Introdução ao problema da percepção e à psicose na psicanálise

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Veremos que essa estrutura comporta o esquema de que o objeto, na verdade, é essencialmente faltante.
Esse pensamento não deixa de se assemelhar com a noção de "fé perceptiva", presente na tradição clássica dos teóricos que se debruçaram sobre o problema da percepção. Vide capítulo 1.
Segundo Freud, a histeria possuiria a capacidade de transpor a soma de excitação resultante da operação de defesa para a inervação somática, ao contrário das obsessões e fobias, o que produziria os ataques histéricos mais típicos, tão enfatizados por Charcot.
A tradução mais adequada aqui talvez fosse "recalcado".
Ou seja, o sintoma que tem como significado a representação recalcada.
Isso não deixará de colocar uma questão sobre a possibilidade de ocorrência de uma alucinação na histeria, a partir das reflexões que veremos mais adiante.
Trata-se aqui do célebre caso relatado nos Estudos sobre a histeria da Sra. Emmy von N.
Conjunto de neurônios descrito por Freud no Projeto... que respondem, resumidamente, pela função da memória.
"desperta o interesse" [tradução nossa]
traços [tradução nossa]
"fellow man", homem ao lado, pessoa próxima" [tradução nossa]. Uma tradução desse termo na linguagem de Lacan parece ser o conceito de "Outro".
"O que chamamos coisas, são resíduos que evitam serem julgados" [tradução de LIMA, 1994]
Freud escreve, aqui, a seguinte nota de rodapé: "Na seção geral de A interpretação dos sonhos".
Freud já havia dado, em momento anterior do texto, um outro exemplo de "sonho direto" , também de uma de suas filhas. Por isso ele entende aqueles que seriam especialmente ilustrativos da hipótese de que os sonhos são realizações de desejos.
Apesar de Richard Simanke utilizar, em seu texto, a tradução "ego" para o termo alemão "ich", ressaltamos nossa preferência pela tradução "eu" em português.
Conjunto dos neurônios descrito por Freud no Projeto... que respondem, resumidamente, pela função da sensação, "isto é, aos aspectos puramente físicos da percepção" (SIMANKE, 2009, p. 42).
O fato de referir-se aqui, a uma cronologia, não é conflitante com nossa argumentação, na medida em que esse termo parece estar associado a um encadeamento lógico de momentos sucessivos.
Apesar de Richard Simanke utilizar, em seu texto, a tradução "catexia" para o termo alemão " besetzung", ressaltamos nossa preferência pela tradução "investimento" em português.
Vide nota de rodapé #18.
Aqui vemos como o termo princípio do desprazer está articulado intrinsecamente à noção dada pelo princípio de realidade.
Vide nota de rodapé #18.
A esse fato Freud faz chamar de retorno do recalcado.
Vide nota de rodapé #18.
Clérambault costumava designar sua Síndrome do Automatismo Mental simplesmente por S.
Estrutura [tradução nossa].
É o que Freud tenta colocar quando refere-se ao apogeu do processo secundário – ele não inibe completamente o curso do processo primário, mas permite, efetivamente, a simbolização.
Ou seja, que não representam outras – mais poderíamos dizer imagens.
A palavra xenopatia advém dos léxicos gregos xenos, que significa estranho; e pathos, que pode ser traduzido por padecimento. Têm-se então o significado, dentro do contexto de que aqui tratamos, da qualidade de experimentar o próprio pensamento ou os próprios sentimentos como alheios ou impostos.
Freud se refere à imagens mnêmicas.
A palavra ideia vêm do termo grego eidos, que significa imagem. Essa noção, articulada aqui dessa maneira, presta-se para ressaltar a dimensão imaginária do significante, na psicanálise lacaniana.
Vide nota de rodapé #15
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE

CURSO DE PSICOLOGIA





JOÃO LUCAS BORGES ZANCHI








INTRODUÇÃO AO PROBLEMA DA PERCEPÇÃO E À PSICOSE NA PSICANÁLISE






SÃO PAULO
2016


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE

CURSO DE PSICOLOGIA





JOÃO LUCAS BORGES ZANCHI






INTRODUÇÃO AO PROBLEMA DA PERCEPÇÃO E À PSICOSE NA PSICANÁLISE





Trabalho de conclusão de curso como
exigência parcial para graduação
no curso de Psicologia, sob orientação
da Profa. Dra. Talitha Ferraz



SÃO PAULO
2016


AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que, direta ou indiretamente, estiveram envolvidos na realização deste trabalho.

À minha família e amigos, que compõem a maior parte do que nós chamamos de vida;
Aos meus pais, que me deram diferentes formas de incentivo, tão importantes;
À Profa. Dra. Regina Fabbrini, mentora de minha graduação, que tantas vezes proporcionou alguma satisfação ao meu desejo de saber, a partir de seu vasto conhecimento, e sem a qual, sem dúvida, este trabalho não teria sido possível.



RESUMO


Introdução ao problema da percepção e à alucinação na psicanálise
João Lucas Borges Zanchi
2016
Orientação de Talitha Ferraz
7.07.00.00-1

O presente trabalho presta-se produção de um a introdução ao problema da percepção e à psicose na psicanálise. Para essa finalidade, optou-se pela realização de uma revisão bibliográfica de alguns dos principais textos que tratam dessas questões, seguindo a lógica elaborada por Sigmund Freud e posteriormente articulada por Jacques Lacan. Chega-se à conclusão de que a psicanálise elaborada por Freud responde a uma definição dos conceitos de percepção e de psicose, tendo como fundamento a concepção de inconsciente, que segundo Lacan evidencia o atravessamento do ser humano pela linguagem.

Palavras-chave: percepção; psicose; psicanálise.


SUMÁRIO







Método.......................................................................................................... 6

Introdução.................................................................................................... 8

Capítulo 1 - O problema da percepção.................................................... 10

Capítulo 2 - Freud e a alucinação............................................................. 17
a) Os aparecimentos do fenômeno da alucinação............................. 19
b) Do (des)encontro com o objeto...................................................... 24
c) A realidade, em princípio.............................................................. 29
d) Um princípio de realidade.............................................................. 34

Capítulo 3 - A psicose............................................................................... 43
a) Clérambault e o automatismo mental............................................ 43
b) Complementação freudiana sobre o delírio................................... 50

Capítulo 4 - As palavras de Lacan........................................................... 53
a) A psicose como um distúrbio da linguagem................................... 54

Conclusão.................................................................................................. 60

Bibliografia................................................................................................. 62



MÉTODO






O presente trabalho parte de um desejo de saber a respeito de um problema exposto por Colette Soler (2009), em capítulo introdutório ao seu livro O inconsciente a céu aberto da psicose. Nele, vemos articulada a problemática da percepção no ser humano e a importância de sua definição teórica para o alcance geral da teoria psicanalítica, e mais especificamente para a compreensão dos fenômenos psicóticos.
Para introduzir o esclarecimento proporcionado pela psicanálise sobre essa questão, foi realizada uma revisão bibliográfica de alguns dos principais textos sobre o tema, com a preocupação de seguir-se sempre uma lógica freudiana.
Para tanto, foi considerada por inteiro a obra e o pensamento de Sigmund Freud. Isso não quer dizer que não reconheçamos as contradições, caminhos diversos que aqui e ali Freud toma, mas que optamos por segui-lo no que acreditamos ser seu trajeto principal e predominante, que confere mesmo à psicanálise seu estatuto. Foram extraídos, portanto, de sua obra, aqueles escritos que se mostraram especialmente interessantes para dar o devido tratamento à referida questão. Além disso, permitimo-nos ser auxiliados principalmente pelos comentários de Richard Simanke (2009) sobre como está articulado o assunto no texto freudiano.
Por considerarmos a interpretação lacaniana da psicanálise freudiana a mais interessante dentre todas as outras, lançamo-nos à tarefa de buscar as contribuições que faz sobre o tema, a partir de seu pensamento, para que desse modo a teoria freudiana pudesse ser melhor entendida. Para esse fim, utilizamos da leitura tanto de textos de Jacques Lacan, como de autores lacanianos. Ainda foram incluídos textos de Gaëtan Gatian de Clérambault, por figurarem como importantes sobre o assunto tratado por este trabalho, segundo Lacan.
A conclusão a que chegou-se não adveio, portanto, de outro lugar que não da teoria psicanalítica, concebida principalmente pelos textos de Freud e Lacan.


Introdução






As psicoses, dentre todas as suas particularidades e estranhezas, coloca-nos uma questão bastante intrigante à respeito do fenômeno da percepção no ser humano. O conhecido par que acompanha as descrições sobre os quadros psicóticos, a alucinação e o delírio, produz em nós uma indagação sobre a natureza de nossa relação com os objetos, na medida em que é possível, pela lógica do louco, relacionar-se com algo que não está aí.
Parafraseando Colette Soler (2007, p. 26), há "um mar de nomes próprios" dos que se lançaram à tarefa de estabelecer, sob uma explicação suficiente, a relação do sujeito com o objeto e onde está localizada a percepção nessa dicotomia. Isso coloca um problema bastante importante para a ciência, por exemplo, e que a filosofia por séculos a fio tentou resolver, que é propriamente a noção de conhecimento. Afinal, o que é e como percebemos? Ora, essa dúvida atormentou a cabeça dos pensadores na medida em que a consideraram fundamental para esclarecer, em última instância, qual a natureza do saber que é produzido pela ciência. Seria possível que o homem conseguisse apreender a essência do objeto? Uma atividade científica que pudesse se fazer integralmente objetiva?
O presente trabalho não se pretende a responder essa questão em particular, mas ela não deixa de ressaltar a importância do tema aqui tratado. Decerto, ao investigar o fenômeno da percepção na clínica, Freud toca em algo que poderíamos conceber como a natureza particular do ser humano. Quase desnecessário dizê-lo, já que Freud passou longe de desaperceber esse fator.
Há, portanto, algo que a psicanálise pode dizer sobre a percepção humana. Ou seja, existe relação entre o modo como percebemos e a noção construída por Freud de inconsciente.
Bem, talvez o que concluiremos sobre tudo isso, a partir dos ensinamentos freudianos, é exatamente que a relação propriamente humana com o objeto começa na medida em que ele já não está mais aí.


Capítulo 1 - O problema da percepção






Em seu livro intitulado "O inconsciente a céu aberto da psicose", Colette Soler adentra à problemática da estrutura psicótica, não sem antes observar, a guisa de introdução, uma questão crucial. Sobre ela, a autora elabora um capítulo: "Os fenômenos perceptivos do sujeito". Trata-se, portanto, do problema da percepção no ser humano e de como a psicanálise pode responder a ele. Cito-a, quando diz que:

Nossa questão é saber em que medida os problemas da percepção dizem respeito ao psicanalista. (SOLER, 2007, p. 23)

Essa é, de modo algum, uma proposta nova para a psicanálise. Antes, está situada no berço de seu nascimento, lá quando Freud começava a esboçar o que seria conhecido por seu nome, ainda junto a Breuer nos Estudos sobre a histeria. Aliás, convenhamos que esse problema da percepção no ser humano é um velho companheiro do desejo de saber dos homens da ciência: ele está implícito no questionamento central que move a filosofia sobre a dicotomia entre sujeito e objeto implicada na construção do conhecimento. Soler nos aponta isso também, em seu texto:

A questão da percepção e de seus distúrbios atravessou séculos de filosofia, evidentemente com transformações, sobretudo com a grande guinada que foi o surgimento da ciência – a verdadeira, a física –, a qual, no dizer de Lacan, cortou todas as amarras com o problema da percepção. A partir do aparecimento da ciência, a questão da percepção refugiou-se nas chamadas ciências humanas, especialmente a psicologia e a psiquiatria – sem esquecer, é claro, as ciências do organismo e, em particular, as neurociências. (SOLER, 2007, p. 23)

Portanto, vemo-nos frente a um problema bastante antigo, um problema que há muito é pensado pelas cabeças que tomam frente ao desenvolvimento científico e que, há muito antes disso, já era tema daqueles que se esforçavam por saber.
A tese central de Colette Soler, articulada à partir de seu capítulo introdutório sobre os fenômenos perceptivos do sujeito é uma: a de que a psicanálise introduz – à partir da lógica criada por Sigmund Freud, e mais claramente articulada por Jacques Lacan em seu ensino – uma inversão absolutamente inusitada no que se refere às tentativas de explicação sobre o fenômeno perceptivo no ser humano. Vejamos como isso se dá.

Para que elevemos a tese de Lacan à sua originalidade, façamos uma pontuação fundamental sobre sua relação com as demais concepções: relação essa que é de oposição. Fala-se, portanto, que, em seu aspecto fundamental, ela é oposta às demais, ou seja, ao fundamento central que as sustenta. A autora coloca-nos o problema da seguinte maneira:

Então, qual é esse núcleo comum? Todas essas correntes partilham uma única convicção, que tem formas diferentes, mas é sempre a mesma: a de que o percipiens, ou, dito de outra maneira, aquele que percebe – eu quase poderia dizer o perceptor –, é responsável pelo perceptum, ou é, digamos, seu agente. Em termos mais exatos, considera-se, certamente, que o perceptum é uma função do real, que existe um objeto real a ser percebido, mas supõe-se que o perceptum, ou o percepto, recebe do real apenas uma diversidade de sensações, as quais só se elevam à unidade de perceptum sob a condição de o percipiens introduzir ordem na dispersão e na multiplicidade das impressões recebidas. (SOLER, 2007, p. 28)

Soler se apoia, finalmente, na conclusão do próprio Lacan, categorizando essa linha de pensamento como aquela que conceitua, em realidade, aquilo que chama de um percipiens unificador. Todos esses teóricos – que na verdade não são nem poucos nem muitos em quantidade, mas todos os que antes debruçaram-se sobre o assunto – serão, portanto, "postos no mesmo saco" por Lacan devido exatamente à suas concepções sobre o fenômeno da percepção à partir desse percipiens unificador que agiria sobre o objeto fazendo surgir um perceptum à sua imagem e semelhança.
Essa concepção parece advir de uma crença de um sujeito a priori, de um indivíduo humano que já nasceria com atributos subjetivos capazes de serem projetados e, dessa maneira, caracterizar o mundo à sua volta de acordo com a sua "genética". Essa afirmação será importante também no universo psicanalítico, na medida em que ela servirá como fundamento para rotular as teorias de alguns autores pós-freudianos – como as de Melanie Klein – e para entender que suas interpretações da obra de Freud vão na contramão da tese lacaniana.

Retornando, Soler diz que esse traço é tão predominante nessas ditas antigas teses, tão essencial, que irá mesmo apagar a oposição na filosofia entre o empirismo e o idealismo. Ou seja, no terreno das concepções filosóficas sobre a percepção

O mais empirista, portanto, era de fato, ao mesmo tempo, o mais espiritualista. (SOLER, 2007, p. 31)

Isso porque necessariamente, mesmo entre as concepções mais empiristas, um princípio axiomático idealista era posto em evidência. É o que Soler chamará de a "fé perceptiva". Fé perceptiva essa, que consistiria mesmo nessa intervenção de um juízo que a priori produziria uma "prova de realidade". O exemplo mais ilustrativo que nos é dado pela autora é da concepção de Taine sobre o assunto. Vejamos:

Então, o que é perceber, para Taine? A atividade de percepção corresponde à mobilização de uma imagem mental ou de uma combinação de imagens. Dito de outra maneira, é uma alucinação normal. Toda atividade perceptiva repousa na presença de uma imagem mental de tipo alucinatório. Mas, sendo assim, como distinguir a alucinação doentia da alucinação normal? Eis a resposta, muito significativa: "Em vez de dizer que a alucinação é uma percepção falsa, convém dizer que a percepção externa é uma alucinação verdadeira". Vocês estão vendo o problema: não há como dizer do perceptum – que Taine situa no nível das imagens – que ele é verdadeiro ou falso sem fazer intervir um juízo, um juízo que produz "a prova de realidade": e diz se a alucinação perceptiva corresponde ou não a um objeto externo. (SOLER, 2007 p. 30/31)

e conclui, portanto, que

Lacan tem toda a razão ao assinalar que essa teoria, que pretendia ancorar-se na experiência pura, tem como critério supremo da realidade o juízo proferido pelo percipiens: para passar da sensação pura a uma afirmação perceptiva, é o espírito que decide. (SOLER, 2007, p. 30/31)

Mas, de novo, o que a psicanálise tem a ver com esse problema e por que, para Lacan, choca-se com as concepções que sustentam um percipiens unificador? Segundo Colette Soler, no mesmo texto sobre os fenômenos perceptivos, o psicanalista francês vai elaborar uma tese oposta às ultimas, apoiando-se na lógica freudiana e denunciando uma fundamental contradição da anterior:

Lacan, ao contrário, põe todas essas teorias no mesmo saco, em função da mesma ineficiência – razão por que ele precisa escorar poderosamente sua própria tese –, em função de todas elas partilharem de um mesmo fracasso, cuja prova se encontra, precisamente, em sua incapacidade de explicar... a alucinação. (SOLER, 2007, p. 27)

O argumento de Lacan, portanto, mais seria um contra argumento. Não é ao seu conforto que é elaborado. Esse movimento parte de uma questão, de uma contradição na própria teoria sobre a percepção que vinha sendo defendida até então, a respeito dos próprios fenômenos perceptivos, da necessidade para a psicanálise de chegar a uma compreensão da alucinação já que, como veremos, é parte integrante do funcionamento psíquico do ser humano.
Soler diz que em um primeiro momento Lacan concorda com as demais definições da alucinação. Ela diz que isso ocorre na medida em que todos os três,

o senso comum, os filósofos e também Lacan, [...] estão prontos a dizer, como ele [Lacan] assinala, que a alucinação "é um perceptum sem objeto". (SOLER, 2007, p. 27/28)

No entanto – e isso consiste a verdadeira ruptura de Lacan em relação à tradição clássica sobre a percepção –, no que diz respeito ao fenômeno da alucinação, todas essas teorias,

sejam quais forem suas diferenças, pedem justificativas ao percipiens sobre o perceptum sem objeto que é a alucinação. (SOLER, 2007, p. 28)

Portanto, no esquema

Objeto --> Perceptum Sujeito. (SOLER, 2007, p. 35)

Essa inversão do esquema teórico da percepção, apesar de excluir uma atividade incipiente do percipiens, não deve ser mal interpretada. É na medida em consideramos que aquele que percebe, ou seja, o percipiens, está submetido à estrutura da linguagem e que portanto a percepção está vinculada aos seus efeitos. Colette Soler assim resume Lacan, a esse respeito:

A tese, portanto, é esta: o campo da percepção é um campo ordenado, mas ordenado em função das relações do sujeito com a linguagem, e não ordenado pelo aparelho cognitivo, não ordenado pela mirada perceptiva. A tese é radical. Implica que a linguagem não é um instrumento do sujeito, mas um operador, no sentido de que produz o próprio sujeito. Ela também é totalmente nova e extrema, porque Lacan visa todo o campo da percepção, e não apenas o da percepção da linguagem e da fala. (SOLER, 2007, p. 34 e 35)

Descartamos, portanto, a possibilidade de indagar ao percipiens a respeito da percepção, já que a estrutura da linguagem nos faz atentar para um sujeito que é seu efeito, e que portanto a percepção terá de obedecer à suas leis – isso quando não há recusa primordial a elas. A essa processo Lacan chama castração simbólica; o produto disso conhecemos pela obra freudiana, que é um sujeito dividido, o inconsciente.
Colette Soler defende Lacan quando esse último argumenta que pauta sua tese na lógica elaborada por Freud. Ela coloca, no entanto, a questão:

o que permite a Lacan referir-se a Freud, nesse ponto? Não podemos dizer que essa tese esteja presente em Freud: ela é apenas dedutível da descoberta freudiana. (SOLER, 2007, p. 33)

E ainda admite que

As imagens teóricas em Freud – a evocação, por exemplo, de um eu-superfície, ou sua construção do sistema percepção-consciência, que deve permanecer sempre virgem para receber as impressões, e as superfícies receptivas que ele nos desenha no final de A interpretação dos sonhos –, todas essas imagens teóricas não deixam de evocar outras: o pedaço de cera de Descartes, a "tábula rasa" de Locke e até "a estátua" de Condillac, que ligam Freud a toda uma tradição com a qual Lacan rompeu. (SOLER, 2007, p. 33 e 34)

Ela cita, ainda, que o próprio Freud viu-se obrigado a postular uma instância encarregada da "prova de realidade", concepção bastante similar àquela defendida por Taine, comentada acima. Entretanto, diz ela,

há múltiplas direções nas elaborações freudianas, hesitações ou mesmo contradições internas, que Lacan aponta e utiliza. É o que acontece quando ele destaca, por exemplo, que não é coerente fazer do eu, conforme os textos, ao mesmo tempo o agente constituinte da prova de realidade e o resultado constituído das identificações narcísicas. Como diz Lacan, é preciso renunciar ao que é obsoleto no próprio mestre. O Freud que, sem dizer isso, está com Lacan na objeção a todos aqueles que Lacan enfia no saco, é o inventor da articulação inconsciente e do sujeito dela deduzido. (SOLER, 2007, p. 34; destaques nossos)





Capítulo 2 - Freud e a alucinação






O autor Richard Simanke (2009), em seu livro sobre A formação da teoria freudiana das psicoses, explora, principalmente nos dois primeiros capítulos, a teoria da alucinação em Freud. Nesse trabalho, como seu próprio título já o diz, o autor se esforçará por esclarecer como a teoria das psicoses se formou nas elaborações teóricas freudianas. Em uma breve introdução, ele diz que o propósito de seu trabalho era

recuperar o movimento de constituição da concepção das psicoses ao longo do percurso da obra de Freud. Ele partia da constatação, algo surpreendente, de que essa concepção era tida como incipiente, fragmentária e, pior, excessivamente conservadora e atrelada ainda à visão psiquiátrica da doença mental. Essa avaliação encontra seu argumento principal na tese, formulada em 1924, que atribui a psicose a uma perda da realidade (Realitätsverlust), a qual, tomada por seu valor de face, estaria simplesmente reafirmando a função normativa que o pensamento psiquiátrico usualmente atribui à realidade – concebida de forma algo ingênua e não problematizada – na diferenciação entre a saúde e a doença mental (DOR, 1989, p. 113). Na verdade, essa fórmula, tirada do contexto específico em que foi proposta, poderia até mesmo ser considerada próxima da visão do leigo de que o louco é apenas aquele sujeito incapaz de perceber e agir conforme a realidade tal como ela é. Parecia difícil acreditar que o máximo que Freud tivesse alcançado em suas investigações se resumisse a tamanho lugar-comum. (SIMANKE, 2009, p. 19)

A argumento de Simanke é bastante claro. Alucinação e psicose estão comumente relacionadas a uma perda de realidade, essa última entendida a partir de uma ótica normativa estabelecida principalmente pelo modelo psiquiátrico. Isso corresponderia a um protagonismo de um déficit funcional básico, que inclusive ganha força nos dias atuais com os supostos avanços da neurociência. Freud não parece discordar de que a psicose apresente alguma falha fundamental que leve ao estado de coisas dito patológico. No entanto, de maneira alguma irá anuir à concepção de uma realidade normativa tal como é proposto acima. Se podemos precisar alguma normatização na doutrina freudiana essa é a norma do sujeito, a lei do inconsciente, e o conceito de realidade psíquica que dela deriva.
Simanke nos diz que

A teoria da alucinação revelou-se intimamente vinculada às investigações de Freud que já se podem considerar metapsicológicas. (SIMANKE, 2009, p. 66)

ou seja, segundo ele,

O principal motivo que torna interessante iniciar pelo fenômeno alucinatório a investigação da gênese da teoria freudiana da psicose, além de sua presença na sintomatologia desta última, é a sua localização no entrecruzamento das preocupações clínicas de Freud com suas hipóteses psicológicas de alcance geral. (SIMANKE, 2009, p. 66)

Como já foi defendido acima, a questão a respeito das psicoses e do fenômeno da alucinação problematiza de maneira particularmente interessante as certezas que se hão atribuído em torno da função perceptiva no ser humano. Freud adentra essa dialética e erige um edifício teórico que, a partir da lógica que dele surge, parece responder à altura do problema.


a) Os aparecimentos do fenômeno da alucinação

Para entendermos a configuração da alucinação dentro do esquema teórico psicanalítico, vejamos em quais momentos Freud identifica sua insurgência. Se hoje, ao pensarmos em alguém que alucina, vinculamos, na maioria das vezes, esse sujeito à psicose, essa é uma ligação que obedece a um pensamento nem um pouco óbvio. Afinal, afirma Simanke

As primeiras observações significativas sobre a alucinação na obra de Freud são efetuadas a propósito da clínica das neuroses, referindo-se principalmente à investigação da histeria. (SIMANKE, 2009, p. 23)

O autor começa por explicar a alucinação na obra freudiana contextualizando-a, no que ele chama uma "primeira versão" do aparelho psíquico, elaborada por Freud no período entre o Projeto... e A Interpretação dos sonhos. Nesse período, estabelecido didaticamente por Simanke, estariam compreendidos textos de fundamental importância como o próprio Projeto... – que justamente delimita essa noção da primeira versão –, os Estudos sobre a histeria e As neuropsicoses de defesa. Segundo ele,

A alucinação é examinada, nesse período, basicamente em dois contextos: em sua relação com as vicissitudes dos processos mnêmicos e o funcionamento geral da defesa psíquica e no que diz respeito à vivência de satisfação descrita no Projeto..., que tem como consequência o surgimento do desejo e o esforço para sua realização e, num sentido mais amplo, responde pelas próprias origens do aparelho psíquico. (SIMANKE, 2009, p. 23; destaques nossos)

Decerto, nessa época, Freud está às voltas de maneira predominante com a histeria. Quando Simanke nos diz que o produto das elaborações freudianas sobre a alucinação concerne à metapsicologia, aponta certamente para o segundo sentido citado acima, vinculado à primeira experiência de satisfação, sentido esse que, segundo o autor, é o que

estará em continuidade com a concepção que virá prevalecer na psicanálise. (SIMANKE, 2009, p. 40/41)

No entanto, o que percebemos nos primeiros encontros de Freud com a histeria, ou melhor, o que ele próprio percebe, é a presença de fenômenos do tipo alucinatório na clínica das neuroses. Isso é importante: a alucinação, a presença de um perceptum sem o objeto, não é critério para um diagnóstico diferencial entre neurose e psicose. No entanto, direcionemos nossa atenção agora para essa primeira definição da alucinação, enquanto ligada à defesa na histeria. Definição essa que – adiantemos isso – Simanke irá taxar de caduca a partir da reformulação freudiana do aparelho psíquico no capítulo VII de A interpretação dos sonhos.
Acompanhemos Simanke na explicitação do lugar que a alucinação ocupa nesse cenário:

Nesse contexto [Comunicação preliminar], a alucinação aparece mais como um item no inventário dos sintomas histéricos do que como um fenômeno que possua algum alcance teórico especial. (SIMANKE, 2009, p. 24)

Freud considera a alucinação como um sintoma na histeria, ao lado dos demais na descrição clínica da patologia – aqui ainda um pouco influenciada pela categorização de sua "evolução", demarcação de Charcot. Uma das maneiras em que a alucinação se configura, portanto, é efetivamente como um fenômeno conversivo, que Freud definirá como próprio da patologia histérica:

A conclusão que parece se impor neste momento é a de que a alucinação enquanto sintoma histérico, define-se de fato como uma conversão, isto é, como o resultado da inervação conversiva do aparato sensorial. (SIMANKE, 2009, p. 36)

Sempre que pontua, entretanto, essa colocação do fenômeno da alucinação como equivalente ao sintoma conversivo, Simanke ressalta a importante contradição aí estabelecida, que irá servir, de certo modo, para resolução mesma da problemática. O autor diz que, concomitantemente a essa demarcação, a localização do conceito na teoria freudiana é posta também em outro lugar:

Haveria, assim, dois sentidos para a alucinação: um enquanto sintoma – isto é, enquanto símbolo do trauma – e que, portanto, contribui para manter a dissociação da consciência que sustenta a neurose; outro enquanto emergência, no imediatismo de uma reprodução perceptiva, de um acontecimento real que esta na origem da neurose. No entanto, os textos de Freud são claros ao expressar que a alucinação perpetua, no aqui-e-agora, o estranhamento do sujeito com relação aos conteúdos mentais presentes na raiz do conflito. (SIMANKE, 2009, p. 35)

É visível o fato de que a atenção de Freud, tanto na alucinação quanto no sintoma histérico, está voltado para um traço que neles identifica: esse que remete a algo que é da ordem do recalcado ou, melhor dizendo, do retorno do recalcado. Sabemos que o interesse freudiano, ao encarar a histeria, volta-se principalmente para a dita histeria traumática; para o conceito de trauma e seu conteúdo. Parece que é a partir dessa noção que a da alucinação poderá, então, articular-se de maneira definitiva. Isso indica que o que está em evidência nessa questão, para Freud, ou seja, o que se coloca como problema frente a seus olhos, não é simplesmente a descrição clínica de uma patologia que está supostamente pautada em desenvolvimentos deficitários de ordem neurológica, mas o inconsciente em exercício. Freud relaciona o sintoma – esforcemo-nos para vê-lo – já a uma problemática mnêmica, o que indica que não podem ser encarados como simples desvios da realidade, tal como postulado pela tradição psiquiátrica, encerram em sua complexidade a característica de referirem-se a uma realidade relacionada à representação, já que é de ordem mnêmica, da memória.
O que veremos é que essas duas definições dadas didaticamente por Simanke da alucinação são inevitavelmente conceituações relacionadas à trama do recalque, na neurose, e por isso mesmo algo que é da natureza do inconsciente. Sobre essa articulação Simanke irá defender que surgem

portanto, alinhados e inter-relacionados, três temas cruciais para o ulterior desenvolvimento da explicação dos fenômenos alucinatórios: o registro mnêmico do trauma, a rememoração e a alucinação. Esta última virá a ser encarada não só como uma forma possível, mas mesmo como um caso extremo de rememoração, uma vez que esta pode ou não atingir o ponto e a intensidade da alucinação. A alucinação refere-se, nesse momento, àquilo que fica excluído no segundo estado de consciência e que Freud depois denominou "retorno do reprimido". Esse retorno é, então, concebido dentro de um processo de divisão da consciência, expresso pela metáfora do "corpo estranho", empregada por Breuer no capítulo teórico dos Estudos.... (SIMANKE, 2009, p. 26)

Portanto, estando ambos a alucinação e o sintoma histérico sustentados por uma trama subjacente que está ligada ao registro mnêmico do trauma e à sua rememoração, coube mesmo à Freud uma ligeira confusão. É necessário, no entanto, estabelecer algumas distinções, em meio ao nevoeiro – que serão importantes quando abordarmos, na sessão seguinte, o retorno do recalcado – entre a alucinação como sintoma conversivo, representante do trauma, e a irrupção mesma dessa representação que corresponderia ao recalcado. Afinal, como veremos, tratamos, no sintoma histérico, de algo que responde por uma simbolização. Na outra definição da alucinação, as coisas não parecem caminhar nesse mesmo sentido.
Por exemplo, Freud chega a afirmar, em 1892, ao tratar do ataque histérico, que

o conteúdo de um ataque é a reprodução alucinatória de um evento que acarretou o perigo mortal, talvez com o eventual acréscimo das sequências de pensamentos e impressões sensoriais que o indivíduo ameaçado produziu nesse momento, (FREUD apud SIMANKE, 2009, p. 25; destaques do autor)

ao mesmo tempo em que atribui ao fenômeno da alucinação uma inervação conversiva do aparato sensorial. Não parece, aos nossos olhos, que esse fenômeno é encarado de maneira equivalente nessas duas explicações. Na primeira, antes, assemelha-se mais a, como Simanke irá se referir, uma

hipertrofia de uma função normal: o modo de rememoração de Emmy dá-se predominantemente de forma visual, e o exagero dessa característica produz a alucinação. (SIMANKE, 2009, p. 27/28)

É o mesmo sentido, pelo que se afigura, de uma outra afirmação do autor que, ao tratar do artigo freudiano Sobre as recordações encobridoras, diz que nele é discutida

a presença de elementos visuais na rememoração de cenas infantis. Evidentemente, não se pode falar aí de alucinações no sentido estritamente clínico e patológico do termo, mas sim do caráter alucinatório (ou quase alucinatório) do processo mnemônico. (FREUD apud SIMANKE, 2009, p. 28)

Qual seria, portanto, a diferença fundamental entre os dois conceitos? Como dar aos fenômenos alucinatórios sua devida base teórica dentro do sistema psicanalítico – para que possamos melhor entender, portanto, o problema da percepção?
Debrucemo-nos, para isso, nos escritos fundamentais de Freud, como o Projeto... – esses que nos darão base para conceituar a própria origem do aparelho psíquico e assim contextualizar a novela da percepção no homem.





b) Do (des)encontro com o objeto

Em um segundo momento de sua tentativa de contextualização da alucinação dentro da teoria freudiana, Richard Simanke nos remete às articulações esboçadas no Projeto.... Segundo ele, Freud faz aparecer, nesse momento, a noção de desejo, o que fundamenta aquela primeira definição da alucinação, concatenada à primeira vivência de satisfação e às origens mesmas do aparelho psíquico:

A função primária do aparelho neuronal de manter em zero a quantidade no interior do sistema e sua modificação secundária de manter (devido às exigências vitais) ao menos essa quantidade constante no nível mais baixo possível vão dar margem à explicação da origem desse mesmo aparelho e possibilitar a formulação de uma definição de desejo, à qual virá a vincular-se estreitamente uma das teorias aí formuladas para a explicação dos fenômenos alucinatórios. De fato, pode-se dizer que há duas teorias da alucinação no Projeto...: uma vinculada à vivência de satisfação e ao desejo e outra à neurose. (SIMANKE, 2009, p. 40)

Como sabemos – dado que já foi pontuado pelo autor –, é essa a concepção da alucinação – vinculada à noção de desejo – que irá perdurar na psicanálise.
Simanke resume nesses termos o processo que Freud denomina vivência de satisfação:

A estimulação endógena, ao contrário da exógena, cresce paulatinamente – processo que Freud denomina somação – e só a partir da ultrapassagem de um certo limiar chegar a converter-se em estímulo para o psíquico, isto é, a superar as barreiras de contato de obstaculizam o investimento dos neurônios em ψ do núcleo, podendo então ser advertida pelo sistema. Ultrapassado esse limiar, contudo, o afluxo de quantidade já não pode ser suspenso, a não ser pela realização de uma ação específica que suprima a fonte do estímulo. As alterações internas, a que Freud se refere como reações imediatas ao estado de urgência vital (tipicamente, ações reflexas, como o pranto, gritos, agitação motora inervações vasculares etc.), não são eficientes para esgotar a tensão, pois, apesar de serem uma forma de descarga, a recepção dos estímulos endógenos persiste, perpetuando o estado de tensão. O paradigma para toda essa situação é a fome do lactente. A imaturidade inicial do organismo humano, ao torná-lo incapaz de realizar por si só a ação específica, faz necessária a intervenção de um auxílio alheio, em relação ao qual as ações reflexas – sobretudo o grito e o pranto – inicialmente ineficazes passam a constituir a forma mais primordial de comunicação. Executada pelo indivíduo assistente a ação específica sobre o mundo exterior (nesse caso, a obtenção de alimento), o organismo fica habilitado para cumprir, no interior do corpo, a função capaz de permitir a eliminação do estímulo endógeno (a digestão, nesse caso). Esse processo, como um todo, consiste no que Freud denomina vivência de satisfação, "que tem as mais profundas consequências para o desenvolvimento das funções do indivíduo" (FREUD, 1895/1950, p. 363). (SIMANKE, 2009, p. 41)

Tratamos aqui, destarte, da condição primária em que se encontra o ser humano – daí Simanke referir-se à fome do lactente. O momento lógico imediatamente posterior a esse é o que poderíamos chamar do início da dita vida psíquica do sujeito e dos primórdios da linguagem no homem – e portanto da noção de inconsciente. Qual a importância do processo acima desenvolvido por Freud para o esclarecimento do conceito de alucinação?
Simanke explica que

Freud salienta como essa via de descarga acarreta a aquisição da função secundária, importante ao extremo, do entendimento, e por aí encontra elementos para a explicação da origem da linguagem nessa experiência prototípica de satisfação. (SIMANKE, 2009, p. 42)

Isso porque

o desamparo originário do recém-nascido coloca, desde o início, a relação e a representação do outro no centro de sua vida psíquica e na origem de suas motivações mais fundamentais. (SIMANKE, 2009, p. 42)

Atentemos a esse fator, de vital importância. Simanke diz que a "representação do outro" é colocada então como fundamento central, já que está associada à descarga da necessidade, ao melhor, ira figurar na memória ligada a esse momento primeiro.
A vivência de satisfação, articulada desse modo, tem uma consequência. A partir dessa experiência, vemos surgir o desejo:

Ele [Freud] definirá ali [no texto A interpretação dos sonhos] como desejo o esforço psíquico para investir novamente os traços mnêmicos deixados pela percepção do objeto que proporcionou a primeira experiência de satisfação. (SIMANKE, 2009, p. 44)

Chegamos a um ponto absolutamente fundamental. Freud deixa bastante claro que a primeira vivência de satisfação deixa algo que é da ordem de um traço [Züge]. Algo da percepção dessa experiência permanece em sua memória como como uma imagem a ser investida. Essa imagem é, como diz Simanke, uma representação, e portanto de ordem completamente diferente da experiência mesma. O desejo entra em jogo na medida em que é

colocado nitidamente no âmbito do psíquico e tem como pré-condição a primeira aparição do objeto e sua inscrição. A primeira satisfação é a satisfação de uma necessidade orgânica; o registro mnêmico dessa experiência – que inclui o objeto percebido – permite o surgimento do desejo, cuja satisfação será buscada eminentemente na esfera representacional. (SIMANKE, 2009, p. 44)

O objeto é articulado, então, para o sujeito, desde seu primeiro aparecimento, no âmbito da representação. Parece ser exatamente esse traço mnêmico que se fará perceptum para o sujeito. Estamos nos aproximando, podem perceber, cada vez mais das articulações a respeito do fenômeno da alucinação. Simanke resume esse ponto:

a partir dessa experiência inicial, a cada vez que se reeditar o estado de esforço ou de desejo (ou seja, quando houver novo investimento dos neurônios do núcleo), esse investimento passará também para as imagens mnêmicas do objeto desejado e para as do movimento reflexo realizado naquela ocasião. Freud dirá que, com toda probabilidade, a primeira a experimentar essa ativação desiderativa seja a imagem mnêmica do objeto. (SIMANKE, 2009, p. 44)

Daí, diz Freud,

"essa animação do desejo há de produzir, inicialmente, o mesmo efeito que a percepção, a saber, uma alucinação. Se, em consequência desta, se introduz a ação reflexa, é inevitável o desengano. (FREUD apud SIMANKE, 2009, p. 44)

Entendemos que o processo a que Freud nomeia "somação", ou seja, o acúmulo de quantidade de excitação no corpo, articulado indissociavelmente ao tecido representacional a datar da primeira vivência de satisfação é o que impulsiona a alucinação do objeto – alucinação que consiste no investimento perceptivo de sua imagem mnêmica.

Eis, portanto,

diz Simanke,

a alucinação definida como uma estratégia primária, ainda que biologicamente inadequada, para o sistema obter a realização do desejo. (SIMANKE, 2009, p. 44)

Por fim, sobre, então, a definição do objeto que advém dessa formulação freudiana, podemos encontrar uma passagem bastante interessante de Celso Rennó Lima (1994) – em texto intitulado Objeto de Freud a Lacan –, que sumariza a questão nos seguintes termos:

Do ponto de vista teórico, o 1º a ser deslindado foi o objeto de desejo, o objeto perdido da experiência de satisfação alucinatória. O objeto em jogo a nível do processo primário. Aquele mesmo que se depreende como "Das Ding" quando a experiência do pensamento, ao fazer o julgamento das percepções depara-se com uma não coincidência entre os traços de percepção e os traços de memória. Ora é esta "não coincidência" mesma que provoca o pensar ou, como nos diz Freud, erwecken das Interess a partir de Züge que se instalam na imagem construída do Nebenmensch. (LIMA, 1994, p. 1)

e finaliza com uma frase do próprio Freud, absolutamente exemplar, que diz:

Was wir Dinge nennen, sind Reste, die sich der Beurteilung entziehen. (FREUD apud LIMA, 1994, p. 1/2)



c) A realidade, em princípio

No que foi descrito a partir da explicação acima, acreditamos encontrar o que Freud chama processo primário, contíguo ao princípio do prazer:

O propósito dominante obedecido por estes processos primários é fácil de reconhecer; ele é descrito como o princípio de prazer-desprazer [Lust-Unlust], ou, mais sucintamente, princípio de prazer. Estes processos esforçam-se por alcançar prazer; a atividade psíquica afasta-se de qualquer evento que possa despertar desprazer. (FREUD, 1911/1996, p. 237/238)

Esse trecho é retirado do texto Formulações sobre dois princípios do funcionamento mental, que data de 1911, época já bastante avançada em relação aos textos que usávamos como referência até então. Isso indica – e Freud nos aponta perfeitamente essa questão – que as bases teóricas formuladas na época de A interpretação dos sonhos não perderam valor, apesar da adição de outros conceitos ao sistema psicanalítico nesse meio tempo. Ele inclusive as utiliza como ponto de partida, como ponto central, para a exposição de suas teses no texto. Vejamos:

Retorno a linhas de pensamento já desenvolvidas noutra parte quando sugiro que o estado de repouso psíquico foi originalmente perturbado pelas exigências peremptórias das necessidades internas. Quando isso aconteceu, tudo o que havia sido pensado (desejado) foi simplesmente apresentado de maneira alucinatória, tal como ainda acontece hoje com nossos pensamentos oníricos a cada noite. (FREUD, 1911/1996, p. 238)

Podemos desenvolver mais a relação entre processo primário e alucinação com base nessa afirmação de Freud. Em nota de rodapé vinculada ao final do último período da citação, podemos ver uma observação sua que diz que:

O estado de sono é capaz de restabelecer a semelhança da vida mental, tal como era antes do reconhecimento da realidade, por que um dos pré-requisitos do sono é uma rejeição deliberada da realidade (o desejo de dormir). (FREUD, 1911/1996, p. 238)

É bastante interessante pensar no valor que o termo "realidade" tem para Freud. Seria presunçoso o presente trabalho postular uma definição absoluta do valor do mesmo na obra freudiana, até porque pode-se colocar mesmo a questão de Freud ter ou não sido unívoco em sua conceituação. No entanto, parece aqui que ele nada tem a ver com uma realidade a ser percebida pelos sentidos, apreendida pelo sujeito nessa perspectiva materialista. Afinal, ora, não é esse o mesmo Freud que nos diz que no cerne da alucinação encontramos uma percepção, que é percepção advinda dos sentidos, e que portanto não deixa de ser apreensão da realidade? Poderíamos talvez lançar a ideia de que essa "realidade" que Freud diz que é de reconhecimento póstumo, volta-se muito mais para o sentido de uma ordem (no sentido de ordenação), para as leis e exigências impostas como realidade, para o que faz objeção ao princípio do prazer e à onipotência do sujeito. E, no entanto, ainda apontaremos que ela parece estar presente desde o início, e mesmo fazer parte do esquema da primeira vivência de satisfação.
Podemos pensar também na realidade tratada no fenômeno da alucinação. Segundo a lógica freudiana, ela é a realidade do traço. É a realidade da representação, que advém dessa primeira vivência de satisfação. É a realidade que Freud conceitua em sua obra como a realidade psíquica, que é outra que não a realidade material compreendida integralmente, já que, para que nela estejamos, o caráter absoluto do objeto deve dar lugar à imagem mnêmica que dele se tem.
Esse primeiro momento do desejo alucinado não deixa de ter estatuto de realidade para o sujeito, e o fenômeno da alucinação o atesta de maneira exemplar. É antes, sua real-idade, dado que alude-se a uma realidade do inconsciente, que segundo Freud é demarcado pela qualidade de ser atemporal.
Aqui vale citar uma passagem de A interpretação dos sonhos:

O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica; em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo, e é tão incompletamente apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos sensoriais. (FREUD, 1900-1901/1996, p. 634)

Mas retornemos à citação anterior de Freud. Ela estabelece um paralelo entre o sono – e portanto o sonho como atividade psíquica da vida noturna – e a realidade alucinatória a que o sujeito habita antes do dito "reconhecimento da realidade". Freud não poupa esforços em afirmar que o sonho é a realização de um desejo. No entanto, o sonho é um fenômeno que contém particularidades que podem ser bastante ilustrativas para nós. Vejamos o que dele fala Freud:

O fim e o sentido dos sonhos (ao menos dos normais) podem ser estabelecidos com certeza. São realizações de desejos, isto é, processos primários que se seguem às vivências de satisfação e, se não se os discerne como tais, isso se deve somente a que o desprendimento de prazer (reprodução de traços de descargas de prazer) é, neles, pequeno, porque, em geral, transcorrem quase sem afetos (sem descarga motora). No entanto, essa sua natureza é muito fácil de comprovar. Daí, justamente, eu deduziria que o investimento de desejo primário foi também de natureza alucinatória. (FREUD apud SIMANKE, 2009, p. 385-386)

Sonho e alucinação, lado a lado, como representantes do processo primário, como verdadeiros urros do inconsciente. Essa pré-história alucinada do sujeito relaciona-se com a assertiva freudiana sobre o sonho das crianças:

Os sonhos das crianças pequenas são frequentemente pura realização de desejos e são, nesse caso, muito desinteressantes se comparados com os sonhos dos adultos. Não levantam problemas para serem solucionados, mas, por outro lado, são de inestimável importância para provar que, em sua natureza essencial, os sonhos representam realizações de desejos. (FREUD, 1900/1996, p. 161-162)

Freud nos conta um divertido exemplo de sonho infantil dessa natureza:

Eis aqui um sonho igualmente direto, provocado pela beleza dos panoramas de Ausee em outra de minhas filhas, que contava então três anos e três meses. Ela atravessava o lago pela primeira vez e, para ela, a travessia fora curta demais: quando alcançamos o ponto de desembarque, não quis sair do barco e chorou amargamente. Na manhã seguinte, disse: "Ontem de noite fui para o lago." Esperemos que sua travessia no sonho tenha sido de uma duração mais satisfatória. (FREUD, 1900/1996, p. 164)

Todavia, em nota de rodapé referida à penúltima citação, Freud faz um adendo que pode nos ajudar a avançar em direção a um desfecho de nosso argumento. Ele ressalta que:

A experiência demonstrou que sonhos distorcidos, que necessitam de interpretação, já podem ser encontrados em crianças de quatro ou cinco anos, estando isso de pleno acordo com nossos pontos de vista teóricos sobre as condições determinantes da distorção nos sonhos. (FREUD, 1900/1996, p. 161)

Afinal, qual a particularidade que permite ao sonho – principalmente os sonhos infantis – ilustrar com excelência a realidade do inconsciente? Quando sonhamos, diz Freud, há suspensão de defesas que fazem barreira ao desejo:

o que caracteriza o sono não é a desintegração dos vínculos anímicos, mas o fato de que o sistema psíquico que detém o comando durante o dia se concentra no desejo de dormir. (FREUD, 1900-1901/1996, p. 614)

Entra em evidência, portanto, aquilo a que Freud chamará, em oposição ao princípio do prazer, princípio de realidade. Retomando o modelo advindo da conceituação da experiência primária de satisfação, no texto sobre Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental, ele complementa:

Foi apenas a ausência de satisfação esperada, o desapontamento experimentado, que levou ao abandono dessa tentativa de satisfação por meio da alucinação. Em vez disso, o aparelho psíquico teve de decidir tomar uma concepção das circunstâncias reais no mundo externo e empenhar-se por efetuar nelas uma alteração real. Um novo princípio de funcionamento mental foi assim introduzido; o que se apresentava na mente não era mais o agradável, mas o real, mesmo que acontecesse ser desagradável. Esse estabelecimento do princípio de realidade provou ser um passo momentoso. (FREUD, 1911/1996, p. 236)

Passamos a um instante que percebemos o aparecimento de um Eu, lá onde Isso estava:

a recordação primária de uma percepção seria sempre uma alucinação, e somente a inibição por parte do ego haveria ensinado o aparelho a nunca investir a imagem perceptiva de uma maneira que esse investimento pudesse transferir-se retroativamente a φ produzindo a consciência de uma sensação mesmo na ausência de um estímulo externo correspondente. (SIMANKE, 2009, p. 47)

Toda essa articulação, que propõe portanto um princípio que vai de encontro ao princípio do prazer, evidencia, alinhada com a noção de um Eu, um processo que não é mais o primário, mas o qual Freud denomina, por razão lógica, processo secundário.


c) Um princípio de realidade

Pudemos traçar, até aqui, uma introdução sobre o tema da alucinação, sustentando-a principalmente à partir do movimento encenado pelo princípio do prazer. No entanto, é bastante importante mantermo-nos alerta quanto ao sentido que é atribuído à esse esquema. Porque, na verdade, todo o esforço deve ser empreendido na direção de estabelecer essa dinâmica como produto da vivência primeira de satisfação – momento fundante de um traço, uma representação primordial – e só a partir disso conceber a articulação desses que Freud denomina dois princípios do funcionamento mental. O leitor atento percebe que já se vê constituído para a psicanálise, nesse efeito, a própria noção de objeto – afinal, tratamos de alucinação. O objeto da psicanálise é o objeto do desejo, e não o objeto da satisfação da necessidade, tal como ocorre na primeira experiência de satisfação. Por esse motivo ele é, fundamentalmente, desde início, um objeto perdido.

Ao tratarmos desse período inicial da infância em que o sujeito passa a viver uma realidade alucinada, talvez não façamos mais do que lustrar didaticamente esse momento imediatamente posterior à vivência de satisfação. Talvez tratemos, no caso, de um processo de duração considerável, composto repetidas vivências de satisfação e ausências do objeto. Não pretendemos, por ora, entrar nessa questão, que se mostra de uma complexidade que não interessa muito, para o traçado de nossa introdução. A didática aqui é a de apontar que se trata estruturalmente de uma falta de objeto, provocada pela inscrição da vivência de satisfação em um registro mnêmico – e portanto da ordem da representação, da estrutura da linguagem.
O equívoco que daqui pode surgir é aquele que desconsidera, na relação teórica e sistemática que envolve o conceito de princípio do prazer dentro da experiência primeira de satisfação, a indissociável articulação do princípio de realidade, na medida em que, como irá nos advertir Lacan, ele está presente desde o surgimento de seu par , o princípio do prazer, dizendo ao sujeito que ele está condenado a habitar o mundo humano, o universo da linguagem, no qual o objeto da satisfação plena – o da vivência de satisfação, que é uma construção ilusória do sujeito, dado que não contabilizávamos um desejo, num dito "marco zero" – não será reencontrado:

ali onde Freud introduziu a dialética de dois princípios inseparáveis, que não podem ser pensados um sem o outro, o princípio do prazer e o princípio de realidade, escolhem um deles, o princípio do prazer, e é a este que dão toda a ênfase, sustentando que ele domina e engloba o princípio de realidade.
Mas esse princípio de realidade, desconhecem-no em sua essência. Ele exprime exatamente isto: o sujeito não tem de encontrar o objeto de seu desejo, ele não é levado a isso por canais, trilhos naturais de uma adaptação instintiva mais ou menos preestabelecida, e aliás mais ou menos tropeçante, tal como a vemos no reino animal, ele deve ao contrário reencontrar o objeto, cujo aparecimento é fundamentalmente alucinado. É claro, jamais o reencontra, e é precisamente nisso que consiste o princípio de realidade. O sujeito não reencontra jamais, escreve Freud, senão um outro objeto, que corresponderá de maneira mais ou menos satisfatória às necessidades de que se trata. Jamais encontra senão um objeto distinto, pois que deve por definição reencontrar alguma coisa que é de empréstimo. Aí é o ponto essencial em torno do qual gira a introdução, na dialética freudiana, do princípio de realidade. (LACAN, 1995-1996/1988, p. 104)

No capítulo 7 de A interpretação dos sonhos, Freud discorre exatamente sobre a complexidade na qual nos encontramos:

Quando descrevi como "primário" um dos processos psíquicos que ocorrem no aparelho anímico, o que tinha em mente não eram apenas considerações sobre a importância relativa e a eficiência; pretendi também escolher um nome que desse uma indicação de sua prioridade cronológica. É verdade que, até onde sabemos, não existe nenhum aparelho psíquico que possua apenas um processo primário e, nessa medida, tal aparelho é uma ficção teórica. (FREUD, 1900-1901/1966, p. 626)

Diga-se de passagem que dificilmente conseguiríamos um suporte mais claro, partindo de Freud, referente à questão. Ele continua:

Mas pelo menos isto é um fato: os processos primários acham-se presentes no aparelho anímico desde o princípio, ao passo que somente no decorrer da vida é que os processos secundários se desdobram e vêm inibir e sobrepor-se aos primários; é possível até que sua completa supremacia só seja atingida no apogeu da vida. (FREUD, 1900-1901/1996, p. 626)

A dialética entre princípio do prazer e princípio de realidade, que se articula com o processo primário e processo secundário é bastante complexa. A referência freudiana ao apogeu do processo secundário seria indicação, talvez, ao momento crucial que é aquele em que há de haver o recalque. E, de fato, parece que apesar do conceito de princípio de realidade intervir desde início já que, como dito, a ordem da linguagem no ser humano está posta, a instauração, o desenvolvimento, do processo secundário é encarado por Freud como um movimento progressivo, que leva um tempo, e atinge sua maior força no homem pelo recalque.
Ao tratar do ataque histérico, como vimos, Freud defenderá a seguinte tese: algo que representa ao sujeito um perigo mortal emerge no fenômeno alucinatório. Ora, mas essa assertiva não seria um tanto paradoxal, dado que isso que emerge é o desejo? Se nos ativéssemos à primazia do princípio do prazer, não só a afirmação freudiana não faria o menor sentido, como os próprios fenômenos alucinatórios, de maneira geral, não poderiam, de maneira alguma, serem acompanhados de desprazer.
Por isso ressaltamos a importância que recai sobre o conceito de princípio de realidade. Talvez seja na medida em que uma lei, uma ordem no mundo é introduzida para o sujeito a partir da falta do objeto que possamos constatar a aparição do desejo – um desejo que é, consequentemente, em essência, desejo de transgressão, porque visa passar por cima da lei que delimita o objeto como perdido.
Em A interpretação dos sonhos, Freud nos apresenta o princípio do prazer, com a diferença de que ainda nomeia-o princípio do desprazer. Isto porque implica a consideração de que a emergência do traço deixado pela primeira vivência de satisfação é acompanhada de uma tensão – vivida como desprazer na medida em que aumenta a quantidade de excitação no sistema psíquico. Contabiliza-se, portanto, na medida em que isso aparece, desprazer. Ora, o termo prazer é postulado justamente para denominar a descarga dessa excitação. Vejamos como Freud articula esse processo:

Discutimos depois as consequências psíquicas de uma "vivência de satisfação", e a isso já pudemos acrescentar uma segunda hipótese, no sentido de que o acúmulo de excitação [...] é vivido como desprazer, e coloca o aparelho em ação com vistas a repetir a vivência de satisfação, que envolveu um decréscimo da excitação e foi sentida como prazer. A esse tipo de corrente no interior do aparelho, partindo do desprazer e apontando para o prazer, demos o nome de "desejo"; afirmamos que só o desejo é capaz de pôr o aparelho em movimento e que o curso da excitação dentro dele é automaticamente regulado pelas sensações de prazer e desprazer. (FREUD, 1900-1901/1996, p. 621/622)

E ele pontua, por conseguinte, que

O primeiro desejar parece ter consistido numa catexia alucinatória da lembrança de satisfação. (FREUD, 1900-1901/1996, p. 622)

No entanto, não para por aqui, de maneira alguma. Ao que Freud quer chegar, que é consequentemente ao ponto a que também queremos, nós, chegar – visto que seguimos a lógica de seu pensamento – é o de que:

Essas alucinações, contudo, não podendo ser mantidas até o esgotamento, mostraram-se insuficientes para promover a cessação da necessidade, ou, por conseguinte, o prazer ligado à satisfação.
Tornou-se necessária uma segunda atividade – ou, em nossa terminologia, a atividade de um segundo sistema – que não permitisse à catexia mnêmica avançar até a percepção e desde aí ligar as forças psíquicas, mas que desviasse a excitação surgida da necessidade por uma via indireta que, em última análise, através do movimento voluntário, alterasse o mundo externo de tal maneira que se tornasse possível chegar a uma percepção real do objeto de satisfação. (FREUD, 1900-1901/1996, p. 622)

A consequência disso é que o desejo é sustentado exatamente por essa dialética da busca do objeto perdido por vias indiretas. É desejo precisamente porque advém de uma falta fundamental imposta pela estrutura. Freud acrescenta:

Em consequência do princípio do desprazer, portanto, o primeiro sistema-ψ é totalmente incapaz de introduzir qualquer coisa desagradável no contexto de seus pensamentos. Ele não pode fazer nada senão desejar. (FREUD, 1900-1901/1996, p. 624)

A conclusão de sua argumentação é muito significativa. Precisa-a por consequência do desenvolvimento do pensamento que vinha desenvolvendo, o conceito de recalque, que sustentará o mecanismo das neuroses:

Examinemos a antítese da vivência primária de satisfação, ou seja, a vivência de pavor frente a algo externo. Suponhamos que incida no aparelho primitivo um estímulo perceptivo que seja fonte de uma excitação dolorosa. Sobrevêm então manifestações motoras descoordenadas, até que uma delas faz com que o aparelho se retraia da percepção e, ao mesmo tempo, da dor. Quando a percepção reaparece, o movimento é imediatamente repetido (um movimento de fuga, talvez), até que a percepção torne a desaparecer . Nesse caso, não resta nenhuma inclinação a recatexizar a percepção da fonte de dor, alucinatoriamente ou de qualquer outra maneira. Pelo contrário, haverá no aparelho primitivo uma inclinação a abandonar imediatamente a imagem mnêmica aflitiva, caso algo venha a revivê-la, pela mesma razão de que, se sua excitação transbordasse até a percepção, provocaria desprazer (ou, mais precisamente, começaria a provoca-lo)[...]. Essa evitação de lembrança de qualquer coisa que um dia foi aflitiva, feita sem esforço e com regularidade pelo processo psíquico, fornece-nos o protótipo e o primeiro exemplo do recalcamento psíquico. É comumente sabido que boa parcela dessa evitação do aflitivo – dessa política do avestruz – ainda é visível na vida anímica normal dos adultos. (FREUD, 1900-1901/1996, p. 624)

Dessa maneira, nos diz Freud, o modo como o neurótico irá se relacionar com os objetos que seriam substitutos, em certo sentido, do objeto perdido da primeira vivência de satisfação é atravessada pela noção de recalque. Como explica ele, a emergência do traço inconsciente deixado pelo objeto não deixa de existir, mas não é de interesse do sujeito que ela seja reinvestida integralmente. Porque isso emerge inevitavelmente, faz-se então necessário que seja deslocado para outra representação. A esse processo Freud denomina secundário, e às representações primárias – as imagens deixadas por aquele primeiro momento lógico –, representações-meta. O processo secundário consistiria, assim, oposição ao desejo de encontro com o suposto Objeto, desejo esse que representa um perigo mortal, efetivamente, uma vez que anularia a própria condição sob a qual a existência do desejo é possível. Essa formulação é a base da noção que Freud desenvolverá em 1920, no texto Além do princípio do prazer, denominada pulsão de morte. Percebe-se que, segundo essa lógica, há um movimento no aparelho psíquico à completa descarga da excitação, um princípio do prazer levado às últimas consequências, que Freud chamará de princípio de nirvana. Sobre isso, Lacan faz a afirmativa, que realmente faz todo o sentido dentro do pensamento freudiano, de que se trata de um desejo de não desejar. A metapsicologia criada por Freud parece mesmo pontuar a prevalência unânime da dinâmica paradoxal envolvendo esse desejo do sujeito de anulação do próprio desejo e o desejo de que sua condição desejante se conserve:

Para que se possa empregar a motilidade para efetuar no mundo externo alterações que sejam efetivas, é necessário acumular um grande número de experiências nos sistemas mnêmicos e uma multiplicidade de registros permanentes das associações evocadas nesse material mnêmico por diferentes representações-meta. [...]Insisto tão-somente na ideia de que a atividade do primeiro sistema-ψ está orientada para garantir a livre descarga as quantidades de excitação, enquanto o segundo sistema, por meio das catexias que dele emanam, consegue inibir essa descarga e transformar a catexia numa catexia quiescente, sem dúvida com uma elevação simultânea de seu nível. Presumo, portanto, que sob o domínio do segundo sistema a descarga de excitação seja regida por condições mecânicas muito diferentes das que vigoram sob o domínio do primeiro sistema. Depois que o segundo sistema conclui sua atividade exploratória de pensamento, ele suspende a inibição e o represamento das excitações e lhes permite serem descarregadas no movimento. (FREUD, 1900-1901/1996, p. 623)

Ora, podemos considerar, a partir disso, já de antemão, que a percepção do neurótico não é uma simples constatação por meio dos sentidos de um objeto que está lá. Antes esse objeto segundo é também uma representação para o sujeito, sujeita ao trabalho de deslocamento. A percepção do objeto obedece a lógica freudiana de um só-depois:

Freud continua a reconhecer que a consciência deve vincular-se aos neurônios nos quais aparece a percepção. Não obstante, estes dois aspectos devem aparecer logicamente desdobrados em polos opostos do aparelho. Isto implica que, para que uma percepção se faça consciente, a excitação que ela induz deve percorrer os sistema de ponta a ponta, experimentando todas as formas de transcrição possíveis, dentro de todos os princípios de associação. [...] parece ficar excluída a possibilidade de uma percepção imediata da realidade, ou melhor, da consciência imediata de uma percepção da realidade. (SIMANKE, 2009, p. 64)

Podemos, então, considerar dois momentos sequenciados logicamente: o primeiro sendo o da irrupção da representação à qual vincula-se o desejo – o, por assim dizer, retorno do recalcado –; o segundo, a força do recalque, que opera pelos mecanismos descritos por Freud – deslocamento e condensação. O objeto na neurose é, e ao mesmo tempo não é, aquele da primeira vivência de satisfação. É algo da ordem do símbolo, sendo o processo uma simbolização. É isso o que consiste a dita defesa nessa estrutura. Simanke nos diz que a trama neurótica, em Freud, consiste em

um processo patológico de formação de símbolos, em que o sujeito perde de vista aquilo de que a ideia que lhe ocorre é símbolo. (SIMANKE, 2009, p. 50 e 51)

E afirma isso apoiando-se nas elaborações de Freud no Projeto... sobre o sintoma histérico, que postulam que

A é uma representação hiperintensa que com excessiva frequência força sua entrada na consciência e provoca o pranto. O indivíduo não sabe porque chora por causa de A, considera isso um absurdo, mas não pode impedi-lo. Depois da análise, descobriu-se que existe uma representação B que, com toda razão, provoca o pranto e, com toda razão, se repetirá constantemente enquanto o indivíduo não tenha consumado contra ela uma certa operação psíquica complicada. O efeito de B não é absurdo, é compreensível para o indivíduo e ainda pode ser combatido por ele. B mantém com A uma relação determinada
É essa: ouve uma vivência que constituiu em B+A. A era uma circunstância colateral; B era apta para operar aquele efeito permanente. Mas a reprodução daquele evento na memória deu-se como se A tivesse substituído B. A tornou-se o substituo, o símbolo de B. Daí a incongruência: A se faz acompanhar de consequências para as quais não parece digna, que não lhe correspondem. (FREUD apud SIMANKE, 2009, p. 50)

Essa dialética do símbolo coloca-nos, porém, novamente frente àquela primeira questão da existência de fenômenos alucinatórios na neurose. O fato de que sob determinado ângulo, o objeto é, para o sujeito, a revivência do objeto perdido de satisfação – porque sua representação é associada à representação meta num só-depois –, nos inclina a pensar em seu caráter fundamentalmente alucinado. Mas, para além disso, pensamos no fenômeno da alucinação na neurose como uma falha – provavelmente pontual, momentânea – no processo secundário.
Essa dinâmica – porque parece realmente tratar-se de uma dinâmica, a do desejo – erige-se pelo próprio fato de que o recalque não é total. Não é o caso de uma dita "dissolução do complexo de Édipo", tal como parece crer em seu texto de 1924. Ao contrário, o conceito de retorno do recalcado parece atestar que o desejo se mantém, em uma outra cena. Por isso um princípio dessa realidade, já que o inconsciente que se instaura, e que é mesmo produzido por ela, propõe um movimento contrário.
Nosso trajeto desemboca nas psicoses, evidentemente. O que há de particular no que as diz respeito? Ora, não parece que possamos exclui-la do registro lógico da primeira vivência de satisfação, já que talvez tratemos aqui de uma perspectiva estrutural, o que implica que é imposição a todo ser humano – por serem dotados de linguagem. É possível, no entanto, que o modo como as coisas se dão na articulação dessa trama seja diferente nas psicoses de como o é nas neuroses.

Destaquemos um trecho de um texto de Marcus André Vieira, que diz:

há uma proximidade entre inconsciente e loucura? De alguma maneira, sim. Existe alguma relação entre a loucura e o inconsciente. Se não, porque a psicanálise teria algo a dizer sobre a primeira? Com todas as distâncias guardadas, existe alguma proximidade entre o que sofre um psicótico ou um louco e o que sofremos todos nós, entre o que acontece numa análise e o que acontece no tratamento da psicose. (VIEIRA, p. 2)

Freud pontua que esse mesmo inconsciente de que aqui tratamos está a céu aberto na psicose.


Capítulo 3 - A psicose






a) Clérambault e o automatismo mental

Permitamo-nos fazer uma pequena digressão na nossa imersão na psicanálise para dirigirmos nossa atenção para outro campo.
Topamos, nesse momento, com a teoria de Gaëtan Gatian de Clérambault (1872-1934), mestre psiquiatra francês que faz-se influência especialmente para Jacques Lacan, em virtude de sua teorização a respeito das psicoses. O conceito elaborado por Clérambault, principal motivo que o faz perdurar na história, é aquele conhecido como o automatismo mental, ou a síndrome S.
Angelina Harari (2006) produziu um texto que tem como um dos pontos centrais a articulação das ideias do psiquiatra com a lógica psicanalítica. Ela diz que:

A contribuição de Clérambault à psiquiatria francesa se concentra no que ele, em um primeiro momento, chamou de "automatismo mental" e, em seguida, reduziu à "síndrome S". Como mostra Miller, trata-se de um operador que possibilita uma extraordinária simplificação da clínica da psicose. (HARARI, 2006, p. 13)

Por que razão interessa-nos debruçar sob uma formulação da medicina sobre a psicose – articulada à problemática da alucinação e da percepção –, sendo que, pelo que parece, o esforço que empreendemos até então vem sendo no sentido contrário do reducionismo dos sentidos puros e da fé perceptiva; e do enquadramento da psicose como disfunção adaptativa, que são argumentos que na maioria das vezes sustentam o saber médico? Sobre isso, nos diz Lacan:

Há sempre coisas que não colam. É um fato evidente, se não partimos da ideia que inspira toda a psicologia clássica, acadêmica, ou seja, a de que os seres humanos são seres adaptados, como se diz, já que vivem, e portanto que tudo deve colar. Vocês não são psicanalistas se admitem isso. Ser psicanalista é simplesmente abrir os olhos para essa evidência de que não há nada mais desbaratado que a realidade humana. Se vocês creem ter um eu bem-adaptado, razoável, que sabe navegar, reconhecer o que tem de ser feito, e o que não tem de ser feito, levar em conta as realidades, não resta senão manda-los para longe daqui. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 101)

Portanto, por que o que o conceito de automatismo mental de Clérambault? Considerando-o o último representante da dita psiquiatria clássica, Francisco Barreto (2012) escreve:

A obra de Clérambault encerra um paradoxo. Suas concepções rigidamente organicistas e constitucionalistas fizeram dele um homem atrasado. Suas concepções estruturais, todavia, fizeram dele um homem que enxergou além do seu tempo. (BARRETO, 2012, p. 3)

Em referência às suas "concepções estruturais" coloca-se o tal conceito de automatismo mental, ou S. Barreto, em seu texto "S ou a Síndrome do Automatismo Mental, de Clérambault" explica que:

Lacan irá associar este S a Structure. (BARRETO, 2012, p. 4)

E por que? Na continuação desse mesmo texto, o autor nos explica:

Com sua Síndrome do Automatismo Mental, Clérambault acreditou, portanto, ter descrito algo comum às psicoses, ou, pelo menos, à grande parte delas.
O que Lacan mostrou é que se trata de algo muito mais abrangente, comum ao ser falante de um modo geral. Tal postulação muda inteiramente a abordagem dos problemas. Não mais se trata de saber por que os psicóticos são tão esquisitos, mas por que os neuróticos não se dão conta da sua esquisitice. (BARRETO, 2012, p. 5)

Recorramos ao texto de Clérambault. Nos apoiaremos especialmente em dois artigos: Automatisme mental et scission du moi - Présentation de malades publicado no Bulletin da Societé Clinique Médicine Mentale, de 1920; e Définition de l'automatisme mental, de 1924. O primeiro consiste na análise de três pacientes que foram submetidos à "apresentação de doentes", prática psiquiátrica bastante comum na época. Já o segundo é um pequeno texto que busca fazer algumas delimitações acerca do conceito de automatismo mental. Nesse último, encontramos um prenúncio do autor, que diz:

Entendo o automatismo à luz de fenômenos clássicos, como pensamento antecipado, enunciação dos atos, impulsos verbais e tendência a fenômenos psicomotores, que não raro enfatizo. (CLÉRAMBAULT, 1924/2006, p. 67)

Logo em seguida, esclarece-nos melhor sobre suas teorizações:

Acredito, no entanto, ter contribuído com algo novo ao isolar o grupo dos fenômenos supracitados e afirmar: a) seu conteúdo essencialmente neutro (ao menos, em seu início); b) seu caráter-não sensorial; c) sua função primária do decurso da psicose. (CLÉRAMBAULT, 1924/2006, p. 68)

Ele continua, e analisa cada um dos itens citados acima em um parágrafo subsequente:

O conteúdo neutro se refere ao fato de que tais fenômenos consistem apenas em um desdobramento do pensamento. Em relação a seu caráter não sensorial, o pensamento se torna estranho ainda sob a sua forma rotineira, ou seja, em uma forma indiferenciada, e não em uma forma sensorial definida. A forma indiferenciada se constitui de uma mistura de abstrações e tendências, ora sem elementos sensoriais, ora com elementos plurissensoriais vagos e fragmentários. Além disso, embora tais fenômenos tenham sido até o momento considerados complicações contingentes e tardias, afirmei que são, amiúde e contrariamente, os primeiros e mais antigos sinais da psicose. (CLÉRAMBAULT, 1924/2006, p. 68)

Por fim, Clérambault pontua que

O automatismo mental definido dessa maneira é um processo autônomo. Muito frequentemente, encontra-se isolado e não comporta nenhum delírio em si mesmo; delírios podem se juntar a ele apenas muito depois de seu surgimento. (CLÉRAMBAULT, 1924/2006, p. 69)

Sobre isso, Harari afirma que S, da formulação do autor, é

Uma estrutura elementar, uma série de fenômenos "neutros" e automáticos observados na entrada da psicose que situam a causa desta fora da influência da psicogênese (Stevens 1993). S é autônomo, atemático e neutro; com base nele, podem edificar-se os mais variados delírios secundários, ou seja, no momento em que estes surgem, pode-se dizer que a psicose já é antiga. O delírio não é mais que uma superestrutura. (HARARI, 2006, p. 13)

Não habitamos, até então, propriamente o conceito de delírio – ele é certamente um mecanismo próprio da estrutura psicótica. Vimos que o mecanismo das neuroses é a simbolização, que acontece de certa maneira, com algum sucesso. Como se dariam as coisas para o psicótico, então?
Como bem diz Harari, o delírio é articulado por Clérambault como uma superestrutura. Isso coloca o conceito de automatismo mental como algo de base, fundamental:

O automatismo é tanto o fenômeno primordial quanto a base sobre a qual diversos delírios secundários podem se erigir. Diante de uma mesma síndrome de automatismo, um doente fará, por intermédio da interpretação, um delírio de desconfiança; um segundo doente, valendo-se da imaginação, fará um delírio megalomaníaco; outros farão delírios místicos ou eróticos, ou então uma mistura de todos eles. (CLÉRAMBAULT, 1920/2006, p. 63)

Desse modo,

a porção alucinatória (sensitiva, sensorial, motora) dos delírios ditos de perseguição é fundamental, primária. As ideias de perseguição se acrescentam a ela; o doente só é perseguido secundariamente. (CLÉRAMBAULT, 1920/2006, p. 63)

Isso vai se assemelhar bastante à concepção freudiana que, por sua vez, irá postular o delírio como uma tentativa de processo secundário. Um trecho do texto de 1920, de Clérambault, é especialmente ilustrativo desse pensamento:

O delírio propriamente dito é apenas a reação obrigatória de um intelecto que raciocina, frequentemente inalterado diante dos fenômenos emergentes de seu subconsciente, ou seja, do automatismo mental. (CLÉRAMBAULT, 1920/2006, p. 56)

De todo modo, o automatismo mental aponta para a emergência de representações puras para o sujeito, que lhe parecem vir de fora. Isso aparece de modo bastante claro nesse mesmo texto, Automatisme mental et scission du moi nas duas primeiras análises que faz ele – cada uma referente pacientes distintos. Cito-o:

Talvez se trate, então, de simples representações auditivas, sem objetividade determinada, mas adquirindo uma pseudo-objetividade pelo fato de seu conteúdo ser imprevisível e, consequentemente, bastante estranho ao eu. (CLÉRAMBAULT, 1920/2006, p. 57, destaques nossos)

Essa observação refere-se ao "segundo doente". Sobre o "terceiro doente", o autor diz que

Descreve muito nitidamente a marcha automática de sua fala: "Minha língua segue as pegadas do pensamento de um outro". (CLÉRAMBAULT, 1920/2006, p. 59/60)

Daí a noção de xenopatia vinculada à teoria do psiquiatra francês.
Mas isso evoca, sem dúvida, uma noção que já nos é familiar: a do corpo estranho, que Breuer desenvolve nos Estudos sobre a histeria, e que permanecerá vinculada ao conceito de retorno do recalcado em Freud. Evoca, ainda, a estrita relação desses conceitos com a própria noção de inconsciente. Mais tarde, Lacan (1955-1956) apresenta-nos o inconsciente, como o discurso do Outro.
Temos mesmo, ainda no referido texto de Clérambault, uma observação sua a respeito da emergência do inconsciente tal como Freud o faz, articulando-a aos estados oníricos, como se neles, tal como no momento da ocorrência do automatismo mental, pudesse ser percebida uma diminuição das defesas, do processo secundário:

Produzem-se frases a um só tempo explosivas e absurdas, à maneira das frases surgidas em estados hipnagógicos. (CLÉRAMBAULT, 1920/2006, p. 57)

Da vinculação entre o conceito desenvolvido por Clérambault e a lógica freudiana, dizemos das representações-meta, ligadas à primeira vivência de satisfação, que emergem para o sujeito de forma que poderíamos considerar automática, buscando a repetição da experiência primeira. Essas representações são antes de mais nada, imagens. Ora, a representação, como pura representação, não ligada à outra, é desprovida de sentido. Harari refere-se a esse processo como uma

desordem no vínculo entre o enunciado e a enunciação, (HARARI, 2006, p. 15)

fazendo desse pensamento característico do automatismo mental

puro eco. (HARARI, 2006, p. 15)

A concepção de Clérambault nos leva mesmo a crer que o psiquiatra francês, em suas observações dos fenômenos psicóticos, conseguiu traçar uma teoria que tivesse em sua essência, semelhança fundamental com a lógica da psicanálise.
Harari nos faz essa indicação, quando explica que

O automatismo mental é, portanto, um conceito que permite agrupar tudo o que provém da influência externa sobre o sujeito, "a grande 'xenopatia' que Lacan fundou no campo da linguagem com seu matema do Outro. [...] As emergências xenopáticas estão fundadas na estrutura, se a estrutura quiser que toda palavra se forma no Outro" (Miller 1977). A questão, assim, não é mais 'o que é um louco?', e sim, 'como é possível não ser louco?'.(HARARI, 2006, p. 13/14)




b) Complementação freudiana sobre o delírio

Retornamos ao texto de Richard Simanke (2009), agora, para concluir nossa breve passagem pela psicose à partir do fundamento que Freud dá ao conceito de delírio. Na verdade, não deixamos de dar indicações ao abordar a teoria de Clérambault. Mas aproximemo-nos um pouco mais das palavras de Freud para apresenta-lo.
Simanke nos dá a indicação – que o leitor que acompanha com atenção o que até aqui foi exposto já deduz – de que o delírio

se encontra intimamente vinculado à alucinação, que consiste em um processo de rememoração levado ao limite. (SIMANKE, 2009, p. 99)

A partir disso concluímos, portanto, que ele diz respeito à história individual do sujeito, que começa no processo descrito por Freud de vivência de satisfação.
Sabemos também que, diante do "perigo mortal" imposto pelo processo primário, Freud formula que a neurose consiste em uma defesa que tem como mecanismo a simbolização, o que é referido, dentro do sistema teórico que constrói, ao processo secundário.
Ora, o que Simanke nos dirá ser a conclusão de Freud a respeito das psicoses é a não ocorrência desse processo de formação de símbolos, tal como ocorre nas neuroses. Dizemos, por conseguinte, que Freud reconhece que, nos fenômenos psicóticos, não há simbolização – daí dizer, do inconsciente, que está "a céu aberto".
Simanke nos remete a um momento em que Freud teoriza sobre a paranoia, dizendo que, aí,

há tão somente uma representação, que não se candidata à consciência mediante um substituto, mas se impõe inalterada a partir do exterior, na alucinação ou no delírio que a interpreta. Não há formação de símbolos na paranoia. [...] tudo se passa como se a "coisa" que deveria ser simbolizada retornasse inalterada para o sujeito. (SIMANKE, 2009, p. 119)

Destarte, diz Simanke, neurose e psicose estariam articuladas em referência ao registro simbólico. Na neurose,

a ideia A, presente na consciência, é um símbolo, mas um símbolo de B, outra ideia, por sua vez reprimida. Uma representação passa, assim, a simbolizar outra, mas não a coisa – pelo menos não no sentido de um objeto real, externo e independente dos processos psíquicos. Antes, Freud definiu esta última como o "resto" que se evade a todo esforço cogitativo, isto é, que fica fora da esfera da atividade representacional. É possível afirmar, então, que, quando uma representação se associa a outra, ambas se substituem à coisa. No caso da paranoia, quando uma única e mesma representação está em questão, ela retorna inalterada na alucinação, como uma espécie de representante imediato da coisa. (SIMANKE, 2009, p. 199)

Como fica, então, o sujeito psicótico, em relação à irrupção do traço deixado pela primeira vivência de satisfação, na medida em que é incapaz de simboliza-lo? A resposta parece ser simples: ele empreende, mesmo assim, esforço de simbolização. É interessante notar como é evidente essa tendência do sujeito, a que Freud chama pulsão de vida, e a qual Lacan se refere ao dizer sobre o "desejo de desejar". De alguma maneira o sujeito é impulsionado contra as garras da morte, representada pelo princípio de nirvana.
Assim sendo, o delírio é concebido por Freud como uma tentativa de interpretação. É assim que ele o define, segundo Simanke, nas Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa, ao fazer a "análise de um caso de paranoia crônica". Segundo as palavras de Freud nesse texto, sua paciente era acometida por

pensamentos "ditos em voz alta" (FREUD, 1896/1996, p. 180),

e indica o mecanismo em evidência no caso – na paranoia – era de

delírios interpretativos. (FREUD, 1896/1996, p. 183)

Simanke conclui que,

O símbolo histérico mantinha afastada da consciência a ideia original reprimida, encobrindo-a e representando-a ao mesmo tempo. Tal ambiguidade não existe no delírio: ele é uma tradução em representações de palavras do reprimido que retornou maciçamente na forma de signos perceptuais. (SIMANKE, 2009, p. 99/100)

Portanto,

o delírio pode começar a ser metapsicologicamente entendido [...] como um esforço do ego para constituir uma rede de representações de palavra que impeça o refluxo da excitação até o polo puramente perceptual do aparelho psíquico. (SIMANKE, 2009, p. 99)







Capítulo 4 - As palavras de Lacan





Comecemos este capítulo com uma breve recapitulação, a nós proporcionada pela fala de Marcus André Vieira, que recapitula o seu próprio seminário, que tem por tema a alucinação e portanto inscreve-se adequadamente em nosso trabalho – já que, como vimos, esse conceito articula-se de maneira exemplar com os problemas da percepção e com a psicose. Ele diz:

Recapitulo o que vimos sobre a alucinação. Ela não é um déficit de objeto, mas a presença de um objeto inaugural. É um objeto paradoxal, meio coisa, meio significante que Lacan designa como S1 e que pode se tornar um significante se inserido em uma cadeia, ou manter-se como presença fora do sentido, pura perplexidade. De todo modo, é sempre um elemento que se desprende do Outro. Se desprende do burburinho que é o Outro, esse banho de linguagem que é também um zum zum contínuo, em enxame nos termos de Lacan do Seminário 20. O valor clínico desta concepção é que esse elemento destacado pode ser uma âncora para organizar justamente nossa estadia nesse Outro. Ele torna esse enxame uma estrutura, um espaço de alteridade , uma rede de relações que pode agora ser percorrida em vez de apenas sofrida como zum-zum, burburinho, a invasão maciça de som, vozes, olhares, aqueles estímulos enlouquecidos. (VIEIRA, p. 1)


a) A psicose com um distúrbio da linguagem

Em seu Seminário 3, Jacques Lacan (1901-1981) diz:

A descoberta freudiana nos ensina que as adequações naturais são, no homem, profundamente desconcertantes. [...] A simbolização, em outras palavras, a Lei, desempenha aí um papel primordial. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 102)

Decerto, pelo que tivemos a chance de ver da lógica de Freud, Lacan não erra.
Em uma das passagens em que trata sobre o assunto da simbolização, evoca seu mestre, Clérambault, afirmando que

Ele faz alusão em primeiro lugar ao que se passa quando somos de repente tomados pela evocação afetiva de um acontecimento de nosso passado difícil de ser suportado. Quando não se trata de comemoração, mas realmente de ressurgimento do afeto, quando, recordando-nos de uma cólera, estamos bem perto de uma cólera, quando, recordando-nos de uma humilhação, revivemos a humilhação, quando, recordando-nos de uma ruptura de ilusão, sentimos a necessidade de reorganizar nosso equilíbrio e nosso campo significativo, no sentido em que se fala de campo social – pois bem, é o momento mais favorável, nota Clérambault, para a emergência, a que ele chama emergência puramente automática, de trechos de frase algumas vezes tomados na experiência mais recente, e que não tem nenhuma espécie de relação significativa com aquilo de que se trata. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 312-313)

O título desse seu seminário é justamente As psicoses. É com relação a elas que Lacan irá articular a noção do símbolo. Passemos então para suas proposições sobre o assunto. Ele diz:

proponho articular para vocês o problema nos termos que se seguem. Previamente a qualquer simbolização – essa anterioridade não é cronológica, mas lógica – há uma etapa, as psicoses o demonstram, em que é possível que uma parte da simbolização não se faça. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 100)

Ora, isso parece estar plenamente de acordo com a lógica freudiana a respeito do tema. Ao jogo das representações, da formação de símbolos, que é naquele sistema encarnado pelo conceito de processo secundário, já vimos como Freud o concebe.
Quando da subjetividade enlaçada ao símbolo, que obedece, até certo ponto, as regras do jogo, temos o mecanismo neurótico. Quando da impossibilidade disso, o psicótico. É dessa mesma maneira que Lacan o concebe:

O que é o fenômeno psicótico? É a emergência na realidade de uma significação enorme que não se parece com nada – e isso, na medida em que não se pode liga-la a nada, já que ela jamais entrou no sistema da simbolização – mas que pode, em certas condições, ameaçar todo o edifício. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 105)

Isso porque, diferentemente do que acontece na neurose,

O recalcado na psicose, se sabemos ler Freud, reaparece num outro lugar, in altero, no imaginário, e aí com efeito sem máscara. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 127)

Portanto, a função dos psicóticos, segundo Lacan,

é a de compreender algo sobre o que eles não compreendem nada, (LACAN, 1955-1956/1988, p. 305)

na medida em que

O equilíbrio, a justa situação do sujeito humano na realidade depende de uma experiência puramente simbólica, em um de seus níveis pelo menos, de uma experiência que implica a conquista da relação simbólica como tal. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 127)

Sua tese é, portanto, a de a psicose relaciona-se não ao que é concebido pela tradição clássica, ou seja, a uma disfunção dos sentidos, que não percebem as coisas como elas são, mas a um distúrbio no campo da linguagem. Para ele,

A realidade não é o que está em causa. O sujeito admite, com todos os rodeios explicativos verbalmente desenvolvidos que estão ao seu alcance, que esses fenômenos são de uma outra ordem que o real, ele sabe bem que a realidade deles não está assegurada, admite mesmo até um certo ponto a sua irrealidade. Mas contrariamente ao sujeito normal para que a realidade lhe chega de bandeja, ele tem uma certeza, que é a de que aquilo de que se trata – da alucinação à interpretação – lhe concerne. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 93)


No mesmo texto, Lacan nos dá um exemplo bastante ilustrativo de seu argumento. Diz que era convidado a dar um diagnóstico de psicose a uma de suas pacientes de

comportamento difícil, conflituoso com o seu meio. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 112)

Em resposta a isso,

me recusei a dar o diagnóstico de psicose por uma razão decisiva,

diz ele,

é que não havia nenhuma dessas perturbações que constituem o objeto de nosso estudo este ano, e que são os distúrbios na ordem da linguagem. Devemos exigir, antes de dar o diagnóstico de psicose, a presença desses distúrbios. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 112)

A estrutura da linguagem, aqui articulada à psicose, nos coloca a questão da relação do sujeito com o significante, em sua dimensão simbólica. Porque é evidente seu âmbito imaginário, ou seja, que o significante pode ser encarado como da ordem da imagem, pura e simplesmente, o que é muito bem atestado pelo fenômeno alucinatório. No entanto, essa ordem é intrinsecamente ligada ao significante como vinculado ao símbolo – afinal, se fosse de outra maneira, o chamaríamos simplesmente imagem. A alucinação não pode ser entendida, portanto, sem que isso seja considerado devidamente:

uma psicose não é simplesmente isso, não é o desenvolvimento de uma relação imaginária, fantasmática, com o mundo exterior. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 129)

Lacan esclarece-nos , em uma passagem de seu Seminário 3, essa dialética do significante na psicanálise da seguinte maneira:

O significante não faz apenas dar o invólucro, o recipiente da significação, ele a polariza, a estrutura, a instala na existência. Sem um conhecimento exato da ordem própria do significante e de suas propriedades, é impossível compreender seja o que for, não digo da psicologia – basta limita-la de uma certa maneira –, mas certamente da experiência psicanalítica. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 303)

O verdadeiro efeito provocado pela incidência do significante no sujeito é a fundação de um real que escapa à simbolização, na medida em que o processo é sempre da ordem de uma metonímia. É um resto da produção do sujeito, estruturalmente impossível de adentrar a cadeia significante.
Há, portanto, um fato fundamental, que é o de que "as coisas não colam", como diz Lacan (1998), na medida em que o registro simbólico é um rodeio de significantes que, por sua natureza, não têm como significado Coisa alguma que não eles próprios. O objeto da busca da satisfação do desejo é fundamentalmente faltante. Isso representa uma falta estrutural.
Com relação a isso, sobre as psicoses, Lacan irá dizer que:

Há uma outra forma de defesa que aquela que provoca uma tendência ou uma significação proibida [ele refere-se aqui ao recalque, defesa neurótica]. É a defesa que consiste em não se aproximar do lugar em que não há resposta à questão. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 236)

Ele defende, ainda, que há

a necessidade de nos determos na existência da estrutura do significante como tal, e, em resumo, tal como ele existe na psicose; (LACAN, 1955-1956/1988, p. 233)

já que,

Pode-se crer que, numa psicose, tudo está ali no significante. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 312)

E por quê? Certamente isso já é uma outra questão, um pouco mais avançada em relação ao título de introdução que aqui propomos. Lacan formula o conceito de "ponto de basta" a respeito da simbolização, na medida em que, mesmo que as coisas não colem, alguma coisa deve minimamente colar:

Eu não sei o total, mas não é impossível que se chegue a determinar o número mínimo de pontos de ligação fundamentais entre o significante e o significado necessários para que um ser humano seja dito normal, e que, quando eles não estão estabelecidos, ou afrouxam, produzem o psicótico. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 312)

Não iremos adiante no desenvolvimento desse conceito aqui. Ao invés disso, utilizaremos da ilustração de Lacan no Seminário 3, que evoca a tragédia Atália de Jean Baptiste Racine. Há aí uma cena em que o personagem Abner dirige-se à rainha Atália, e que se passa inicialmente dessa maneira:

Sim, eu venho em seu templo adorar o Eterno,
Venho, segundo o uso antigo e solene,
Celebrar com você a famosa jornada
Onde no monte Sinai a lei nos foi dada. (RACINE apud LACAN, 1955-1956/1988, p. 306)

E o comentário de Lacan sobre ela é:

Quando um de seus soldados começar dizendo Sim, eu venho em seu templo..., não se sabe de forma alguma aonde tudo isso vai chegar. Isso pode terminar também por qualquer coisa – Eu venho em seu templo... prender o Sumo sacerdote, por exemplo. É preciso verdadeiramente que tenha terminado para que se saiba de que se trata. A frase só existe acabada, e seu sentido lhe vem só depois. É preciso que tenhamos chegado inteiramente ao fim, isto é, do lado desse famoso Eterno.
Estamos aí na ordem dos significantes, e espero ter-lhes feito sentir o que é a continuidade do significante. Uma unidade significante supõe uma certa laçada enlaçada [boucle bouclée] que situa os seus diferentes elementos. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 305)

É a partir dessa consideração da estrutura do significante que podemos chegar a alguma compreensão da subjetividade humana e da realidade que está em questão no problema da percepção e na psicose. Partamos para as considerações finais a respeito do assunto, ressaltando, por fim, as palavras de Lacan, quando diz:

Pois bem, o que chamamos o sentimento de realidade quando se trata de restauração das lembranças é alguma coisa de ambíguo que consiste essencialmente no fato de que uma reminiscência, ou seja, uma ressurgência de impressão, se organiza na continuidade histórica.
Não é um ou outro que dá uma inflexão de realidade, é um e outro, é um certo modo de conjunção desses dois registros. Eu irei mais longe – é igualmente um certo modo de conjunção de dois registros que dá o sentimento de irrealidade. No domínio sentimental, o que é sentimento de realidade é sentimento de irrealidade. O sentimento de irrealidade aí está apenas como um sinal de que se trata de estar na realidade, e de que, a não ser por um quarto de triz, aí falta alguma coisinha. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 134-135)


Conclusão






O que podemos ter, aqui, a título de conclusão? O que sabemos, portanto, sobre a realidade, concepção tão amedrontadora para a ciência. Ora, se fizemos certo ao interpretar o que até aqui foi por nós exposto, dizemos que da realidade, em si, nada sabemos. Isso não quer dizer que dela nada possamos saber. Afinal, não parece que a ciência se preste a um completo desconhecimento. Saibamos, entretanto, dessa limitação.
Sobre essa articulação e o problema da percepção e a psicose, Lacan diz que

ficamos com muito pasmo de que um sujeito ouça coisas que não ouvimos. Como se não nos acontecesse, a todo o momento, ter visões, como se não nos tombassem na cabeça fórmulas que têm para nós um valor surpreendente, orientador, algumas vezes até fulgurante, iluminante. Evidentemente, delas não fazemos o mesmo uso que o psicótico.
Essas coisas se dão na ordem verbal e são sentidas pelo sujeito como acolhidas por ele. Se nos interessasse acima de tudo, como nos ensinaram na escola, a questão de saber se é uma sensação ou uma percepção, ou uma apercepção, ou uma interpretação, se, em suma, ficamos na relação elementar com a realidade, no registro acadêmico escolar, confiando numa teoria do conhecimento manifestamente incompleta, deixamos escapar toda a sua importância. No sentido oposto de uma teoria que se escalona da sensação passando pela percepção para chegar à causalidade e à organização do real, a filosofia, já há algum tempo, desde Kant pelo menos, se esforça aliás por nos advertir a plenos pulmões que há campos diferentes da realidade, e que os problemas se exprimem, se organizam e se colocam em registros igualmente diferentes. Por conseguinte, tentar saber se, sim ou não, uma palavra é ouvida não é talvez o problema mais interessante. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 134)

A realidade para o ser humano, portanto, é a realidade que é efeito da incidência do significante, da estrutura da linguagem. Ao ser introduzida, exclui-se a possibilidade de considerar a percepção como algo que é disso destacado, pautada em uma objetividade material. Não se trata, portanto – diz Lacan –

do que se chama vagamente de realidade, como se fosse a mesma coisa que a realidade das muralhas contra as quais batemos com a cabeça, trata-se de uma realidade significante, que não nos apesenta simplesmente botaréus e obstáculos, mas uma verdade que se verifica e se instaura por si mesma como orientando esse mundo, e introduzindo os seres, para chamá-los pelo nome deles. (LACAN, 1955-1956/1988, p. 238)

É, por fim, a realidade estruturada como significante a qual nós, homens, nos referimos:

Refletindo sobre isso, teremos necessidade da psicanálise para sabê-lo? Não ficamos perplexos de que os filósofos não tenham destacado há muito tempo o fato de que a realidade humana é irredutivelmente estruturada como significante?
O dia e a noite, o homem e a mulher, a paz e a guerra – eu poderia ainda enumerar outras oposições que não se extraem do mundo real, mas lhe dão sua armação, seus eixos, sua estrutura, que o organizam, que fazem com que haja efetivamente para o homem uma realidade, e com que ele nela se reconheça. A noção da realidade, tal como a fazemos intervir na análise, supõe essa trama, essas nervuras de significantes. Isso não é novo. Está perpetuamente implicado no discurso analítico. (LACAN, 1955-1956/1988. p. 233)


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