ª Logo que termine este livro, darei todo o impulso ao livro de V. Ex.ª 18-11-19416 Junto encontrará V. Ex.ª as 2.as provas da 1.ª folha e dos granéis seguintes (2.ª prova também). Devido a precipitação ou não sei quê, o preço que fiz aos 300 exemplares a mais não foi bem feito. Creio que multipliquei 75 folhas por 2, quando deveria ser 150 folhas por 2, que dão os 300 exempl. Assim, o preço dos 300 é de 35$00 e de 400 é de 45$00, custando cada folha de 16 páginas, 1.100 exemplares 220$00.

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Cota D3/3559, consultável na BN em microfilme: F. 5516, bobine 17. Cota D3/4726, consultável na BN em microfilme: F. R. 133, bobine 2. 14

Preço primitivo: 700 exempl. ........................ 175$00 Mais 400 ........................................................ 45$00 ....................................................................... 220$00 Peço desculpa a V. Ex.ª da minha falta, do erro imperdoável, e rogo-lhe a fineza de me dizer, com a devolução das provas, se devo imprimir 700 ou 1100 exemplares.

Desta carta se conclui que Pascoaes inicialmente estaria a pensar publicar 700 exemplares, e que entretanto estaria a ponderar publicar 1000. O engano nos cálculos da parte da tipografia, para um valor inferior ao do custo real dos exemplares a mais, possivelmente teria tido um papel na ponderação de publicar mais 400 exemplares em vez de mais 300, ou seja, 1100 em vez de 1000. 20-01-19427 Recebi hoje 1.as e 2.as provas, o que muito agradeço a V. Ex.ª As 1.as seguem hoje mesmo por este correio, como 2.as provas e que serão para a folha 7. — Aproveitando esta oportunidade, venho rogar a V. Ex.ª um subido favor, o qual, desde já, reconhecidíssimo agradeço, pedindo-lhe me perdoe a ousadia. É que até ao dia 30 do mês corrente tem de ser pago, como deve ser de conhecimento de V. Ex.ª, o 1.º semestre de Contribuição Industrial, sob pena de relaxe, caso não pague. Ora, como, infelizmente, o trabalho não abunda e o produto do sinal, que V. Ex.ª de tão boa vontade me deixou, foi para a compra de todo o papel preciso para o livrinho, vejo-me agora desprevenido e, por tudo isto, venho solicitar de V. Ex.ª a fineza de me adiantar mais a quantia de 500$00 para o fim do livro pronto, caso V. Ex.ª o possa fazer. 20-03-19428 — Recebi o postal de V. Ex.ª, o qual muito agradeço. Por este correio seguem as segundas provas da parte final do livro e também a folha 14 e 15, já impressas.

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Cota D3/3560, consultável na BN em microfilme: F. 5516, bobine 17. Cota D3/3561, consultável na BN em microfilme: F. 5516, bobine 17. 15

Sobre a capa, será ela impressa conforme o desejo de V. Ex.ª Na lombada levará a repetição do título, o nome de V. Ex.ª, em cima, e 1942 em baixo — o costume. Não leva preço? Na folha 16, que dá 8 páginas, há espaço para levar índice. Se V. Ex.ª assim o desejar, organiza-se aqui, com os respectivos Capítulos — Epílogo — Nota final, ou então, para não virem páginas em branco, pôr, em uma delas, Acabou de se imprimir aos tantos de tal, etc., etc., como se vê em alguns livros. A pedido de V. Ex.ª, tomo a liberdade de juntar a este a factura de importância total. Para ela peço a V. Ex.ª bom acolhimento, o que agradeço. Contava com a sua estimada visita, ontem, mas como não foi possível (oxalá não fosse por falta de melhoras da Mãe de V. Ex.ª). Desculpe-me V. Ex.ª a ousadia, se fosse possível enviar-me metal de restante, muito agradecia, isto devido a compromissos que tenho na próxima segunda-feira.

Esta carta demonstra que a 20 de Março o livro estava quase pronto. Faltava acertar alguns pormenores. Como já foi referido, a 1 de Abril Ângelo César já possuía um exemplar. Como se pode ler nos parágrafos seguintes, houve uma edição especial e alguns livros foram encadernados. 3-04-19429 — Envio a V. Ex.ª mais 14 volumes, conforme o pedido que tenho presente. Os exemplares da edição especial e que vão ser encadernados (6) estão prontos na próxima semana. A encadernação custa 7$50, cada exemplar. Logo que os receba, avisarei.

No canto inferior esquerdo desta carta, Pascoaes fez os seguintes cálculos para chegar ao valor da encadernação dos seis exemplares a encadernar: «7 x 6 = 42 mais 3/escudos e meio.» 13-04-194210 O encadernador comprometeu-se a entregar hoje os exemplares encadernados. Nos 14 exemplares que V. Ex.ª recebeu não foi incluído nenhum da edição especial. 9

Cota D3/3562, consultável na BN em microfilme: F. 5516, bobine 17. Cota D3/3563, consultável na BN em microfilme: F. 5516, bobine 17.

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Logo que o encadernador os entregue, enviá-los-ei pelo recoveiro imediatamente. 20-05-194211 Acabo de receber os 3 exemp. encadernados, o que «já não é sem tempo». Queira V. Ex.ª dizer se deseja que os mande entregar na camioneta ou se espero por portador. O Tavares Martins ainda não mandou buscar mais livros, além dos 100 que pediu quando V. Ex.ª aqui estava.

A Livraria Tavares Martins não quis publicar a obra, mas colocou o livro à venda. Na página 335 do Anuário Académico de 1942, onde consta a bibliografia de Teixeira de Pascoaes, a última linha indica «Duplo Passeio. Porto, 1941.» Esta informação resultou do seguinte pedido feito ao escritor pela Academia de Ciências de Lisboa, através de uma carta12: 23-07-1941 Se quisesse ter a fineza de enviar à secretaria da Academia a actualização da sua Bibliografia a fim de que o Anuário Académico de 1942 não sofra atraso idêntico ao de 1941[...]

Podemos concluir que Pascoaes contava ver Duplo Passeio impresso ainda no ano de 1941. Como já vimos, houve imprevistos que o impediram. A 1.ª edição de Duplo Passeio data de 1942 (fim de Março). Trata-se, como já vimos, de uma edição de autor feita com recurso à Tipografia Civilização, Porto. Não houve mais edições em vida de Pascoaes. Esta narrativa é editada pela Bertrand em 1975, no volume

X

das Obras completas de Teixeira de Pascoaes, colecção com

introdução e aparato crítico de Jacinto do Prado Coelho, em conjunto com outro texto e sob o título A Beira (num relâmpago) — Duplo Passeio. A 3.ª edição é da Assírio & Alvim e data de 1994. É notório que foi feita a partir da 2.ª porque, para além de também ser uma compilação das duas obras, repete um erro no prefácio: «impotência diminuída pela cobertura de colmo» em vez de «imponência diminuída pela cobertura de colmo». 11 12

Cota D3/3564, consultável na BN em microfilme: F. 5516, bobine 17. Cota D3/2287, consultável em microfilme: F. 5516, bobine 11. 17

Relativamente à recepção da obra de Pascoaes, atentemos às palavras de António Cândido Franco (2003: 24-25): O afastamento de Pascoaes dos problemas de pensamento centrais da literatura do seu tempo, e até da sua anterior literatura, cria nas últimas obras de Pascoaes um efeito de estranheza. São obras difíceis, irreconhecíveis e solitárias. O último Pascoaes13 escreveu em Portugal na mais completa solidão, sem crítica e sem leitores. Por parte da crítica, a sua literatura não encontrou qualquer favor ou compreensão. Mesmo nos melhores casos, como o de Gaspar Simões, a crítica literária portuguesa não se mostrou preparada para enfrentar o tipo de questões desconcertantes que a literatura do último Pascoaes levantava. Preferiu, por isso, o silêncio. Por parte do público, não houve também a mais pequena receptividade aos seus livros. Livros como São Paulo, São Jerónimo, Napoleão ou Santo Agostinho demoraram por vezes mais de cinquenta anos a serem reeditados em Portugal e as editoras das primeiras edições desses livros ainda recentemente vendiam exemplares das primeiras tiragens, que não iam além dos 1000 ou 1500 exemplares. Alguns outros, como A Minha Cartilha, que teve uma primeira e única tiragem de 300 exemplares, não foram sequer reeditados até hoje. Isto quer dizer que, além de difíceis, as últimas obras de Pascoaes foram, e continuam a ser, pelo menos entre nós, obras ilegíveis.

Este silêncio a que António Cândido Franco se refere está patente na correspondência de Ilídio Sardoeira, poeta do município de Amarante, a Teixeira de Pascoaes: 5-06-194214 Só há uma cabeça, só há um pensamento, só há uma ideia, só há um homem em Portugal: o resto vale na medida em que se nega[...] Nas livrarias vai um alvoroço de publicações reaccionárias, mamando nas tetas do Sardinha e nos cofres dos sem sardinha[...] O Duplo Passeio já chegou a Lisboa mas o bloco livreiro-editorial — o estado-novo das páginas tipográficas — não dá mostras de o querer apresentar publicamente.

13 14

Referência ao período entre 1934 e 1952. Cota D3/3402, consultável em microfilme: F. 5516, bobine 16. 18

E infelizmente não é por nossa discordância de ideias mas por um protesto de negociante lesado. Desejava publicar sobre ele uma crítica na Seara Nova. Incidiria sobre a concepção ateoteísta. Até hoje não recebi qualquer resposta. O inconformismo da actualidade mais parece uma forma superior de conformismo[...] A era pascoalina chegará: a era do pensamento como definição da personalidade e não como servo de qualquer partido.

Ilídio Sardoeira aponta para o facto de, apesar de o livro já ter chegado a Lisboa, as livrarias não o estarem a publicitar, «por um protesto de negociante lesado». Daqui se depreende que os livros de Pascoaes não tinham grande saída, provavelmente por não se incluírem no tipo de «publicações reaccionárias» que vendia bem. Sardoeira menciona que queria publicar uma crítica a Duplo Passeio na revista Seara Nova. 22-07-194215 Já rabisquei algumas linhas sobre o Duplo Passeio. Não sei bem o destino a dar-lhe. A Flor do Tâmega é uma folha restrita ou da família; a Seara Nova não deu resposta.

Efectivamente, a revista Seara Nova não chegou a publicar a crítica de Ilídio Sardoeira. Ao referir que A Flor do Tâmega era «uma folha restrita ou da família», Ilídio Sardoeira dá a entender que gostaria que a sua crítica chegasse a todo o país, o que não aconteceria caso fosse publicada no jornal de Amarante. O louvor a Pascoaes na sua própria terra, como o de um pai a um filho, retirar-lhe-ia o mérito. Sardoeira inclui nesta carta um esboço dessa crítica: Creio ter chegado a uma conclusão que me parece acertada sobre o pensamento pascoalino. Trata-se apenas de um esquema: «Duplo Passeio não é para nós um passeio duplo, isto é, dois modos diversos de percorrer o mesmo caminho: em realidade e em sonho. Antes me

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Cota D3/3403, consultável em microfilme: F. 5516, bobine 16. 19

parecem dois caminhos que têm vindo paralelos até aos nossos dias e que, em Pascoaes, convergem num posto único e paradoxal — o da sua personalidade. Poder-se-ão chamar idealismo e realismo e exemplificá-los com a caverna de Platão. Estas duas atitudes que têm polarizado, em homens diferentes, o pensamento, atitudes conduzindo a caminhos paralelos e exclusivos, não podem aplicar-se a Pascoaes. Pascoaes não é um idealista, ao contrário do que pensa a maioria, mas realista. O seu drama não é de partido, mas de unidade ambivalente, quer dizer, o pensamento de Pascoaes lança raízes para os dois campos, nenhum, isoladamente, o satisfaz, os dois reunidos desesperam-no. E atingimos o ponto crucial — o do desespero pascoalino — um desespero vivo, real, absorvente mas que nada espera: o desespero sem esperança, o inverso do pauliniano: o seu maior inimigo. O desespero pascoalino salva-se na desesperança: é trágico e contraditório. A bipolaridade na unidade, eis o sentido deste livro, ou o aspecto mais significativo da mensagem de Pascoaes. Há dois caminhos? Não. Há o mesmo homem que tem de percorrer, ao mesmo tempo, dois caminhos que se opõem.» Não sei se será legítimo pôr o problema deste modo. Muitas vezes sugestionámo-nos com as próprias palavras e julgamos ter encontrado uma chave onde está apenas uma gazua. No entanto esta ideia da unidade ambivalente ou da bipolaridade na unidade parece-me aceitável e merecedora de exploração, isto é, de mais carne.

O esboço da crítica a Duplo Passeio demonstra o esforço feito por Ilídio Sardoeira para compreender a obra. Cinco meses depois, este esforço continua patente noutra carta, na qual Ilídio Sardoeira faz referência à seguinte crítica, publicada na revista Brotéria (Maurício, 1942: 466-467) a 5 de Novembro: Não é fácil a tarefa de criticar um livro de Teixeira de Pascoaes. A originalidade de imagens, a insistência do paradoxo, a mistura em cocktail do divino e do humano, do sério e do burlesco, de angelismo e satanismo, de alor poético e de bestialidade bronca, de lodo vil e de poeira astral, de seriedade 20

académica e de banalidade funambulesca, dentro do mais ousado imprevisto, cortam todo o fio condutor e de síntese compreensiva. Neste volume, o poeta, levado amigavelmente por certa manhã de Julho de 1937 a fazer de automóvel o circuito Amarante, Vila Real, Chaves, Lanhoso, Fafe, Amarante, descreve impressionisticamente esse passeio. É a primeira parte. Não se busque nela a simples reconstituição descritiva da paisagem, dos homens e dos factos cristalizados nos monumentos, à maneira de Ramalho Ortigão. Teixeira de Pascoaes, quando descreve, é uma imaginação sanguínea, pedindo à realidade sensorial que lhe faça cócegas, que a estimule na variada gama de reacções de que é susceptível. Não o preocupa a intenção de nos pôr em contacto com a realidade. Preocupa-o, simplesmente, o desejo de nos desvendar tudo o que lhe passou pela cabeça, em sugestão livre, ao atingi-la por todos os cinco sentidos sob a batuta da fantasia, a reger a orquestra das suas reminiscências. Esta primeira parte, como aliás também a segunda, lembra, por isso, um rifoneiro de imagens. Teixeira de Pascoaes não desenvolve um tema unitário, não esbate as tintas numa composição harmoniosa; dá-se ao prazer de lançar apotegmas, às vezes originalíssimos e singularmente belos, sobre as suas próprias imagens visuais ou auditivas, associando, por contacto freudiano, as mais remotas lembranças que lhe ocorrem ao espírito. No seu passeio, o poeta do Marão, ao passar por Travassos, pára diante dum cruzeiro. Uma pequenina de onze anos trava-lhe ousadamente do braço e, apontando o divino Crucificado, diz-lhe: Aquele é o Senhor. O interpelado, desde há muito, como Saulo, anda na sua estrada de Damasco. Ainda não teve a visão-relâmpago que o lançasse abaixo do corcel da sua fantasia; mas, neste momento, parece haver recebido um dos mais violentos estremeções da aproximação de Cristo. A segunda parte tem, por fundo, outro passeio dado em sonhos sob a influência do primeiro. É uma divagação descabelada, sem nexo, à margem de toda a lógica e ortodoxia, espécie de meningite após um golpe de sol ou comoção cerebral resultante do embate psíquico a que o espírito do poeta, despreocupado de Deus e da vida eterna, então foi sujeito pela pequena de Travassos. Um delírio não se critica; regista-se, quando muito, como sintoma de uma alma, que tendo reagido, por vezes tão belamente, em face do divino (págs. 61-106), em face de Jesus e da sua Igreja, também ao retornar à calma ponderação das ideias e dos factos conseguirá tomar fôlego para seguir o 21

caminho que, nestes últimos anos, a tem aproximado, a passos largos, da divina graça, mesmo nos momentos em que, inesperadamente, parece mais distante dela. O transe é conhecido, na sintomatologia psicológica da conversão.

Segue a transcrição da carta de Ilídio Sardoeira referida acima: 29-12-194216 O drama de Pascoaes é um drama sem solução e sempre se me afigura impossível reduzi-lo a palavras. É preciso criar uma concepção nova ou uma nova maneira de conceber para trabalharmos com certas ideias de Pascoaes sem lhes tirarmos o verdadeiro sentido. Creio que estas palavras estão em desacordo com uma crítica de Domingos Maurício, publicada sobre o Duplo Passeio, na Brotéria. Para D. M. o drama de Pascoaes nunca esteve tão perto do fim. Pascoaes é um caso típico da sintomatologia da conversão! Duplo Passeio é um delírio. Daí só resulta um facto: Pascoaes procura o seu relâmpago de Damasco; a criança de Travassos deu-lhe o primeiro estremeção. É-me difícil ver até que ponto D. M. tem razão. Não creio que a tenha, mas não juro também que a não tenha. Em Duplo Passeio aparecem expressões comprometedoras, ou que se prestam a várias interpretações. O sagrado coração de Jesus, o Espírito Santo, a Virgem-mãe, têm para Pascoaes valor teológico ou simplesmente lírico? Valem como símbolos poéticos à semelhança de quantos foi buscar à mitologia ou dá-lhes, digamos, substancialidade ou realidade dentro de um campo dogmático? Eis o que me parece essencial saber de Pascoaes para compreender verdadeiramente o Duplo Passeio de Pascoaes, a obra em prosa mais pessoal de Pascoaes, porque nela é Pascoaes que intervém como personagem central. Se as palavras são polivalentes, um livro só é bem compreendido quando conhecemos o valor único das palavras para o escritor. Caso contrário só há duas soluções: deformá-lo ou supô-lo.

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Cota D3/3408, consultável em microfilme: F. 5516, bobine 17. 22

Ilídio Sardoeira considerava, portanto, que Duplo Passeio era a obra mais pessoal do escritor. Parece ser esta a opinião de António Cândido Franco, que escreveu que «não se pode saber quem foi Teixeira de Pascoaes sem se saber de cor os parágrafos do Duplo Passeio.» (Franco, 2006: 47). Efectivamente, por ser um relato na primeira pessoa, que convida o leitor a vislumbrar episódios da vida pessoal do escritor (a atmosfera da casa de Pascoaes, a dinâmica dos seus habitantes com alguns visitantes habituais, a reflexão filosófica que se seguiu a um passeio de lazer), este livro destaca-se dos restantes e é particularmente interessante para quem pretenda conhecer melhor Teixeira de Pascoaes. Ainda acerca desta obra, António Cândido Franco (Introdução, Thelen, 1997: 25-26) escreveu o seguinte: O livro que melhor desenvolve, e num quadro de experiência religiosa pessoal, a relação de grau que se estabelece entre a incerteza física e a incerteza metafísica é Duplo Passeio (1942), talvez o livro mais importante da literatura portuguesa do século xx e decerto o mais importante, mas não o mais conhecido ou em vias de o ser, de Pascoaes. A incerteza aparece aí, no devaneio acordado do narrador[...], como o fulcro de uma teoria geral do conhecimento humano, com disseminadas, mas bem reconhecíveis, alusões ao princípio da indeterminação de Heisenberg, e que, ao nível da crença ou descrença religiosas, leva à formulação de um ateísmo teísta, que é a logofania central do Pascoaes desse tempo. O ateoteísmo parece ser, no plano do comportamento religioso, aquilo que, no plano físico da matéria, o átomo era, quer dizer, um afirmativo negativo, um insubstancial substancial, um corpo alma (um corpo sem corpo) ou ainda uma saudade divina que é saudade de nada.

Apesar destas opiniões, e do facto de Pascoaes considerar, como já vimos, que este era o seu livro mais religioso, esta obra não é das mais conhecidas do escritor amarantino. A prosa de Pascoaes não foi bem recebida em Portugal, ao contrário do que se passou fora do país, como se fazia notar no Jornal Flor do Tâmega (n.º 2:781, 5 de Maio de 1942), que publicou o seguinte artigo acerca de Teixeira de Pascoaes, assinado «Um Amarantino»:

23

É necessário possuir altas qualidades de crítico para atinar com o valor deste ser faminto de Deus e, por isso, fugido à lei por assombrosos caminhos que deixam em farrapos as carnes e a própria alma daqueles que pretendem segui-lo: é que só nus poderão tocar a sua obra, isenta de pecado, por tudo nela derivar dum sério movimento interior a irmanar toda a criação no mesmo drama. Para penetrar no íntimo deste grande Poeta, para o ver tal qual ele é, não basta levar nas mãos o facho da crítica bem aceso: é necessário, indispensável, ser dotado de sensibilidade aparentada da sua e sentir um bocadinho da fome do Poeta, ou não verá nunca a exaltação desta alma, no que vai além do seu verbo. Potente e complexa mentalidade que, depois de encerrar um maravilhoso ciclo poético, abre outro em prosa de curva ainda ignorada, porque nem se repete nem tão-pouco desfalece em nada, força inesgotável na expressão e no pensamento. Este grande Poeta, que tanto dá que falar lá fora, reduz ao silêncio os nossos críticos, incapazes ou intoleráveis na sua inveja. No estrangeiro não: para além da fronteira lusa, olhares agudos e de alcance comparam-no aos maiores génios e lêem-no tão comovidos como se assistissem ao aparecimento inesperado duma nova estrela: e é realmente uma nova estrela que brilha alto de mais sobre nós. Ainda há pouco, na Holanda foi um alvoroço com o S. Paulo. Foi-o também com o S. Jerónimo e o mesmo sucederá ao seu Napoleão que me dizem estar prestes a sair. Em Portugal, este homem extraordinário passa quase despercebido, mesmo depois de verem o seu triunfo no estrangeiro, onde o querem, e admiram a sua obra vasta e universal. Homens dementados pela vaidade e outros reduzidos à miséria pela inveja dizem simplesmente «ali vai o mimoso poeta»; ou: «ali vai o escritor de maior valor entre os nossos contemporâneos.» Isto não é estupidez: é maldade — por inveja. Porque se é incapacidade, que abram pelo menos a boca ao vê-lo passar. É o que eu faço e sinto-me bem ao deixar sair por ela toda a minha muda admiração, expressiva e simpática forma de render homenagem aos grandes, quando não há forças para mais. Não posso sobretudo com o «mimoso Poeta» que sai da boca ou pena como pedra atirada maldosamente ao viandante. Não é «mimoso» o acto de criar, senhores, mas drama íntimo e profundo. Foi esta expressão insignificante que encontraram certos amigos, travados não sei porquê, para definir o homem cuja obra é bela e 24

original, cheia de força criadora. Quantas afirmações nela feitas que só mais tarde a ciência reconheceu verdadeiras! Ao menos adivinhai nele, por instinto, a novidade cheia de saudável beleza a dar-nos frutos que caem suculentos e duma altíssima inspiração poética[...] M. Thelen, longe de nós, pressentiu o génio e deu-o a ler aos povos nórdicos que o cobrem de aplausos; nós lemo-lo e calamo-lo criminosamente ou chamamos «mimoso» Poeta a quem é grande sem nunca ter sido «mimoso», antes doloroso, por dolorosa ser toda a obra do Poeta. Ainda não chegou a sua geração, aquela que melhor o entenderá. E ai daquele que nasce com ela. O drama deste profundo pensador, a querer penetrar o mistério de Deus, está-lhe bem gravado na fisionomia. Quem o não vê? E quem considera este acto grave e sério da sua vida? Por isso a obra deste Poeta eleito é a mais alta afirmação espiritual dos últimos séculos, mas que ninguém quer ver, parados no dogma17, ou errados no materialismo do tempo.

Mais uma vez, aqui transparece o silêncio geral em Portugal perante a obra de Pascoaes. O facto de este artigo elogioso ter sido publicado na primeira página de um jornal numa época em que a obra de Pascoaes era geralmente ignorada não é de estranhar, uma vez que se trata do Flor do Tâmega, um jornal de Amarante, a que Ilídio Sardoeira se referiu na carta acima citada como «folha restrita ou da família». Foi este jornal (n.º 437, 21 e Abril de 1895) que deu a conhecer os primeiros versos de Pascoaes na sua juventude, já sob o pseudónimo Teixeira de Pascoaes (Coelho, 1970: 62). No entanto, parece estranho o facto de o seu autor não dar a cara e de o artigo estar assinado «Um Amarantino». 2.2. Tradução Duplo Passeio foi traduzido por Albert Vigoleis Thelen (1903-1989), escritor alemão que viria a ser distinguido em 1954 com o Prémio Theodor Fontane, prémio de literatura de Berlim, pelo romance Die Insel des zweiten Gesichts (não traduzido para 17

No jornal lê-se «parados dogma» em vez de «parados no dogma». 25

português). Ele e a mulher, Beatrice, que em 1931 tinham decidido abandonar a Alemanha por causa da instabilidade económica e política, viveram em Portugal quase oito anos, de 1939 a 1947 (Caeiro, 1990: 7). O casal encontrava-se em Portugal na altura em que Pascoaes escreveu e publicou Duplo Passeio. Beatrice foi muito mais do que a mulher do tradutor de Pascoaes. Numa carta de 5 de Outubro de 1942, Thelen escreve: «Já estou esgotado. Que tristeza de não poder trabalhar. Felizmente a Beatrice anda a traduzir a primeira versão do Napoleão, agarrada ao trabalho nas horas livres.»

Daqui podemos concluir que Beatrice teve um papel importante em pelo menos este trabalho do marido. Beatrice era muito dotada no domínio de línguas estrangeiras, deu lições particulares, fez traduções e trabalhos dactilográficos, assim como Albert Thelen (Caeiro, 1990: 10). Pascoaes manteve sempre contacto com o casal e dedicou O Empecido, publicado em 1950, «À Beatrice e ao Albert Thelen». Até à data, salvo erro, a única informação que possuíamos acerca da publicação da tradução alemã de Duplo Passeio, Der Christus von Travassos, era a seguinte: em 1950 Thelen «ultima a tradução alemã de Duplo Passeio[...] que será publicada, um ano depois, ao que parece em folhetins, numa revista protestante de Berlim oriental» (Franco, «Introdução», Thelen, 1997: 43). Ao pesquisar sobre este assunto, consegui apurar mais alguns dados. Foi leiloado em Outubro de 2013 um duplicado a papel químico do dactiloescrito da tradução alemã de Albert Thelen, de 176 folhas numeradas (Figura 1). No catálogo da leiloeira Hauff & Auvermann é indicado que se trata da segunda versão da tradução inédita. No entanto, Der Christus von Travassos foi publicado em 1952 na revista Unterwegs, como atesta o fascículo 6 do ano 6, colocado à venda na Booklooker a 19 de Fevereiro de 2014 (Figura 2). Este fascículo, de 62 páginas, sobretudo tendo em conta que inclui mais cinco artigos, não pode conter a tradução completa da narrativa. Não consegui apurar em quantos fascículos foi publicada, ou se o foi na íntegra. É possível que se tratasse de uma versão diferente da do dactiloescrito leiloado em 2013.

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Figura 1

Figura 2

A correspondência entre Pascoaes e Thelen contém informação preciosa acerca do processo da tradução. Apresento de seguida alguns excertos, por ordem cronológica, de algumas cartas. Muitas, aquelas que se encontram presentemente em Amarante, foram editadas por António Cândido Franco (Thelen, 1997). Indico as que não foram, que fazem parte do Esp. N63 que se encontra na BN e são consultáveis em microfilme (F.6190), com um asterisco antes da data. 14-03-47, Amesterdão Decerto vamos editar antes o Duplo Passeio. Exige menos papel, mas a razão principal é o facto que o público holandês se nega de aceitar livros sobre tiranos18. 18-03-47, Amesterdão Amanhã começamos na tradução19 do Duplo Passeio[...] Ainda estou à procura dum outro título para o Duplo Passeio. O equivalente em holandês é bastante banal. Se o Pascoaes se lembrar de qualquer outro título, mande-nos dizer, faz favor, eu ainda não encontrei nada.

18 19

Thelen refere-se a Napoleão. «começamos na tradução»: assim na carta. 27

25-03-1947, Amesterdão Como lhe escrevi a semana passada, vamos editar agora o Duplo Passeio, ou por menos intencionamos de o fazer20, mas ontem o Meulenhoff disse-me que mandou calcular a quantia de papel necessário para este livro e que, fazendo uma edição de por menos 1500 exemplares, o papel disponível para esta tradução (a verba para traduções é menos do que para obras de autores holandeses) não chega. Para evitar um novo atraso na edição dum livro seu, propus ao Meulenhoff encurtar o texto duma maneira, que não ataca o pensamento original, tirando coisas, que são mais ou menos divagações anedóticas, pouco ou nada ligadas com as ideias sobre o Cristo; por exemplo a parte do Ângelo, da mulher do Belchior, o tenente Vieira, etc., coisas, que podem ter um interesse para o leitor português ou mesmo só amarantino, mas cujo significado escapa ao leitor estrangeiro. Lembro-me que já uma vez falámos sobre isto, e o Pascoaes não disse que não. Agora, que este assunto se torna actual por motivos de ordem puramente material, queria saber se o Mestre autoriza um tal encurtamento, que eu fazia com todos os escrúpulos que uma operação tão melindrosa exige. Peço-lhe que me mande a resposta por avião, para não perdermos mais tempo.

A resposta de Pascoaes é breve e demonstra total confiança no amigo e tradutor: *31-03-1947, Amarante À pressa. Sim, senhor. Faça a poda como entender ao Duplo Passeio. Escreverei com vagar amanhã. 29-10-1947, Amesterdão Os editores sofrem muito com as novas restrições de papel, de modo que o Duplo Passeio não vai sair este ano[...] Consegui também que o Meulenhoff publique o Napoleão antes do Duplo Passeio, respeitando assim a sequência em que os livros foram escritos. 20-12-1948, Amesterdão A tal carta, que o Pascoaes me mandou pelo Eduardo, deu-me uma grande alegria[...] É dum pastor protestante de Berlim e conta mais ou menos o seguinte.

20

«intencionamos de o fazer»: assim na carta. 28

Já em plena guerra, em 1942, o pastor de nome Zimmermann encontrou por acaso um exemplar da edição alemã do São Jerónimo. O homem leu-o e ficou entusiasmadíssimo com a obra[...] Durante a guerra este sacerdote pertencia ao movimento clandestino de resistência contra o nazismo e como tal juntou-se sempre nas catacumbas e bunkers de Berlim com outros homens da igreja e amigos. Nestas reuniões o pastor costumava ler passagens do São Jerónimo[...] E ainda hoje, continua ele, costumam unir-se amigos em casa dele, onde ele fala-lhes do Pascoaes e lê páginas do seu livro. Disse, que a luta para a palavra de Cristo continua não subterraneamente, mas já em plena luz do dia, uma luta que exteriormente se caracteriza pelas divergências entre o Oeste e o leste. E agora vem o pedido dele: tem uma revista religiosa e quer um artigo meu sobre o Pascoaes e se for possível um trabalho do próprio Mestre. Já lhe respondi, dizendo-lhe que enquanto a mim, pode contar com a minha colaboração[...] Enquanto a um trabalho original do Pascoaes, não sei que dizer-lhe. O Mestre terá qualquer coisa? Terá qualquer coisa que seria apto para a revista? O homem fala dum ensaio, dum conto, ou passagens ou fragmentos duma obra maior. Se o Pascoaes não tiver nada disponível, vou-lhe mandar as páginas mais essenciais do Duplo Passeio, com uma introdução minha.

Thelen refere-se a Wolf-Dieter Zimmermann, editor da Unterwegs, revista de política e religião publicada entre 1947 e 1954 pelo grupo cristão Unterwegs (cuja tradução literal é «na estrada»). A resposta de Teixeira de Pascoaes não tarda: *03-01-1949, S. João de Gatão Será melhor o Thelen enviar ao Zimmermann um trecho do Duplo Passeio, que é o meu livro mais religioso; e trata-se duma revista religiosa.

Na carta seguinte é mencionado o título da tradução alemã, Der Christus von Travassos. Os dados que possuímos não nos permitem concluir se o título da tradução foi escolhido por Albert Vigoleis Thelen ou por Teixeira de Pascoaes: *23-07-1949, Praia de Valadares Que é feito do teólogo berlinense Zimmermann? Sempre lhe mandou, para a revista, um trecho do Duplo Passeio ou do Cristo de Travassos?

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Passados meses, a tradução ainda não está completa. Ficamos sem perceber se Thelen chegou a enviar um trecho da obra a Zimmermann: *13-03-1950, Amesterdão O Zimmermann de Berlim também não percebe nada o que se está passando. A nossa relação se esfriou um pouco. Faz mais de um ano que lhe prometo o texto íntegro de Duplo Passeio para a revista dele. Só a metade está pronta a estas horas.

Sabemos apenas que Thelen prometeu enviar a Zimmermann o texto integral, mas que em Março de 1950 apenas concluíra metade da tradução. O facto de ter outros trabalhos impedia Thelen de se dedicar exclusivamente à obra de Pascoaes, como podemos ver em seguida: 2-10-1950, Amesterdão A verdade é que os meus queahaceres não me dão tempo para me dedicar exclusivamente à sua obra, coisa que me entristece[...] Ainda hoje recebi uma carta muito amável do Teólogo Zimmermann de Berlim a perguntar pelo manuscrito do Duplo Passeio. É-me doloroso, claro, de lhe ter que escrever que outros trabalhos literários dos mais reles me impedem de acabar a tradução.

Na seguinte carta para a Emissora Nacional, Albert Thelen dá conta de a publicação da tradução holandesa estar prevista para 1951. *21-10-1950 De Thelen para Emissora Nacional (Lisboa) É o quarto livro21 deste autor que a casa Meulenhoff edita, sendo a revolucionária biografia de S. Paulo o primeiro que lancei aqui (e na Suíça) e cuja 4.ª edição saída faz meio ano é ainda discutidíssima. Os outros são o São Jerónimo e o Verbo escuro. No ano vindouro sairá o Duplo Passeio com o título O Cristo de Travassos, roubando deste modo esta terra portuguesa esquecida à obscuridade. 6-12-1950, Amesterdão Este Passeio (ando de novo a trabalhar nesta tradução) fica cada vez mais à parte como uma espécie de «união mística» dentro das suas retentativas de 21

Referência a Napoleão. 30

ultrapassar a realidade. Muito para compreender-lhe me ajuda ultimamente a leitura de Santa Teresa!

Em Dezembro de 1950, Thelen estava a trabalhar novamente nesta tradução. Em Fevereiro de 1951, dá conta do seguinte: 17-02-1951, Amesterdão O pastor Zimmermann de Berlim está a ler, finalmente, o Duplo Passeio. Custou-me de acabar este livro em meio de tanta chatice da vida, oposta à tranquilidade de espírito que eu preciso para poder dedicar às suas obras.

Na correspondência entre Thelen e Pascoaes a que tivemos acesso, não há mais referência a Duplo Passeio. Pascoaes morre quase dois anos depois, a 14 de Dezembro de 1952. No final de uma carta para Maria José, sobrinha de Pascoaes, com quem continuou a corresponder-se após a morte do escritor, Thelen escreve que a publicação da tradução holandesa não estava assegurada: *25-02-1953 Importante: ainda não é certo que o Meulenhoff edita o Duplo Passeio. Hesita outra vez, visto que a 4.ª ed. do Paulus e a ed. do Nap. foi22 um fracasso rotundo. Acrescenta-se a nova dificuldade criado23 com as inundações que tornam a vida caríssima, ninguém compra livros, etc. Mas eu nem quero continuar de24 negociar com ele antes de ter esclarecido a minha situação deante do herdeiro, e disse-o ao Meulenhoff, que é muito prudente. Não quero lios25. De modo26, achas que me podes conseguir um papel do João filho declarando que não mudou nada na minha posição relativo27 às ed. hol. e germânicas que faço, sendo tudo como em tempos da vida do autor?

Quando escreve que «a 4.ª ed. do Paulus[...] foi um fracasso rotundo», Albert Thelen parece contradizer-se com o que escreveu na carta para a Emissora Nacional

22

«foi»: erro por «foram». No dactiloescrito, «difficukdade creado». 24 «continuar de»: assim no dactiloescrito. 25 «lios»: assim no dactiloescrito. 26 «De modo,»: assim no dactiloescito. 27 «posição relativo»: assim no dactiloescrito. 23

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em Outubro de 1950: «sendo a revolucionária biografia de S. Paulo o primeiro que lancei aqui (e na Suíça) e cuja 4.ª edição saída faz meio ano é ainda discutidíssima.» Em conclusão, a tradução de Duplo Passeio demorou cerca de cinco anos devido a motivos como o preço do papel e a crise económica, a indecisão relativamente à ordem de publicação das obras de Pascoaes e ao facto de Albert Vigoleis Thelen estar a fazer outros trabalhos simultaneamente. Aparentemente, além de todos estes motivos, parece ter pesado o facto de as biografias terem sido um fracasso de vendas, pelo menos a 4.ª edição de São Paulo e a primeira edição de Napoleão. Isto leva a ponderar se a recepção de Pascoaes, pelo menos na Holanda, terá sido tão boa como se diz. A tradução holandesa de Duplo Passeio nunca chegou a ser publicada e a tradução alemã foi publicada, possivelmente incompleta, em folhetins.

3. Os Manuscritos: Descrição Material Para distinguir os manuscritos, passarei daqui em diante a denominá-los Manuscrito A, B, C e D, segundo a sua ordenação cronológica. Ao dossier genético pertencem ainda pelo menos três outras peças importantes para o estudo genético do texto, duas das quais se perderam. Uma é o dactiloescrito apógrafo de Beatrice Thelen (ver capítulo 3.3.1), que terá servido de original de imprensa e sobre o qual possivelmente houve uma revisão do autor — todos os elementos do espólio de Pascoaes contêm emendas, o que nos leva a concluir que este elemento não seria diferente. Outra seriam as provas tipográficas revistas pelo autor. A terceira, essa sim, sobrevivente, é a primeira edição, impressa pela Tipografia Civilização, que contém variantes significativas, certamente autorais e não decorrentes do trabalho do tipógrafo, relativamente ao Manuscrito D (ver seriação dos testemunhos no capítulo 4).

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3.1. Manuscrito A 3.1.1. Localização e História Este manuscrito pertence ao espólio adquirido pela Câmara Municipal de Amarante. Era, até ao momento, totalmente desconhecido. Identifico-o, portanto, pela primeira vez. A consulta das bobines 38 e 39, que incluem microfilmes de «fragmentos de prosa esparsa», permitiu-me encontrar quatro folhas deste testemunho, sem data e sem nome. A sua identificação foi feita apenas com base no texto. Há duas folhas em [Prosa XIII], D3/5050, conjunto descrito no inventário como «1921?-1923; s. l.; 52f.; aut. Nota: Inclui notas bibliográficas de santos, prováveis fragmentos de "Penitente", de "Dr. Fulano", e de "O bem e o mal" e um estudo sobre Raul Brandão», e duas folhas em [Prosa VII], D3/5044, cuja descrição no inventário é «s. d.; s. l; 44 f.; aut. Nota: Suporte: caderno com folhas em branco; inclui provável estudo para uma peça de teatro». Em D3/5044 também foi possível identificar um conjunto de dez folhas de um caderno pautado com fragmentos de A Beira Num Relâmpago, uma folha com notas acerca de Napoleão e uma folha, com o número 52 no canto superior direito, de S. Paulo. Identifiquei ainda, em D3/4793, quatro folhas de diferentes características com notas sobre Napoleão, uma das quais com a indicação de páginas em que ocorrem repetições, interessantes para o estudo genético dessa obra. Do Manuscrito A apenas foi possível identificar quatro folhas, escritas em ambos os lados, mas é provável que tenham sobrevivido mais. A minha pesquisa nos microfilmes do espólio, com o objectivo de encontrar mais folhas, foi infrutífera. A foliação, de 4 a 7, permite concluir que se perderam — ou que ainda não foram encontradas — pelo menos as três primeiras folhas. Os dados que existem não permitem depreender se existiam fólios para além do sétimo, uma vez que a última frase deste está completa. Não é de descartar a hipótese de este manuscrito apenas ter tido sete fólios. Pode ter constituído um primeiro ensaio de texto, imediatamente substituído por uma nova versão.

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Duas das folhas estão dentro de uma folha dobrada que forma uma pasta de 343 x 225 mm, com um carimbo vermelho no canto superior esquerdo onde se pode ler «BIBLIOTECA NACIONAL ESPÓLIOS» e a cota a grafite. A meio da pasta, também a grafite, está escrito «2 f.». Por sua vez, esta pasta está guardada dentro de outra semelhante, mas de maiores dimensões: 420 x 307 mm, também com o carimbo vermelho da BN no canto superior esquerdo com a cota a grafite, e «[Prosa XIII]/[Textos]» a grafite, a meio da pasta. A cota atribuída na BN ao conjunto em que estas folhas estão integradas, [Prosa XIII], é D3/5050, consultável na BN em microfilme (F. R. 133, bobine 39). Duas das folhas estão guardadas dentro de três pastas, que descrevo em seguida de fora para dentro: a primeira, de 420 x 307 mm, tem o carimbo vermelho da BN, no canto superior esquerdo, com a cota a grafite, e, a grafite: «[Prosa VII]/[Textos]/44 f»; a segunda é semelhante à primeira, com o mesmo carimbo no canto superior esquerdo com a cota, e escrito a grafite «27 f.»; a terceira, coeva de Pascoaes, é uma capa de livro em cartão grosso, de lombada castanha e forrada a papel muito degradado, possivelmente marmoreado, de 197 x 131 mm, com um poema na guarda final. A cota atribuída na BN ao conjunto em que estas folhas estão integradas, [Prosa VII], é D3/5044, consultável na BN em microfilme (F. R. 133, bobine 38). 3.1.2. Suporte Os fólios 4 e 5 são folhas de papel muito fino, sem marca de água, de 217 x 137 mm, de cantos arredondados, pautadas com uma linha cinza azulado seguida de duas linhas vermelhas próximas (uma grossa e uma fina), e de novo cinza azulado, 32 linhas. Cada folha tem 3 furos para dossier: o fólio 4 do lado esquerdo e o fólio 5 do lado direito. Existem folhas iguais a estas, com ou sem os furos, em D3/4743 (duas), D3/4793 (duas e uma metade), D3/5044 (três), D3/5045 (uma) e D3/5046 (uma). Os fólios 6 e 7 estão escritos em duas folhas lisas, de 227 x 145 mm, de papel grosso (almaço?) com marca de água: um animal de quatro patas, de pé, aparentemente um buldogue, com a cabeça virada para o lado direito, e ainda as palavras «Extra Strong». A distância entre as pontusais é 24 mm, e as vergaturas distam 1 mm.

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É possível que se trate de um papel importado dos Estados Unidos. Embora não tenha sido possível obter imagens da marca de água para confrontá-la com a da folha de Pascoaes, a hipótese é sustentada pelo facto de apenas se encontrar referência a uma marca de água representando um buldogue na produção da Western Pennsylvania Paper Co., Pittsburgh (Watermarks and Brands Used in the American Paper Trade, 1909: 12), para 1910. Não foi possível saber se a marca de água continuou a ser usada nas décadas seguintes, mas é bem possível que, para este primeiro ensaio de escrita do Duplo Passeio, Pascoaes tenha usado folhas mais antigas, sobrantes de trabalhos anteriores. Pascoaes parece ter utilizado o papel que tinha à sua disposição, sem se preocupar com a uniformidade quando fazia anotações ou rascunhos. Exemplo disto é um conjunto de folhas paginadas sequencialmente, em D3/5044, que inclui duas folhas pautadas iguais às dos fólios 4 e 5, mas sem os furos para dossier. 3.1.2.1. Acidentes do Suporte O papel encontra-se bastante amarelecido. O primeiro e o último furo do fólio 4 apresentam um rasgão que vai até ao bordo; além disso, o primeiro furo também tem um rasgão para o interior da página. Existem diversas manchas acastanhadas, concentradas sobretudo a meio da margem superior do verso do fólio 4, cuja excisão no canto superior esquerdo afecta a legibilidade do texto. Os restantes acidentes do suporte não comprometem a legibilidade do texto. O fólio 6 apresenta uma pequena excisão, talvez causada por insectos, no canto inferior direito. Uma mancha no fólio 7, em baixo, que não penetrou os poros do papel, sugere que a página tenha sido pisada. Em 6v e 7v as margens inferiores apresentam manchas de humidade. 3.1.3. Escrita As linhas escritas dos fólios 4 e 5 (28, 29, 30 e 30) não correspondem às linhas pautadas, ou seja, Pascoaes ignorou as linhas e escreveu como se estivesse a utilizar folhas lisas. Os parágrafos são alinhados à esquerda e não são deixadas margens laterais. O texto foi escrito a grafite, com algumas partes a tinta preta. A numeração dos fólios, a grafite, é feita no canto superior esquerdo, o que é singular. Não 35

encontrei outros exemplos noutros manuscritos do escritor. Existem traços verticais a meio das páginas: no fólio 4 a vermelho, no verso do fólio 4 a preto e no fólio 5, até meio, igualmente a preto. Não existem traços verticais na metade inferior do fólio 5 nem no seu verso. Os traços no recto do fólio 6 são metade preto e metade grafite, em 6v são pretos e em 7 e 7v são vermelhos. Há presença de mão alógrafa, a grafite, as cotas atribuídas na BN, no canto superior direito dos versos dos fólios 4, 5, e 7, e no canto superior direito do recto do fólio. Neste testemunho, a haver divisão por capítulos, trata-se de uma divisão diferente, porque nenhuma destas folhas contém numeração de capítulos e o seu texto corresponde ao fim do capítulo

I

e ao início do capítulo

II

dos restantes

manuscritos, mais precisamente aos fólios 5v a 13 do Manuscrito B (16 páginas), aos fólios 8v a 18 do Manuscrito C (20 páginas) e às páginas 16 a 29 do Manuscrito D (14 páginas). Quanto à primeira edição, o texto deste testemunho encontra correspondência com as páginas 21 a 35 (14 páginas). O início do fólio 4 trata do ponto em que Ângelo César acaba de chegar de automóvel ao terreiro da casa de Pascoaes e António Duarte não encontra o seu chapéu. O fólio 7 termina quando os amigos chegam ao alto de Espinho. 3.2. Manuscrito B 3.2.1. Localização e História Este manuscrito encontra-se em Amarante, como já foi referido. Está dentro de uma folha de papel dobrada a meio com um carimbo a vermelho no canto superior esquerdo, «BIBLIOTECA NACIONAL ESPÓLIOS», e com «Um Passeio/I/ver: Duplo Passeio» a meio, a mão alógrafa, a grafite. No inventário da BN consta o seguinte: «Um Passeio [I]/1940; Gatão; 105, 1 f.; aut./Nota: As primeiras 8 folhas incluem fragmentos sobre "Napoleão"/paginadas de 1 a 6 e com a data de 1935; inclui tb. desenhos e um poema; incompleto.» A cota atribuída na BN é D3/4969. O manuscrito é consultável na BN em microfilme (F. R. 133, bobine 26).

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3.2.2. Suporte O suporte de B é um livro do tipo livro de contabilidade, de folhas pautadas. Possui uma capa de cartão duro forrada com papel com relevo zebrado (fundo preto com relevos verdes), e a lombada e os cantos em tecido bege, macio. A capa mede 220 x 172 mm e a espessura da lombada é de 37 mm. A guarda externa é em papel pardo, grosso, em dois tons de verde seco acinzentado. A guarda interna é branca e lisa e possui marca de água. As folhas, de 212 x 165 mm, são pautadas a azul (23 linhas), com 8 mm entre as linhas, a margem superior de 29 mm e a margem inferior de 11 mm. A marca de água é igual à das guardas internas: a palavra Emege (leitura incerta) com cerca de 170 mm de comprimento e um símbolo arredondado, incompleto devido ao corte da folha, que parece conter no interior letras entrelaçadas. Não foi possível identificar a origem desta marca de água. Não há pontusais nem vergaturas. O livro possui 11 cadernos, cada um deles constituído por cinco bifólios. O primeiro fólio do primeiro caderno encontra-se entre a capa do livro e a guarda externa, de papel pardo. A guarda interna está colada à guarda externa e une-se ao primeiro fólio do segundo bifólio por uma tira de cola. Só restam quatro fólios do 11.º caderno. As folhas restantes foram arrancadas, como se pode depreender das metades dos bifólios que sobraram. Se pensarmos que o caderno 11 era o último, como parece ser o caso, faltam cinco fólios, visto que o último fólio do último caderno, tal como o primeiro fólio do primeiro caderno, estaria entre a capa e a guarda externa. O facto de estas folhas faltarem pode indiciar que terão sido arrancadas e deitadas fora por existir algum descontentamento com o seu conteúdo. Existe outra possibilidade, a de as últimas folhas do livro terem sido arrancadas por não pertencerem a Duplo Passeio, e de o resto da narrativa ter sido escrito em folhas soltas, que se terão perdido entretanto. Por vezes Pascoaes escrevia acerca de um assunto diferente no fim de um bloco de notas, invertendo-o. É o caso dos manuscritos de O Bailado [III] (D3/4895) e de O Pobre tôlo: (elegia satirica) (M-SER-1296), que contém o rascunho de uma carta no final, que se encontra na Biblioteca Pública Municipal do Porto, e pode ter sido o que se passou aqui.

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3.2.2.1. Acidentes do Suporte O estado geral de conservação é bom. A etiqueta da capa apresenta-se muito escurecida. Ao longo do livro há muitas manchas acastanhadas causadas pela humidade. Algumas páginas apresentam manchas castanhas que aparentam ter sido causadas por pingos ou salpicos de café: verso do fólio 57, verso do fólio 70, recto do fólio 76 e recto do fólio 91. Pelo menos 29 páginas foram manchadas pela tinta da foliação da página ao lado. Os borrões de tinta, quer preta quer vermelha, são algo frequentes. Há também várias manchas que parecem ter sido causadas por pingos de água. Os acidentes do suporte comprometem a leitura no recto do fólio 20 (palavras esborratadas na emenda a vermelho na margem inferior), no verso do fólio 49 (palavras esborratadas na linha 5), recto do fólio 71 (borrões de tinta), recto do fólio 81 (emenda a vermelho esborratada na sobrelinha 5) e no verso do fólio 84 (palavras esborratadas). De salientar que sobre o recto do fólio 34 foi entornada tinta preta, que terá escorrido por essa página na parte interna do caderno, formando um grande borrão no canto superior esquerdo, o que torna parte do texto ilegível. 3.2.3. Escrita Na capa do livro está colada uma etiqueta em forma de rectângulo octogonal com uma sequência de riscas de larguras diferentes, cujas cores, de fora para dentro, são as seguintes: vermelho, branco, preto, verde seco, preto, vermelho, verde seco, verde seco claro, verde seco. O interior da etiqueta é branco e nela pode ler-se, a tinta vermelha e cancelado a preto, «Napoleão». Em baixo está uma sequência de palavras ilegíveis escritas e canceladas a preto, seguidas de «A cheia» e da assinatura do autor, a preto. Tal como consta no inventário da BN, as primeiras folhas deste livro (desde a folha de guarda branca inicial até ao fólio 6, inclusive) incluem notas e desenhos sobre Napoleão. Esta biografia foi publicada em 1940. É natural, portanto, que Pascoaes tivesse este livro à mão neste ano e, como estava quase todo em branco, o tivesse aproveitado para escrever uma nova obra. No recto do fólio 1 Pascoaes escreveu «5 dez — 935», que deverá corresponder à data dos escritos neste livro acerca de 38

Napoleão, e que servirá para datar o início da génese de Napoleão, uma vez que as notas e desenhos aqui inscritos poderão constituir, pela sua natureza, as primeiras etapas da sua fase redaccional, anteriores à textualização da obra. Os fólios tinham sido numerados por Pascoaes, no canto superior direito, a esferográfica preta, até ao 76. Após os apontamentos acerca de Napoleão, quando começa a escrever uma nova obra28, o escritor altera a numeração dos fólios, escrevendo-a por cima da anterior, de modo a que os fólios 1 a 70 passam a ser 7 a 76. A nova numeração, até ao fim do livro, já não está a esferográfica, mas a tinta permanente de cor preta. O manuscrito B está incompleto, terminando no fólio 97, interrompendo a narrativa poucas linhas após o narrador despertar do seu sonho. A escrita segue as linhas. Os parágrafos são alinhados à esquerda e não são deixadas margens laterais. É usada sobretudo tinta preta, mas também vermelha e, menos vezes, em contexto de emendas ou anotações, lápis vermelho, roxo, verde e grafite. A caneta vermelha foi utilizada na linha pelo menos 20 vezes. Os traços verticais a meio de todas as páginas escritas foram feitos a lápis de cor vermelho. Por vezes, em substituição do traço vertical ou ao lado deste, aparece um «S» invertido, que talvez tenha o mesmo significado dos traços verticais, ou seja, é apenas uma forma de sinalizar transferência de texto para outro suporte, ou talvez tenha sido utilizado com um propósito diferente, que até à data não foi possível apurar. Contei 19 «S» invertidos por cima de segmentos de texto: um a lápis verde, um a lápis roxo, um a grafite e os restantes a lápis vermelho. Os fólios 15v e 18v foram deixados em branco, por se encontrarem após o fim de capítulos, isto é, Pascoaes optou por começar os capítulos no recto dos fólios. Há muitos cancelamentos e emendas, por vezes de várias linhas seguidas. No caso das emendas mediatas, com frequência as encontramos em caixas de texto nas margens, umas linhas abaixo ou mesmo em páginas mais à frente — neste caso, é possível identificar alguns locais em que o autor parou, reviu o que tinha escrito e decidiu acrescentar texto. Teixeira de Pascoaes trabalhou de modo semelhante nos restantes manuscritos desta narrativa. 28

No topo do fólio 1, Pascoaes escrevera «A cheia», nome que também consta na etiqueta da capa. Depois, tapou este título com riscos espiralados e colocou por baixo um trapézio invertido, formando o que parece uma espécie de vaso de flores. A primeira linha deste fólio continha palavras a grafite, provavelmente uma frase, que foram apagadas com borracha. 39

De referir que no fólio 51 (recto) a palavra «epilogo» foi cancelada e substituída, à frente, por «Segunda Parte», o que indica que a narrativa era para ter sido bastante mais curta. Duplo Passeio inclui a descrição de um passeio real, na primeira parte, e a descrição de um passeio sonhado, na segunda parte. Podemos concluir que Pascoaes não tinha planeado inicialmente escrever a segunda parte. O passeio sonhado só lhe terá ocorrido neste ponto em que adia a escrita do epílogo. Se atendermos a isto, o título atribuído a este mauscrito, Um Passeio, faz mais sentido. A presença da mão alógrafa decorre do inventário feito na BN e corresponde à cota atribuída nessa altura: «D3/4969», que é visível na primeira guarda marmoreada, na primeira e na última guardas brancas e nos fólios 2 (de Napoleão), 9, 14, 37, 50, 64, 74, 84, 94, 95, 96 e 97. Este manuscrito contém uma versão quase completa do texto, faltando apenas algumas páginas no final, cujo número discuto adiante. 3.2.4. Folha Solta Junto ao Manuscrito B Dentro do manuscrito B está uma folha solta dobrada ao meio horizontalmente, de 135 x 110 mm. Podemos depreender que esta folha foi arrancada de um bloco de notas espiralado, por causa do aspecto irregular, característico, que apresenta no topo. O papel, amarelecido, é de espessura média e apresenta uma trama de fibras semelhante a tecido em linho. A escrita ocupa metade de uma página. A numeração autógrafa (151, no canto superior direito) e o texto estão a tinta vermelha. Trata-se do seguinte poema: No altar da minha egreja, Nova de cal por fóra, entre velhinhas árvores E a enegrecida torre de granito Que ao desmaiar a tarde nos pinhaes, Nas aguas mortas, nos profundos vales, *Derramai29 pelo ar, em lagrimas de bronze *Uma saudade que anoitece o mundo ____________________________ 29

De acordo com a chave dos símbolos da edição genética, um asterisco antes de uma palavra corresponde a leitura conjecturada. 40

O texto está cancelado com traços grossos, a lápis de cor azul, que se cruzam na diagonal. Da utilização deste lápis resultou uma mancha azul na base inferior da página, a meio, aparentemente uma dedada. É certo que encontramos fragmentos de poesia em mais do que um testemunho de Duplo Passeio, no entanto, nenhum é tão extenso como este. Além disso, trata-se de um poema cujo conteúdo aparentemente não se relaciona com o dossier genético de Duplo Passeio. Uma vez que o Manuscrito B termina, incompleto, no fólio 97, se o poema inscrito nesta folha solta pertencesse ao texto do Duplo Passeio, o número que lhe é atribuído apontar-nos-ia para a perda de pelo menos 54 fólios. Atendamos às últimas palavras de 97v: «O sol é o deus dos passaros e de todas as almas que». Esta frase, inacabada, tem o seu equivalente no verso do fólio 116 do Manuscrito C: «O sol é o deus dos passaros e de todas as almas que tem azas.» O Manuscrito C originalmente ocupava 117 fólios, sendo que os últimos cinco fólios, de 118 a 122, foram acrescentados posteriormente. Ou seja, as últimas palavras do Manuscrito B correspondem praticamente ao fim do manuscrito C tal como ele foi primeiro concebido, isto é, antes de ter sofrido o acrescento posterior de cinco novos fólios. Se tivermos em conta que existe entre os três últimos manuscritos30 de Duplo Passeio uma grande uniformidade quanto ao número de sequências narrativas e respectiva extensão, é mais provável que faltem apenas algumas folhas a B do que falte uma grande percentagem do mesmo: isto significaria que o texto teria sofrido profundas modificações estruturais na passagem do Manuscrito B para o Manuscrito C, e que Pascoaes teria optado por eliminar deliberadamente uma grande quantidade de folhas. Não temos nenhum indício que nos aponte para esta hipótese. Consideremos as características da folha solta, pertencente a um bloco de notas com argolas no topo. Ao consultar os microfilmes de poesia do escritor, deparamo-nos com folhas semelhantes em Canticos, Cantos empedernidos [I], Cantos empedernidos [II], Cantos Indecisos [III] e Marános [VIII]. Por último, o lápis de cor azul utilizado para cancelar o texto da folha solta não está presente em nenhum dos manuscritos de Duplo Passeio. Há vestígios do seu uso,

30

O facto de o Manuscrito A estar incompleto não nos permite incluí-lo nesta afirmação. 41

por exemplo, em [Poesias] (M-SER-1297, Biblioteca Municipal do Porto, fólios 1, 7, 7v, e 8), e na primeira página das provas tipográficas de [Painel] (M-SER-1295). Tendo estes pontos todos em consideração, devemos concluir que a folha solta não faz parte deste dossier genético. O facto de se encontrar dentro do livro que constitui o Manuscrito B pode ter sido acidental ou não. Por exemplo, não é difícil imaginar Teixeira de Pascoaes a socorrer-se de um pedaço de papel que tivesse à mão como marcador de página, particularmente se esse papel já não lhe interessasse para outro fim, como parece indicar o cancelamento de todo o poema. Importaria agora saber de que poema, eventualmente já publicado, esta folha constitui um testemunho genético interessante, tarefa que caberá ao futuro editor genético da poesia de Pascoaes. 3. 3. Manuscrito C 3.3.1. Localização e História Este manuscrito foi oferecido a Beatrice Thelen em Abril de 1942, de acordo com a letra de Pascoaes na folha de guarda. Segundo consta num cartão dactiloescrito colado na contracapa do manuscrito, Este autógrafo de Teixeira de Pascoaes foi doado à Biblioteca Nacional por Mme Beatrice Thelen-Bruckner, residente em Lausanne/Vennes, que em Gatão o dactilografou em 1942; o escritor ofereceu-lhe, por isso, o original manuscrito.

O cartão está datado de 8 de Junho de 1982 e está assinado pelo director de então da Biblioteca Nacional, João Palma-Ferreira. Este testemunho encontra-se na BN e pode ser consultado em microfilme (F. 3597). É possível que a informação de que Beatrice Thelen teria dactilografado este manuscrito em 1942 não esteja completamente correcta. Acredito que o manuscrito dactilografado foi o D, e não o C. Pascoaes começou a trabalhar no Manuscrito D quase imediatamente após ter terminado o Mauscrito C. Sabendo que iria proceder a alterações no texto, não faz sentido tê-lo dado a dactilografar. Além disso, necessitava dele para trabalhar. Sabemos que em 1941 Pascoaes já começara a negociar com a editora de Duplo Passeio e que contava ver o seu livro publicado ainda nesse ano. Por 42

este motivo, não faz sentido que a obra tenha sido passada à máquina em 1942. Este não foi o ano em que a obra foi dactilografada, foi o ano em que este manuscrito foi oferecido a Beatrice Thelen, possivelmente pela altura da publicação de Duplo Passeio. Como veremos mais adiante, o Manuscrito D é composto por bifólios não encasados. É provável que este tenha sido o motivo pelo qual Pascoaes não o ofereceu a Beatrice Thelen, mas sim o Manuscrito C, escrito num livro de capa dura, mais fácil de guardar e de transportar. 3.3.2. Suporte Trata-se de um livro semelhante ao do Manuscrito B, de capa dura. Contém oito cadernos e há 10 bifólios por caderno, com excepção do quarto caderno, com nove bifólios, e do quinto caderno, com cinco bifólios, totalizando 66 folhas. O primeiro fólio do primeiro caderno e o último fólio do último caderno estão colados entre a capa do livro e a folha de guarda. A lombada mede 22 mm. A capa, de 220 x 172 mm, está forrada com um tecido de cor bordô cuja malha forma um padrão de cubos. Este tecido aparece na lombada e nos cantos. Por cima, a capa está forrada com um papel marmoreado em tons de bordô e preto. Está colada na capa uma etiqueta rectangular de 69 x 101 mm, com riscas a toda a volta (oito no total), de várias larguras, alternadamente em branco e azul-escuro. O interior da etiqueta, de 40 por 75 mm, é branco. No interior do livro, quer nas guardas quer nas páginas, a marca de água é um escudo ornamentado no interior com uma cruz da Ordem de Cristo e encimado por uma coroa. A palavra «ALMAÇO», escrita em curva, emoldura a parte inferior do escudo, e por baixo estão as iniciais «P. C», escritas a direito. Este papel foi produzido na Fábrica de Papel Porto de Cavaleiros, em Tomar. No verso da capa está colado um cartão da Biblioteca Nacional de 105 x 148 mm. Na folha de rosto podemos ver, no canto inferior direito, uma marca de posse de Beatrice Thelen: marca de carimbo circular com os nomes «vigoleis» e «beatrice» e iniciais entrelaçadas (Figura 1, pág. 26). Ainda na folha de rosto, no canto superior direito, há dois carimbos da Biblioteca Nacional: um a azul-escuro, com as palavras «BIBLIOTECA NACIONAL DE LISBOA/ SECRETARIA», e outro a vermelho, com as iniciais

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«BN», o B invertido. Também têm este carimbo os fólios 1, no canto inferior direito, e 122, no canto superior direito. As páginas, de 214 x 167 mm, têm 22 linhas azuis, com 8 mm de espaçamento entre elas. A margem superior é de aproximadamente 35 mm e a margem inferior de cerca de 12 mm (há alguma variabilidade de página para página). 3.3.2.1. Acidentes do Suporte O cartão colado no verso da capa deixou vestígios de cola a toda a volta, com alguns arrastamentos de cola na metade inferior do cartão. O papel apresenta-se bastante amarelecido, sobretudo a guarda final, que tem grandes manchas de humidade. À semelhança de B, há algumas manchas que aparentam ter sido causadas por café: no recto do fólio 11, no verso do fólio 42, no recto do fólio 46, no verso do fólio 67 e no recto do fólio 104. Há um grande rasgão a meio do fólio 63, de cima a baixo, que ocupa 10 linhas, da 3 à 13. Os acidentes do suporte não comprometem a leitura. 3.3.3. Escrita A etiqueta colada na capa indica o autor e o título (Um passeio). No verso da capa, no canto superior esquerdo, há a indicação autógrafa «Nova novela/ — Os dois —»; esta leitura difere da proposta pela BN: «Nona novela/ — Os dois —» (Duarte e Oliveira, 2007: 206). Na Figura 3 é notória a semelhança entre o n e o v de «novela»:

Figura 3 A página de rosto foi executada na primeira página da metade solta da folha de guarda: no topo, a preto, o nome do autor; a meio, a vermelho, o título Um passeio, 44

seguido da seguinte indicação, a preto: «manuscrito oferecido a madame Thelen, pelo auctor em abril de 1942/ Gatão»; no canto inferior esquerdo, a data, a vermelho: «15 fev. 1940/ 5 de julho 1940/ Gatão». Numeração autógrafa, a caneta preta, de todos os fólios com texto (canto superior direito), excepto os fólios 80, 108 e 114, a caneta vermelha, e o último (122), a lápis vermelho. Os fólios seguintes, sem texto, não estão numerados, excepto o último do caderno (145), a grafite. Não houve enganos na numeração. Como no manuscrito B, o escritor começa os parágrafos no início das linhas e não deixa margens dos lados (Figura 4). A primeira linha de um novo parágrafo apenas tem um avanço relativamente à anterior nos casos em que o parágrafo que o precede termina encostado à direita (Figura 5).

Figura 4

Figura 5 A narrativa foi escrita sobretudo a caneta de aparo com tinta preta, mas existem numerosos segmentos a caneta de tinta permanente vermelha, inclusivamente nas linhas. Pascoaes chega a começar uma frase numa cor e a acabá-la com outra, mudando mesmo de cor, por vezes, na mesma palavra (Figura 6).

Figura 6

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Creio que o escritor, após escrever várias linhas a preto, revia o texto e usava a caneta vermelha para fazer emendas, e continuava a escrever a vermelho na linha; tendo em conta a frequência com que texto desta cor aparece na linha (mais de 50 vezes), é pouco provável que isto tenha decorrido de esquecimentos de Pascoaes, embalado no processo de escrita. Parece, sim, tratar-se de algo propositado, como forma de assinalar os trechos já revistos. Não encontro, para já, outra explicação para a utilização do vermelho na linha. Foram feitos muitos cancelamentos e emendas, sobretudo com tinta preta e vermelha, mas também a lápis vermelho (em 17 páginas), verde (numa página), roxo (em apenas três fólios, sempre em cancelamentos feitos também a tinta preta) e grafite (em 12 páginas). A Figura 7 contém exemplos de formas diferentes de cancelamento: um simples traço por cima da palavra a cancelar, traços cruzados, espiralados ou em ziguezague, ou ainda um traço na diagonal da altura de uma ou mais frases. É muito raro os cancelamentos impedirem a leitura do que está escrito por baixo.

Figura 7 Em todo o manuscrito apenas há seis emendas que colidem com texto não cancelado (Figura 8): no recto do fólio 20 «entra na formação» e na sobrelinha «é que informa» («é que» cancelado), no recto do fólio 25 «sentimentos» e na sobrelinha «emoções», no recto do fólio 30 «da Amazona» e na sobrelinha «galego» (sendo que o «a» de «da» foi substituído por um «o»), no verso do fólio 34 «esse mais longe se existisse, ficaria já» e na entrelinha inferior «este mais longe se existisse, ficaria», no 46

verso do fólio 43 «este calor é a propria emoção religiosa que nasce do sofrimento ou é ele mesmo transcendentalisado» e numa caixa de texto «este calor é o proprio sofrimento feito emoção religiosa, ou transcendentalisado», e no recto do fólio 113 «entardecer» e na sobrelinha «sol-por».

Figura 8 A concentração de cinco destes seis casos em apenas 23 fólios aponta para uma destas hipóteses: Pascoaes, no intervalo de tempo em que os escrevia, estaria mais indeciso, deixando as duas variantes para mais tarde escolher a que preferia, ou uma maior velocidade na escrita e revisão destes fólios teria feito o escritor esquecer-se de fazer estes cancelamentos. Por vezes, aquilo a que chamo emendas parece ser anotações, possivelmente para uso posterior. É este o caso da única ocorrência de palavras a lápis verde, na margem superior do verso do fólio 100. Há 22 anotações (texto que não parece fazer parte da narrativa) no manuscrito, sobretudo nas margens, nos versos dos fólios 22, 23, 28, 44, 65, 69, 70, 73, 79, 80, 94, 98, 100 e 101, e nos rectos dos fólios 51, 55, 58, 70, 74, 79, 96 e 99.

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Ao longo deste manuscrito existem 20 eliminações de parágrafos. Isto ocorre de duas formas diferentes, como se pode ver nos exemplos seguintes, ambos do verso do fólio 2.

Figura 9

Figura 10 Na Figura 9 temos um exemplo de um parágrafo que foi cancelado através de um risco a todo o comprimento da página, começando no início do parágrafo a eliminar, continuando na sobrelinha e subindo finalmente até à linha anterior. Há 8 ocorrências deste tipo: nos rectos dos fólios 7 e 57, e nos versos dos fólios 2, 3, 4, 26, 69 e 103. A Figura 10 exemplifica o segundo tipo de eliminação de parágrafo: as primeiras palavras do parágrafo a eliminar foram canceladas e foi adicionado texto de forma a fazer-se uma ligação com o parágrafo anterior. Há 12 ocorrências destas: nos rectos dos fólios 47, 52, 61, 63, 80 e 95, e nos versos dos fólios 2, 25, 36, 38, 65 e 66. Neste manuscrito são bastante menos frequentes as aberturas de novo parágrafo: apenas três, nos rectos dos fólios 31 e 39 e no verso do fólio 114. Para tal, Pascoaes fazia um traço de chamada no local pretendido e escrevia «novo §», como se pode constatar na Figura 11. Este exemplo, na sobrelinha, é do recto do fólio 31. No recto do fólio 39 o traço de chamada vai até à margem superior, e no verso do fólio 114 vai até duas linhas acima, aproveitando um espaço disponível nessa página.

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Figura 11 Os capítulos, em numeração romana, estão assinalados a caneta vermelha ou preta: I, IV e V da primeira parte e I da segunda parte, a preto; II e III da primeira parte, II, III, IV e V da segunda parte, a vermelho. O uso de uma cor ou de outra parece ter sido aleatório, mas é possível que para o escritor tenha tido algum significado. De salientar que o autor mudou de ideias acerca do início dos capítulos II e III da segunda parte, cancelando os números a lápis vermelho e reescrevendo-os, com o mesmo lápis, duas páginas antes (II) ou na página anterior (III). Teixeira de Pascoaes terminou a narrativa na primeira página do fólio 117. O verso desse fólio está vazio mas, decorrendo de nova revisão, o autor começou a fazer emendas no fólio 118, onde escreveu na primeira linha: «Para o meio da pagina 109, verso». No fólio 122 recto acrescentou um epílogo de 12 linhas, a tinta vermelha, com uma frase, a meio, a tinta preta. Foram deixadas duas páginas em branco: uma após o fim da primeira parte, no verso do fólio 60, e outra no fim da segunda parte, no verso do fólio 117 (antes da adição dos fólios 118 a 122). Todas as páginas escritas têm a meio, de cima a baixo, um risco ou mais do que um risco a lápis vermelho. Estes riscos, semelhantes aos dos testemunhos anteriores, terão sido feitos à medida que o autor transferia o texto para outro testemunho. Cada risco corresponde a uma unidade de texto como um parágrafo ou uma frase, o que sugere que cada risco tenha sido feito à medida que essa unidade de texto ia sendo copiada. O facto de Pascoaes ter utilizado lápis vermelho para escrever alguns números e palavras, em oito páginas, suporta a tese de ter sido ele a fazer estes riscos. Também a meio da página, por vezes, Pascoaes faz um «S» invertido: contei 41, todos a lápis vermelho excepto um a caneta vermelha, mais um conjunto de seis «S» invertidos, lado a lado, a grafite, no verso do fólio 36. O facto de alguns destes símbolos não estarem alinhados com o traço vertical a meio da página, mas ao lado deste, como acontece nos versos dos fólios 55, 103 e 106, aponta para que não

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tenham sido feitos com o mesmo propósito dos traços verticais. É também significativo que a um «S» invertido num parágrafo no fim de uma página corresponda quase sempre um «S» invertido no fim desse parágrafo, no início da página seguinte. Poderíamos pensar que eventualmente seriam uma forma de Pascoaes sinalizar texto não copiado para outro suporte. No entanto, a comparação de algumas passagens em que o «S» invertido aparece neste manuscrito com os locais equivalentes no testemunho seguinte provou não ser este o caso. O Manuscrito D é significativamente diferente deste, na medida em que há parágrafos inteiros que não foram aproveitados. O «S» invertido ora coincide com texto não aproveitado, ora não. Também há texto rejeitado no momento da cópia que não tem o «S» invertido no Manuscrito C. Para dar alguns exemplos, os segmentos de texto deste manuscrito a que corresponde o «S» invertido dos fólios 21, 53/53v, 56 e 61 não aparecem no testemunho seguinte (páginas 35, 86/87, 90 e 98). Por outro lado, os segmentos de texto a que corresponde o «S» invertido dos fólios 27/27v, 71, 51 e 55v aparecem no Manuscrito D nas páginas 35, 44, 71 e 89. Existe a hipótese de este símbolo ser um ponto de interrogação estilizado, sem o ponto. Suporta esta teoria o facto de noutros manuscritos do escritor haver pontos de interrogação ao longo das páginas, possivelmente com o mesmo objectivo do «S» invertido: Cantos Empedernidos [I] (D3/4801), Maranus [II] (D3/4817), Maranus [III] (D3/4818), Maranus [IV] (D3/4819), Maranus [IX] (D3/4824), Sempre [I] (D3/4842) e O Bailado [III] (D3/4895). Há várias partes que sugerem rapidez de escrita: a caligrafia é irregular e ocorreram vários lapsos de pena, sobretudo troca de letras e repetição da mesma palavra. Podemos verificar que o escritor, frequentemente, redesenhava algumas letras menos legíveis; por vezes isto ocorre numa cor diferente, o que aponta para que seja uma operação ligada a etapas de revisão. Há presença de mão alógrafa a lápis, na folha de rosto, canto superior direito, onde se pode ler a cota da BN: «N63/1» e «cx. 1» mais sumido; ao lado, «acad» (leitura incerta), e no último fólio com texto, o 122 («N63/1»). O texto deste testemunho está completo. A Figura 12 corresponde ao recto do fólio 14 deste manuscrito. Contém a meio da página «S» invertidos, dois, intercalados de dois traços verticais, a lápis vermelho. As duas emendas na margem superior estão ligadas ao texto pelo habitual traço de 50

chamada; uma está rodeada deada por uma espécie de caixa de texto, texto a outra não. Na linha 11 o início de uma nova frase está escrito a vermelho, continuando a frase a preto, na linha seguinte. No penúltimo parágrafo, a emenda a vermelho foi feita, não na entrelinha ou nas margens, mas mas noutro ponto da página que estava vazio: a última linha do parágrafo anterior. Por vezes, quando há linhas vazias abaixo do local da emenda, Pascoaes utiliza-as as para escrever a emenda, rodeando-as as de uma caixa de texto, após a qual retoma a escrita da narrativa. No recto do fólio 37 isto ist acontece duas vezes, como mo se pode observar na Figura 13. 13 Em ambas as figuras pode ver-se a forma habitual de Pascoaes fazer a numeração das páginas e dos fólios, envolvendo os números num traço curvo ou recto.

Figura 12

Figura 13

3.4. Manuscrito D 3.4.1. Localização e história Este manuscrito encontra ontra-se em Amarante, onde está stá colocado dentro de uma folha de papel de 420 0 x 307 mm, mm, dobrada ao meio. No canto superior esquerdo, um 51

carimbo vermelho: «BIBLIOTECA NACIONAL ESPÓLIOS». Escrito a mão alógrafa, «Um Passeio/[II]». No inventário da BN consta o seguinte: «Um Passeio [II]/1940-1941; Gatão; 88, 1 f.; aut./Nota: Cf. "Duplo Passeio".» A cota atribuída na BN é D3/4970. O manuscrito é consultável na BN sob a forma de microfilme (F. R. 133, bobine 26). 3.4.2. Suporte O Manuscrito D foi escrito em 44 bifólios não encasados, de papel fino (a escrita na página oposta transparece) e liso, sem marca de água, e também numa folha solta de papel mais grosso cortado por uma dobra, o que a deixou com um aspecto algo irregular do lado direito. Há, sem contar com a folha solta, 88 folhas, paginadas como se descreve adiante. Os fólios e a folha solta medem 220 x 137 mm e 187 x 119 mm, respectivamente. 3.4.2.1. Acidentes do Suporte Nos bifólios, o papel encontra-se bastante amarelecido e há muitas manchas acastanhadas causadas pela humidade. As páginas 16, 20, 103 e 113 (e a 112, por contacto com esta) apresentam manchas que aparentam ter sido provocadas por café. Há alguns borrões e salpicos de tinta. Os acidentes do suporte não comprometem a legibilidade do texto. A folha solta está bem conservada. 3.4.3. Escrita A primeira página foi concebida como se fosse a capa de um livro, com a inscrição do nome do autor no topo, título centrado a meio — (Um passeio) aquele é o senhor — e, na metade inferior, o esboço de uma ilustração a caneta preta, vermelha e grafite, representando uma paisagem montanhosa cortada por uma estrada.31 O único elemento que destoa da semelhança com uma capa de livro é a paginação, no canto 31

As características gerais deste manuscrito, isto é, conjunto de bifólios não encasados, paginados com o primeiro fólio concebido como sendo uma capa de livro, por vezes com uma ilustração de Pascoaes, encontram-se igualmente em O Penitente [II] e em três manuscritos de São Jerónimo e a Trovoada ([I], [III] e [IV]). 52

superior direito. Ao contrário dos anteriores manuscritos, este foi paginado, e não foliado. A paginação (176 páginas no total), no canto superior direito nos rectos e no canto superior esquerdo nos versos, está a caneta preta, exceptuando as páginas 60 e 143, a vermelho. A página 2 (a única não numerada) está em branco. Na página 49 o último algarismo está por cima de um 8. Tirando isto, não houve enganos na numeração. O texto foi escrito a preto, vermelho e roxo. Tal como nos manuscritos anteriores, a caneta vermelha é utilizada na linha frequentemente (contei 55 vezes) e chega a haver palavras começadas numa cor e terminadas noutra. Uma vez que as folhas não são pautadas, as páginas não têm margens superiores nem inferiores: toda a superfície do papel foi utilizada. Como nos testemunhos anteriores, não há avanço da primeira linha dos parágrafos. Ainda existem bastantes cancelamentos e emendas, algumas feitas em caixas de texto. Este é, dos quatro manuscritos que fazem parte do dossier genético de Duplo Passeio, o único que não apresenta os traços verticais a meio de todas as páginas; no entanto, é frequente ver-se um «X» a grafite a seguir a sinais de pontuação. Estas marcas terão sido feitas numa passagem a limpo, possivelmente por Beatrice Thelen, que terá dactilografado este manuscrito. Há ainda alguns «S» invertidos a meio da página, da altura de um ou mais parágrafos, 32 a lápis vermelho e dois a grafite. O facto de este manuscrito não ter os traços verticais a meio das páginas, decorrentes da trasferência de um suporte para outro, mas sim «X», parece apontar para o facto de o «S» invertido ter algum significado que nos escapa. Se os «S» invertidos significassem o mesmo que os traços verticais, sendo contemporâneos destes, não apareceriam neste manuscrito. É importante salientar que os «X» estão a grafite e os «S» invertidos estão maioritariamente a lápis de cor vermelho, o que aponta para que tenham sido feitos em ocasiões diferentes. Acredito que os «X» tenham sido feitos por Beatrice Thelen quando dactilografou o manuscrito e que os «S» tenham sido feitos por Pascoaes. A folha solta é adventícia (isto é, interpolada, acrescentada posteriormente para fazer um acrescento de texto). No topo, centrado, encontra-se um símbolo a vermelho: pequeno círculo com pinta no meio. Do lado direito desse símbolo, a tinta 53

preta, está escrito «(pag. 100)». Nessa página encontra-se um símbolo vermelho igual a este, o que comprova que esta folha pertence a este dossier genético e corresponde a uma adição a fazer no local assinalado. Esta folha está escrita num dos lados, de cima a baixo (29 linhas), a tinta preta, exceptuando a primeira palavra e as emendas, a tinta vermelha. Para além disto, possui algumas cruzes a grafite, à semelhança do que se passa ao longo do manuscrito. Mão alógrafa, atribuível a funcionário da BN, escreveu, a grafite, a cota «D3/4970» no canto superior direito do primeiro fólio de cada bifólio e da folha solta. O texto está completo.

4. Seriação dos Testemunhos Para fazer a seriação cronológica dos testemunhos é necessário ter em conta as datas escritas nos manuscritos. Nenhuma das folhas do Manuscrito A tem data. Apesar de este manuscrito não estar datado, as suas características materiais, acima descritas, indicam que se trata da primeira versão da obra. Contém o início da narrativa (considerando os primeiros fólios que se perderam mas que existiram). Não há ainda, aparentemente, divisão de capítulos. Há cancelamentos de transporte: os riscos verticais feitos com instrumentos de escrita diferentes, que supõem transporte em momentos diferentes, ou seja à medida que ia reescrevendo o texto noutro suporte, ia cancelando o correspondente que ficava para trás. A degradação do suporte, muito maltratado e inclusivamente pisado, mostra uma displicência no seu tratamento perfeitamente coerente com um estado genético cedo ultrapassado. Essa mesma distância que Pascoaes cedo terá criado relativamente a esta versão do texto deve explicar a dispersão das folhas sobreviventes e provavelmente o desaparecimento das perdidas. O Manuscrito B está datado no fólio 1 junto à foliação, isto é, no canto superior direito: «15 de fev. 1940». O Manuscrito C tem datação na folha de guarda, no canto inferior esquerdo: «15 fev. 1940/5 de julho 1940». No canto inferior esquerdo do recto do fólio 117, onde inicialmente terminava a narrativa, Pascoaes escreveu «Abril de 1940 a 27 de setembro de 1940». 54

Quanto ao Manuscrito D, no canto inferior esquerdo do primeiro fólio está escrito «29 set. 1940» e na última página (176), no canto inferior esquerdo, está escrito «28 de jan. 1941». As datas parecem colidir umas com as outras e aparentemente não fazem sentido. Atentemos ainda à data impressa no fim da 1.ª edição: «27 de Setembro de 1940». Trata-se da data escrita no fólio 117 do Manuscrito C. No entanto, segundo parece apontar a data escrita na última página do Manuscrito D, ele é anterior à 1.ª edição e terá acabado de ser escrito a 28 de Janeiro de 1941. Verificamos em dois dos manuscritos um par de datas: a data em que Pascoaes começara a escrevê-lo e a data em que o terminara. Imaginamos que, à semelhança do Manuscrito D, o Manuscrito B tivesse data também na última página escrita, que se perdeu. O Manuscrito C tem dois pares de datas. Tendo em conta a apresentação da folha de guarda como se fosse uma folha de rosto (disposição cuidada e cores alternadas), tudo aponta para que tenha sido escrita apenas em Abril de 1942, isto é, logo após a publicação de Duplo Passeio, quando Pascoaes ofereceu o manuscrito a Beatrice Thelen. Uma explicação para haver dois pares de datas não coincidentes no Manuscrito C é a indicação «15 fev. 1940/5 de julho 1940» corresponder, não ao intervalo de tempo em que o Manuscrito C foi escrito, mas ao intervalo de tempo em que a obra foi escrita na sua totalidade — neste caso, a primeira data (15 de Fevereiro de 1940) bate certo e o escritor ter-se-ia enganado no último ano: onde se lê «5 de julho 1940» deveria estar «5 de julho 1941». Se assumirmos que foi isto que se passou, Duplo Passeio terá ficado concluído nessa data, possivelmente num dactiloescrito revisto e emendado, cerca de cinco meses após o Manuscrito D estar concluído. Se a teoria apresentada no parágrafo anterior estiver certa, os intervalos de tempo correspondentes a cada testemunho são os seguintes: Manuscrito A: posterior a Julho de 1937 e anterior a 15-02-1940. Manuscrito B: escrito entre 15-02-1940 e (provavelmente) Abril de 1940. Manuscrito C: escrito entre Abril de 1940 e 27-09-1940. Manuscrito D: escrito entre 29-09-1940 e 28-01-1941. Dactiloescrito com emendas(?): concluído a 5 de Julho de 1941.

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Para fazer a seriação dos testemunhos não basta ter em conta a sua datação. É importante provar textualmente qual é a sua ordenação cronológica. Para isso é necessário analisar as variantes existentes entre os manuscritos. É necessário partir de uma passagem do Manuscrito A e expor-se a evolução do texto ao longo dos testemunhos genéticos. De seguida utilizarei simbologia genética. A chave dos símbolos pode ser consultada na página 2 da edição genética. Manuscrito A, fólio 7 [...] paramos no ultimo lacete já proximo do Alto de Espinho, onde uma trovoada surpreendeu o Camilo a caminho como nós de Vila Real, mas a cavalo num macho, a ver o panorama serrano defumado pelas lunetas. Via tudo negro dentro e fora dele. E, por isso, as suas paisagens são dantescas.

Os dois segmentos cancelados em A não aparecem no testemunho seguinte. Em B Pascoaes, partindo da ideia de que as paisagens de Camilo são dantescas, introduz uma referência a Lucrécio, Dante e Leopardi. Manuscrito B, fólio 13 Paramos, no ultimo lacête, já proximo de Espinho, onde uma trovoada surpreendeu o Camilo, a caminho, como nós, de Vila Real, mas a cavalo num macho, a gosar o panorama serrano defumado pelas lunêtas de vidro escuro. Via tudo negro, dentro e fóra dele/.\ E, por isso, os seus descritivos são dantêscos, leopardinos, lucrecianos, que /L\ucrecio, Dante e Leopardi são a Trindade tenebrosa do velho deus do Lacio.

Do Manuscrito B para o C, a expressão «a cavalo num macho» é substituída por «montado num cavalo», «via tudo negro» passa a ser simplesmente «via negro» e Lucrécio, Dante e Leopardi passam a ser caracterizados como «os tres mochos da noite mediterranea». Manuscrito C, fólio 18 Paramos no ultimo lacête, já proximo do Espinho, onde uma trovoada surpreendeu Camilo, a caminho, como nós, de Vila Real, mas montado num cavalo, a gosar o panorama serrano defumado pel/a\[↓s]

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lunetas de vidro escuro. Via negro, dentro e fóra dele; e, por isso, os seus descritivos são dantescos, leopard/i\scos e lucrecianos[.] Lucrecio, Dante e Leopardi, eis a trindade tenebrosa os tres mochos da noite mediterranea.

Do manuscrito C para o D, introduz-se a ideia de que o cavalo que Camilo montava era «de aluguér» e a adjectivação das lunetas «defumadas» substitui a ideia de o panorama estar defumado pelas lunetas de vidro escuro. Toda a adjectivação de Lucrécio, Dante e Leopardi desaparece. Manuscrito D, pág. 29 Paramos no ultimo lacête, já proximo do Espinho, onde uma trovoada surpreendeu Camilo, a caminho, como nós, de Vila Real, mas [↑ em outra época e] /m\ontado num cavalo de aluguér, [↑ olhando] o panorama serrano, atraves dumas lunetas defumadas. Via escuro, como Lucrecio, Dante e Leopardi.

Há bastantes variantes entre o Manuscrito D e a 1.ª edição. «Paramos no ultimo lacête, já proximo do Espinho» passa a ser «Atravessamos o alto de Espinho», a trovoada que surpreendeu Camilo é adjectivada de «medonha», e a expressão «a caminho» é substituída por «que se dirigia». Pascoaes mantém a adição do Manuscrito D, «em outra época e», mas substitui «cavalo» por «azémola». 1.ª edição, pág. 35 Atravessamos o alto de Espinho, onde uma trovoada medonha surpreendeu Camilo, que se dirigia, como nós, a Vila Real, mas em outra época e montado numa azémola de aluguer, olhando o panorama serrano, através dumas lunetas defumadas. Via escuro, como Lucrécio, Dante e Leopardi...

Está comprovada a ordenação dos testemunhos, que coincide com as datas que lhes foram atribuídas por Pascoaes. Verificamos que o escritor foi amplificando o texto nos manuscritos para depurá-lo na primeira edição. Mais adiante veremos que isto não ocorre sempre, e que há certas passagens que são ampliadas.

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5. Questões de Génese Dadas as limitações deste trabalho, não é possível apresentar uma análise que esgote todas as questões suscitadas pelo confronto entre os testemunhos e pelo processo de reescrita em cada um deles. Tratarei, por isso, apenas três aspectos macro-genéticos: a génese do título, um problema de bifurcação genética e a génese do Cristo de Travassos. 5.1. O Título Desta análise, temos que excluir necessariamente o primeiro testemunho, cujas páginas restantes não contêm título. O título A cheia aparece cancelado no Manuscrito B, quer na etiqueta da capa, quer na primeira página. Por estar cancelado, mas sobretudo por não haver relação aparente com o texto de Duplo Passeio, podemos concluir que este título pertenceria a outra narrativa, que possivelmente não chegou a tomar forma. Na primeira página aparece o título Um Passeio. Como já foi dito acima, inicialmente Pascoaes não estaria a pensar escrever uma obra com duas partes, uma sobre um passeio real, a outra sobre um passeio em sonhos. Podemos concluir isto porque no Manuscrito B a palavra «Epilogo» foi cancelada e substituída por «Segunda Parte». Isto significa que, na primeira concepção que o autor teve do texto, a narrativa construía-se como uma estrutura cuja progressão ascendente culminava no episódio do Cristo de Travassos, depois do qual restava apenas contar, de forma necessariamente breve, o regresso a Amarante. Porém, em determinado momento, o sonho posterior à viagem tornou-se matéria para reflexão filosófica com dimensões imprevistas. No Manuscrito C, na folha de guarda, Teixeira de Pascoaes escreveu «Nova novela — Os dois —». Este testemunho não inclui vestígios de ter sido utilizado para escrever outra coisa para além de Duplo Passeio, ao contrário do anterior, que possui algumas páginas dedicadas a Napoleão. Tudo aponta, portanto, para esta indicação na folha de guarda estar relacionada com esta narrativa. Terminando o Manuscrito B, onde o passeio foi desdobrado em dois, e transferindo o texto para um novo suporte, o C, Pascoaes deve logo ter pensado em evidenciar no título o paralelismo dual resultante da criação da Segunda Parte. O facto de ter escrito apenas «Os dois» pode 58

significar que, embora a ideia de transportar a dualidade para o título estivesse no seu espírito, não sabia ainda exactamente qual a formulação que lhe daria. Foi provavelmente por não se sentir satisfeito com a hipótese «Os dois passeios» que a escreveu lacunar e inconsequentemente. Na primeira página do livro não há título. A inscrição Um Passeio aparece na folha de rosto, que terá sido escrita, segundo os indícios parecem apontar, apenas em 1942, e na etiqueta colada na capa, que poderá ter sido adicionada em qualquer altura. A primeira página do Manuscrito D, estabelecida como se fosse a capa de um livro, com ilustração, contém o título (Um Passeio) Aquele é o senhor. Esta é a frase que a rapariguinha de Travassos diz ao escritor, apontando para a imagem de Jesus Cristo crucificado, no largo da povoação. Trata-se do episódio central da narrativa e faz todo o sentido que estas palavras tenham sido escolhidas pelo escritor para fazerem parte do título, reconhecendo essa centralidade. Trata-se de um retorno e de um redireccionamento, relativamente ao título lacunar do testemunho anterior. A ideia de dualidade, que é fundamental no pensamento gnóstico de Pascoaes (Feijó, 2015: 85), parece perder a importância, e o autor regressa à primitiva unicidade para apontar o episódio do passeio real como fundamental no texto. Se, na hipótese anterior, tomava importância o paralelo entre o mundo (passeio) real e o onírico, agora é a epifania, na sua singularidade, que subordina e articula todo o sentido. Na 1.ª edição, no entanto, o título é outro: Duplo Passeio, o que constitui novo retorno à dualidade e ao paralelismo antitético das viagens real e onírica. Como introdução a esta parte no Manuscrito D, Pascoaes escreveu o seguinte, que posteriormente cancelou: Prefacio Agora é a descrição do meu passeio sonhado, intercado32 de outras scenas. Retoquei-as todas que o sonho pinta acontecimentos dum modo confuso e arbitrario...

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intercado por intercalado. Lapso. 59

Possivelmente, estaria a pensar substituir a primeira parte do epílogo que se pode ler no Manuscrito C por este «prefacio». As semelhanças são notórias: Como o leitor já viu, retoquei o passeio sonhado e intercalado de varias scenas, que o sonho pinta os acontecimentos confus/a\ e arbitrari/a\[↓mente].

Sabemos, através da carta de Américo Martins, da Livraria Tavares Martins, que no final de Outubro de 1941 o título definitivo já estava estabelecido. Finalmente, o título da tradução alemã, Der Christus von Travassos, O Cristo de Travassos, parece constituir, mais uma vez, um retorno ao título do Manuscrito D, (Um Passeio) Aquele é o senhor. Um título é um elemento textual do qual não depende o texto intitulado mas que, pelo contrário, normalmente depende dele. Porque pode ser alterado até ao último momento da génese e porque deve identificar e metonimizar o texto que intitula, o título pode exprimir eloquentemente a leitura que o autor faz do seu próprio texto. É essa leitura que ele procura condensar no título. Assim, a alternância de títulos, com um redireccionamento e depois sucessivos retornos, parece dar conta dos dois elementos fundamentais deste texto, na perspectiva do autor: o paralelo entre o real e o sonho e a revelação religiosa. Como o título, pela sua posição paratextual, é também um condicionador de leitura, a alternância revela o modo como Pascoaes quis que o seu texto fosse lido. Este aspecto é interessante sobretudo porque, na tradução, esta vontade autoral parece ter sido fortemente condicionada pela recepção. O autor conforma-se à vontade do seu público, permitindo a eliminação de muitos elementos textuais considerados acessórios e elegendo como subordinante semântica a epifania. 5.2. Bifurcação Genética Encontra-se no espólio um bloco de notas de capa preta, com a cota D3/5048 [Prosa XI]33, com as dimensões de 91 x 143 mm e constituído por 14 folhas (a última foi rasgada) quadriculadas a azul não numeradas. Metade do bloco contém pequenos fragmentos narrativos a tinta preta, alguns cruzados ou traçados diagonalmente, por

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Consultável na bobine 39 de F. R. 133. 60

cima, a tinta vermelha, e a outra metade contém contas relacionadas com a venda de vinho. Na primeira página, centrado, a meio, «Pobre Tolo». Na oitava página lemos o seguinte: Bloco de notas O horror ao mesmo sitio é profundamente... camiliano/,\ ou adamico; quem estará contente no paraiso, depois de 15 dias de bemaventurança? Compreende-se o pecado de Adão e a queda de Napoleão. Aborreceram-se, um do jardim do Eden, outro, do jardim das Tulherias...

A identidade textual com um passo de Duplo Passeio conduz à hipótese de estarmos perante mais uma peça do dossier genético desta obra, como se poderá constatar: Manuscrito A, fólio 4 A ancia de partir! O horror ao mesmo local!

Depois destas duas pequenas frases exclamativas do Manuscrito A, no testemunho seguinte o autor faz uma substituição sinonímica, «local» por «sitio», e amplifica o texto: Manuscrito B, fólio 6 A ancia de partir, o horror ao mesmo sitio... por mais belo! Quem estará contente no céu, depois de quinze dias [?] Compreende-se o pecado de Adão. e a queda de Napoleão. Queriam fugir, um, do jardim do Eden, o outro, do jardim das Tulherias...

As duas exclamações iniciais, que apenas exprimem um sentimento de desgosto perante a imobilidade e justificam a acção de partir desencadeadora da narrativa (inicia-se aqui o passeio com Ângelo), ganham dimensão filosófica e desenvolvem o paradoxo da repulsa por aquilo que naturalmente atrai (o belo, o paraíso). Simultaneamente, é convocada a participar nesse paradoxo uma das figuras históricas 34

«parasidiaca» por «paradisiaca». Lapso. 61

preferidas de Pascoaes, Napoleão, objecto de uma das suas biografias filosóficas. Há, portanto, uma espécie de expansão interpretativa que, partindo de um evento prosaico — três amigos sentem-se naturalmente impacientes pela partida para um passeio turístico — evolui filosoficamente para uma dimensão antropológica — Adão e a condição universal do Homem — que oferece a luz que permite interpretar a História — Napoleão e o seu destino. O sentido do texto desenvolve-se, assim, em círculos interpretativos que interligam o homem individual (o autor), o Homem-espécie (Adão) e o homem histórico (Napoleão), fazendo-os participar numa mesma dinâmica filosófica, segundo a qual «a História reproduz a Criação, sendo por isso domínio regional de um regime cósmico. Bonaparte, por exemplo, é um sucedâneo histórico da degenerescência do Criador» (Feijó, 2015: 85). No testemunho seguinte os cancelamentos do Manuscrito B já não aparecem e há pequenas variantes na primeira frase. É nas frases seguintes, no entanto, que há maior ocorrência de variantes: Manuscrito C, fólio 9 É tambem a ancia de partir, o horror ao mesmo sitio, por mais belo. Quem estará contente no Paraiso, depois de quinze dias de bemaventurança? Compreende-se o pecado de Adão e a queda de Napoleão. [↓ Aborreceram-se,] um, do jardim do Eden, o outro, do jardim das Tulherias.

Intensifica-se o sentido teológico com a substituição de «céu» por «Paraiso», variante inicialmente rejeitada mas agora preferida. Tendo cancelado a caracterização dos quinze dias no céu no manuscrito anterior, o escritor retoma-a, no mesmo sentido, mas substituindo «de estação edenica» por «de bemaventurança», provavelmente para evitar o efeito da redundância semântica Paraíso/edénico/Eden. Permanece a identificação entre Adão e Napoleão, mas agora com a especificação do «horror», isto é, o desgosto pela imobilidade não nasce de nenhuma causa activa que lhe seja inerente (perigo, ameaça) mas apenas do aborrecimento, ou seja, da própria ausência de actividade. Note-se ainda o esboço abortado de um terceiro movimento interpretativo: Pascoaes intenta uma identificação entre o destino e condição 62

antropológica e a sua dimensão eminentemente cristã: «Adão repousa no Calvario». Mas estava-se ainda no primeiro arranque do passeio e era provavelmente cedo de mais para trazer à cena Cristo, o Adão que repousa no Calvário, e que o autor estava destinado a encontrar apenas mais adiante, em Travassos. No manuscrito seguinte os cancelamentos de C já não aparecem e as variantes introduzidas são mínimas: Manuscrito D, pág. 17 É a ancia de partir/!\ /Oh,\ [o] horror ao mesmo sitio, por mais belo! Quem estará contente no paraizo, depois de quinze dias de bemaventurança? Compreende-se o pecado de Adão e a queda de Napoleão. Aborreceram-se, um, do jardim do Eden, outro, do jardim das Tulherias.

Com o cancelamento do advérbio inicial e com a introdução da interjeição, a frase divide-se em duas e aproxima-se da do Manuscrito A, num retorno em que parece estar patente a opção por uma certa concentração verbal, à qual se adiciona tom emotivo. Quanto ao restante, o enunciado fixou-se, sem mais hesitações, na formulação do paraíso e da identidade de Adão e Napoleão. Na primeira edição este passo é bastante diferente. O mais significativo é o facto de não haver qualquer referência a Adão e a Napoleão, que são substituídos por outro nome: Frei Agostinho. Do exemplo de duas figuras, uma mitológica e outra histórica, que não conseguiram permanecer num local belo, passa-se para o exemplo contrário, o de uma figura histórica, Frei Agostinho da Cruz, que viveu como eremita no convento da Arrábida por mais de quarenta anos, até à sua morte: 1.ª Edição, pág. 22 [...] ansioso de partir ou impelido pelo horror ao mesmo sítio. Estar aqui, neste lugar tão belo, eternamente... só Frei Agostinho na Arrábida.

No pensamento gnóstico pascoalino Adão e Napoleão, figuras mítica e histórica do real decadente, vivem no universo em situação de encarceramento, enquanto o convento aparece, em São Jerónimo, como «a única habitação que não é cárcere»35. 35

«Quando, na biografia de São Jerónimo, lemos que "o convento é a única habitação que não é cárcere" (Jer 32), deverá ler-se "habitação" num sentido eminentemente inclusivo: excetuado o enclave livre que é o convento, o universo é a forma mais ponderosa de encarceramento» (Feijó, 2015: 81). 63

Nesta sequência genética, portanto, substituem-se duas ilustrações concretas (Adão e Napoleão) da ideia da fuga do emprisionamento a que está condenado o homem pela expressão da mesma ideia a contrario, isto é, pela ideia da imobilidade no território livre que é o convento, ilustrada por um único exemplo (Agostinho da Cruz). Como «a poesia é esse impulso nómada» (Feijó, 2015: 94) e «o filósofo se move na dúvida»36, o autor-personagem do Duplo Passeio, iniciando a viagem com impaciência, dá início a uma viagem de demanda poética e filosófica. Aos olhos do leitor habitual de Duplo Passeio não aparece senão Frei Agostinho da Cruz e o efeito desta substituição é o da antítese marcada entre a posição do santo imóvel e a do autor-filósofo inquieto. Pascoaes preferiu, portanto, na última oportunidade de emenda do texto, o efeito retórico da antítese ao da analogia identificadora. Qual o lugar que ocuparia nesta série genética o texto do bloco de notas? O horror ao mesmo sitio é profundamente... camiliano/,\ ou adamico; quem estará contente no paraiso, depois de 15 dias de bemaventurança? Compreende-se o pecado de Adão e a queda de Napoleão. Aborreceram-se, um do jardim do Eden, outro, do jardim das Tulherias...

Ele é certamente posterior a C, porque já tem a «bemaventurança» e o aborrecimento de Adão e Napoleão. Mas pode igualmente ser posterior a D, se considerarmos que foi rejeitada a formulação das frases iniciais, e que este é um testemunho intermédio em que surge uma terceira figura, Camilo, que terá acabado por ser eliminado com os seus pares Adão e Napoleão e com eles ser preterido em favor do exemplo de Frei Agostinho. Consideremos, porém, algumas peças de um outro dossier genético, o de O Penitente, biografia de Camilo Castelo Branco publicada no mesmo ano que Duplo Passeio, apenas meses mais tarde, pela Livraria Latina, e cujo contrato de edição37 data de 14 de Maio de 1942. A este dossier pertencem dois manuscritos cujos microfilmes podem ser consultados na bobine 26 de F. R. 133. Daqui em diante, referir-me-ei a eles

36 37

«O santo crê, imobiliza-se na certeza, enquanto o filósofo se move na dúvida» (Feijó, 2015: 81). Biblioteca Pública Municipal do Porto, ML-P11A, n.º inv. 1286A (BPMP, 2011) 64

como O Penitente A e O Penitente B. Vejamos um passo de O Penitente A, comparando-o com o passo do bloco de notas: Bloco de notas

O Penitente A, fólios 72 e 72v

O horror ao mesmo sitio é profundamente... O horror ao mesmo logar é profundamente camiliano/,\ ou adamico; quem estará camiliano ou adamico, pois Camilo é mais que contente no paraiso, depois de 15 dias de um homem; é tambem o Homem...38 Quem bemaventurança? Compreende-se o pecado viverá contente no Paraiso, depois de quinze de

Adão

e

a

queda

de

Napoleão. dias de bemaventurança? Compreende-se o

Aborreceram-se, um do jardim do Eden, pecado de Adão e a queda de Napoleão. outro, do jardim das Tulherias...

Aborreceram-se, um, no Jardim do Eden, o outro, no jardim das Tulherias.

É evidente a identidade estreita entre o bloco de notas e o manuscrito de O Penitente. O passo de O Penitente A é posterior ao bloco de notas, na medida em que inclui a adição feita neste, com pequenas variantes: «é profundamente... camiliano, ou adamico». A palavra «sitio» do bloco de notas e de quatro testemunhos de Duplo Passeio é substituída por «logar». Na segunda frase, o verbo «estar» é substituído pelo verbo «viver». Na última, Adão e Napoleão não se aborreceram «do», mas sim «no» Jardim do Éden e «no» Jardim das Tulherias. Façamos agora a comparação com O Penitente B: O Penitente B, pág. 93 O horror ao mesmo logar é camiliano, pauliniano [{↓} napoleonico] ou adamico, pois Adão não suportou o Paraiso, nem Napoleão o trono imperial. Aborreceram-se, um, no jardim do Eden, o outro, no jardim das Tulherias. Antes o inferno e Santa Helena!

Mantêm-se as emendas introduzidas em O Penitente A: «logar» e «no». As frases são reestruturadas, mas a ideia mantém-se. O advérbio «profundamente» é eliminado. O horror ao mesmo lugar, além de ser adjectivado de «camiliano» e «adamico», passa 38

Neste ponto há uma adição na margem inferior que explora o que é ser «um Homem». Não a incluo aqui porque me parece pouco relevante para o que procuro demonstrar e porque esta ideia não é continuada no testemunho seguinte. 65

a ser também «pauliniano» e «napoleónico», quase esgotando (falta S. Jerónimo) toda a série de biografados já percorrida por Pascoaes (S. Agostinho será escrito depois da biografia camiliana), num eloquente traçar da linha que reúne essas figuras no pensamento do autor. Cai a amplificação de O Penitente A, «pois Camilo é mais que um homem, é tambem o Homem...», substituída por uma explicação para os dois novos adjectivos introduzidos: «pois Adão não suportou o Paraiso, nem Napoleão o trono imperial». Por fim, uma intensificação com a adição «Antes o inferno e Santa Helena!». Na primeira edição de O Penitente (Camilo Castelo Branco) o passo é levemente encurtado: O Penitente (Camilo Castelo Branco), 1.ª edição, pág. 142 O horror ao mesmo lugar é camiliano, pauliniano, napoleónico ou adámico, pois Adão não suportou o Paraíso, nem Napoleão o trono imperial. Aborreceram-se, um, no Jardim do Eden, outro, no jardim das Tulherias.

Não há variantes substantivas nem de pontuação, há apenas variantes gráficas. A exclamação final («Antes o inferno e Santa Helena!») não aparece. O texto do bloco de notas participa, portanto, tanto da génese de Duplo Passeio como da génese da biografia de Camilo. Tudo indica que ocorreu com este passo uma bifurcação genética: Duplo Passeio 1.ª edição Duplo Passeio A → B → C → D bloco notas → O Penitente A → B → 1.ª ed.

Não é possível afirmar com segurança se a bifurcação se deu depois de D ou de C. Uma análise do bloco de notas revela que os textos que contém pertencem maioritariamente à génese de O Penitente, tratando-se muito provavelmente de um suporte onde Pascoaes anotava frases e ideias que pensava aproveitar para a escrita desta biografia39. A transferência para este novo suporte parece também corresponder 39

Por limitações de tempo e espaço, não será possível fazer a demonstração cabal da articulação entre os apontamentos do bloco de notas e as restantes peças do dossier de O Penitente, de forma a demonstrar o que aqui afirmo. É trabalho que terei de deixar para melhor ocasião. 66

ao mesmo processo de depuramento textual que já encontrámos no ponto sobre a seriação dos testemunhos. O texto de Duplo Passeio foi amplificado nos testemunhos intermédios (B, C, D) e por fim depurado para publicação (1.ª edição), sendo o «excesso textual» resultante da depuração conduzido por bifurcação para um novo texto. Não é este o único caso de bifurcação genética em Pascoaes. Atentemos no seguinte excerto de Camilo Castelo Branco, Memórias do Cárcere, vol. I, Viúva Moré, 1864, discurso preliminar, pág. XXXIX: No coberto da capellinha da aldeia encravada no sopé da serra, vi o cadaver fulminado d'uma pastorinha, e mulheres em volta d'ella, amarellas de terror.

Este excerto faz parte da exogénese de Duplo Passeio. Surge pela primeira vez sob a forma de uma adição na margem superior do Manuscrito C: Manuscrito C, fólio 18 Lá está a *cota *capelar, e a sua cobertura, onde o *genial *escritor viu o cadaver duma pastorsinha fulminado, rodeado de lividas mulheres...

No testemunho seguinte o passo foi integrado no texto e significativamente alterado: Manuscrito D, pág. 29 Lá está /o\ alpendre da capela, onde o apostolo da Penitencia, o nosso Paulo de Seide, encontrou o cadaver duma pastorsinha, cercado de lividas mulheres ou fantasmas do terror.

A expressão comum «*genial *escritor» é substituída pelas perífrases que inscrevem Camilo no sistema filosófico de Pascoaes, «o apostolo da Penitencia, o nosso Paulo de Seide»; as «lividas mulheres» são igualmente semantizadas como «fantasmas do terror», remetendo para o lado demónico e tenebroso do dualismo radical de Pascoaes (Feijó, 2015: 94-95), intensificado pela substituição de «rodeado» pelo violento «cercado» na descrição da posição do cadáver na cena. Finalmente, o dramatismo é acentuado também na posição da personagem Camilo

67

que, em vez de simplesmente ver o cadáver, numa posição a uma distância vaga, o encontrou, com sugestão de impacto e proximidade. Na primeira edição de Duplo Passeio este passo não aparece. No entanto, podemos encontrá-lo, com bastantes variantes, em O Penitente A: O Penitente A, fólio 108 /F\oi nessa altura, [(↓) parece,] que ele encontrou, sob o alpendre duma ermidinha [(↓) da] serra, o cadaver [↑duma]

jovem

pastora

[↑morta]

por

um

raio,

[↑no meio] de mulheres , petrificadas de terror.

Dado que se trata de uma biografia, o episódio está enquadrado no resto da narrativa: «Foi nessa altura, parece». Camilo continua a «encontrar» o cadáver, e a «pastorsinha», agora «jovem pastora», passa a estar «no meio de» mulheres; repare-se que a variante «cercada» do Manuscrito D de Duplo Passeio ainda foi considerada, mas preterida em favor de uma atenuação. A «capela» passa a ser «uma ermidinha da serra». Muito provavelmente, para além de ter usado o Manuscrito D, Pascoaes terá voltado a consultar o primeiro volume de Memórias do Cárcere ou o Manuscrito C, porque é indicado o motivo da morte da pastora, ausente no Manuscrito D de Duplo Passeio: «[↑morta] por um raio». No testemunho seguinte, de «jovem pastora» até ao fim do passo, este mantém-se inalterado. É no seu início que ocorrem algumas variantes: O Penitente B, pág. 145 Foi então que ele encontrou, no declive oriental da serra, e no alpendre duma capela, uma jovem pastora, morta por um raio, no meio de mulheres petrificadas de terror.

São, sobretudo, substituições sinonímicas: «nessa altura» por «então», «sob o alpendre» por «no alpendre», «ermidinha» primeiro por «capelinha» e depois por «capela». Aparece a expressão «no declive oriental da serra».

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A primeira edição de O Penitente mantém este passo inalterado, salvo uma variante gráfica: O Penitente (Camilo Castelo Branco), 1.ª edição, pág. 219 Foi então que êle encontrou, no declive oriental da serra, e no alpendre duma capela, uma jovem pastora, morta por um raio, no meio de mulheres petrificadas de terror.

Desta vez parece mais evidente que a bifurcação se deu depois do Manuscrito D de Duplo Passeio e não antes. É o que indica a presença de «cercado» e «terror» em O Penitente A. A génese deste passo pode então ser esquematizada: CCB, Memórias do Cárcere

O Penitente A Duplo Passeio C (margem) → D (texto)

No Manuscrito C de Duplo Passeio há anotações feitas nas margens que não têm, aparentemente, ligação com o texto. Algumas delas assemelham-se com frases de O Penitente (Camilo Castelo Branco). É o caso da nota seguinte, a caneta vermelha: Manuscrito C, fólio 58, adição na margem superior40 /A\ descrença justifica a nossa crença, e o pessimismo o optimismo.

No primeiro manuscrito de O Penitente há uma frase semelhante a esta, nas notas finais. O Penitente A, fólio 117 O optimismo resulta do pessimismo, a crença da descrença.

No testemunho seguinte, bem como na primeira edição (pág. 110), a nota foi integrada na narrativa e a frase mantém-se igual, excepto na adição da partícula de ligação «e» a seguir à virgula: O Penitente B, pág. 71 O optimismo resulta do pessimismo, e a crença da descrença. 40

Note-se que, apesar de a nota se inscrever na margem superior, não há sinal da inserção no texto, ou seja, a linha com que habitualmente Pascoaes liga as adições topograficamente distantes ao lugar do texto onde devem ser integradas. 69

Segue-se outro exemplo de adição na margem superior do Manuscrito C sem aparente ligação com o texto: Manuscrito C, fólio 74, adição na margem superior Creio eu, embora seja mentira!

Esta exclamação aparece no primeiro manuscrito de O Penitente, desta vez enquadrada numa frase: O Penitente A, fólio 54v Creio eu, embora seja mentira! exclamava uma rapariga da minha aldeia, ouvindo pôr em duvida /a\ aparição da Virgem, na serra da Abobreira.

No testemunho seguinte a frase mantém-se igual, exceptuando «da minha aldeia», que desaparece. O mesmo acontece na primeira edição desta obra, na página 103. O Penitente B, pág. 66 Creio eu, embora seja mentira! exclamava uma rapariga, ouvindo pôr em duvida a aparição da Virgem, na serra da Abobreira.

Há outras duas notas nas margens do Manuscrito C que também parecem estar relacionadas com O Penitente, embora talvez de forma não tão óbvia: Manuscrito C, fólio 98v, adição na margem superior Vultos de princezas que só vemos pelas costas, arrastando, na *penumbra, a cauda de sêda luminosa..

A mesma ideia está presente no fim do capítulo X de O Penitente: O Penitente A, fólio 151v [...] dama ou Princeza, que se afasta, para o fundo escuro d/o\ quadro, arrastando hieraticamente a cauda [↑ luminosa] do vesrdo... O Penitente B, pág. 185 [...] dama ou Princeza, que se afasta para o fundo escuro do quadro arrastando hieraticamente a cauda branca do vestido... 70

O Penitente (Camilo Castelo Branco), 1.ª edição, pág. 279 [...] dama ou Princesa, que se afasta, para o fundo escuro do quadro, arrastando hieràticamente a cauda branca do vestido...

Mais distante ainda, embora não de todo improvável, é a relação entre a seguinte nota marginal do Manuscrito C e um segmento do capítulo II de O Penitente: Manuscrito C, fólio 79, adição na margem superior A musica é feita de ruidos ao longe. O Penitente A, fólio 20 [...] que o paraiso é inferno esfumado, [(↓) dor anestesiada,] remota, lá onde é musica o ruido... O Penitente B, pág. 23 Assim o inferno se esfuma em paraiso, o perto em longe, e em musica o ruido. O Penitente (Camilo Castelo Branco), 1.ª edição, pág. 40 Assim o inferno se esfuma em jardim das delícias, o perto em longe, e a música em ruído.

Apesar de terem em comum a relação música/ruído, a estrutura frásica desta adição na margem do Manuscrito C não é suficientemente próxima do segmento de O Penitente para podermos concluir que faz parte da génese da biografia de Camilo Castelo Branco. Se foi este o caso, a mudança na frase deu-se na cabeça do escritor, não deixando vestígios no papel. As datas presentes nos manuscritos de O Penitente confirmam que estes são posteriores aos de Duplo Passeio. O primeiro manuscrito está datado de 28 de Agosto de 1941 e o segundo terá sido escrito, segundo as datas presentes no manuscrito, de 20 de Janeiro de 1942 a 17 de Março de 1942. Os dados aqui apurados confirmam o que foi dito por António Cândido Franco (1996: 104) acerca do processo de escrita do autor: [...] processo de assimilação de textos anteriores, no caso homo-autorais, mas que noutros casos podem até ser hetero-autorais, textos esses que vão sendo sugados e absorvidos para camadas sempre mais profundas[...]

71

Pascoaes escrevia como se tivesse vários textos na cabeça simultaneamente, e fazia derivar sequências de uns para outros, revelando uma complexa articulação semântica e conceptual que interliga o conjunto de narrativas escritas no final da vida, as cinco biografias (São Paulo, São Jerónimo, Napoleão, O Penitente, Santo Agostinho) e a narrativa Duplo Passeio. Na verdade, dada a coerência deste conjunto de textos, onde pode ser encontrado o sistema filosófico pascoalino, «disperso nas cinco biografias que Pascoaes escreveu, entre 1934 e 1945» (Feijó, 2015: 80), quase poderíamos considerar os textos escritos neste período (incluindo Duplo Passeio) como um grande macro-texto, no interior do qual Pascoaes recolocava sequências textuais, projectando-as para o texto seguinte. A dimensão global e as implicações que pode ter este processo de escrita no conhecimento do pensamento do autor só serão reveladas quando puder estudar-se a génese de cada uma destas obras. O seu estudo mostrará talvez outras linhas bifurcadas de circulação textual, invisíveis para os leitores dos textos das primeiras edições. 5.3. Evolução Entre Estados Genéticos Como já foi referido, a principal alteração ocorrida durante a génese desta obra parece ter sido o facto de inicialmente o escritor não ter em mente dividir a narrativa em duas partes, como a conhecemos — recorde-se que no Manuscrito B a palavra «Epilogo» foi cancelada e substituída por «Segunda Parte». O Manuscrito C não revela muitas emendas ao nível da pontuação. Os passos comparados mostram que o mesmo se passou com os outros manuscritos, diferentemente do que ocorre de um estado genético para outro: as passagens a limpo ocasionaram muitas variantes deste tipo. É habitual os escritores deixarem questões relacionadas com a pontuação para serem resolvidas nas provas tipográficas, e Pascoaes parece não ser excepção. Vejamos de seguida algumas diferenças entre o Manuscrito D e a 1.ª edição. Manuscrito D, pág. 54 [...] transluz numa flor e é uma energia invencivel, em dado momento proprio. Revelaram-me a verdade divina, pois tal verdade não se demonstra [...] 72

1.ª edição, pág. 62 [...] transluz numa flor, e é uma energia primaveril que incendeia de vida a morte. Soou, nos meus ouvidos, como um toque de moeda em que se ouve o oiro retinir. O oiro é que se ouve, não é a moeda. Assim nas palavras da rapariga, ouvi apenas a verdade. E a verdade divina não se demonstra[...] Manuscrito D, pág. 55 Existe a luz, porque nos fere os olhos; e Deus tambem nos fére ou como Espirito ou como problema do espirito. Fére-nos sempre, como Fantasma ou Sêr. [{↓} Como enrdade ignota ou conhecida.] Fére os crentes e os descrentes. Que o diga o [↑ nosso] Apostolo, com a testa queimada dum relampago. Que o digam os martires, os eleitos da dôr, os lançados às feras e à fome, essa loba que nos devora lentamente. 1.ª edição, pág. 62 Existe luz, porque nos fere os olhos. E Deus também nos fere, porque o negamos e afirmamos, injuriamo-lo e adoramo-lo, matamo-lo e morremos por êle. Olhai o Apóstolo, com a fronte queimada dum relâmpago! E os mártires, os eleitos da Dor, os lançados às feras ou à fome, essa lôba que nos devora lentamente? E os Nietzches, os desesperados contra a religião cristã? E os anacoretas do deserto? E os lucrecianos, anacoretas do ateísmo? E os ascetas da Estupidez mineralizados na mais absoluta indiferença? Diversos actores figuram no drama religioso. São actos dêsse drama a propaganda de Paulo e a de Voltaire, o Cristo entronizado no Vaticano, e queimado, com todos os Deuses, numa fogueira de Moscovo... Manuscrito D, pág. 56 Não me saia da memoria a raparig[↑ uinha] trigueira, altiva e medrosa, na sua atitude de inspirada [↑ de creança,] com o vestido de chita muito cingido ao corpo [↑ esguio.] 1.ª edição, págs. 63-64 Não me sai da lembrança a rapariguinha trigueira, embrulhada num farrapo de chita, portadora duma frase, que é todo o Livro da Vida citado, por Paulo, nas suas cartas. Persegue-me aquela criança inspirada e enviada à minha incerteza, êsse deserto e oásis confundidos, em que eu divago, sedento e saciado, alegre e

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aflito, numa onda de alvoroço a petrificar e a liquefazer-se, ora parada em mármore, ora evolada em luar. Manuscrito D, pág. 57 [{↓} O mundo anrgo, ao falecer, legou-nos Jesus Cristo... ] [↑ O] caminheiro do deserto. 1.ª edição, pág. 66 O mundo antigo, falecendo, legou-nos Jesus Cristo. Daquele imenso cadáver tombado ergueu-se aquele Espectro sobrenatural. Tomou figura humana, perante as almas, que êle já existia desde a Origem, mas inominado e invisível. A embriaguez pagã ou infantil iludiu a sua Presença. Foi preciso o desencanto da aurora, a noite, para que o seu vulto de luar se desenhasse nas trevas. É na solidão que ele aparece ao nosso espírito, que o nosso espírito é a suprema solidão, a consciência do deserto, ou, melhor, o deserto a contemplar-se no Mar Morto, esse espelho da Parca. Cristo é o caminheiro do deserto. Manuscrito D, pág. 57 Não é o corpo de Cristo a mesma terra, a Mater? Valha-me Cristo! Ai, Jesus! 1.ª edição, págs. 67-68 Cristo é o padre Sol e a terra mater, a Virgem Pura e o Sagrado Coração. Filho do seu coração, que é o ventre onde se gera o amor, é ele o próprio Amor, um Ente sobrenatural. O amor não é natural; natural é a sensualidade e a crueldade. Basta a sensualidade para que haja vida; mas a vida humana só aparece com o amor. É obra de Jesus a metaforfose da sensualidade em amor, a passagem de cá para lá, a transfiguração e a ascensão. O homem forte não o é o que luta contra o tigre, de punhal nas unhas, como na estátua de Regent Park; é o que luta com o lôbo, como S. Francisco. Êste é que é o homem perante a bêsta; aquele é outra bêsta, a super-bêsta, ó Zaratustra! S. Francisco, irmanando-se à fera ou amansando-a, é o mesmo Cristo. Todos os gritos vão para êle. Ai Jesus!

74

Manuscrito D, pág. 60 Cristo é o calor da Verdade, e o canto de aleluia que inflora as almas; e [↑ nele] pairam além da morte. Ha momentos de etérea anciedade em que pairamos além da morte. Se tal momento se eternisasse!... Talvez um dia!... Talvez um dia! 1.ª edição, pág. 74 Cristo é o calor da Verdade, mas um calor vestido de luz, como a dor se veste de água nas lágrimas. Por isso, a sua aparição é a da primavera: afasta o inverno e a morte. Diante dela, por mais efêmera que seja, temos o sentimento da eternidade.

Os exemplos apresentados demonstram que não houve alterações profundas de manuscrito para manuscrito, na medida em que as emendas não alteram o sentido do que já estava escrito e não orientam a narrativa numa direcção diferente da estabelecida, mas são sobretudo de carácter estilístico e surgiram da busca pela palavra ou expressão ideal. As frases acrescentadas vêm reforçar uma ideia e as frases eliminadas foram provavelmente consideradas dispensáveis por serem repetitivas ou supérfluas. A análise da génese destes passos de Duplo Passeio demonstra existirem diferenças consideráveis entre o Manuscrito D e a 1.ª edição, sobretudo relativamente ao texto adicionado, mas também a respeito de texto removido. Isto prova que um ou ambos os estados genéticos intermédios, o dactiloescrito feito por Beatrice Thelen e as provas tipográficas, foi ou foram alvo de numerosas emendas autógrafas. Há indícios de que o escritor trabalhava simultaneamente com mais de dois estados genéticos ao mesmo tempo: refiro-me a retornos, isto é, quando reaparece uma expressão ausente no estado genético imediatamente anterior, mas presente noutro mais antigo. De seguida apresento três exemplos. No Manuscrito C estão ausentes as expressões «o seu vulto» (página 55 do Manuscrito D) e «o seu pequeno vulto» (fólio 29 recto do Manuscrito B), o que aponta para que o escritor estivesse a consultar não só o Manuscrito C, mas também o B. Na 1.ª edição, página 63, a expressão «jardim suspenso de Semiramis» é um eco da expressão utilizada nos manuscritos B e C: «jardins suspensos de Semiramis» (29v e 34v, respectivamente); no 75

Manuscrito D, página 55, a formulação utilizada é «jardins de Babilonia». A palavra «orango» está presente no Manuscrito C (fólio 37: «») e na 1.ª edição (página 72: «Ou a nossa vida é susceptível de se tornar amorosa e fraternal, ou, então, o sêr humano é um orango qualquer e mente ao seu destino redentor, que é transformar a violência em brandura, a fealdade em beleza, acrescentar o Sobrenatural ao Natural.»); a palavra «orango» ocorre aproximadamente no mesmo ponto da narrativa, apesar de estar enquadrada em frases bastantes diferentes; no Manuscrito D está ausente. O facto de não haver uma lista, um esboço da divisão dos capítulos ou um plano, por exemplo, mas apenas testemunhos genéticos nos quais a narrativa se encontra textualizada, aponta para que Teixeira de Pascoaes seja um escritor de processo, e não um escritor de programa. O restante espólio do escritor também suporta esta conclusão. Almuth Grésillon (1994 :243) define escrita de programa como «um tipo de escrita que obedece a um programa preestabelecido e cuja elaboração percorre vários estados genéticos (notas documentais, planos, esboços, listas)» e escrita de processo como «um tipo de escrita sem fase preparatória, sem plano, sempre textualizada.» 5.3.1. A Génese do Cristo de Travassos De seguida é apresentada a evolução genética do epifânico encontro do autor, em Travassos, com a criança que lhe mostrou a imagem de Cristo no largo da povoação. Este episódio é especialmente importante, pela sua centralidade filosófica na obra de Pascoaes. A edição dos estados genéticos é dada lado a lado, dois de cada vez, para facilitar a sua colação. Manuscrito B, 28v

Manuscrito C, 33v

Esta rua desagua no Largo onde encontramos um monumento religioso. É um pobre alpendre circular, abrigando uma tôsca imagem de Cristo crucificado.

Esta rua finda num largo assinalado por um mon/u\mento religioso, [↑ em] esrlo tão rudimentar que [(↑) , simbolisando Cristo,] parece anterior [↑ ao deus Apolo.] É, na verdade, uma tôsca imagem de

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Jesus crucificado, protegida pelo teto dum alpendre tambem de côlmo. Saimos do auto e [↑ puzemo-nos a] /c\ontempla/r\ aquele Cristo duma divindade ingenua[↑ e ingenuamente] martirisad/a\, onde as chagas riam vermelho do artista que as pintou... De repente, senti [↑ no braço] esquerdo uma pancada [↑ branda [{↑} , a mêdo,]] que e vi uma pequena mão triguei/r/i\[↑nha] e triste, apontando-me o Crucifixo. E logo estas palavras [(↑) , [↑ [↑ duma] infinita seriedade] na intoação infantil:] Aquele é o Senhor. Era uma rapariga, de onze anos, talvez, morena e delicada de feições, com um vestidinho de chita (ha vestidos que provocam a ternura) muito cingido, à magreza esguia do seu corpo. [↑ Ficou] [(↓) a olhar-me,] [↑ curiosa e trémula,] a vencer a propria timidez, como animada por uma força [desconhecida.] O seu gesto, a intoação da sua voz, não sei reproduzi-los. Afligem-me, [↑ agora,] como certas nuances das cousas [↑ tão] distantes d/o\ desenh/o\ [(↑) destas,] que são perfeitamente inexprimiveis. Naquele gesto havia um além indefinivel; e aquela voz esvoaça, na minha lembrança, não para me repetir a fraze em que a tôsca imagem de Cristo lampejou ressuscitada, mas outra fraze insistente:

Saimos do auto e paramos, deante dela. Então, uma rapariga quasi creança, de onze anos, talvez, aproxima-se de mim. Era morena, delicada[↑ de] feições, [↑ num] vesrdinho [↑ de] chita muito cingido à magreza esguia do corpo. Aproxima-se de mim, entre espantada e sorridente, a vencer a propria timidez, como impelida por um impeto misterioso e /T\oc/ou-me\ num braço, com a mãosinha triste e assim me di/sse\, apontando o crucifixo:

Aquele é o Senhor.

O gesto, [↑ e] a intoação da voz da rapariga não sei reproduzi-los [.] Afligem-me, neste momento, como certas nuances das cousas tão distantes do seu desenho, que [↑ são inexprimiveis.] Naquele gesto, havia um além indefinivel. E aquela voz esvoaça, na minha lembrança, não para me repetir a sua fraze, em que a tôsca imagem [↑ de Cristo] lampejou ressuscitada, como na manhã da aleluia, mas outra fraze insistente: 41

«alpendre »: a repetição é erro, provavelmente no decurso de mudança de linha: «alpendre / alpendre.» 77

Não acreditas ainda na divindade de Jesus? Senti nas palavras da creança uma verdade superior à dos escritos dum Santo Agostinho ou S. Tomaz[{↓} que a verdade não se demonstra: afirma-se. E a sua prova real está na sua evidencia deslumbrante.] E [↑ a aparição da rapariga?]

Não acreditas ainda no Senhor? /As\ palavras da creança [↑ rveram [↑ mais eloquencia], para mim,] [↑ que os] escritos dum São Tomaz e mesmo dum Agostinho. Revelaram-me [↑ a] verdade [↑ divina,] pois tal verdade não se demonstra: afirma-se; e a sua prova real está na sua evidencia deslumbrante. Existe a luz, porque nos fére os olhos; [e] Deus [↑ tambem] nos fére [...] Que o diga o pobre Apostolo, com a testa queimada dum relampago! Que o digam os mártires de Cristo, os os eleitos da dor, os lançados às feras e à fome, essa lôba que nos devora lentamente. A que impulso obedeceu a rapariga, quando me bateu no braço a mão [(↓) já decidida a apontar-me] a escultura [↑ tôsca] de Jesus? Donde lhe viria essa audacia que a levou a dominar o seu proprio acanhamento e lhe deu uma atitude de heroina e até de personagem da Historia Mistica,> [↑ de] pequenina Santa Tereza, uma Santa Tereza em botão de rosa selvatica, crestado do sol e da miseria? Donde lhe viria essa força? Do infinito do seu coração? De mais longe ainda? Tinha ela desaparecido, [↑ quando] acord/ei\ da minha surpreza comovida. Escondeu-se numa nuvem ou no interior duma choupana de côlmo e pedregulho, que o temporal não destróe, porque penetra, dentro dela, por todos os buracos. Estas choupanas da serra não diferem duma obra da Natureza.

A que impulso obedeceu [↑ ela,] ao dirigir-se /à\ minha melancolica pessôa? Donde lhe viria essa força? Do infinito do seu coração? De mais longe ainda?

[↑ Quando acordei da minha surpreza comovida, tinha] desaparecido o seu pequeno vulto. Escondeu-se numa nuvem ou no interior duma choupana de côlmo e pedregulho que o [↑ temporal] não derruba, porque penetra por todos os buracos. Estas choupanas da serra não diferem duma obra da Natureza.

No Manuscrito B a descrição da imagem de Cristo crucificado é feita rapidamente: «tôsca imagem». No Manuscrito C é mais detalhada: «duma 78

divindade ingenua[↑ e ingenuamente] martirisad/a\, onde as chagas riam vermelho do artista que as pintou...» O corpo da figura religiosa foi «martirisado ingenuamente» pelo artista que pintou as feridas, que se assemelham a bocas vermelhas a rir-se dessa ingenuidade. O episódio da revelação religiosa de Teixeira de Pascoaes não gira em torno de uma imagem religiosa feita por um grande mestre e exposta num grande monumento, mas de uma figura grosseiramente executada e destinada a ser contemplada por poucas pessoas, num largo de uma pequena povoação quase desconhecida, «Travassos, perdida em pleno êrmo serrano de Traz-os-Montes. Em letra redonda, só aparece num romance do Camilo» (Ms C, fl. 1). No fólio 21v é feita referência a uma imagem semelhante, que também tocou o escritor: «o Cristo mutilado, prêso à Cruz, só por um braço, sob um alpendre tão miseravel, exposto à ventania da serra, impressionou-me fundamente/,\ [(↑) porque nunca entendi, como então, aquele grito, Perdoae-lhe, que eles não sabem o que fazem.] E todavia é natural o odio atentar contra o amor, embora o odio seja um animal vivente e o amor uma tôsca imagem de madeira.» Ambas as imagens, para além de toscas, possuem uma qualidade patética que as torna mais comovedoras: as feridas pintadas de tal modo que se assemelham a bocas, no caso do Cristo de Travassos, e a falta de um dos braços na outra figura. Ainda acerca da imagem do Cristo de Travassos, Pascoaes faz a seguinte reflexão (Ms. C, fl. 39): Sei que vi Cristo naquela escultura de madeira, quando o gesto da rapariga incidiu, sobre ela, como um relampago, como a propria luz da evidencia sobrenatural[...] Vi o Cristo, a redenção pelo sofrimento; [↑ pois] toda a emenda é dolorosa; é cortar em carne viva, aperfeiçoar a estatua [↑ viva,] a golpes de cinzel. [§] E vi o sofrimento redimido ou divinisado. Temos de subordinar a nossa triste realidade a uma verdade superior. E eis o o escravo deante do senhor. Ser escravo cristãmente é prender as más tendencias, metê-las no segredo.

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Estes parágrafos condensam dois aspectos centrais da revelação religiosa de Pascoaes: a redenção pela dor e a submissão voluntária dos cristãos ao Senhor — daí a importância das únicas palavras pronunciadas pela pequena no largo de Travassos: «Aquele é o Senhor», à luz das quais «a tôsca imagem de Cristo lampejou ressuscitada». Manuscrito C, 33v

Manuscrito D, pág. 53

Esta rua finda num largo assinalado por um mon/u\mento religioso, [↑ em] esrlo tão rudimentar que [(↑) , simbolisando Cristo,] parece anterior [↑ ao deus Apolo.] É, na verdade, uma tôsca imagem de Jesus crucificado, protegida pelo teto dum alpendre tambem de côlmo. Saimos do auto e [↑ puzemo-nos a] /c\ontempla/r\ aquele Cristo duma divindade ingenua[↑ e ingenuamente] martirisad/a\, onde as chagas riam vermelho do artista que as pintou... De repente, senti [↑ no braço] esquerdo uma pancada [↑ branda [{↑} , a mêdo,]] que e vi uma pequena mão triguei/r/i\[↑nha] e triste, apontando-me o Crucifixo. E logo estas palavras [(↑) , [↑ [↑ duma] infinita seriedade] na intoação infantil:] Aquele é o Senhor. Era uma rapariga, de onze anos, talvez, morena e delicada de feições, com um vestidinho de chita (ha vestidos que provocam a ternura) muito cingido, à magreza esguia do seu corpo. [↑ Ficou] [(↓) a olhar-me,] [↑ curiosa e trémula,] a vencer a propria timidez, como animada por uma força [desconhecida.] O seu gesto, a intoação da sua voz, não

Esta rua finda num largo onde existe um coberto sob o qual se encontra uma tôsca imagem [{↓} sagrada.]

Saimos do auto, e fômos admirar [↑ a escultura dum] Cristo crucificado, [{↓} mas] duma divindade tão ingenua e tão ingenuamente martirisada que as suas chagas parecem rir vermelho do artista que as pintou.

De repente, senti, [↑ que estranha mão] me [↑ tocou], no braço esquerdo, [↑ [{↑} Era uma] rapariga [{↑} que me] disse] aponta/ndo-me\ o crucifixo; [↑ de] pequenina Santa Tereza, uma Santa Tereza em botão de rosa selvatica, crestado do sol e da miseria? Donde lhe viria essa força? Do infinito do seu coração? De mais longe ainda? Tinha ela desaparecido, [↑ quando] acord/ei\ da minha surpreza comovida. Escondeu-se numa nuvem ou no interior duma choupana de côlmo e pedregulho, que o temporal não destróe, porque penetra, dentro dela, por todos os buracos. Estas choupanas da serra não diferem duma obra da Natureza.

lançados às feras e à fome, essa loba que nos devora lentamente. A que impulso obedeceu a rapariga, quando me bateu, no braço, com a mão, aponta/ndo-me\ a escultura de Jesus? Donde lhe viria essa audacia que a levou a dominar o seu proprio acanhamento e lhe impôs uma atitude de heroina e até de santa? Uma Santa Tereza em botão de rosa selvatica, crestado do sol da miseria... Donde lhe viria essa força? Do infinito do seu coração? De mais longe ainda?

Quando acordei da minha surpreza, já o seu vulto42 havia desaparecido como se não pertencesse à realidade. Ou se escondeu no Invisivel, como qualquer anjo repentino, ou então, simples mortal, no interior duma choupana [↑ da serra] que, de tão pobre e trabalhada pelo tempo, não difére [↑ das] obra[s] da Natureza.

O Manuscrito D introduz uma ideia nova: a de que Deus «fére os crentes e os descrentes». Relativamente ao último parágrafo desta passagem, a antítese presente no Manuscrito C («Escondeu-se numa nuvem ou no interior duma choupana de côlmo e pedregulho») é alterada no Manuscrito D: «Ou se escondeu no Invisivel, como qualquer anjo repentino, ou então, simples mortal, no interior duma choupana [↑ da serra]». A ideia de «nuvem» desaparece, substituída pela palavra «Invisivel», mas continua presente na imagem do «anjo repentino», a que é oposta a de «simples mortal». É o contraste entre estes dois seres que está destacado, colocando em relevo a figura da rapariga de Travassos, e não os locais de refúgio: «nuvem»/«choupana de côlmo de pedregulho» e «Invisivel»/«choupana da serra».

42

«o seu vulto»: em B, «o seu pequeno vulto». Em C nenhuma destas formulações está presente. 82

Manuscrito D, pág. 53

1.ª edição, págs. 60-61

Esta rua finda num largo onde existe um coberto sob o qual se encontra uma tôsca imagem [{↓} sagrada.] Saimos do auto, e fômos admirar [↑ a escultura dum] Cristo crucificado, [{↓} mas] duma divindade tão ingenua e tão ingenuamente martirisada que as suas chagas parecem rir vermelho do artista que as pintou. De repente, senti, [↑ que estranha mão] me [↑ tocou], no braço esquerdo, [↑ [{↑} Era uma] rapariga [{↑} que me] disse] aponta/ndo-me\ o crucifixo;
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