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May 23, 2017 | Autor: Sandra Mara Corazza | Categoria: Philosophy, Genealogy, Michel Foucault, Infancy, Arqueología
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Parece que, por muito tempo, teríamos encontrado um mito de origem do sujeito moderno e nele buscaríamos até hoje nossa verdade primeva, sujeitando-nos a seus decretos, ordens e promessas: estado de excelência do ser humano autêntico; forma ontogenética de um ser único repetindo a filogênese da espécie; modelo positivo que induz à valorização do melhor e do mais real do humano; mecanismo de representação fiel que serve para explicar a unidade de sua natureza; ou, em linguagem figurada: mundo maravilhoso e encantado; jardim das delícias; paraíso de pureza e inocência pletóricas; viveiro de felicidades; subterrâneo não socializado – selvagem, básico, arcaico, primitivo, exótico, insondável, belo, inato, perfeito, livre –, onde mora o que foi reprimido posteriormente; em suma, aurora de nossas vidas1*. Neste lugar e

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Como nos ensinavam a declamar: Meus oito anos, de Casimiro de Abreu (1837-1860). Oh! que saudades que tenho/ Da aurora da minha vida,/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais!/ Que amor, que sonhos, que flores,/ Naquelas tardes fagueiras/ À sombra das bananeiras,/ Debaixo dos laranjais!// Como são belos os dias/ Do despontar da existência!/ Respira a alma inocência / Como perfumes a flor;/ O mar é lago sereno,/ O céu – um manto azulado,/ O mundo – um sonho dourado,/ A vida – um hino d´amor!// Que auroras, que sol, que vida,/ Que noites de melodia/ Naquela doce alegria,/ Naquele ingênuo folgar!/ O céu bordado d´estrelas,/ A terra de aromas cheia,/ As ondas beijando a areia/ E a lua beijando o mar!// Oh! dias da minha infância!/ Oh! meu céu de primavera!/ Que doce a vida não era/ Nessa risonha manhã!/ Em vez das mágoas de agora,/ Eu tinha nessas delícias/ De minha mãe as carícias/ E beijos de minha irmã!// Livre filho das montanhas,/ Eu ia bem satisfeito,/ De camisa aberto o peito,/ Pés descalços, braços nus/ Correndo pelas campinas/ À roda das cachoeiras,/ Atrás das asas ligeiras/ Das borboletas azuis!// Naqueles tempos ditosos/ Ia colher as pitangas,/ Trepava a tirar as mangas,/ Brincava à beira do mar;/ Rezava as Ave-Marias,/ Achava o céu sempre lindo,/ Adormecia sorrindo/ E despertava a cantar![...] (Abreu, 1954, p.193-4). Ou, como Chico Buarque cantou, em Doze anos, no final da década de 70: Ai, que saudades que eu tenho/ Dos meus doze anos/ Que saudade ingrata/ Dar banda por aí/ Fazendo grandes planos/ E chutando lata/ Trocando figurinha/ Matando passarinho/ Colecionando minhoca/ Jogando muito botão/ Rodopiando pião/ Fazendo troca-troca.// Ai, que saudades que eu tenho/ Duma travessura/ O futebol de rua/ Sair pulando muro/ Olhando fechadura/ E vendo mulher nua/ Comendo fruta no pé/ Chupando picolé/ Pé-de-moleque, paçoca/ E, disputando troféu/ Guerra de pipa no céu/ Concurso de piroca (Hollanda, 1989, p.159). Ou então, como escreveu, em 1997, o comentarista esportivo Paulo Sant’Ana, da Rede Brasil-Sul de Comunicação, na crônica A época da inocência: “Há uma melodia muito triste, entremeada de versos tão simples quanto belos, que se constitui num clássico do populário brasileiro: ‘Tu não te lembras da casinha pequenina/ Em que o nosso amor nasceu?/ Tinha um coqueiro do lado/ Que coitado/ De saudade/ Já morreu’. Os coqueiros estão ligados estreitamente à minha infância. [...] Vez por outra ainda passo por ali, [...], para deixar que se derramem dentro de mim as recordações de um tempo de doce alienação, das fantasias infantis contidas nas histórias em quadrinhos, na pelada de todas as tardes no campinho, nas incursões pelas selvas do morro, colhendo araçás, goiabas, maracujás, amoras, pitangas ... e coquinhos. Meus olhos ficam marejados quando volto ao cenário pretérito da minha felicidade. [...] Como eram doces os fibrosos coquinhos da minha infância! [...] e só agora tenho consciência de que era feliz, pois não continha sequer a incerteza com o futuro, junto com a inexistência do passado: o largo e inconfundivelmente paradisíaco tempo da infância, sem planos, sem inveja, sem comparações, sem ambição e sem ressentimentos. É tão pura, genuína e virginal a infância, que só muito tempo depois dela eu fui saber que havia pobres e ricos, que havia ódio e traição, todas essas sombras que, embora existentes ao redor de uma criança, são absolutamente imperceptíveis para ela. E não me sai da cabeça a metade de caule daquele coqueiro

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constituindo-o, um ser: ao mesmo tempo, nosso Mesmo e Outro, o Próximo e o Longínquo. Não é que este ser – ora soberano de lídima pátria, ora súdito renegado – não tivesse existido antes; mas é que, por não ser um fato de natureza, mas de cultura – cuja história é a das culturas que o dizem infantil e o governam –, como as outras figuras de saber, da baixa Idade Média e da Renascença, repetia-se apenas no parentesco, na vizinhança e na afinidade infindável dos signos e da semelhança, os quais asseguravam a monótona correspondência, em forma de anel, das coisas de um mundo indefinido, fechado, pleno, tautológico2. Fraturada a fronteira desse grande texto da similitude pelas andanças de Don Quixote – limiar em que as palavras e as coisas nunca mais se assemelharão como no século XVI –, será na época clássica da representação que a natureza humana deste ser que ainda lá nas Bananeiras resiste, a me empurrar para a recordação deliciosa daquela encantadora época da inocência” (Sant’Ana, 1997, p.71). * Sendo esta a primeira Nota de rodapé do texto, aproveito a paciência recém exercitada do/a leitor/a para fazer cinco observações: 1) A fim de facilitar a leitura, preferi citar todos os textos em português; neste sentido, deve-se ter presente que, cada vez que cito em português uma obra escrita em outro idioma – exceto quando o contrário se encontrar indicado na Bibliografia Citada –, a tradução é minha. 2) Em um mesmo conjunto de escrita, integrado por parágrafos que se sucedem, ao realizar mais de uma citação retiradas de uma mesma página, de um mesmo texto, indico-o apenas uma vez, desde que isto não prejudique a identificação dos argumentos. 3) Quanto à disposição das referências bibliográficas no corpus do texto, preferi usar o recurso de “esconder” nomes de autoras/es, datas dos textos, números das páginas consultadas, em notas ao pé das páginas, ao invés de escrevê-los no texto “corrido”, com o objetivo de aligeirar a leitura; também utilizo este mesmo recurso para concentrar alguns elementos que julgo “impertinentes” ao texto, como, por exemplo, a poesia de Casimiro de Abreu, a canção de Chico Buarque, ou a crônica de Paulo Sant’Ana. Peço desculpas aos/as leitores/as se estes procedimentos não agradam ao seu jeito de ler, ou se lhes cansa os olhos pelo tamanho das letras ao pé de página, mas este será um texto de “dois andares”, como o chamaria Trotski (Lerena, 1983, p.55, citando Trotski). Dentro de tal arquitetura, ninguém precisa se sobressaltar quando ocorrer de, em uma determinada página, tornar-se visível apenas um destes pisos: logo, logo, o outro voltará ao campo de manobras. 4) Em momentos inesperados do texto (1, 2, 3, 4,...?), o leitor/a leitora entrará em um pavimento caracterizado pelo pé-direito reduzido e por sua disposição adaptada ao desvão do telhado: é o “sótão”, onde as “palavras” e as “coisas” encontram-se um tanto amontoadas, como convém a um espaço deste tipo. Nele, deposito tudo o que é inadequado aos outros dois pisos. 5) Em função dessa composição arquitetônica do texto, o convite é para que nele circulemos como em uma “casa”: a do infantil moderno; ou melhor, “a nossa casa”, onde fomos, criamos, alimentamos, educamos o infantil moderno. Acerca de tal construção podemos proferir a mesma Advertência que Machado de Assis (1962, p.5) fez, antes de iniciar suas Relíquias de casa velha: “Uma casa tem muita vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro, da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em as arejar e expor para teu e meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, pode extrair uma dúzia delas que mereçam sair cá fora. Chama-lhe à minha vida uma casa, dá o nome de relíquias aos inéditos e impressos que aqui vão, idéias, histórias, críticas, diálogos, e verás explicados o livro e o título. Possivelmente não terão a mesma suposta fortuna daquela dúzia de outras, nem todas valerão a pena de sair cá fora. Depende de tua impressão, leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha”. De que se duvida é que possamos escrever, sobre a porta desta casa, o Sobre minha porta d’A gaia ciência, de Nietzsche (1974a, p.195): “Moro em minha própria casa, // Nada imitei de ninguém // E ainda ri de todo mestre, // Que não riu de si também”. Talvez pudéssemos, com Bataille, chamar o texto de “canteiro de obras”; mas aí tanto as técnicas de planejamento espacial quanto as estratégias de composição textual seriam outras, já que a função, a eficácia, a forma, os espaços, os jardins, a própria arquitetura diferem (cf. Moraes, 1995). 2 Cf. Foucault, 1968.

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principiará a ser pensada e esclarecida como um ponto na série; porém, apenas para ser comparada e entrar na hierarquia da ordem. Embora a cultura ocidental tenha configurado, nos séculos XVII e XVIII, uma nova epistéme – em que o semelhante, por intermédio da medida e da comparação, se dissocia numa análise feita em termos de identidade e diferença –, o Ser que aqui interessa não estará ainda colocado no quadro dos seres. Mesmo que a tela de Velázquez – Las Meninas – tenha por título este que tem, “as meninas”, tais como hoje as conhecemos, não puderam estar aí presentes, pela impossibilidade da pintura de representar o próprio ato de representar e o ser que o organizava. As luzes do Iluminismo terão feito do “quadro” – apesar de seus espelhos, reflexos, retratos, imitações – o exercício derradeiro que produz a opacidade representacional. Se Deus não ordenava mais o mundo; se as noções de mathesis, de taxionomia e de génesis não sustentavam mais o projeto de uma ciência geral da ordem; se os nexos desta ordem – até então preexistente e independente do humano – não eram mais passíveis de serem representados nos quadros ordenados das identidades e das diferenças; e se, destes quadros, os humanos transbordavam por estarem exilados dos outros seres vivos é porque novos sulcos vinham sendo traçados na superfície iluminada dos saberes. A mutação arqueológica do final do século XVIII exigirá uma nova relação entre os discursos, as práticas e seus ordenamentos: não se pedirá mais à história natural, à análise das riquezas e à reflexão sobre a linguagem que representem os seres naturais, as trocas e a moeda, as palavras. Com o final da representação clássica, as coisas mesmas serão buscadas: a vida deverá definir as condições de possibilidade do vivo; o trabalho indicará as possibilidades da mudança, os lucros e a produção; a linguagem designará as condições históricas do discurso e a gramática. Quando a vida, o trabalho e a linguagem deixam de representar-se segundo os quadros taxionômicos e retroagem a suas leis, duas coisas estarão acontecendo: o humano passa a ser determinado por sua vida, sua produção e seu trabalho para se fazer alguém que é um ser finito, temporal; um vazio se faz no saber, que reivindica ser preenchido por este ser ambíguo e limitado, cuja finitude é anunciada pela positividade de seu próprio saber. Apenas nesse momento de despertar do sono antropológico – manhã da qual parece que ainda não nos desprendemos –, numa reflexão de nível misto, é que o transcendental e o empírico se preocuparão com o humano, cuidando para defini-lo como ser vivo, indivíduo no trabalho e sujeito falante; somente aqui é que o sujeito – que vive, trabalha e fala – pôde ser pensado, tornando-se mais do que um sujeito entre objetos: o sujeito e o objeto de seu conhecimento. As leis da Biologia, da Economia Política e da Filologia descobrem e positivam a exterioridade e a anterioridade da vida, do trabalho e da linguagem em relação com a ambígua figura epistêmica de objeto para um saber e de sujeito que conhece; ao introduzir a contingência, a Modernidade põe às claras, para o humano, sua própria

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finitude, pensada a partir da finitude mesma e não mais na negatividade metafísica do infinito: finitude positiva da vida, do trabalho e da linguagem a partir da finitude fundamental do humano e da finitude de sua vida, de seu trabalho e de sua linguagem. Instalado o humano no espaço vazio da frente e do centro de Las Meninas – prisioneiro como fica dos limites positivos da vida, do trabalho e da linguagem –, é aqui que este se autoriza a tomar o lugar de Deus, reivindicando o conhecimento total, implicado pelo fato mesmo de não ser infinito. Com o fim da epistéme clássica, também “a infância” e “a criança” – como “a loucura” e “o louco”, “a doença” e “o doente” – entrarão em uma nova relação que se estabelece entre as palavras, as coisas e sua ordem; pois, como disse Foucault, o humanismo do Renascimento e o racionalismo dos clássicos puderam dar um lugar privilegiado aos humanos na ordem do mundo, mas o que não puderam foi pensar o homem – nem, muito menos, o que Foucault não disse, puderam pensar a mulher e a criança. Quando o saber tinha parado de ziguezaguear entre as semelhanças, cuja busca final provocara ilusões e delírios; quando as palavras se divorciaram definitivamente das coisas e passaram a representar suas representações e a consciência que as representava; foi quando o sujeito se reconheceu como objeto e sujeito finito, cujo ponto infinito, que esclarecia a finitude, era a Morte. A nova matriz da finitude gerará múltiplas mortes em vida, antes da morte biológica: o corpo adoece, pelo estado mórbido; a razão esmorece ou se aliena, pela desrazão ou pela loucura; o trabalho não sustenta condições de sobrevivência, pela exploração; a linguagem não representa, pela afasia filológica e gramatical; o universo adulto descobre o velho tema de que as crianças vivem, para além da morte de suas mães e pais. Fora necessário que o humano entrasse no pensamento da finitude, mantendo-o implicado em sua temporalidade; referenciando-o à sua própria destruição; fazendo dele tanto a imagem de sua verdade quanto a eventualidade de sua morte; fixando-o na dialética da vida e da morte, por amar a Eros e temer a Tanatos: isso para que a criança ocidental pudesse aparecer como elemento deste devir – uma criança que, desse modo, parecia nascer da Morte e nesta encontrar sua matriz geral. Nova figura na paisagem social, é quem recordaria a cada humano a finitude do que fala, trabalha e vive; lembraria o nada de sua existência; emblematizaria sua contingência – o que foi não é mais, deixará definitivamente de ser –: dentre os personagens ocidentais, “o infantil” é o que melhor tematizaria a temática do fim, por ter começado a ser o começo de todos eles. A um só tempo, funcionaria como escudo contra a finitude: nele, o humano se perpetuaria, evitando a Morte, fazendo-se outra vez partícipe da infinitude, driblando o Derradeiro; seria o espelho que, secretamente, reflete o sonho da presunção infinita do humano que se descobrira finito. Só que, doravante, “a infantilidade” – esta qualidade, este estado, esta propriedade, este modo de ser do infantil – tomará parte das medidas da Razão, do trabalho da Verdade e das tecnologias de Poder. Por isso é que o infantil – a infância,

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as crianças & Cia. –, produzido pelo dispositivo que infantiliza, tem como matriz geral não a Morte – que o inscreve no conjunto moderno de uma finitude que não é mais transportada sobre a infinitude da presença divina, nesta sua relação obstinada com a morte: “Em Nome da Morte”, pode-se dizer –, mas a Vida, que inventa sua identidade para si, de sua idade. Apenas um poder capaz de causar a vida ou devolver à morte poderia ter engendrado, como um de seus dispositivos, esse de infantilidade: por meio de procedimentos de poder disciplinares, por fazer a anátomo-política do corpo infantil e, através de intervenções e controles reguladores sobre a população, por realizar a bio-política de uma população agora dividida em infantil e adulta. Quando a velha potência de morte do Pai, a patria potestas, cai em desuso e outra sociedade constituída por outro tipo de poder reúne-se na hora do parto – em substituição à comunidade feminina das parteiras, comadres e vizinhas –, bem como ao redor do berço –, que deixará de ser móvel de morte para ser chave de significação vital –, somente aí é que se abrem as condições históricas de possibilidade para métodos de poder político que gerem a vida daquele ser constituído ao nível da vida, da espécie, da raça e da população. Investidas pelo bio-poder em seus corpos sujeitados, “as crianças” serão seres vivos, cuja vida se calculará, e cujo fato de viver cairá no campo de controle do saber e de intervenção do poder, os quais se deixarão implicar em sua saúde, alimentação, condições de existência, necessidades, interesses, desejos, identidade. Esse poder – atuado cada vez mais pela Norma e menos pela lei do gládio – agenciará concretamente “a infância”, tornando-a uma idéia histórica complexa, formada no seio do dispositivo de infantilidade, e um ponto ideal e imaginário fixado por este mesmo dispositivo; idéia e ponto pelos quais todos os infantis deverão passar para atingir suas próprias inteligibilidade e identidade, aos quais todos precisarão esmiuçar, perseguir nos sonhos, suspeitar por trás dos pequenos sintomas cotidianos, sussurrar no escuro pegajoso do confessionário e no lusco-fusco tépido do divã, comprovar nas grandes loucuras e nos crimes hediondos; ao mesmo tempo em que tal idéia e ponto vão se tornando temas de operações políticas, de intervenções econômicas, de campanhas ideológicas de moralização e de escolarização: índices de força de uma sociedade, que revelam tanto sua energia política, quanto seu vigor biológico. Embora a experiência da infantilidade não tenha sido um fato maciço, nem haja formado um conjunto homogêneo, surgindo em pontos múltiplos, de forma dispersa, pertence ao domínio dessas experiências fundamentais da sociedade e da cultura ocidentais, nas quais estas arriscam os valores que lhe são próprios, compromete-os na contradição e, a um só tempo, os previne contra elas: por constituir a infantilidade como um dos enigmas fundamentais da verdade ontológica dos seres humanos, do qual só a Esfinge – com rosto e seios de mulher, corpo de leão e cauda de serpente – da porta de Tebas possuiu a chave, antes de se precipitar no abismo, por ter Édipo

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decifrado o enigma: “Qual o ser que na manhã de sua vida anda de quatro, ao meiodia, de duas, e à tarde, de três pernas”? Desde que começa a viver tal experiência, nossa cultura não parará mais de falar do outro-infantil, que lhe é a um tempo interior e estranho, sua mesmidade e outridade, seu igual e diferente, seu incessante Fort-Da: jogo de carretel que mostra a face do Mesmo – subjacente a tudo que somos, guardião do segredo mais profundo de nossa essência, de nossa definição e funcionamento, ao qual rogamos, insistentemente, atribuição de sentido, decodificação e domínio; jogo de vai-e-vem que traz o pequenooutro condenado à exclusão, do qual nos esforçamos por conjurar o perigo interior de devoramento, ao qual precisamos fechar, para lhe reduzir a perigosa alteridade e defini-lo para, perpetuamente, regulá-lo. Este não será nunca um outro qualquer, mas o Próximo implicado por uma ambigüidade: a quem se constituirá como diferente, de quem se quererá sempre livrar, por ser próximo e, ao mesmo tempo, longínquo, por ser o mais familiar e o mais estranho, por não ser o mesmo e ser, no subterrâneo, nósmesmos. Atração e repulsão, duas forças coexistentes: identificação entre adulto e criança, lugar de busca e encontro da ontologia constitutiva; também negação em se reconhecer no infantil, destinado ao mundo da exclusão, e luta para, conhecendo-o, não ser nunca mais ele. No redemoinho destas forças – antagônicas e convergentes –, a infantilidade e o processo de infantilização fundam a verdade de um conhecimento, a possibilidade de uma prática do infantil e um tipo de poder que se exerce sobre quem, produzido por estas mesmas forças, passa a ser visível, enunciável e, acima de tudo, educável. No vazio deixado pela ausência dos deuses, um trabalho hercúleo: instituições e espaços sociais serão reconfigurados, práticas e poderes exercidos, verdades e saberes constituídos: duradouro reino, de potente produção discursiva, cujo Soberano é o ser infantil – seus cuidados, higiene, saúde, educação, felicidade –, do qual diz-se que a família conjugal burguesa foi seu território privilegiado e a dupla parental seu exército mais aguerrido. Fala-se também de território e soberano positivados pela sociedade industrial, como força de trabalho para o desenvolvimento capitalista emergente, que os integrou, por puro interesse, a seus modos de produção: de forma encarnada, estariam presentificados – mais do que as/os próprias/os trabalhadoras/es dóceis e úteis – seus embriões. O triedro dos saberes ou dos modelos da epistéme moderna, com as suas nãociências que são, segundo Foucault, as Ciências Humanas, ou com as suas contraciências, que são a Psicanálise e a Etnologia – neste lugar que é o de nossa contemporaneidade, o da idade de nosso pensamento –, descreverá a infância como vida original, semente, célula mater, passado anunciado no presente e sentenciando o futuro; até a exaustão, enunciará o corpo e a alma do Sujeito-Infantil – que, se não substitui o próprio Rei e a Rainha, porque este é o lugar dos humanos adultos, fica no lugar, não menos nobre, do Príncipe e da Princesa, ou melhor, do Infante e da Infanta

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–, dirigindo-lhe um olhar atento e orientado e atribuindo-lhe condição diferente: características próprias, cognição, sensibilidades particulares: uma vida em tudo distinta, inscrita nas dobradiças da Morte, do Desejo e da Lei-Linguagem. Essa idéia do infantil, como o outro do adulto, não foi somente objeto de teorias que se aplicaram a dizer a verdade de sua identidade; foi também objeto de práticas culturais e educativas, destinadas a modificar sua economia no real e a mudar seu futuro; foi para este pequeno-outro, que o século XVIII principiou a constituir um mundo à altura – irreal, abstrato, arcaico –, com regras pedagógicas adequadas a seu desenvolvimento, objetivando preservá-lo do mundo conflitivo dos adultos. A pedagogia ocidental, desde então, só fez aumentar a distância que separa, para o humano, sua vida de criança de sua vida de adulto, não lhe permitindo liquidar o passado e assimilá-lo ao conteúdo atual da experiência; ao mesmo tempo em que fortalecia a idéia de que conhecer o infantil o libertava deste modo de ser. Nas práticas educacionais, nossa cultura sonhou sempre com uma “Idade de Ouro do Infantil”, ao projetar, em suas instituições escolares, não diretamente a realidade cultural, com seus conflitos e contradições, mas refletindo-se indiretamente através de mitos que a perdoam, justificam-na e idealizam-na numa coerência quimérica. Tornou-se corrente afirmar que a infância “é ela mesma” e que, por isto, deve ter respeitados e garantidos seus direitos. Benefícios foram distribuídos a esta locução, criando todo um conjunto de normas nas relações adultos-crianças, sentimentos de piedade e ternura, amor materno/paterno-filial, teorias científicas, saberes profissionais, poderes ensejadores de responsabilidades e de experiências, uma certa política da verdade: produção pródiga, economia abundante de discursos sobre a infância, implicados por interesses que lhes deram sustentação, por silêncios e estratégias que apoiaram e atravessaram sua discursividade. Entretanto, em nossa história presente, a experiência da individualidade infantil sofre uma fratura; a identidade de si um desacoplamento; a unidade presumida desta configuração muita desordem; a história do saber sobre a infância uma descontinuidade; a regularidade de tal discurso um corte; a grandeza de tal experiência uma vilania: diz-se agora “o fim da infância”. As práticas de infância passam a ser vistas como tendo sido degradadas e perdidas suas virtudes, de modo tal que viveríamos uma outra economia em que a criança – antes constituída como um sujeito distinto com uma identidade específica – perdeu seus privilégios e mesmo o devido respeito: leis, manifestos, estatutos, regras, associações, conferências mundiais, pactos internacionais ... objetivam defendê-la desse fim, perda, falta, negação, espoliação, roubo, ultraje. Colocar a infância em discurso, incitar a produção de saberes sobre ela, regular relações de poder e práticas institucionais em seu nome, construir ideais religiosos e laicos de vida e de sociedades futuras, produzir mitos infantis: tudo isto entra em colisão com a nova faceta do dispositivo de infantilidade – a perda da infância –, de onde proviria a figura de um novo mesmo do sujeito adulto, próprio das sociedades

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contemporâneas. Começam a funcionar outros enunciados e a operar outras práticas sociais e subjetivas, entrecruzados com os anteriores, explicitamente hierarquizados, dispostos sob a forma de oposições binárias, todos articulados em torno de um novo feixe de relações de poder. Entre o fim-de-infância e o poder existiria uma relação de dominação tal, que uma transformação radical de nossas sociedades implicaria em que fosse modificada também esta relação: onde a infância não mais estivesse ameaçada pela modelagem adulta, exploração, violência, assassinatos, abusos sexuais, trabalho precoce, prostituição, morte prematura, patologias deixadas de herança às adultas e aos adultos desajustadas/os em quem as crianças, expropriadas de infância, inevitavelmente se transformam. A idéia de uma infância que vem se perdendo, que vem sendo roubada, negada, vitimada, deformada pela volúpia narcísica dos/as adultos/as inquietos/as em fazer deste outro um Si-Mesmo/a – onde as crianças não conseguem mais ser crianças porque são cada vez mais pensadas e tratadas como se fossem adultos/as –, tornou-se objeto de cuidados e de inquietação, elemento para reflexão e debates, questão e problema social de ordem moral, tratados com pânico e urgência, e também matéria de estilização3. As sociedades ditas pós-industriais, dentre suas violências, estariam cometendo mais esta: a de retirar da infância a possibilidade de ser infantil; e nossas lutas emancipatórias deveriam se voltar, com prioridade, no mínimo absoluta, contra esta modalidade de perversão em direção à libertação da infância, ao direito de ser criança, ao direito de ter preservados seus direitos infantis. Nos anos 90, com um sentido inteiramente novo e numa cultura diferente, as formas de exclusão social da criança – acrescidas pela persistente demanda moderna de reintegração espiritual da infância – subsistem. Para esse sentido despedaçado da infância, as regularidades enunciativas das práticas culturais indicam como remédios sociais e morais: a diminuição ou supressão da pobreza e da miséria econômicas; famílias emocional e moralmente melhor estruturadas; respeito aos direitos e atendimento às necessidades da infância; mais saberes especializados, que resultariam 3

Lembra-se, como exemplo, a mostra de filmes realizada pelo Goethe-Institut Porto Alegre, em março de 1996, sob a temática: A Perda da Infância – em retrospectiva de filmes brasileiros e alemães, a qual reuniu 7 longas alemães, produzidos entre 1976 e 1988; 4 longas brasileiros, produzidos de 1955 a 1986; e 8 curtas brasileiros, produzidos entre 1974 e 1995, “assinados por cineastas como Reinhard Hauff, Edgar Reitz, Peter Stein, Nelson Pereira dos Santos, João Batista de Andrade, Hector Babenco, Sergio Toledo, Aloysio Raulino e Marlene França, entre outros”. No cartaz de divulgação escrevera-se: “Criminalidade. Drogas. Desemprego. Violência. Problemas do mundo dos adultos que certamente também influenciam as crianças e os adolescentes. Tanto na Alemanha como no Brasil, as crianças e os adolescentes são vítimas do colapso social – crianças de rua, trombadinhas, menores abandonados, jovens infratores –, um vocabulário cotidiano nos meios de comunicação e na boca de especialistas e do público em geral. Uma forma de resistência? A busca de uma INFÂNCIA ROUBADA? Uma mostra que quer levar à reflexão”. Embora não destinado a discutir especificamente a perda da infância, um livro que se debruça sobre a infância como matéria de estilização é o de Marie-José Chombart de Lauwe (1991), que investiga as representações da sociedade francesa sobre a criança, nos séculos XIX e XX, tendo como campos de pesquisa as imagens da infância configuradas por personagens da literatura e do cinema.

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em maior sensibilidade por sua condição infantil; mais efetiva escolarização, funcionando como salvaguarda para a perda de infância. Nessas práticas, o fim da infância aparece sempre ligado à privação da educação escolar, por acreditarem que, se a criança para ali fosse e permanecesse, este fim seria adiado, abreviado, mesmo suprimido, e ela poderia continuar a ser criança e a viver o e no Mundo Infantil. É neste último ponto que situo a analítica do que denomino “dispositivo de infantilidade”, para a qual o busílis, o nó cego, o xis, a equação pertinente, com uma enorme e aterradora incógnita, pode organizar-se do seguinte modo: mal-doença social/cultural = fim-da-infância, remédio moral/institucional/político = mais e melhor escolarização, cujo efeito continuaria sendo = a infância-sem-fim. Derivada do estranhamento causado por essa atual ruptura no dispositivo de infantilidade, tal equação enredou-se no estabelecimento das seguintes interrogações de pesquisa: como e por que pode ser enunciado o fim-da-infância, justo numa época em que as práticas políticas encontram-se abundantemente empenhadas na produção e na defesa de uma infância sem fim? Nas práticas discursivas e não-discursivas de nosso presente, que política da infância e qual identidade de infantil são enunciadas, que justificam que a escolarização das crianças se constitua como uma salvaguarda contra o fim-de-infância? Em que medida e com que forças o discurso da educação faz funcionar e mantém o dispositivo de infantilidade, contribuindo para assim fixar o ponto imaginário da “infância” e a identidade ideal de “criança”, instaurados há quase quatro séculos por este mesmo dispositivo? Em relação à infantilidade gostaria de levantar três dúvidas: a produção do infantil, como um outro do sujeito ocidental, seria mesmo uma evidência, na assim chamada “história da infância”? a mecânica do poder disciplinar seria da ordem de produção de um outro-criança, ou foi desde sempre de um mesmo que tratou? o discurso crítico que se dirige contra o fim-da-infância seria uma via de barrar este fim, ou faria parte da mesma rede histórica daquilo que denuncia? Em outras palavras: existiria uma ruptura histórica entre a “Idade da Infância”, a análise crítica do “Fim da Infância”, e os anseios e práticas culturais em prol de uma “Infância Sem Fim”? ou todos estes mecanismos integram as grandes e descontínuas linhas históricas que tecem e enodam os poderes, saberes e verdades do dispositivo de infantilidade? Essas dúvidas objetivam muito menos mostrar que o infantil não está desregrado, que o fim da infância é falso, que nada está ocorrendo que mereça nossa atenção, que as crianças continuam iguais ao que sempre foram, do que recolocar tal identidade numa nova economia de poder-saber-verdade no seio das sociedades contemporâneas. Por que se continua a falar da infância e da criança e o que delas é dito? Quais os efeitos de poder induzidos por esta abundância discursiva? Quais as relações entre esses discursos, os efeitos desse poder e as práticas educacionais nos quais se investem? Que saberes aí se formam? Qual o sentido do dispositivo de infantilidade em conexão com o fim-da-infância, em termos de suas relações com a

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verdade do sujeito ocidental, a qual parece objetivar uma infância-sem-fim, matriz da tecnologia política do poder de infantilidade? Trata-se de determinar, em seu funcionamento e em suas formas de ser, os jogos estratégicos de verdade — tanto os que adotam a configuração de uma ciência, de uma religião, de uma teoria, quanto os que podem ser encontrados em instituições ou em práticas de controle — que sustentam, nos tempos presentes, o discurso sobre o infantil, por levar em consideração o fato discursivo da infância e sua colocação em discurso: o fato de se falar da infância, quem fala, o que se diz, as instituições que estão autorizadas a fazê-lo, que incitam este discurso, o armazenam e o difundem, excitando aquilo que flui em tal discurso para positivar a verdade – ontológica, deontológica, ascética, teleológica, escato-teológica – do ser adulto. Não referir uma história da infantilidade à instância da infância; mostrar, porém, como “a infância” se encontra na história da infantilidade – esta condição histórica muito real –, como um efeito de superfície, uma centelha, um resplendor, um clarão, um fulgor, uma cintilação, uma faísca que brota do jogo, do choque, do enfrentamento, da luta, do combate, do resultado do combate, do produto da confluência, do compromisso, do lance de dados, do acaso de duas rupturas: a-vida-a-morte e mais-valia de uma infância sem fim. O ponto importante a ressaltar será aquele que mostra a incessante vontade de infantil do dispositivo de infantilidade, seus mecanismos de saber, suas relações de poder, sua arte de governar a infância e as crianças & Cia., como uma vontade de verdade-infantil sobre o Si-Mesma/o da/o adulta/o; vontade que leva este Si-mesma/o a fabricar e a se servir do poder-saber do fim-de-infância e da infância-sem-fim, como duas horas de um mesmo dia – seu meio-dia e sua meia-noite –, que o implicam nas práticas de liberdade de um certo cuidado de si, enquanto uma das formas preferidas de sua subjetivação como indivíduo moral, e também em determinados processos de liberação em suas relações com os outros. Em que medida, por quais saberes e técnicas de poder, em que direção, afinal, as práticas atuais de nossa história presente (des)constróem o Infantil? Na direção do Mesmo? do Outro? como um Outro-Eu? um Outro-Desde-Nós-Mesmos/as? um Outro-Na-Nossa-Medida? um Outro-Como-Outro? na direção inusitada, ainda indecidível, de uma prática reflexiva da liberdade?

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