Inventando tradições: os historiadores e a pesquisa inicial sobre o jornalismo

July 4, 2017 | Autor: Richard Romancini | Categoria: History, Journalism, Brazil
Share Embed


Descrição do Produto

Inventando tradições: os historiadores e a pesquisa inicial sobre o jornalismo Por Richard Romancini*

Resumo O texto discute a pesquisa sobre as imprensa e o jornalismo brasileiro feita por historiadores a partir do século XIX. A análise de textos publicados de 1865 a 1928 enseja uma interpretação sobre o significado cultural mais denso dessa pesquisa. O que se propõe é que as investigações que abordaram os jornais, feitas então principalmente nos Institutos de História e Geografia espalhados pelo Brasil, representaram tentativas de expressar "regionalismos", ou seja, a concepção da centralidade de diferentes tradições regionais face ao nacional (o exemplo-chave é São Paulo), num contexto de discussões sobre a identidade brasileira. Palavras-chave Pesquisa em Jornalismo, História, Ideologia, Regionalismo Introdução Somos um povo em infância, somos nós os fazedores do nosso passado, não há dúvida, mas não poderemos levar adiante a nossa missão se desprezarmos o que nos constitui o passado da pátria. A perspectiva das origens é um elemento primordial dos povos em formação, é pela memória que deve começar a obra de construção nacional. Alceu Amoroso Lima. Pelo passado nacional. Revista do Brasil. 1916, apud: Luca, 1998, 89. Grifo nosso. Este texto apresenta uma discussão dos contextos institucionais e ideológicos que demarcam a pesquisa sobre o jornalismo feita no Brasil, particularmente em São Paulo (no Instituto Histórico e Geográfico da cidade - IHGSP) e no Rio de Janeiro, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do anterior, evidenciando as tensões entre os grupos, em disputa por uma concepção de "história nacional". Símbolos de civilização e progresso, o impresso e os jornais serviram como objeto para a expressão de idéias implícitas sobre as origens e destinos da nação ou de determinadas regiões. Colocar no centro da história está ou aquela "tradição" expressava determinada concepção sobre o próprio país. As primeiras propostas de historiar a atividade jornalística ou da introdução da imprensa no país e, por conseguinte, do que podemos considerar como o início da atividade de pesquisa sobre o jornalismo, ocorrem, sobretudo, nos Institutos Históricos e Geográficos. Assim, o que é constatável é que existe uma série de estudos, publicados antes do século XX, sobre imprensas regionais: do Rio de Janeiro (Azevedo, 1865), do Maranhão (Marques, 1878 e 1888), Pernambuco (Pereira, 1883, Costa, 1891), Minas (Veiga, 1897), Ceará (Perdigão, 1897) e São Paulo (Toledo, 1898). A que corresponde este surto de pesquisa, que tem desdobramentos nas décadas posteriores? Argumentamos aqui que, à distância, fica bastante nítida a expressão de "regionalismos" - ou seja, o modo como por meio deles procurou-se inserir determinadas tradições regionais dentro do panorama nacional, se possível com destaque. Assim tais proposições podiam por vezes articular-se a projetos políticos para o futuro da nação. Estes seriam, portanto, os aspectos mais significativos a justificar o esforço.

A distância temporal frente a esta produção ajuda a construir uma análise desse tipo, mas esta nem precisou ser muito grande. Conforme nota com toda a propriedade um dos primeiros comentaristas de parte dessa produção: "Cada Estado quer chamar para si a prioridade da introducção da imprensa no Brazil"(1) (Barbosa, 1902, 240). Alguns estados não tinham condições de afirmar qualquer "direito de prioridade", todavia, mobilizam outros recursos - como a pujança de sua imprensa, no caso de São Paulo - para afirmarse nacionalmente. Os Institutos Históricos e Geográficos foram, junto com os Museus brasileiros, os primeiros e mais importantes espaços que existiam no século XIX para a pesquisa de humanidades, e para a ciência em geral, no Brasil. É interessante notar que privilegiavam, nesses âmbitos, uma dimensão "catalogatória" (com a construção de grandes acervos em certas áreas) que possibilitasse classificações, num marco evolucionista (Schwarcz, 2001). A própria pesquisa do jornalismo terá também um cunho de construção de acervo do que tinha sido feito. Ambos os órgãos mencionados (IHGB e IHGSP) têm semelhanças em termos de métodos e concepções de história, num marco iluminista e evolutivo, todavia, apresentam diferenças significativas no modo como pretendem criar uma tradição nacional, expressar determinada variante de "regionalismo". Tal situação de disputa entre regiões remete a profundas transformações na sociedade brasileira, entre meados do século XIX e início do seguinte, contexto no qual São Paulo começa a assumir um papel de liderança nacional. Nesse sentido, desenvolve-se uma concepção de "paulistanidade", ao qual, por motivos discutidos adiante, associamos à pesquisa do jornalismo feita pelo IHGSP. Sob o ponto de vista específico da pesquisa sobre a imprensa, parece reforçar-se a interpretação dos Institutos como âmbitos de "disputas que se verificavam entre regiões influentes no interior da política imperial e da República Velha" (Schwarcz, 1993, 100). O modelar IHGB: "documentar para bem festejar" O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro é fundado em 1838, pouco depois da independência do país, congregando principalmente membros da elite política. Alguns anos depois, o próprio D. Pedro II passa a freqüentar as reuniões do grupo, colaborando com o orçamento da instituição. O IHGB tomará para si a tarefa de compor uma história nacional e, nas "mãos de uma oligarquia local, associada a um monarca ilustrado […] se auto-representará, nos certamos internos e externos, enquanto uma fala oficial em meio a outros discursos apenas parciais" (Schwarcz, 1993, 102). Sua historiografia tenta "produzir uma homogeneização da visão de Brasil no interior das elites brasileiras" (Guimarães, 1988, § 5). A criação de uma revista, em 1839, apresenta a produção do grupo e revela suas preocupações(2). O IHGB procura produzir uma fala oficial, "interessada em buscar eventos conformadores de uma identidade nacional, [que] encontrava em momentos históricos do país seus episódios ideais" (Schwarcz, 1993, 113). Assim, a partir de uma concepção herdada do iluminismo, de tratar a história enquanto um processo linear e marcado pela noção de progresso, nossos historiadores do IHGB empenham-se na tarefa de explicitar para o caso brasileiro essa linha evolutiva, pressupondo certamente o momento que definiam como o coroamento do processo. (Guimarães, 1988, § 27) Eventos como o "descobrimento" e a emancipação política seriam vistos por esta ótica, principalmente até o início do século XX - mesma lógica que esta por trás da comemoração do Centenário da imprensa brasileira, em 1908. Da preocupação central em "Colligir, methodizar e guardar" (RIHGB, 1839 apud Schwarcz, 1993, 99) resultava uma

história da pátria [que] era antes de tudo um exercício de exaltação. Essa lógica comemorativa do instituto se efetivou não só mediante os textos produzidos e publicados na revista, como por uma prática efetiva de produção de monumentos, medalhas, hinos, lemas, símbolos e uniformes próprios ao estabelecimento. Lembrar para comemorar, documentar para bem festejar. O IHGB sobrevive ao fim da monarquia. Max Fleiuss, o então secretário do órgão, logra construir uma aliança com os representantes do novo poder: modifica estrategicamente, em 1905, o dia em que se realizavam as sessões magnas do Instituto para 15 de novembro - antes, eram no dia da primeira participação do imperador no IHGB - e procura garantir acesso no Instituto aos identificados com a nova ordem. D. Pedro II continuaria, porém, a ser considerado "defensor perpétuo" da associação. E Fleiuss, uma espécie de profissional do Instituto, bastante ativo no cotidiano prático do órgão, tornar-se-ia igualmente "secretário perpétuo" (cargo do primeiro-secretário). A queda da monarquia obriga o IHGB a adaptar-se, mas ele não se descaracteriza, mantendo sua preocupação central em produzir uma história nacional, articulando um conjunto de interpretações sobre o Brasil, sustentadas por uma visão que tem a cidade do Rio, as elites tradicionais letradas portadoras de um projeto centralizador como eixos. Embora nas primeiras décadas do século XX os estudos tragam novos arcabouços explicativos (evolucionistas e deterministas), e os intelectuais participem mais do debate contemporâneo, a questão nacional é que igualmente dirige os novos temas. IHGSP: São Paulo primeiro Criado já na República, em 1894, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo tomaria como modelo o congênere nacional, porém teria algumas diferenças significativas em relação a este. Possuiu, por exemplo, mecanismos de acesso menos elitistas, sendo fundado depois que uma nota, publicada no final de 1894 no jornal O Estado de S. Paulo, convidava "homens de lettras desta capital para uma reunião a effetuar-se hoje ao meio dia […]. O fim da reunião é tratar da criação do Instituto Histórico Paulista". Ao mesmo tempo, e mais importante, chocava-se com o IHGB ao propor um modelo historiográfico baseado em São Paulo. "A história de São Paulo é a própria história do Brasil" (RIHGSP, 1895, 1) afirma provocativamente o primeiro número da revista logo criada pelo grupo. Lilia Schwarcz (1993, 126) explicita bem o sentido desta provocação para com "o projeto unitário do estabelecimento carioca, que se autodenominou Instituto Brasileiro, supondo um certo consenso que cada vez menos se sustentava". O grupo paulista estabelece um distanciamento para com o IGHB até mesmo na "absoluta falta de referências ao estabelecimento carioca, que não aparece sequer arrolado entre as associações com as quais o IHGSP manteria comunicação" (idem). O fato mencionado coloca em evidência não só disputas institucionais - que também ocorrem entre o Museu Nacional e o Paulista (Schwarcz, 2001) -, mas as que ocorrem entre as elites dos dois Estados, em função do panorama social que emerge: Com o crescente predomínio das regiões cafeeiras paulistas, e concomitante decadência das portentosas fazendas cariocas do Vale do Paraíba, já na década de 80 do século passado vivia-se uma evidente mudança no equilíbrio interno do país. São Paulo, nesse momento, representava o estado mais dinâmico, não só devido a sua situação econômica privilegiada, como também por contar com melhor nível de integração interna, amplamente garantido por sua extensa rede ferroviária. A nova configuração, por sua vez, não passará imune a esses arranjos institucionais que tenderão a produzir e reproduzir internamente dilemas vivenciados na esfera política e econômica. (Schwarcz, 1993, 126)

Nesse contexto, o IHGSP seria beneficiado pela situação financeira do estado, que o apoiava, o que lhe possibilitava "condições de lutar pela preponderância sobre os institutos de outras regiões" (Schwarcz, 1993, 129). Com efeito, a Revista do grupo apresenta um padrão similar de qualidade material à do IHGB e sua distribuição deveria ter condições equivalentes. De outro lado, o IHGSP será uma instância de produção a afirmar uma suposta especificidade paulista, elaborar tradições do estado - através de biografias de seus vultos, estudos sobre o passado da província etc. Nesse sentido, é também uma historiografia com teor cívico, paulista sobretudo, mas que buscava afirmar a prevalência de São Paulo perante a nação como um todo. Um regionalismo imperialista, por assim dizer. Não é por outra razão que será gestada no IHGSP uma releitura da figura do bandeirante, no sentido de elevá-lo à condição de construtor da nação. Esse ponto nos conduz a outro aspecto do contexto da época: a ideologia da "paulistanidade", que, via bandeirante, mas também no tratamento de outros temas, tem no Instituto um órgão (re)produtor importante. A ideologia da "paulistanidade" A representação regional etnocêntrica construída pelos paulistas tem uma longa trajetória, configurando um conjunto de valores, concepções de mundo - uma ideologia, em suma, nomeada pelos pesquisadores do assunto como "paulistanidade". Este termo teria sido empregado pela primeira vez pelo historiador Alfredo Ellis Jr., em 1933, "para adjetivar o espírito, o sentimento que toma conta dos paulistas e leva-os à guerra civil de 1932 depois dos ultrajes impostos pelo Governo Provisório" (Cerri, 1998, § 5). No entanto, a "paulistanidade" engloba manifestações anteriores de auto-valorização regional, presentes já no século XVIII com a tentativa de ligar as famílias paulistanas aos nomes da nobreza portuguesa, na Nobiliarquia Paulistana, de Pedro Taques (idem, § 6). A paulistanidade, todavia, crescerá, assumindo a forma de um sistema mais orgânico no momento, após a Abolição e a República, em que a questão nacional tornou-se uma grande preocupação dos intelectuais brasileiros. Nesse sentido, a reflexão articulou-se ao problema da nacionalidade. Então, manejando o instrumental do positivismo, do evolucionismo e determinismo, questões históricas, geográficas e de outros campos foram interpretadas a partir de uma perspectiva que coloca São Paulo como o pólo irradiador da brasilidade, origem da nação, com uma "natural" vocação para a liderança do país. É evidente que esta crença está relacionada à circunstância de que o Estado passa a ter em função da economia do café e, depois, ao início da industrialização - um papel mais relevante no país, começando a adquirir a hegemonia econômica. O desenvolvimento alcançado sustentava o discurso sobre uma distinção paulista, os outros estados não teriam atingido o "grau de civilização paulista" (Ellis Jr., 1930 apud Moutinho, 1991, 111). Ao mesmo tempo, surge uma elite com pretensões de mando nacional, ao qual a ideologia da paulistanidade cai como uma luva e que, portanto, estimula esta representação. O exemplo mais marcante de como isso ocorre no plano da História é a mitificação, engendrada por historiadores como Afonso d'Escrangnolle Taunay, da figura do bandeirante. Os bandeirantes são descritos como responsáveis pela configuração geográfica do país, construtores da nacionalidade e identificados com o "ser paulista". Instituições como o Museu Paulista (criado em 1895) e o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (1894), como dito - do qual Taunay foi presidente e em cuja revista publicou muitos trabalhos - participam dessa operação de um modo fundamental, ao oferecerem argumentos documentais, conforme os pressupostos de cientificidade da época, para a construção mítica da figura do bandeirante. Como bem analisa Luca (1998, 100-1): Os estudos históricos do período norteavam-se pela busca de cientificidade, que se

reputava garantida pela documentação. Fontes fidedignas, cuidadosamente reunidas e imparcialmente transcritas, naturalmente possibilitariam o acesso à verdade. Nesse universo, carecia de sentido inquirir sobre o relativismo dos testemunhos históricos ou a respeito dos conceitos e modelos teóricos que guiavam o olhar do pesquisador. [...] Certamente esta atitude ante o passado não se constituía um antídoto contra a subjetividade, mas contribuiu poderosamente para tornar verossímil uma determinada imagem do bandeirismo. Típica "tradição inventada" (Hobsbawn), a paulistanidade perdurará por muito tempo, com resquícios até hoje, sobrevivendo à própria derrota paulista em 32, de modo paradoxal: converte a derrota em vitória, já que o movimento constitucionalista é visto como uma expressão máxima da epopéia paulista pelo Direito e Liberdade, o que só reafirma São Paulo perante a nação (Cerri, 1998, § 24). Feitas estas considerações sobre a ideologia da paulistanidade, passaremos, a seguir, à discussão sobre os trabalho sobre a imprensa no Brasil produzidos no âmbito do IHGB e no IGHSP, neste caso, especificamente, dos nexos entre a paulistanidade e a pesquisa realizada. Neste caso há, em primeiro lugar, o dado de origem da mesma, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo - espaço importante de criação e irradiação dessa ideologia - e as relações que grupo paulista (não) teve com os intelectuais que pesquisaram a história geral e da imprensa brasileira, no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, localizado no Rio de Janeiro. Outro ponto é a espécie de "mito de origem" que os estudos do IHGSP apresentam sobre a imprensa em São Paulo. No caso da pesquisa do IHGB, como se vê a seguir, o ponto de inflexão regional é a tentativa de estabelecer contigüidade entre o Brasil Império - inclusive a etapa do Reino Unido a Portugal -, e a República, com base no Rio. Ignora-se, em grande medida, São Paulo, desse modo. De outro lado, a história celebrativa proposta procura ser a "história oficial" do Brasil, isenta de conflitos e crente num destino de progresso que a imprensa prenuncia para o país. A pesquisa sobre a imprensa no IHGB: "muito nos devemos orgulhar do nosso paiz!"

Imagem 1 A própria composição tipográfica permite perceber a centralidade do Rio de Janeiro na história via IHGB, ao contrário da história regional do Maranhão. Detalhes das primeiras páginas dos trabalhos de Azevedo (1865) e Marques (1878).

Imagem 2 A perspectiva monárquica do IHGB e o regionalismo com base no Rio explicam a adoção do marco de 1808 para o "estabelecimento definitivo" da imprensa no Brasil, bem como a inclusão de um retrato de D. João VI na capa da revista do IHGB sobre o Centenário da Imprensa.

A Exposição Nacional, destinada a festejar a abertura dos portos, isto é, o inicio da Independencia do Brazil [...] lacunosa seria, se nella não figurasse uma secção de jornaes. [...] Deu uma nota clara, vibrante e harmoniosa, no hymno triumphal entoado pelas grandes, bellas e úteis cousas reunidas na Exposição - hymno do esforço, da enegia, da perseverança, da capacidade e, sobretudo, da confiança suprema na predestinação do Brazil. Conde Afonso Celso, Presidente da Comissão Executiva da Exposição da Imprensa in: RIHGB (1908, Edição Especial do Centenário da Imprensa Periódica) O primeiro texto da Revista do IHGB sobre a imprensa, provavelmente o primeiro texto sobre a história da imprensa no Brasil, será, não por acaso, uma descrição da "Origem e desenvolvimento da imprensa no Rio de Janeiro" (Azevedo, 1865). É significativo que, graficamente, na primeira página do texto, os termos "Origem e desenvolvimento" e "Imprensa" sejam destacados, enquanto "Rio de Janeiro" não tanto, pois esta num corpo de texto bem menor. É como se o Rio resumisse a história brasileira até aquele momento. Assim, o autor tratará da inserção da imprensa na cidade com Isidoro da Fonseca, mas não de nenhuma das introduções efetivas ou hipotéticas de prelos nas Províncias. A seguir, aborda a implantação da Imprensa Régia e, de modo descritivo, vai arrolando os principais momentos do jornalismo da época, principalmente pelas menções ao que se publicou, ano a ano, conforme um procedimento catalogatório bem típico do IHGB e da historiografia da época, procurando reconstituir o que foi a imprensa carioca. Porém, o tom sereno do texto não se mostra isento de interpretações, de um certo tipo de discurso que se tornará característico da "história oficial" da imprensa brasileira via IHGB. Assim, se Azevedo procurar arrolar tudo que foi publicada na época no Rio de Janeiro, os agentes e projetos mais democráticos não merecem destaque, ao contrário dos neutros (como o Diário do Rio de Janeiro) ou conservadores (como José da Silva Lisboa). João Soares Lisboa, um dos jornalistas de propostas mais democráticas então, não é sequer citado. Seu jornal, O Correio do Rio de Janeiro, ganha a menção do ano em que aparece, junto outros periódicos que propugnam pela "liberdade e pelo futuro da patria" em 1822, no entanto, estes são caracterizados mais pela "linguagem exaltada e veemente" do que por suas propostas. Assim, Azevedo inaugurará, no âmbito do estudo do jornalismo, não só uma vertente de crítica aos pasquins e sua linguagem "imprópria", mas também uma historiografia ao

mesmo tempo triunfante - a típica história "oficial", conservadora, tão criticada por Sodré em sua história da imprensa (Sodré, 1966) -, confiante nos progressos do país sob o Império e que recomenda uma "moderação" para a linguagem do jornalismo. Os nexos sociais mais significativos do fenômeno da imprensa são negligenciados. Azevedo, como os pesquisadores que lhe seguem, preocupem-se mais inventariar os inúmeros periódicos que de fato surgiram do que entender sua influência de modo mais amplo: dados sobre tiragens são raros, por conseguinte. Nessa perspectiva, é mais coerente entender as dificuldades da imprensa em função de uma suposta "fria e cruel" indiferença popular, do que abordar o baixo nível de alfabetização. Como demonstração dessa crônica ufanista vale a pena transcrever um trecho de sua conclusão: Facil é reconhecer o desenvolvimento que tem tido entre nós a imprensa periodica, política e litteraria; os nossos diarios não são inferiores aos da Europa nem em formato, nem em variedade de materia, nem em nitidez de impressão. Já se foram os tempos em que o jornal politico era o pelourinho de reputações, o cego cruento onde se sacrificavam a honra, a dignidade, os brios de todos; felizmente hoje é modelada, digna e respeitosa a linguagem da imprensa politica; ha mais gravidade e sisudeza na expressão, mais escrúpulo e consciencia na phrase; o jornalismo já não é o pasquim antigo, é o pharol que guia, educa e doutrina o povo, [...] o pensamento, a vida do progresso social. Tambem tem progredido a imprensa litteraria; cada ano augmenta-se o numero de obras impressas no paiz, vai se propagando o gosto da leitura, vai tomando um caracter mais peculiar e patrio a litteratura do paiz; há mais animação e vida nas letras, e pouco e pouco vai desapparecendo essa indifferença fria e cruel, que nos tem sido fatal, e que tem talvez retardado o progresso material e moral a nação. (Azevedo, 1865, 223-4) Outros textos sobre a imprensa brasileira que aparecem na Revista do IHGB dizem respeito à imprensa do Maranhão (Marques, 1878 e 1888), caso em que a folha de rosto do trabalho dá, graficamente, o mesmo destaque aos termos "imprensa" e "Maranhão", ou seja, não há dúvida que se trata de uma história regional, sem as pretensões nacionais do Rio. Existem ainda outros estudos publicados em Institutos regionais - trabalhos que não fogem ao modelo historiográfico do IHGB. Todavia, para efeito da discussão desse texto, nos voltamos para a análise do volume especial da Revista do IHGB sobre o centenário da imprensa no Brasil. A revista inicia-se com uma introdução de Max Fleiuss que demarca o contexto no qual foi preparada a edição: a partir de uma iniciativa sua e de Alfredo de Carvalho, numa das sessões ordinárias IHGB, no ano anterior, para que fosse promovida "uma solennidade, de caracter essencialmente historico, para comemmorar o primeiro centenario da imprensa periodica no Brasil" (RIHGB, 1908, Tomo dedicado ao centenário da imprensa, V). Nesse sentido é redigida uma proposta, que vale a pena transcrever: Considerando que a 13 de maio de 1908 se completa o primeiro centenário do estabelecimento definitivo da Imprensa no Brazil, com a promulgação do decreto que creou a Imprensa Regia, propomos que o Instituto Histórico e Geographico Brazileiro promova a celebração condigna de data tão memoravel, por meio de uma exposição jornalística, a ser inaugurada naquelle dia, procurando angariar para este fim o auxílio dos poderes publicos e da Imprensa de todo o paiz. (Fleiuss, RIHGB, 1908, VI) Grifo nosso. É essencial notar nesta fala a idéia de "estabelecimento definitivo", pois é esse conceito que permite driblar a comprovada existência de uma tipografia no Rio em 1747 (do impressor Isidoro da Fonseca), bem como a - reivindicada pelos pernambucanos tipografia de Recife no início do século XVIII. E, dessa forma, estabelecer um marco que tem a monarquia como centro - não por acaso, a primeira página da revista do IHGB sobre o centenário traz uma gravura do "Príncipe D. João - auctor do decreto de 13 de maio de 1808, instituindo a Impressão Régia no Brasil".

O texto introdutório de Fleiuss vai também desvelando a montagem de comissão que organizaria o evento, que procurou contemplar tanto os indivíduos ilustres que davam visibilidade ao Instituto, quanto membros mais operativos do Rio e outros locais. Os participantes dessa comissão teriam as seguintes tarefas: organizar a exposição dos jornais publicados de 1808 a 1907; publicar uma monografia sobre a imprensa periódica brasileira; publicar um catálogo de "todos os specimens, ou collecções que figurarem na Exposição" e promoverem a cunhagem de uma moeda comemorativa (Fleiuss, 1908, RIHGB, VIII). A monografia sobre a imprensa fica a cargo de Alfredo de Carvalho, e será a primeira parte da revista dedicada ao centenário (Carvalho, 1908). Já os catálogos publicados na segunda parte da revista seriam "parciais" (os Annaes da Imprensa Periódica Brazileira) e estão ligados a Institutos na órbita do IHGB, ou seja, Pernambuco, Maranhão e outros, mas não o IHGSP. A aparente exclusão é marcante, pois um dos membros do Instituto paulista, Lafayete de Toledo, faria um trabalho, em tudo similar ao que é centralizado no IHGB, antes (Toledo, 1898). De fato, não se identificam, entre os vários nomes ligados ao empreendimento, pessoas ligadas à instituição paulista. E embora se faça menção a elaboração de um catálogo para São Paulo (a cargo de Pedro Augusto Carneiro Lessa), bem como a outros estados, ele não faz parte da revista (Fleiuss, RIHGB, 1908, IX); aparentemente tais catálogos não foram publicados. Chamativo ainda é o fato que, dentre as 44 reproduções de capas de periódicos de todo o Brasil que ilustram a primeira parte da Revista, apenas uma é de um jornal paulista (O Farol Paulista entre as páginas 16 e 17), contra 12 reproduções de periódicos surgidos no estado do Rio. Estas são evidencias da disputa entre Rio e São Paulo, aspecto ressaltado quando se lê o trecho do trabalho de Alfredo de Carvalho - que, por sinal, cita o trabalho de Lafayette de Toledo - sobre a situação da imprensa do estado, em 1908: "actualmente é S. Paulo o Estado no qual se conta maior numero de typographias e o jornalismo mais copioso de todo o Brazil, difundido por noventa e cinco localidades" (Carvalho, 1908, 66). Quanto ao texto de Carvalho propriamente, ele, como de praxe, discutirá o surgimento da imprensa no Brasil: as tentativas holandesas, refutadas por José Higino Duarte Pereira (1883), na revista do Instituto Pernambucano. Descreve ainda, com base num provável erro de interpretação, a existência de uma tipografia no Recife em 1706, que seria a primeira, ainda que breve, tipografia a funcionar no país. Mais corretamente menciona também o caso de Isidoro da Fonseca até chegar, por fim, ao estabelecimento da Imprensa Régia, em 1808. O que se segue é a descrição das realizações da imprensa no Rio e do estabelecimento da imprensa nas províncias. A continuidade da pesquisa sobre a imprensa no Rio mostra a importância de Max Fleiuss na constituição de uma perspectiva auto-celebrativa, monárquica e que privilegia o ponto de vista do Rio na construção "nacional" da história da imprensa. Chegado a centenários, Fleiuss afirma que o da Missão Artística impelia-o a "referir-se, embora ligeiramente, á Caricatura no Brasil" (Fleiuss, 1917, 587). Neste trabalho, publicado também na Revista do IHGB, o autor - filho do desenhista Henrique Fleiuss, proprietário e editor da Semana Ilustrada, órgão popular no Segundo Reinado - faz inicialmente considerações sobre a caricatura e o riso, no mundo todo, depois aborda o caso brasileiro. Refere-se às manifestações artísticas dos índios, que logo, porém, releva, pois "a arte, com todos os seus characteristicos de civilização moderna, só apparece no Brasil, depois da transmigração da família real portugueza para o Rio de Janeiro" (Fleiuss, 1917, 595). Os marcos mais importantes dessa história serão sempre "oficiais" e baseados na Corte: a vinda da família real lusitana traz a "civilização" ao Brasil. Como sempre são arrolados periódicos, ilustrados dessa vez, que apareceram em todo o país. O que é importante notar quanto a isso é que Fleiuss (1917, 600) afirma, em relação a alguns dados sobre a imprensa paulista, que estes eram originais de um trabalho do

historiador Afonso A. de Freitas (1914), trabalho importante que, como veremos, continua o estudo inventariante de Lafayete de Toledo (1898) sobre a imprensa em São Paulo. Retenha-se este ponto para a discussão do próximo trabalho de Fleiuss. Quanto a este texto sobre a caricatura ainda, é notável a boa avaliação do imperador D. Pedro II, que "embora não raro injustamente alvejado pelo ousado e desrespeitoso lapis dos caricaturistas mais notáveis" (Fleiuss, 1917, 607) seria um homem de tolerância exemplar. O tom ufanista com que o texto é finalizado também merece a transcrição pela tipicidade: Honra principalmente aos caricaturistas brasileiros, synthetizados em Raul Pederneiras, Calixto Cordeiro e J. Carlos, que não precisam de pedir licções aos melhores do extrangeiro, provando que, ainda nesse ponto de vista, muito nos devemos orgulhar do nosso paiz! (Fleiuss, 1917, 609) Outro centenário, dessa vez o da independência em 1922, dá ensejo ao próximo estudo de Fleiuss sobre a imprensa, o último texto do grupo da historia da imprensa brasileira no IHGB, nessa primeira fase de estudos. Trata-se do verbete "A imprensa no Brasil" que o Instituto insere em seu Diccionario Histórico, Geographico e Ethographico do Brasil. Nele Fleiuss nota a ausência da imprensa na Colônia, mas tenta explicar o fato pela phobia das "lettras de imprimir" por parte da realeza absoluta, [que] não foi característica exclusiva da Monarchia Lusitana; o horror aos prélos não foi sómente peculiar ao BrasilColonia; observa-se em todas as possessões americanas, mesmo nas de origem saxonica. (Fleiuss, 1922, 1551) Como se vê, o uso de meias-verdades - de fato, houve um receio do papel da imprensa por parte de monarquias, não obstante, a cidade do México e o Peru e outras colônias espanholas e inglesas tiveram prelos bem antes do Brasil - procura justificar, pelo espírito do tempo, algo que foi bem mais característico do Império Português (o obscurantismo na colonização) do que o texto dessa historiografia oficial afirma. Fleiuss registra - a partir das informações de Pereira (1883) - que os holandeses não teriam mesmo introduzido a imprensa no país, sendo esta introduzida primeiro em Recife, por "alguem cujo nome a tradição não guarda", no início do século XVIII. Aqui ele remetese à "abalizada opinião de Alfredo de Carvalho" (Fleiuss, 1922, 1551) - isto, hoje, como sabe, é questionado. E, outro aspecto importante, esta data, de qualquer forma, não foi o marco escolhido pelo IHGB para marcar o centenário da imprensa no Brasil, mas sim o ano de 1808, com a chegada de D. João e a Imprensa Régia. Quer dizer a opinião do regional Instituto pernambucano tinha certo peso, mas não tanto assim. A seguir, o autor, nesta primeira parte de seu texto dedica-se ao periodismo que surge no Rio de Janeiro (cerca de 14 páginas), arrolando os trabalhos que apareceram, suas tendências etc. (num tom próximo ao de Moreira de Azevedo e Carvalho, nos trabalhos já comentados). Uma segunda parte do texto aborda a introdução e primeiros empreendimentos tipográficos nas províncias (7 páginas). Por fim, auto-elogiando o "certame brihantissimo que foi a Exposição Commemorativa do Primeiro Centenário da Imprensa Periodica no Brasil, promovido pelo Instituto Histórico e Geographico Brasileiro" (Fleiuss, 1922, 1571), procura sumariar os jornais existentes "ao cahir do império, em 1889 e dos que actualmente apparecem", conforme os dados levantados pelo autor (no próprio contexto da comemoração do centenário) e fornecidos a ele por outros pesquisadores. Esta parte soma cerca de 14 páginas. O que esta parte, em específico, tem de interessante é que não demonstra apenas uma centralidade do Rio, mas também que subestima a imprensa paulista - provavelmente o mesmo ocorre com outras províncias. Porém, o caso de São Paulo é marcante, tendo em

visto o ambiente de disputas entre Institutos e concepções de história nacional que temos apontado. Ora, o próprio Fleiuss (1922, 1570) vai reconhecer que o "desenvolvimento jornalistico paulista intensifica-se, irradia-se prodigiosamente. Hoje figura S. Paulo como o nucleo de maxima eclosão das artes graphicas e do Jornalismo brasiliense", fazendo eco ao relato de Alfredo de Carvalho, de 1908, já citado. Todavia, se é claro que Fleiuss trabalha com informações da pesquisa de Lafayette de Toledo (1898) sobre a imprensa paulista, neste texto, ignora o trabalho de Freitas (1914), que, como vimos, ele conhecia. É só isso que justifica que, na última parte do texto, se dedique a São Paulo menos espaço que à maioria dos estados. Assim, se evidencia igualmente como por meio da manipulação e omissão de dados - que esta historiografia privilegia como índice da desejável (para esta concepção de história) neutralidade do investigador - logra-se construir uma narrativa fortemente local da imprensa no Brasil, com base no Rio. Os paulistas, com outras estratégias, mas métodos similares, tentariam narrar uma outra "história nacional". A pesquisa sobre a imprensa no IHGSP: "Paulicéa [...] obra maravilhosa de que só é capaz a geração que sente ainda pulsar-lhe nas artérias o sangue do bandeirante" (3)

Imagem 3: Capa e página do miolo do estudo matricial, de Lafayette de Toledo (1898), dentro da concepção inventariante da história da imprensa feita na época.

- Vamos á casa do dr. Affonso de Freitas? Do Presidente do Instituto Historico e Geographico de São Paulo? E fomos. Era lá na rua Dr. Capote Valente, num recanto muito proprio para quem reconstrue éras passadas e tempos idos. Quando apareceu tive para comigo esta expressão: É paulista e da gemma! Bueno (1931, 43) O possível primeiro estudo sobre a imprensa paulista(4) foi escrito por Lafayete de Toledo (1898), que era jornalista, tendo atuado em muitos jornais do interior de São Paulo e também da capital - como o Diário Popular, onde publicou inicialmente seu estudo. Depois disso, incorporou críticas e comentários de leitores, que havia sugerido que lhe fossem enviadas, quando fossem observadas omissões, e o trabalho foi publicado na Revista do IHGSP. Esse aspecto, aliado ao seu conhecimento do meio jornalístico de São Paulo, parece contribuir para a extensão desse inventário da imprensa periódica paulista entre 18271896, que constitui a segunda parte do texto. São listados nada menos do que 1.536 jornais, revistas e periódicos, organizados num sistema que combina ordem alfabética com uma cronologia de fundação. Parte dos periódicos recebe comentários, sobre duração, motivações políticas, tendências etc., infelizmente não há dados sobre tiragens. É, em

termos da pesquisa inventariante que marca o início do estudo imprensa então, o trabalho matricial. Feito antes da edição comemorativa do Centenário da imprensa feita pela revista do IHGB que, como dissemos, ignora-o.

Imagem 4 Detalhe da primeira página e cabeçalho do miolo de trabalho de Afonso de Freitas, no qual a imprensa paulista transforma-se em "imprensa brasileira".

É nessa perspectiva - da diminuição, quase exclusão, de São Paulo do panorama nacional - que podemos perceber o primeiro trabalho de Afonso de Freitas (1914) sobre a imprensa como uma espécie de resposta simbólica do grupo paulista ao carioca. Afirmação da capacidade paulista de superar dificuldades, "má vontade" do poder central, e mostrar-se superior em realizações aos demais estados do país. Freitas continua o trabalho de Toledo (1898) e outro de Martins (1912) - este voltado exclusivamente para as iniciativas da imprensa paulistana até 1893. A pesquisa, porém, não é uma resposta explícita, não configura uma polêmica direta com o IHGB(5), mas parece tentar demonstrar, já na sua dimensão quantitativa - o trabalho possui 815 páginas, mais que toda a Revista do IHGB sobre Centenário brasileiro -, a importância e "peculiaridade" paulista e de sua imprensa, dentro da federação.

Imagem 5 Ilustração de um dos trabalhos de Afonso de Freitas, que demonstra a preocupação em caracterizar a pujança da imprensa paulista já nas primeiras décadas do século XX.

Outro aspecto a notar é que Freitas era um historiador em ascensão, quando publicou este trabalho, que galgaria todos os postos importantes no IHGSP até tornar-se presidente do mesmo, de 1921 a 1930, quando morre. Isto é, entendida como "resposta" de um grupo a outro, não era dada por um elemento qualquer. Ele também publicaria outros trabalhos sobre a imprensa paulista, uma memória do Correio Paulistano em 1831, uma complementação ao trabalho que discutiremos adiante e um texto de conferência sobre o primeiro centenário da imprensa paulista (respectivamente, Freitas, 1915, 1928[6], 1928a).

Tal interesse quanto à impressa paulista é parte do esforço de valorização das características e conquistas do estado, levado a cabo pelo IHGSP. Assim, a preocupação em estudá-la já aparece numa lista de assuntos aprovados pelo Instituto, em 1895 (vide RIHGSP, 1895 apud Schwarcz, 1993, 129). Um outro aspecto, especificamente de conteúdo do texto de Freitas chama ainda a atenção: os elementos discursivos ligados à criação do que designaremos de "mito da fundação"(7) da imprensa paulista. O trabalho elabora uma narração de origem (inexistente em Toledo e Martins) desta imprensa, que tenderá a fixar-se e ser perpetuada pelos trabalhos que lhe seguem (Freitas Nobre, 1950, Duarte, 1957/1972, Oliveira, 1978; em versão romanesca: Schmidt, 1954). Enquanto Toledo e Martins iniciam seu relato com o início de O Farol Paulistano, sem mais, Freitas irá estender-se, por um lado, nas dificuldades encontradas para a implantação da tipografia em São Paulo. De outro, resgatará uma experiência de jornal manuscrito, O Paulista, anterior a O Farol.

Imagem 6 Afonso de Freitas, cuja historiografia marcadamente paulista envolveu estudos sobre outros aspectos de São Paulo, além da imprensa, como as populações indígenas locais e estripes paulistanas. Publicou ainda, em 1921, o livro Tradições e reminiscências paulistanas, continuamente reeditado.

Da longa e documentada descrição das iniciativas junto à Corte para introdução da imprensa em São Paulo, vale notar o explícito destaque ao papel de São Paulo na independência, conforme o relato, pois a possível tipografia estaria relacionada à magnificancia imperial [que] parecia pretender pagar a dívida contrahida com os Paulistas pela acção decisiva de S. Paulo na modorrenta questão da fundação do império pelos Bragança, que so teve solução nos campos do Ypiranga por sáfaro ser então o terreno de acção político-nacionalista do Rio de Janeiro e Minas Geraes, mau grado os ingênuos esforços [...], no baldado intento que das encostas da velha cidade de Ouro Preto partisse o brado de independência. (Freitas, 1914, 330) O jogo burocrático de protelações para o envio da tipografia descrito, a partir da "leitura de quantos papeis relativos ao assunto no chegaram ás mãos", mostra, segundo Freitas (1914, 333), "o pouco empenho dos dirigentes do primeiro império em se tornarem agradáveis e em fazerem justiça aos Paulistas". Em continuidade a esse esforço inútil é que se engata o surgimento do jornal manuscrito O Paulista, em 1823. Criado a partir de um "Plano de estabelecimento patriotico destinado a supprir a falta de uma Typographia", por um professor de gramática e retórica muito jovem - o "mestrinho" - apoiado pela alta administração da província, o jornal bi-semanário aparentemente não dura muito (talvez dois meses), porém, parece provar, conforme o relato de Freitas, a capacidade paulista para superar dificuldades, daí sua valorização. É com O Paulista, pois, que o autor começa sua longa e minuciosa relação dos periódicos editados em São Paulo até 1914. Ao Paulista, e a um intervalo nas tentativas de introduzir uma tipografia, chega-se a 1827 quando esta é implantada finalmente em São Paulo graças a um particular, não à ajuda da Capital. E a este marco segue-se um aluvião de

periódicos, um progresso da imprensa em São Paulo, que faria com que ela fosse, em 1914, indiscutivelmente a mais desenvolvida de todas as das outras circumscripções brasileiras, apresenta todas as caracteristicas do mais adiantado jornalismo e amplamente satisfeitas as necessidades e as exigencias da sociedade moderna em que o progresso da civilização transformou o velho e lendario dominio dos bandeirantes. (Freitas, 1914, 341, grifo nosso) O mito de fundação da imprensa paulista, ou seja, o relato da criação da mesma conforme produzido por Freitas (1914), procura significar a capacidade, tenacidade e liderança de São Paulo - não por acaso, ele articula-se ao tema da independência, com papel de destaque para a então província. "Tratava-se", dessa forma, como nota Schwarcz (1993, 123-4), "de ir buscar no passado fatos e vultos da história do estado que fossem representativos para constituir uma historiografia marcadamente paulista, mas que desse conta do país como um todo". Outro aspecto que deixa clara as diferentes concepções entre IHGB e IHGSP sobre o Brasil é quanto ao papel da monarquia. Na primeira parte do trabalho de Freitas ora discutido, a que antecede ao catálogo de periódicos, a interpretação da história feita pelo autor mostra-se crítica ao "antigo regime", e por extensão ao período joanino. Sua análise tem uma perspectiva negativa (ainda que relativizada por reconhecer as melhorias que o Brasil ganha com a administração joanina) à "despótica administração colonial", até pouco antes da independência, ponto que não é comum entre os autores do IHGB. Ou seja, a história via IHGSP passava centralmente não apenas por São Paulo, mas também pela República. Vale, por fim, observar que uma interpretação como é feita sobre a pesquisa em São Paulo talvez nos ajude a rever a própria história do pré-jornalismo no Brasil, pois um dos aspectos usados para construir o mito de fundação da mesma - a existência de um jornal manuscrito - não parece ser uma peculiaridade paulista. Porém, não é uma questão que ganha relevância nos trabalhos de outros historiadores da época em outras regiões - e nem até hoje. Ganhou em São Paulo, devido ao papel que poderia assumir para construir o mito, e sugere mesmo uma linha de investigação. Não se ignoram, as menções a panfletos e folhetos manuscritos, descritos em histórias da imprensa, porém, acreditamos ser provável que tenham existido outros jornais como O Paulista, não destacados em função do olhar que privilegia, como símbolo de civilização, a implantação da imprensa nas províncias. Perspectiva, por sinal, construída no período analisado aqui. Conclusão Ao falar sobre a "elite paulista" de meados dos anos 1930, Lévi-Strauss (1996, 95) nota que ela formava uma flora "mais exótica do que se imaginava", que se pensava cosmopolita, mas não sabia o quanto era típica. Os historiadores de nossa imprensa do período aqui analisado parecem ter uma posição análoga: pretendem redigir a historia "nacional", mas não superam os localismos - no pior, acabam servindo a projetos de diferentes oligarquias. Num tempo de baixíssima diferenciação e autonomização do trabalho intelectual, seria difícil esperar mais. De qualquer forma, ainda que muitos elementos dos Institutos tenham sido os primeiros catedráticos de nossas universidades, o padrão do trabalho intelectual subiria a ponto de superar o modelo dos IHs, bem como sua concepção de história. Chega a ser sintomático que, em 1923, num dos trabalhos muito característicos e comuns aos IHs, uma Revista do IHGB que enfoca as "antiqualhas" (aspectos antigos e pitorescos de uma localidade) do Rio de Janeiro tenha por verbete os "Institutos Históricos" (RIHGB, Tomo 9, vol. 147, 182-5). Caberia, em outra oportunidade, avaliar a herança da pesquisa dessa pioneira em Comunicação, em termos mais específicos sobre seus possíveis significados para a área hoje. Assim como, desenvolver o tema quanto a outros Institutos - aspecto que reforçaria

o argumento principal do texto. A primeira questão fica reservada ao futuro. Já quanto ao segundo ponto é possível comentar, preliminarmente, sobre a pesquisa do Instituto Pernambucano, que, menos do que a historiografia da imprensa, o que interessava era a investigação do período holandês (nada menos que 51% dos artigos da revista do IAGP entre 1863 a 1930 são dedicados ao tema, conforme Schwarcz, 1993, 120) para ressaltar a atitude "valente e patriota" dos pernambucanos ao expulsá-los. Por isso, não deve ter sido sem contentamento que se chegou aos resultados de que não houve imprensa no período de dominação holandesa (Pereira, 1883; como típica investigação regional este trabalho aparecerá na Revista do IAGP e não na do IHGB). Ao mesmo tempo, Alfredo de Carvalho (1908), como vimos, reivindicará a prioridade da introdução da imprensa no Brasil para Pernambuco, no início do século XVIII. Como se sabe, até hoje não foram encontradas provas consistentes dessa tipografia. Já Minas poderá respaldar um pioneirismo a partir do padre Viegas, que imprimiu um pequeno opúsculo utilizando a calcografia, em 1807, um ano antes da introdução da tipografia por meio da Imprensa Régia (Veiga, 1897 apud Barbosa, 1902, 245-7). Referências bibliográficas AZEVEDO, Manoel Duarte Moreira de. 1865. Origens e desenvolvimento da imprensa no Rio de Janeiro. RIHGB, Tomo 28, Rio de Janeiro, pp. 169-224. BARBOSA, A. da Cunha. 1902. Origem e desenvolvimento da imprensa colonial brazileira. RIHGB, Tomo LXIII, Rio de Janeiro, pp. 239-262. BARTHES, Roland. 1975. Mitologias. São Paulo, Difel, 2ª. ed. BUENO, Silveira. 1931. Perfil do Dr. Affonso Antonio de Freitas. RIHGSP, São Paulo, vol. 28, pp. 43-45. CAMPOS, Tullio de. 1900. Evaristo Ferreira da Veiga (Commemoração Historica). RIHGSP, São Paulo, vol. V. CARVALHO, Alfredo de. 1908. Genese e progresso da imprensa periódica no Brazil. RIHGB, Rio de Janeiro, Tomo consagrado à Exposição Comemorativa do Primeiro Centenário da Imprensa Periódica no Brasil, pp. 3-71. CERRI, Luis Fernando. 1998. Non ducor, duco: a ideologia da paulistanidade e a escola. Revista Brasileira de História. Vol. 18, n. 36, São Paulo. Disponível em www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010201881998000200007&Ing=en&nrm=isso. COSTA, F. A. Pereira da. 1891. Estabelecimento e desenvolvimento da imprensa em Pernambuco. RIAGPE, Recife, Tomo 39. DUARTE, Paulo. 1972 (1ª. Ed: 1957). História da imprensa em São Paulo. São Paulo, ECA/USP. FARIA, Julio Cezar. 1931. Discurso. RIHGSP, São Paulo, vol. 28, pp. 15-31. FLEIUSS, Max. 1922. A imprensa no Brasil. In: Diccionario Histórico, Geographico e Ethographico do Brasil, vol. 2, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, pp. 1550-1585. ______________. 1916. A caricatura no Brasil. RIHGB, Rio de Janeiro, Tomo 80, pp. 587-609. FREITAS, Affonso A. de. 1914. A imprensa periódica de São Paulo. RIHGSP, São Paulo, vol. XIX, pp. 321-1136. ______________. 1915. O "Correio Paulistano" em 1831. RIHGSP, vol. XX, pp. 391-399. ______________. 1928. O primeiro centenário da fundação da imprensa paulista. RIHGSP, São Paulo, vol. XXV, pp. 542. ______________. 1928a. Notas à margem do estudo "A imprensa periódica". RIHGSP, São Paulo, vol. XXV, pp. 445490.

FREITAS NOBRE, José. 1950. História da imprensa de São Paulo. São Paulo, Edições Leia. FURTADO, Alcebíades. 1912. Biographia de Hippolito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça. RIHGSP, São Paulo, vol. XVII, pp. 205-240. GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. 1988. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, pp. 5-27. Disponível em www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/26.pdf. LESSA, Pedro Augusto Carneiro. 1912. João Francisco Lisboa. RIHGB, Rio de Janeiro, Tomo XX, pp. 65-97. LÈVI-STRAUSS, Claude. 1996. Tristes trópicos. São Paulo, Companhia das Letras. LUCA, Tânia Regina de. 1999. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo, Ed. UNESP. MAGALHÃES, José Vieira Couto de. 1931. Discurso. RIHGSP, São Paulo, vol. 28, pp. 35-39. MARQUES, César Augusto. 1888. História da imprensa do Maranhão [segunda parte]. RIHGB, Rio de Janeiro, Tomo LI, pp. 167-220. ____________. 1878. História da imprensa em Maranhão [primeira parte]. RIHGB, Rio de Janeiro, Tomo XLI, pp. 129225. MARTINS, Antonio Egydio. 1912. Jornaes e jornalistas. RIHGSP, São Paulo, vol. XVII, pp. 105-128. MELLO, Homem de. 1872. Biographia dos brasileiros illustres por armas, letras, virtudes, etc.: Hyppolito José da Costa Pereira. RIHGB, Rio de Janeiro, Tomo 45, pp. 203-246. MORSE, Richard. 1954. De comunidade a metrópole: biografia de São Paulo. São Paulo, Comissão do IV Centenário. MOUTINHO, Jessita Maria Nogueira. 1991. A paulistanidade revista: algumas reflexões sobre um discurso político. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, São Paulo, vol. 3 n.1-2, pp. 109-117. OLIVEIRA, João Gualberto. 1978. Nascimento da imprensa paulista. São Paulo, Gráfica Sangirard. PEREIRA, José Higino Duarte. 1883. Advertencia. RIAGPE, Recife, n. 28. PERDIGÃO, João Baptista de Oliveira. 1897. A imprensa do Ceará. RIHGCE, Fortaleza, 2º. Trimestre. SCHMIDT, Afonso. 1954. São Paulo dos meus amores. São Paulo, Clube do Livro. SCHWARZC, Lilia Moritz. 2001. O nascimento dos Museus brasileiros (1870-1910). In: MICELI, Sergio (org.). História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo, Sumaré, pp. 29-90. ____________. 1993. Os Institutos Históricos e Geográficos: "guardiões da história oficial". In: O espetáculo das raças. São Paulo, Companhia das Letras, pp. 99-140. SENNA, Ernesto. A Imprensa Régia. 1911. RIHGSP, São Paulo, vol. XIII, pp. 41-60. SILVA, Argemiro da. 1892. Alguns apontamentos biográficos de Líbero Badaró. RIHGB, Tomo LIII, Rio de Janeiro, pp. 309-384. SILVA, Nicoláo Duarte. 1930. Líbero Badaró: contribuição à sua biografia. RIHGSP, São Paulo, vol. XXVIII, pp. 463-577. SODRÉ, Nelson Werneck. 1966. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. TOLEDO, Lafayette de. 1898. Imprensa paulista. RIHGSP, São Paulo, vol. III, pp. 303-521. VAMPRÉ, Spencer. 1931. Discurso. RIHGSP, São Paulo, vol. 28, pp. 9-11. VEIGA, J. P. Xavier da, 1897. A imprensa em Minas Geraes. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, junho.

Notas: (1) Conservamos nas citações a ortografia da época. (2) Conforme o levantamento mostrado por Schwarcz (1993), nas revistas entre 1838 e 1938, predominam, correspondendo quase à metade do material, os estudos históricos, seguidos por discussões geográficas, entre elas sobre os limites e fronteiras do país (18%) e, em terceiro lugar, vem as biografias dos "grandes vultos" da história pátria, bem como biografias (pequenos artigos) dos próprios membros do Instituto, num azeitado mecanismo de autoconsagração, conjunto que soma 16% dos trabalhos publicados na revista. Vale a pena notar que Hipólito da Costa será um dos biografados (Mello, 1872), na Revista do IHGB. Neste trabalho se destaca justamente sua atividade como "escritor público", ou seja, a atuação de Hipólito no Correio Braziliense. Outros homens com atuação na imprensa recebem também biografias, como João Francisco Lisboa (Lessa, 1912) e Libero Badaró (Silva, 1890), a vida deste jornalista, mereceu uma biografia também na revista do IHGSP (Silva, 19930), o mesmo ocorre com Hipólito da Costa (Furtado, 1912) e Evaristo da Veiga (Campos, 1900). (3) Magalhães (1931, 38), o trecho é de um discurso publicado na Revista do IHGSP em memória do historiador, então recentemente falecido, Afonso de Freitas, e ressalta a preocupação da obra do estudioso com a "Paulicéa". (4) Richard Morse (1954, 58 e 308) faz referência a um trabalho da Comissão de Redação do Instituto Histórico (Brasileiro?) chamado Imprensa em São Paulo - a primeira tipografia, que não é datado, porém. Encontra-se em microfilme no IHGB. (5) É possível, porém, que exista uma remissão direta, hoje não muita clara, a disputas deste tipo, quando na última página do trabalho Freitas insere uma "Explicação", na qual nota que, fora alguns poucos documentos cedidos por Alfredo de Toledo, "tudo o mais, o delineamento, bom ou máu do nosso trabalho, o rebasamento da materia, os conhecimentos e doutrinas expandidos - na Introducção - e em todo o corpo da obra etc etc, são productos do nosso esforço e saber, exclusivamente do nosso esforço e saber" (Freitas, 1914, 1136). (6) Quanto a este texto é interessante notar a espécie de "ato falho" (ou provocação) que é a inserção de um cabeçalho, em todas as páginas, exceto a primeira, onde se lê "Fundação da Imprensa Brasileira". A intercambialidade entre paulista e brasileiro é uma das expressões desse regionalismo do IHGSP. (7) O mito aqui é pensado não como uma narrativa necessariamente falsa, sem ancoragem empírica, o que o caracteriza é antes ser uma "fala definida por sua intenção" (Barthes, 1975, 145). No caso, a intencionalidade da demonstração da capacidade paulista, como veremos. *Richard Romancin é doutorando na ECA/USP.

Voltar

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.