INVERSÃO DO ANIMUS DA POSSE FUNÇÃO SOCIAL E CONVALESCIMENTO DA POSSE PRECÁRIA

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INVERSÃO DO ANIMUS DA POSSE FUNÇÃO SOCIAL E CONVALESCIMENTO DA POSSE PRECÁRIA Stéfany Fávero Brandão Aluna da disciplina de Direito das Coisas do curso de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) RESUMO O presente estudo objetiva analisar o fenômeno da inversão do animus da posse e suas implicações no âmbito do Direito Civil Brasileiro, identificando, inclusive, os principais pontos controvertidos, em específico, a hipótese de convalescimento da posse precária em posse ad usucapionem. O tema será desenvolvido a partir da evolução dos conceitos de animus, posse e detenção, desde as teorias clássicas da posse, Subjetiva e Objetiva, até à concepção atual, a qual é pautada pelo princípio da função social da propriedade. PALAVRAS-CHAVE: Inversão do animus da posse – Função social da propriedade – Posse precária – Posse ad usucapionem ABSTRACT The present essay intends to analyze the phenomenon of the reversal of animus possession and its implications according to Brazil’s Civil Law, discriminating the most relevant controversial issues, specifically the hypothesis of precarious possession conversion into adverse possession. The theme will be developed from the evolution of the concepts of animus, possession and detention, since the classical theories of possession, Subjective and Objective, to nowadays conception, based on the principle of property’s social function. KEYWORDS: Reversal of animus possession – Social function of property – Precarious possession – Adverse possession

SUMÁRIO: 1. Introdução: o animus na posse – 1.1. Concepção subjetiva de Savigny – 1.2. Concepção objetiva de Jhering – 1.3. Concepção sociológica no Direito Civil brasileiro – 2. A inversão do animus da posse – 2.1. Vícios da posse – 2.2. Detenção e Posse Direta – 2.3. Convalescimento da Posse Precária – 3. Considerações finais – 4. Referências Bibliográficas.

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1. INTRODUÇÃO: O ANIMUS NA POSSE Qualquer estudo que se pretenda mais aprofundado sobre o tema posse deve fazer menção a teorias que se propõem a explicá-la. Isso porque poucos institutos no Direito Civil são tão complexos ou suscitam tantas discussões quanto a sua natureza, o que, obviamente, se reflete nos demais fenômenos fáticos e jurídicos que lhe sejam correlatos. Nessa perspectiva, é irrazoável pretender delinear o tema da inversão do animus da posse, e confrontar suas principais questões, sem, primeiramente, compreender o próprio animus e a sua “colocação”, por assim dizer, na estrutura da própria posse. Por tal motivo, este trabalho se deterá brevemente sobre as chamadas teorias clássicas da posse – a Subjetiva e a Objetiva – e as recentes teorias sociológicas da posse, com foco específico no elemento animus. Registre-se, a priori, que desde o Direito Romano surgiram numerosas considerações notáveis sobre a posse, as quais muito contribuíram para a evolução do instituto; todavia são as citadas teorias clássicas que mais influenciam os juristas contemporâneos, servindo de base às atuais teorias sociológicas. Nas grandes teorizações apontadas, o animus – entendido, grosso modo, como a vontade humana – figura como ponto fulcral de divergência. Se a intenção do homem para com a coisa seria relevante à caracterização da posse, e em que medida, era – e em certos casos ainda é – motivo de discussão, tão relevante, historicamente, quanto a questão da natureza da posse – se fato ou direito, ou algo distinto. Com o avanço dos estudos sobre o instituto da posse, transformou-se a concepção acerca do animus, que, contudo, se mantém pertinente, conforme será demonstrado. Muito embora a perspectiva atual tenha, em grande parte, superado a dicotomia subjetiva/objetiva das teorias clássicas, de modo que nenhuma dessas deva ser puramente aplicada, observa, com acerto, Menezes Cordeiro: “As realidades que traduzem são, porém, bem reais. Os estudiosos da posse têm o dever de as conhecer e o ônus de optar, em termos justificados.”1

1.1. CONCEPÇÃO SUBJETIVA DE SAVIGNY Friedrich Karl Von Savigny é considerado “um dos cientistas-chave na conformação do pensamento moderno sobre a posse”2. O emitente cientista logrou sintetizar o impreciso e confuso pensamento jurídico de sua época, herdeiro de uma infinidade de institutos românicos, sem qualquer organização dogmática, e sistematizar em uma teoria geral da posse, que abrangia sua natureza e constituição. 1 2

CORDEIRO, Antônio Menezes de. A Posse – Perspectivas dogmáticas actuais, 2000, p.52. Idem, p.23.

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Seu grande mérito, no entanto, foi apresentar a posse como um instituto autônomo3, desvinculado da propriedade, e digno, por si só de proteção pelo Direito. O eminente filósofo jurista logrou conceitou a posse como o poder que a pessoa tem de dispor materialmente de uma coisa, com a intenção de tê-la para si e defendê-la contra a intervenção de outrem. É repetido à exaustão pela doutrina que Savigny caracteriza a posse como a união de corpus, que é o poder físico sobre a coisa, e animus domini, a intenção de dono. Apesar de correta, tal afirmação é sobremodo reducionista, atrapalhando reflexão mais aprofundada acerca do pensamento do eminente cientista e de sua influência, que persiste ainda na atualidade. Savigny definiu a posse a partir de uma ideia de detenção; detentor seria o indivíduo que está em contato físico com a coisa, de modo a apresentar affectio tenendi, isto é, a aparência de dono perante a coletividade, porém sem que a essa aparência corresponda a vontade de ser dono. Então, na concepção savignyniana, conforme lição precisa de Caio Mário4, para que o estado de fato da pessoa em relação à coisa pudesse se constituir em posse, exigia-se que ao elemento físico (corpus) viesse juntar-se a vontade de proceder em relação à coisa como procede o proprietário (affectio tenendi), mais a intenção de tê-la como dono (animus). Posse e detenção seriam, pois, situações similares, e o elemento diferenciador entre ambas representar-se-ia tão-somente pelo animus domini, verificado na primeira e não na segunda. Percebe-se, portanto, a grande importância que Savigny reconheceu ao fator intenção humana para a configuração da posse, razão pela qual sua teoria passou à história sob a alcunha de “Subjetiva”. Importa salientar que o animus é não se confunde com a consciência ou convicção de ser dono, é, puramente, a intenção de ser dono. A partir dessa premissa, é perfeitamente compreensível que um sujeito, a mesmo ciente que a coisa pertence a outrem, a possua, porque, a despeito da propriedade alheia, pode querer tomar a coisa para si. Esse raciocínio é deveras importante, pois representa a base lógica da usucapião. Segundo a sua visão dos elementos constitutivos do instituto possessório, a ausência ou de corpus, ou de animus, não permitiria caracterizar o contato entre a pessoa e a coisa como posse. Esse era, afinal, o mais revés da teoria subjetiva, cujos efeitos são um dos principais contrastes entre esta e a objetiva. A impossibilidade de haver posse sem a intenção de ter a coisa para si (animus rem sibi habendi) descaracteriza a condição de possuidor, por exemplo, ao locatário, ao comodatário, ao usufrutuário, enfim indivíduos que podem dispor imediatamente da coisa – nisto expresso o corpus – mas que não apresentam animus domini. A principal consequência jurídica dessa construção teórica é que tais pessoas, tidas por meras detentoras, não poderiam valer-se dos interditos 3 4

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito Civil, vol. 5, 2013, p. 62. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. 4, 2014, p. 45.

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possessórios, para garantir ou restaurar o seu poder sobre o bem. E tampouco o proprietário uma vez que, faltando-lhe o contato físico com o bem, também não poderia ser considerado possuidor e, portanto, apenas lhe assistiriam as ações fundadas em seu direito de propriedade, as reivindicatórias. Da breve exposição feita, extrai-se que a estruturação proposta por Savigny foi um marco na evolução dogmática da posse, tratando-a com certa autonomia em relação à propriedade. O conceito de animus na teoria subjetivista explicou, de forma brilhante a seu tempo, a hipótese de perda da coisa pelo abandono e aquisição da coisa pela apreensão física, privilegiando, com isso, o instituto da usucapião. Porém, o animus – domini, rem sibi habendi – concebido por Savigny condicionou a existência da posse à intenção de propriedade, entendimento, em certa medida paradoxal: a posse merece proteção, independente de corresponder ao direito de propriedade, porém só estará configurada se o indivíduo agir pela vontade de ser proprietário.

1.2. CONCEPÇÃO OBJETIVA DE JHERING O maior opositor da teoria de Savigny foi Rudolf Von Jhering. Dentre as ferrenhas críticas que este fez à concepção subjetivista da posse, uma das mais veementes era, precisamente, a proeminência que conferia ao elemento anímico, na caracterização da posse. Poderia levar à conclusão de que a teoria de Jhering excluiu o animus da estrutura possessória, e que, em sua concepção a posse equivale apenas ao corpus; porém este é um juízo precoce, que deve ser evitado caso se pretenda aprofundar na temática ora exposta. Jhering afirmou a propriedade como referencial absoluto para a posse; nesse sentido, percorreu caminho oposto ao de Savigny, que concebeu a autonomia da posse. Conforme lecionam Farias e Rosenvald, para Jhering a “posse seria o poder de fato e a propriedade, o poder de direito sobre a coisa” 5. Prosseguem esclarecendo que o “possuidor seria aquele que concede destinação econômica à propriedade, isto é, visibilidade ao domínio”6. Quanto à figura do detentor foi equiparada, ao menos no plano estrutural, à do possuidor no sentido de também corresponder ao corpus com affectio tenendi; porém com a ressalva de lhe ser negada a condição de posse em virtude de previsão legal. Em suma, pelo conceito objetivista de Jhering, a posse seria o mero exercício de algum dos poderes da propriedade, de modo a cumprir sua destinação econômica; e a detenção seria a posse juridicamente desqualificada. Essa visibilidade, na teoria objetiva, representa o corpus, diferindo-se, portanto do conceito de disponibilidade física da coisa, conforme Savigny. Na visão 5 6

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito Civil, vol. 5, 2013 p. 62 Idem, ibidem.

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de Jhering, poder-se-ia afirmar, portanto, a ocorrência de posse, sem contato físico ou disposição imediata da pessoa com o bem, desde que este tivesse sua finalidade econômica preservada. A intenção do indivíduo, segundo Jhering não importa à caracterização da posse; se a posse é mero exercício da propriedade, o possuidor é aquele que se comporta como se dono fosse. Em vez de animus domini, o elemento subjetivo da posse, na teoria objetiva, passa a ser a affectio tenendi, a vontade de agir como proprietário, e este será exteriorizado no comportamento do possuidor. Note-se que, como assevera o célebre Caio Mário, “Ihering não eliminou o elemento intencional na sua concepção da posse”7. Um dos maiores acertos da teoria objetivista foi, justamente, reverter o condicionamento da posse ao fator psicológico, e, assim, reconhecer como possuidores o locatário, o comodatário, o usufrutuário – enfim, todos os que exercem o corpus, ou seja, poder sobre o bem – possibilitando-lhes lançar mão da proteção possessória. Outra benesse adveio da concepção diferenciada apresentada por Jhering acerca do corpus, que permitiu compreender a existência de relação possessória mesmo ante à separação física entre pessoa e coisa. Essas duas mudanças, quanto ao elemento subjetivo, e o elemento material, possibilitou conceber um fenômeno incompatível com a teoria de Savigny: o desdobramento da posse. Em resenha apertada, o desdobramento corresponde à coexistência de duas categorias de possuidor: a direta, em que o possuidor, não sendo proprietário, comporta-se como se fosse, sem ter, no entanto, qualquer intenção de vir a sê-lo; e a indireta, em que detém o direito de dispor do bem, mas não exerce poder imediato sobre ele. Essa possibilidade é fundamental no estudo da inversão do animus da posse. Em suma, entende-se que, na Teoria de Jhering, o animus da posse não é descartado, mas deslocado para o interior do corpus, conforme resumem Farias e Rosenvald, é ínsito ao corpus8. Logo, pela perspectiva objetiva a única vontade humana juridicamente relevante é aquela que se expressa por manifestações no plano dos fatos.

1.3. CONCEPÇÃO ATUAL NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO O Código Civil de 2002 claramente consagrou a Teoria Objetiva; a redação do artigo 1.1969 não deixa margem a dúvidas. E isso implicaria dizer que o animus. 7

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. 4, 2014, p. 48. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito Civil, vol. 5, p. 6 9 In verbis: “Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.” 8

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Todavia, como, mencionado no início deste trabalho, não se pode aplicar atualmente quaisquer dessas concepções, seja subjetivista, seja objetivista, de forma integral, por motivos óbvios. O primeiro é que nenhuma delas é suficiente para responder de forma satisfatória e conveniente todas as questões que se levantam acerca da temática posse; com relação às duas podem-se apontar grandes benefícios, e em contrapartida também ambas apresentam graves inadequações. O segundo, o Direito é dinâmico, devendo amoldar-se sempre às demandas da sociedade; se a realidade social se transforma, as normas devem – ou deveriam – acompanhar tais mudanças. O contexto histórico-social que influenciou o pensamento de Savigny ou Jhering é muito distinto do contexto que orienta o Direito Brasileiro hoje. Como reflexo de décadas da mitigação do caráter privatístico do Direito Civil, ganhou força um novo enfoque sobre o direito de propriedade, menos absoluto e estático, o que, consequentemente, também proporcionou um novo olhar à matéria de Direito das Coisas como um todo. Um marco dessa evolução no ordenamento pátrio é a previsão, na própria Constituição Federal de 1988, da função social da propriedade, no art. 5º, XXIII10. A Carta Magna não define a função social, e o Código Civil traz não mais que um esboço no art. 1.228, § 1º11. Desde o final da década de 1980 até os dias atuais, essa concepção social vem se fortalecendo, e a tendência que se verifica, em sede doutrinária e jurisprudencial, é a sua ampliação para além do direito à propriedade, de modo que, muitos juristas de renome, dentre os quais o professor Rodrigo Reis Mazzei, já esmiúçam a ideia da função social da posse, a despeito da inexistência de qualquer referência legal expressa sobre o tema. O que se vem argumentando é a fluidez do conceito de função social da propriedade12, que deve ser entendido como extensivo aos demais direitos reais e institutos de Direito das Coisas. Se à propriedade, limitada pelos formalismos, se reconhece a função social, não razão por que não identificá-la também na posse, muito mais dinâmica no plano fático. É interessante o contraste que se percebe ao comparar-se os contornos da função social com relação à propriedade e com relação à da posse. Quanto ao direito de propriedade, a função social representa a supressão do abuso de direito – um exercício ilimitado, não obstante prejudicial a outras pessoas. Quanto à posse, Sobre o assunto, com maestria preleciona Luiz Edson Fachin, verbis: “O fundamento In verbis: “XXIII – a propriedade atenderá a sua função social” In verbis: “§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.” 12 Conforme preleciona o professor Rodrigo Reis Mazzei. 10 11

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da função social da propriedade é eliminar da propriedade privada o que há de eliminável. O fundamento da função social da posse revela o imprescindível, uma expressão natural da necessidade”13. Dado esse panorama, é fácil notar que há certa discrepância no modo como a posse tem sido estudada e aplicada, e na maneira como é definida no texto legal. A teoria objetiva adotada no Código, em sua concepção original, não se coaduna com o conceito de função social da posse, pois a base de todo o raciocínio de Jhering é ser a posse um meio para o fim de exercer o direito de propriedade. Jamais concebeu, portanto, posse que pudesse prevalecer sobre a propriedade – ao contrário, aquela deveria sempre sucumbir perante esta. A ideia que se tem hoje, entretanto, é da posse como instituto autônomo em relação à propriedade, e, pelo critério da função social, do confronto entre a propriedade que ofenda a função social e a posse que efetivamente a exerça, é certo que está última prevalecerá. O eminente ministro Marco Aurélio sintetiza muito bem essa desarmonia, verbis: “Em que pese a importância da teoria objetiva de Ihering [...], o fato é que por meio de uma filtragem constitucional do artigo 1.196 do Código Civil vê-se que ela se encontra em crise em razão da necessidade de afirmar o valor da função social da posse”14. Por tal razão, os entusiastas da posse, incluindo o próprio Marco Aurélio15 e Rodrigo Cardoso Freitas16, são favoráveis à proposta de nova redação do art. 1.19617, a qual define a posse como poder fático de ingerência socioeconômica, que se manifesta no exercício ou possibilidade de exercício inerente à propriedade ou direito real. A alteração, em princípio parece sutil, pois mantém na delimitação geral da posse os elementos objetivistas do critério econômico e do exercício inerente à propriedade. Contudo, atente-se para a ideia de “poder fático que se manifesta no exercício inerente à propriedade”, e se perceberá a autonomia reconhecida à posse frente à propriedade: aquela não é mais mero exercício desta, mas se manifesta nele.

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FACHIN, Luiz Edson. A Função Social da Posse e a Propriedade Contemporânea apud MELO, Marco Aurélio Bezerra de, Direito das Coisas, 2008, p. 26. 14 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito das Coisas. 2008, p. 22. 15 Idem, ibidem. 16 FREITAS, Rodrigo Cardoso. Breves anotações sobre o conceito de posse. In: DIDIER JR. Fredie (Org.); MAZZEI, Rodrigo Reis (Org.). Processo e Direito Material. 2009, p. 207-213. 17 Redação proposta originalmente no Projeto de Lei nº 6.960/2002, e posteriormente retomada no Projeto de Lei º 276/2007, verbis: “Considera-se possuidor todo aquele que tem poder fático de ingerência socioeconômica, absoluto ou relativo, direto ou indireto, sobre determinado bem da vida, que se manifesta através do exercício ou possibilidade de exercício inerente à propriedade ou outro direito real suscetível de posse.”

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Registre-se, porém, que a concepção social da posse que se vem modelando atualmente, não só no contexto pátrio, mas em âmbito nacional não rechaça por completo as construções teóricas objetivista ou subjetivista, mas proporciona sua releitura, adaptada às novas necessidades sociais. As chamadas teorias sociológicas da posse, que surgiram no início do século passado, de modo geral, tomam por base as teorias clássicas, adequando-as à atual relativização do direito privado, notadamente da propriedade privada, em prol do maior benefício social, muito mais expressivo no tocante à posse. A título de exemplo, a teoria sociológica proposta pelo francês Raymond Saleilles, denominada teoria da apropriação econômica, de acordo com o célebre Moreira Alves18, foi erigida a partir da análise comparada entre a teoria subjetiva e objetiva, preferindo Saleilles esta última, porém introduzindo modificações próprias. Ainda na lição de Moreira Alves, o jusfilósofo francês conceituou o corpus como “conjunto de fatos que revelam entre aqueles a quem eles se ligam e a coisa que eles têm por objeto, uma relação durável de apropriação econômica, uma relação de exploração da coisa a serviço do indivíduo”19. Já o animus não seria o animus domini, vontade de ser dono, ter a propriedade, mas a “vontade de realizar o corpus, e, portanto, ‘vontade de realizar essa apropriação econômica da coisa, vontade de agir como senhor de fato da coisa’”20. A exposição que se propôs das teorias da posse, desde as clássicas às sociológicas, foi necessária, à guisa de introdução, para que se compreendesse, de forma mais plena a ideia do animus, e qual a sua relevância na concepção próprio instituto da posse. De todo o exposto, pode-se afirmar que, atualmente, também no plano internacional, mas especificamente no Direito Civil brasileiro, resume-se o entendimento acerca do animus, em três preposições: 1) o animus ainda integra a estrutura da posse, no sentido de que sempre haverá fator anímico no exercício possessório; 2) o animus não é entendido como elemento psicológico, mas sim como comportamento do indivíduo em relação à coisa – assentindo razão à ideia objetiva de irrelevância da vontade que não se expressa no plano fático; 3) o indivíduo pode possuir o bem com mero animus de exercer poder de ingerência socioeconômica sobre ele (realizar o corpus), ou também com animus

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ALVES, José Carlos Moreira apud FREITAS, Rodrigo Cardoso. Breves anotações sobre o conceito de posse. In: DIDIER JR. Fredie (Org.); MAZZEI, Rodrigo Reis (Org.). Processo e Direito Material, 2009, p. 210 19 Idem, ibidem. 20 Idem, ibidem.

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domini, caracterizados pelo comportamento com relação à coisa, e perante terceiros

2. A INVERSÃO DO ANIMUS DA POSSE 2.1. ASPECTOS GERAIS Assunto dificilmente abordado de forma satisfatória nos manuais de Direito Civil, mas de relevância prática extraordinária, e cada dia mais acentuada no contexto social contemporâneo, é a inversão do animus da posse. Para que se possa compreender adequadamente o tema, é imprescindível recorrer-se a trabalhos científicos mais específicos, que, porém, costumam defini-lo de maneira breve, centralizando a explanação nos efeitos que gera, e nas divergências que suscita. Para aqueles já habituados ao estudo do Direito das Coisas, a razão seria óbvia: uma vez que a denominação é autoexplicativa, dispensa conceituação mais elaborada. Não se trata, porém, de detalhe tão simples. Frise-se uma vez mais que a matéria da Posse é das mais complexas no ramo do Direito Civil, imperando ainda o dissenso quanto a determinados conceitos, por vezes vagos ou confusos, imprecisão de que também padece o tema da inversão do animus da posse. Somente a partir de uma leitura criteriosa acerca do assunto, e de uma perspectiva geral da disciplina da posse, é possível conceber uma noção conceitual desse fenômeno. Entende-se por inversão do animus da posse a mudança do comportamento do indivíduo que deliberadamente extrapola os limites do poder que lhe foi concedido pelo legítimo possuidor sobre a coisa, passando a agir sobre ela como seu próprio dono, ou seja, demonstrando animus domini. Não se olvide que a concepção atual acerca do animus não o aceita como simples vontade interior, mas vontade revelada no plano fático. Por consequência, a inversão do animus da posse não é uma ocorrência meramente psicológica. Não basta que o indivíduo mude sua intenção com relação ao bem, mas continue a se comportar da mesma maneira perante o possuidor e outros interessados – é fundamental que expresse de forma inequívoca e pública a sua oposição frente ao possuidor de direito, que lhe constituiu o controle sobre a coisa. Essa oposição inequívoca do indivíduo em contato com a coisa em face de quem tenha direito sobre ela gera uma verdadeira reversão da situação possessória estabelecida. O poder antes cerceado pelos limites do direito de outrem, sendo este possuidor da coisa, passa a ser exercido ilimitadamente, como o faria o titular da propriedade, isso porque o indivíduo que detém o controle deixa de reconhecer a superioridade de qualquer outro direito de posse sobre o bem, além do seu próprio. Normalmente, nesses casos, instaura-se o conflito possessório, pois o indivíduo que foi afastado do bem busca garantir ou reaver a sua posse. Todavia, pode ocorrer de o prejudicado desistir da coisa, ou permanecer indiferente perante o

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esbulho. Nessa situação questiona-se a ocorrência de interversio possessionis, que corresponde à transformação unilateral da situação possessória constituída consensualmente. Tal possibilidade, no decorrer dos anos, suscitou divergência entre os juristas, e ainda hoje se pode dizer que gera controvérsias, com sérios efeitos práticos. O primeiro grande ponto a ser enfrentado quanto ao tema reside na velha máxima romana “nemo sibi ipse causam possessionis mutare potest”21, baseados na qual alguns doutrinadores refutavam – e atualmente ainda refutam – o reconhecimento da alteração da causa da posse por ato exclusivo de quem lhe aproveite. Logicamente, admitindo apenas a conversão da posse, isto é, a mudança da causa pelo acordo de vontade entre as partes, ou por ato de terceiro. A “causa da posse” significa a origem da posse. Trata-se de ideia ampla que abrange não só a relação jurídica que a origina, mas também o modo como foi adquirida. Tal definição se credita a Ihering, de acordo com o memorável Astolpho Rezende, in verbis: “Que é a causa possessionis? Interroga ele. Não é somente o motivo jurídico da posse (cuja importância se revela na transmissão da propriedade), mas seu modo de estabelecimento previsto pelo direito [...].”22. Assim entendida a causa da posse, a vedação expressa no brocardo nemo sibi ipse causam possessionis mutare potest impede o indivíduo de alterar unilateralmete não só a relação jurídica que estabeleceu a situação possessória, mas também, mais amplamente, o próprio caráter da posse, que se configura a partir do modo como foi adquirida, incluindo as qualidades e os vícios dessa aquisição. No âmbito do direito brasileiro, aplicam-se à posse as seguintes classificações: justa ou injusta, se a posse foi transmitida licitamente ou por meio de esbulho; de boa-fé ou de má-fé, se o possuidor ignorava ou não os obstáculos à sua posse; titulada ou não titulada, se constituída a partir de relação jurídica ou não, sendo a posse titulada; interdicta, se faz jus à proteção por via das ações possessórias; ou ad usucapionem, se capaz de ensejar a aquisição do bem após certo tempo. Tais predicados constituem, pois, o caráter da posse desde seu nascedouro. Em sede doutrinária, três conceitos se repetem frequentemente com relação ao tema da interversio possessionis. São eles inversão do animus da posse, inversão do título da posse e a inversão do caráter da posse. Sendo os dois primeiros tratados muitas vezes como sinônimos. De fato, são três fenômenos correlatos, mas que de modo algum se confundem. Trata-se da imprecisão conceitual que parece permear a matéria em 21

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“Ninguém pode por si mesmo mudar a causa de sua posse” REZENDE, Astolpho. A posse e sua proteção, 1937, p. 419 – 420.

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questão. De acordo com a exposição que se tem feito, o animus se refere à vontade manifesta no plano dos fatos. O título diz respeito à causa da posse, que é a relação ou fato jurídico que origina a interação entre o indivíduo e a coisa. E o caráter da posse corresponde à sua qualificação, de acordo com o modo por que foi adquirida. São, portanto, aspectos de uma mesma situação: a inversão do animus é o aspecto subjetivo, porque referenciado à pessoa; a inversão do título e a inversão do caráter são aspectos objetivos, porque ligados respectivamente à causa pela qual se possui e aos eventuais defeitos ao adquirir essa posse. A grande questão que se coloca quanto ao tema é se mudança do comportamento com relação à coisa poderia ensejar a alteração da causam possessionis. Ou seja, se a inversão do animus da posse é capaz de inverter o título e o caráter da posse. A hipótese já era objeto de debate ainda no final da vigência do Código Civil de 1916, já havendo referências à hipótese de “inversão do título da posse”23, mediante posse com animus domini exercida em oposição a posse de outrem, e havendo, em contrapartida a inércia dessa outra parte. O Código Civil de 1916 acolheu a Teoria Objetiva, de modo que não fazia qualquer menção quanto ao animus; então, obviamente não foi do texto legal que se extraiu a ideia da inversão. Na verdade A expressão e o conceito de inversão do título da posse foram importados do direito lusitano, de orientação subjetivista. No Código Civil português, a inversão do título é prevista como uma das hipóteses de aquisição da posse, pelo art. 1263º, alínea d)24. O dispositivo é complementado pelo art. 1265º25, o qual estabelece que a inversão do título possa se dar pela oposição do detentor contra aquele em nome de quem possuía. Em outras palavras, a lei permite que a causa da posse seja alterada pela insurreição do próprio indivíduo contra quem lhe concedeu o poder sobre a coisa. Sobre o assunto, Menezes Cordeiro, in verbis: “A inversão do título é uma operação pela qual o detentor obtém, ex novo, uma situação possessória, com referência à coisa que já detinha.”26. E ainda: “Para inversão do título, exige-se uma posição mais enérgica, uma atuação mais efetiva, com publicidade sejas cognoscível pelos interessados a verdadeira posse em nome próprio.” 27.

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Nesse sentido, vide Dilvanir José da Costa, O sistema da posse no Direito Civil, Revista de Informação Legislativa, v. 35, jul/ago. 1998. 24 PORTUGAL, in verbis: “ARTIGO 1263º (Aquisição da posse) A posse adquire-se: [...] d) Por inversão do título da posse.” 25 PORTUGAL, in verbis: “ARTIGO 1265º (Inversão do título da posse) A inversão do título da posse pode dará-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.” 26 CORDEIRO, Antônio Menezes de. A Posse – Perspectivas dogmáticas actuais, 2000, p. 105 27 Idem, p.106.

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De uma perspectiva global o fenômeno é o mesmo. Mas, a inversão do título é consequência da inversão do animus. Ocorrem simultaneamente e porque o ordenamento assim permitiu, pois, vigorasse o “nemo sibi ipse causam possessionis mutare potest, não se teria a inversão do título, mesmo invertido o animus possidendi em animus domini. O Código Civil pátrio atual não traz qualquer previsão expressa quanto a inversão do animus ou inversão do título. A única referência a fato semelhante se encontra no parágrafo único do art. 1.19828, que permite ao detentor provar que não mais possui em nome de outrem, mas em seu próprio. A possibilidade de prova implica a possibilidade de o detentor, que, a priori, age em relação ao bem em nome e pelo interesse de outrem, passar a agir em nome e interesse próprios, e comprovar tal mudança para fins de direito. A doutrina e a jurisprudência estenderam a hipótese também ao possuidor cuja posse tenha sido constituída por direito pessoal ou real (posse direta), e que posteriormente decide tomar a coisa para si, comportando-se inequivocamente nesse sentido. Assim, com fortes influências do direito português, construiu-se no direito brasileiro a ideia de inversão do animus da posse, ou inversão do título da posse. Contudo, permanece em voga atualmente certa divergência quanto à possibilidade de interversão do caráter da posse, mediante inversão do animus da posse. Especialmente quando a posse encontra-se viciada, devido à sua aquisição ter-se dado por forma contrária ao direito. O Direito Civil brasileiro reconhece duas categorias de vícios que podem eivar a posse: a subjetiva e a objetiva. O vício subjetivo é a má-fé; os objetivos são violência, clandestinidade e precariedade. Os vícios objetivos, em suma, tratam de tipos de esbulho, isto é, de tomada da coisa a quem de direito, com uso de violência, realizada às ocultas, ou com abuso de confiança respectivamente. O tema da interversio possessionis representa uma problemática sobremodo relevante no que tange à hipótese da precariedade. Primeiramente, porque doutrina e jurisprudência entendem, majoritariamente, que tanto no caso de detenção quanto no caso de posse direta, a recusa ou afastamento do direito de posse de quem concedeu o controle sobre coisa, a princípio, caracterizará precariedade. Por esse entendimento, tanto detentor quanto possuidor direto passarão a uma situação possessória denominada posse precária, que a maioria dos juristas equipara à detenção, mas que alguns entendem jamais transformar-se em posse, a menos que haja consenso entre esbulhador e esbulhado ou outra pessoa capaz de transferir a posse. Há, contudo, os que admitem a interversão do caráter da posse, In verbis: “Art. 1.198: [...] Parágrafo único. Aquele que começou a comportar-se do modo como prescreve este artigo, com relação ao bem e à outra pessoa, presume-se detentor até que prove o contrário”. 28

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pela inversão do animus, que terá como principal efeito permitir ao possuidor a fluência do prazo para a prescrição aquisitiva do bem (usucapião). É, portanto, uma hipótese bastante controvertida, que suscita vários questionamentos de ordem teórica, bem como implica muitas questões de ordem prática. Para melhor compreender as vicissitudes do tema, imperativo é analisar, preliminarmente, os vícios que podem macular a posse, bem como das situações de Detenção e Posse Direta.

2.1. VÍCIOS DA POSSE O único vício subjetivo que pode afetar a aquisição da posse é a má-fé. Pelo art. 1.202, contrariu sensu29, esta ocorre se o possuidor estava ciente do obstáculo que impedia a obtenção da coisa. Sem se aprofundar na análise conceitual da boa-fé e da má-fé no instituto da posse – que afinal não é o escopo deste estudo –, registre-se apenas que atualmente concebe-se um critério objetivo para sua aferição. Não se considera a convicção do possuidor, fator psicológico quase impossível de se apurar, mas se as circunstâncias o permitiram saber ser injusta a posse que exerce. Percebe-se então que a posse originada ou transformada pela inversão do animus (e título) estará sempre viciada no aspecto subjetivo. Pesará contra o possuidor com animus domini, o vício da má-fé, pois sempre soube que a coisa pertencia a outrem, desde o primeiro momento de seu contato ela. Aliás, o início de sua ingerência sobre o bem somente foi possível pela posse (ao menos aparente) que a outra pessoa, pois não lhe poderia conceder poder se ela mesma não o tivesse. São, todavia, os vícios objetivos, que interessam ao tema da inteversio possessionis, uma vez que, independentemente de ser a posse de boa-fé ou má-fé, desde que caracterizado o animus domini, será possível a usucapião. A violência somente macula a aquisição da posse quando for dirigida contra pessoa, não importando se proprietário, possuidor ou detentor, e tampouco se legítimo ou ilegítimo ou apenas putativo. É cediço que a “quebra de barreiras físicas, arrombamentos ou destruição de patrimônio não fazem com que a posse seja considerada violenta”30. A clandestina caracteriza a apropriação realizada furtivamente, às ocultas do possuidor. Entretanto, deverá haver publicidade com relação às outras pessoas, In verbis:”Art. 1.201: É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.” 30 PAZZINI, Cláudio Ferreira. Os vícios objetivos da posse no ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Direito Privado, v. 35, Revista dos Tribunais, p. 67, abr. 2008, p. 72. 29

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pois, como se tem dito, o animus que não se manifesta no plano dos fatos não interessa no plano jurídico. Em síntese indefectível de Caio Mário: “é defeito relativo: oculta-se da pessoa que tem interesse em recuperar a coisa [...], não obstante ostentar-se às escâncaras em relação aos demais”31. Por fim, a hipótese que mais interessa, a precariedade “resulta do abuso de confiança do possuidor que indevidamente retém a coisa além do prazo avençado para o término da relação jurídica de direito real ou obrigacional que originou a posse”32. Nesse caso o bem foi entregue temporariamente ao indivíduo, e este, no tempo determinado, recusou-se a restituí-lo. Trata-se de rol taxativo, e de interpretação restritiva, para que não sirva de subterfúgio à limitação excessiva do direito de posse, em privilégio do direito de propriedade, o que contraria a concepção de função social. Conforme leitura contrariu sensu do art. 1.200 do Código33, a configuração de qualquer desses vícios na obtenção da posse a classificam como injusta; enquanto a posse obtida por qualquer outra forma é justa. Na acertada lição de Farias e Rosenvald, “esta dicotomia tem como fundamento uma questão fática, sem qualquer relação com o título (causa) aquisitivo da posse”34. Prosseguem os doutrinadores esclarecendo que para se qualificar a posse como justa ou injusta, é despiciendo indagar se o possuidor é proprietário, usufrutuário, arrendatário ou mero posseiro, mas sim se houve violência, clandestinidade ou precariedade na aquisição35. Portanto, que a justiça ou injustiça da própria posse não se confundem com a ideia de justo ou injusto título, muito embora, no próprio texto legal ocorra certa confusão entre os termos. As citadas palavras de Farias e Rosenvald corroboram que não há que se confundir causa da posse e modo de aquisição.

2.2. DETENÇÃO E POSSE DIRETA Paralelo às grandes divergências que, por séculos a fio, se erigiram em torno do instituto da posse, sempre esteve, igualmente, o dissenso acerca da detenção. Lembrando o que já foi mencionado em tópico anterior, uma das maiores contraposições entre a Teoria Subjetiva e a Objetiva concernia justamente ao entendimento acerca da detenção, e sua distinção da posse.

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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. 4, 2014, p. 54. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito Civil, vol. 5, 2013, p. 145. 33 In verbis:”Art. 1.200. É justa a posse que não for violenta clandestina ou precária”. 34 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito Civil, vol. 5, p. 142 35 Idem, ibidem. 32

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O Código Civil de 2002 não se furtou a definir a detenção, trazendo no art. 1.198, caput36, um conceito que a caracteriza pela relação de dependência e subordinação do detentor para com o possuidor. Em consonância, o detentor exerce poder imediato sobre a coisa, configurando, inclusive a affectio tenendi, porém o faz de forma instrumental, com o fim de conservar a posse de outrem. Há quem defenda que a detenção assim definida seria uma exceção subjetivista no Código, pois o exercício do poder sobre a coisa, em subordinação a outro seria equivalente ao conceito savgyniano de detenção: exercício do corpus, sem animus domini. Entretanto, partindo da premissa de que o Código claramente adotou a teoria objetiva, ao definir a figura do possuidor37 – por considerar a posse como o exercício de poderes inerentes à propriedade –, o entendimento majoritário é que o conceito de detenção, no direito brasileiro, corresponde tão-somente a um conceito negativo de posse, conforme o concebeu Ihering. A detenção seria idêntica a posse, exceto por disposição do direito objetivo que negaria ao indivíduo a qualidade de possuidor e, pois, proteção possessória. Tratando a detenção como posse juridicamente desqualificada, grande parte da doutrina reconhece a figura do detentor em hipóteses paralelas à do referido art. 1.198, absolutamente incompatíveis com a definição trazida por esse dispositivo, simplesmente porque o Código as prevê como uma situação de “não-posse”. São elas a atuação de bens públicos de uso comum do povo ou especiais 38, a mera permissão ou tolerância, e, mais relevante para a análise da interversio possessionis, os atos de violência ou clandestinidade. O artigo 1.208 estabelece que os atos de violência ou clandestinidade não autorizam a aquisição da posse, senão depois de cessada a violência ou a clandestinidade39. Surge, assim, um hiato em que o esbulhador ainda não consolidou sua posse, não sendo esta ainda estável ou pública. Tal situação, em sede doutrinária, ora é referida como quase-posse, ora posse instável. A doutrina majoritária, apesar de obviamente entender que se trata de hipótese de detenção, reconhece a possibilidade de emprego da proteção possessória contra terceiros. Após o convalescimento da posse, isso é, transformação da detenção em posse, inicia-se o prazo da usucapião.

In verbis: “Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.” 37 Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. 38 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito Civil, vol. 5, p. 137. 39 In verbis: “Art. 1.280. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância, assim como não autorizam s sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.” 36

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Entretanto, considerar a detenção meramente como fato de não-posse não parece ser a melhor orientação. Como argumentado no tópico inicial deste estudo, não se pode, atualmente, subscrever na íntegra qualquer das teorias clássicas, devendo-se atentar para as mudanças sociais, e principalmente, aos casos concretos. Ademais esse entendimento implica algumas dificuldades, mormente quando se discute a interversio possessionis. Quanto à detenção “conceitual” do art. 1.198, a possibilidade de sua transmutação para a situação posse exsurge da interpretação do parágrafo único40 do referido artigo. Segundo o ministro Marco Aurélio de Melo, esse dispositivo “cria uma presunção de manutenção do caráter da detenção, de vez que a pessoa que no início de seu contato físico com a coisa, atua sem autonomia, apenas em nome do verdadeiro possuidor, assim permanecerá”41. Mas, prossegue o eminente doutrinador afirmando ser tal presunção apenas relativa, pois poderá o detentor provar a mudança do fato da detenção para o jurídico posse42. Em outras palavras, a situação em abstrato que o parágrafo único do art. 1.198 traduz é a do indivíduo que começou a exercer ingerência sobre o bem, em virtude de uma relação de subordinação com o verdadeiro possuidor, agindo segundo a vontade e o interesse deste, e em cumprimento de ordens suas, e que pode, em algum momento na constância dessa relação, insurgir-se ao senhorio do outro. A inteligência expressa pela da leitura contrariu sensu do citado art. 1.198, cumulada com o art. 1.20443, informa que, se o indivíduo não estiver em relação de dependência para com outro, nem em cumprimento de ordens ou instruções suas, não conserva a posse em nome deste, mas em seu próprio nome. Essa interpretação foi consolidada no enunciado nº 301 da IV Jornada de Direito Civil44, reconhecendo que a partir do momento em que inequivocamente rompida a subordinação que vincula o detentor ao possuidor da coisa, “convertida” a detenção em posse. Termo adequado seria invertida, pois conversão implica ato consensual, ao passo que inversão inclui também a interversão, ato unilateral. A possibilidade de conversão da detenção em posse é ponto pacífico na doutrina. Constitui ponto controvertido, todavia, o vício objetivo que maculará a posse iniciada pela insurreição do detentor. Como antes mencionado, o

“Art. 1.198. Parágrafo único. Aquele que começou a comportar-se do modo como prescreve este artigo, com relação ao bem e à outra pessoa, presume-se detentor até que prove o contrário.” 41 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito das Coisas, 2008, p. 32 42 Idem, ibidem. 43 In verbis: “Art. 1.204. Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.” 44 Enunciado nº 301: Art. 1.198 c/c art. 1.204. é possível a conversão da detenção em posse, desde que rompida a subordinação, na hipótese de exercício em nome próprio dos atos possessórios. 40

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entendimento majoritário é que “será considerado possuidor precário aquele que exercia detenção sobre a coisa”45, pois a posse foi obtida com abuso de confiança. Em sentido contrário, Farias e Rosenvald, para quem “esta posse será violenta ou clandestina, [...] pois a precariedade requer primariamente uma posse justa por cessão do titular e, em segundo momento o abuso de confiança”46. Ao segundo posicionamento não assiste razão, porque a violência ou clandestinidade classificam o esbulho praticado por quem nunca deteve a coisa; a modalidade de esbulho de quem já exerce controle sobre o bem só pode ser a precária, pois foi por meio desse contato, inicialmente lícito, que o indivíduo se arrogou na posse do bem. Quanto à outra situação em que se configura a precariedade, a posse indireta, nesta, em contrapartida, o indivíduo já era possuidor, exercendo, portanto poder sobre o bem em nome e interesse próprios. Consonante com a Teoria Objetiva adotada pelo legislador, a possibilidade de ocorrência da posse direta e da posse indireta deve-se ao desdobramento da posse. Tal situação está expressamente prevista no art. 1.19747. Na definição de Farias e Rosenvald, “desdobramento da posse é o fenômeno que se verifica quando o proprietário, efetivando uma relação jurídica negocial com terceiro transfere-lhe o poder de fato sobre a coisa”48. Essa transferência importa o fracionamento dos poderes inerentes, e sua distribuição entre os dois tipos de possuidor, de modo a serem constituídas posses paralelas. O possuidor indireto corresponde ao proprietário, ou qualquer pessoa capaz de transferir a posse do bem; será aquele possuidor que não detém a coisa em seu poder imediato, mas conserva outros dos poderes inerentes à propriedade, em geral o de disposição, e frequentemente o de gozo. O possuidor direto, ao contrário, é aquele a quem é concedida a posse: recebe a coisa sob seu poder, em geral exercendo a faculdade de usar, e, não raro, de gozar da coisa. Característica ínsita ao desdobramento ressaltada no próprio texto do referido art. “temporariamente”. A posse direta tem prazo de ou real que a constitui também têm termo final. contratos celebrados por tempo indeterminado,

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da posse é a transitoriedade, 1.197, que emprega a palavra duração, porque o direito pessoal Os negócios jurídicos, mesmo os tem perspectiva de fim; de igual

PAZZINI, Cláudio Ferreira. Os vícios objetivos da posse no ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Direito Privado, v. 35, Revista dos Tribunais, p. 67, abr. 2008, p. 73. 46 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito Civil, vol. 5, 2013, p. 146. 47 In verbis: “Art. 1.197. A posse direta, de pessoa que tem a coisa sob seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender sua posse contra o indireto.” 48 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito Civil, vol. 5, 2013, p. 117.

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forma os direitos reais sobre coisa alheia, pois o único direito real permanente é a propriedade. Além da transitoriedade, a posse direta apresenta outras características que lhe são inerentes. A posse direta é, sempre, posse justa, titulada, de boa-fé, e interdicta – tal é o seu caráter. Justa porque obtida por modo não viciado; titulada porque fundada em uma relação jurídica; de boa-fé porque se constitui a partir de uma situação de boa-fé presumida, em virtude do título, uma vez que apto a inspirar a convicção de que a posse estará livre de vícios ou obstáculos; e meramente interdicta porque ausente o animus domini, elemento imprescindível para que corra o prazo da usucapião. Todavia, quando, chegado o momento predeterminado para o possuidor direto entregar a coisa ao indireto, ele não o faz, a posse, que antes era justa, tornase viciada pela precariedade. Para parte da doutrina, a posse precária, na verdade, retira o possuidor da situação de posse para uma situação de detenção. Tal entendimento, no entanto, não procede

2.3. CONVALESCIMENTO DA POSSE PRECÁRIA As questões abordadas nos tópicos anteriores servirão de premissa para exposição mais acurada da matéria de maior relevância prática com relação ao tema da inversão do animus da posse: a hipótese de convalescimento da posse precária. Uma vez admitida a inversão do título da posse pela manifestação do animus domini, mitigou-se a máxima de que ninguém pode por si mesmo mudar a causa de sua posse. A interversão do caráter da posse corresponde à possibilidade de convalescimento dos vícios que maculam a obtenção da posse. Suscita controvérsias porque, em concordância com a velha máxima romana, o art. 1.20349 do Código Civil, estabelece como regra a manutenção do caráter da posse como foi adquirida. E parte dos juristas defende que somente um fator externo poderia operar transformação desse caráter. A precariedade, assim como a violência e a clandestinidade, é vício de aquisição da posse que maculam o seu caráter. Tratam-se, somo já salientado, de hipóteses de esbulho possessório, e em virtude de ser objetivamente ilícita a forma pela qual se adquire a coisa, a posse, classificada como injusta nessas situações, se constitui de forma singular.

In verbis: “Art. 1.203. Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida”. 49

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O esbulhador não se torna automaticamente possuidor da coisa. Há um hiato entre a apropriação indevida e a consolidação da posse, que a doutrina majoritária equipara à detenção, de acordo com a orientação objetivista sobre a posse. Alguns doutrinadores, porém, se referem a esse momento como quase-posse, posse instável, dentre outras nomenclaturas. A detenção perdurará até que a posse esteja estabilizada, quando, então, a ocupação do bem tornar-se mansa e pública. Há autores que defendem a vedação completa da proteção interdital nesse ínterim, no entanto, alguns entendem cabível o emprego dos interditos possessórios somente em face de terceiros – nunca em face do possuidor esbulhado. Após o transcurso desse lapso, quando, afinal, o indivíduo que realizou o esbulho houver se estabilizado no controle do bem, a detenção (ou situação análoga) se transformará em posse, passível de defesa pelo uso dos interditos possessórios, e capaz de ensejar usucapião extraordinária, porém, de caráter injusto. A posse, como regra, manterá o caráter com que foi obtida, conforme disposto no art. 1.203, durante todo o tempo em que perdurar. O vício continuará maculando a posse, inclusive após sua transmissão, mantendo o mesmo caráter quando exercida pelos sucessores50. Enquanto não se provar o contrário, de acordo com o próprio art. 1203, a posse será perpetuamente injusta. A importância da análise dos vícios objetivos da posse é capital, pois a “distinção da posse em justa e injusta serve para determinar se o possuidor tem direito de defendê-la”51. Em um conflito possessório, será vitoriosa a parte que tiver “a melhor posse”, prevalecerá, portanto, a posse justa sobre a posse viciada. Tão séria é a questão que, havendo mais de uma pessoa disputando a posse, aquela que tem o bem sob seu poder, perde a posse, caso reste provado que obteve a coisa por modo viciado52. A doutrina tradicional entende que o caráter da posse só muda se alterada a causa, logo, a menos que o título da posse se converta, pela compra, pela sucessão, pela usucapião, ou qualquer outra causa idônea, permanecerá injusta. Em hipótese alguma se poderá admitir a alteração unilateral. Embora, teoricamente, tal proposição pareça lógica e razoável, está muito aquém das necessidades práticas, representando uma solução insatisfatória. Defender a impossibilidade absoluta de interversão da posse viciada implica, em muitos casos, premiar o proprietário ou possuidor legítimo que não dê qualquer

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Art. 1.206. A posse transmite-se aos herdeiros ou legatários do possuidor com os mesmos caracteres. 51 PAZZINI, Cláudio Ferreira. Os vícios objetivos da posse no ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Direito Privado, v. 35, Revista dos Tribunais, p. 67, abr. 2008, p. 70. 52 Art. 1.211. Quando mais de uma pessoa se disser possuidora, manter-se-á provisoriamente a que tiver a coisa, se não estiver manifesto que a obteve de alguma das outras por modo vicioso.

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destinação sócio-econômica ao bem, em detrimento do indivíduo que o faça, ainda que tenha se apoderado da coisa de modo objetivamente injusto. De fato, quando a posse tenha sido obtida mediante violência, ou de forma dissimulada, não resta muito espaço para concessões: dificilmente haverá um caso em que o direito não deva reprimir tais condutas. Contudo, a questão ganha outros contornos em se tratando da posse precária – obtida com abuso de confiança. Rememorando, o possuidor direto que se opõe ao possuidor indireto, e – pela doutrina majoritária – o detentor que rompe a subordinação e passa a possuir em nome próprio, incorrem no vício da precariedade, pois, tendo recebido poder sobre a coisa, em situação de boa-fé presumida, não a restitui, ou tenta afastar a posse do outro. Primeiramente, refute-se a ideia desarrazoada que a apropriação por abuso de confiança jamais se converterá em posse, com justificativa na omissão do legislador a respeito da precariedade, na redação do art. 1.208. Tal dispositivo prevê que só haverá posse depois de cessada a violência ou clandestinidade. Conforme explicado anteriormente, os atos violentos ou clandestinos correspondem a uma situação em que a posse ainda não se estabilizou. No caso da precariedade não há esse momento de transição, visto que a posse já é estável53, tendo mudado apenas de caráter, de justa para injusta. Feito esse apontamento, analise-se, então, a repercussão prática do convalescimento da posse precária. Supondo que certa pessoa alugue um apartamento para servir de residência à sua família e, passado certo tempo, ela não renove mais o contrato, deixe de pagar ao senhorio, mas continue pagando taxa de condomínio, impostos, realizando benfeitorias como se dona fosse; quanto ao locador, nada faz para expulsar os inquilinos, sequer ajuíze ação de cobrança. Indubitavelmente, a posse da locatária tornou-se precária, a partir do momento que, vencido o contrato sem renovação (e considerando-se que não houve acordo verbal), ela não restituiu o bem a quem de direito. Da forma como a matéria é tratada, pela literalidade do código e pelo entendimento da doutrina tradicional, mesmo que se mantivesse inerte por alguns anos, o possuidor indireto poderia a qualquer momento reclamar o bem. Por tratar-se de posse injusta não assistiria qualquer razão à possuidora precária, que teria de entregar o bem, ainda que lhe tivesse dado destinação social. E como a posse direta é constituída como posse ad interdictae, não importaria a passagem do tempo, não ocorreria a prescrição aquisitiva. O entendimento de que a posse precária jamais convalesce, é equivocado, na medida em que não se coaduna com a concepção atual de função social, não só da propriedade, mas dos vários institutos do Direito das Coisas. Representa, ainda, 53

Extraído das lições do professor Rodrigo Reis Mazzei, na disciplina de Direito das Coisas.

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uma negação do conceito de função social da posse, pois não reconhece a ocorrência de posse que seja economicamente e socialmente mais relevante que o direito de propriedade. A partir dessa perspectiva social, a doutrina concebeu a possibilidade de interversão do caráter da posse precária. Na III Jornada de Direito Civil foi elaborado o enunciado 23754, reconhecendo o cabimento da inversão do título da posse, pela inversão do animus do possuidor direto. Segundo esse posicionamento, o possuidor precário, pela demonstração clara de sua intenção de dono com relação ao bem, poderia ter invertido o título da sua posse, e, com isso, alterá-la de ad interdctae para ad usucapionem. Em que pese a melhor adequação com a atual realidade brasileira, alguns autores se mantêm inflexíveis, inadmitindo, sob qualquer circunstância a transformação unilateral do caráter da posse. Dentre os quais, doutrinadores de renome, como Silvio de Salvo Venosa, segundo quem “o possuidor precário sempre o será, salvo expressa concordância do possuidor pleno”55. No mesmo sentido, Cáio Mário, quando aduz que a “posse injusta não se pode converter em posse justa quer pela vontade ou pela ação do possuidor: nemo sibi ipse causam possessionis mutare potest”56. Para o eminente autor, ainda, “nada impede, porém, que uma posse inicialmente injusta venha a tornar-se justa, mediante a interferência de causa diversa”57, reconhecendo somente a possibilidade de conversão do caráter da posse. A doutrina tradicional, a exemplo de Cáio Mário, invoca o brocardo nemo sibi ipse causam possessionis mutare potest, para justificar que é impossível modificar a causa (caráter) da posse unicamente pela vontade do próprio possuidor. Brilhante contra-argumento é apresentado por Farias e Rosenvald, com relação a não se defender a alteração unilateral com base unicamente na intenção do possuidor, in verbis: “Esta mudança de percepção quanto à natureza da posse é externamente constatada pela própria omissão daquele que deveria exercer o seu direito subjetivo no sentido de reverter a situação, mas se queda inerte por um período considerável”58. A matéria permanece controversa, dividindo opiniões em sede de doutrina, e também nos Tribunais, onde tem sido enfrentada de maneira ainda muito acanhada. Talvez, pelo caráter privatístico que ainda persiste no Direito Civil brasileiro – apesar do fenômeno da constitucionalização do Direito Civil – e afasta qualquer juízo

In verbis: III Jornada de Direito Civil, Enunciado 237: É cabível a modificação do título da posse – interversio possessionis – na hipótese em que o até então possuidor direto demonstrar ato inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini. 55 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, v. 5, 2004, p. 84. 56 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. 4, 2014, p. 55. 57 Idem, ibidem. 58 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito Civil, vol. 5, 2013, p. 157. 54

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balizado na perspectiva social, principalmente em se tratando de propriedade privada. Mas, também é provável que se deva à dificuldade de precisar o momento em que efetivamente ocorre a interversio possessionis, a fim de considerar o início do prazo para usucapião. A questão implica certa complexidade, principalmente quando “decorre de uma negligência gradual e também de paulatina assunção de um novo animus, na medida em que não há um marco temporal identificável” 59 A relevância de se identificar o momento exato da inversão é fixar o termo inicial da prescrição aquisitiva. O critério a ser utilizado é objetivo, conforme a concepção atual do animus, tomando-se por base fatos públicos pelos quais o possuidor demonstre inequívoco comportamento de dono. Não é suficiente o mero inadimplemento contratual, como, por exemplo, interromper o pagamento dos alugueres em caso de locação de imóvel. É necessário que o possuidor assuma também os encargos pela manutenção da coisa, tal como pagamento de tributos, construção de acessões, assunção das despesas com benfeitorias. A título de exemplo concreto, analisem-se duas situações verídicas. A primeira, extraída de julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo60, trata de possuidor direto de uma chácara, a título de comodato verbal, que recusou desocupar o bem, após notificação extrajudicial pela associação, possuidora indireta. A posse tornou-se precária a partir da notificação; a associação ajuizou ação de reintegração de posse em face do precário, que, como exceção, arguiu a usucapião. A decisão foi contrária ao possuidor precário, porque, pela prova dos autos, durante todo o momento em que permaneceu na posse do imóvel recebeu dinheiro da associação como reembolso pelas despesas com a manutenção. O Tribunal entendeu que o recebimento implicava reconhecimento da relação jurídica que constituiu sua posse sobre o bem, não configurando, pois, animus domini. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo ora realizado prestou-se a uma análise abrangente da inversão do animus da posse, incluindo conceituação, configuração conforme o Direito Civil brasileiro, e enfrentamento de questões controversas. Embora ampla, a exposição 59

AINA, Eliane Maria Barreiros. O Direito à moradia nas Relações privadas apud FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito Civil, vol. 5, 2013, p. 158. 60 Reintegração de posse - Associação autora que adquire gleba rural para fins de implantação de projeto ambiental - Prova documental concludente de que a alienante transmitiu domínio e posse à autora - Associado que passa a zelar e cuidar do imóvel para a associação, obtendo inclusive o reembolso das despesas efetuadas - Situação jurídica típica de comodato verbal - Extinção do comodato que converter a posse direta em posse precária, nascendo o dever de restituí-la à autora Desacolhimento de reconvenção de usucapião, por notoriamente descabida e de exceção de usucapião, em razão de a tanto não se prestar a posse direta do comodatário - Recurso da autora provido. 5. Não cabe a usucapião nem em sede de exceção, por faltar ao réu requisito fundamental, qual seja o animus domini [...]. Parece claro que quem ocupa imóvel de associação na qualidade de associado, para dele zelar, pede e obtém reembolso das despesas pagas, se curva, reconhece a soberania de direito alheio sobre a coisa [...].

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não se pretendeu aprofundada, mas ateve-se à delimitação das linhas gerais do fenômeno, na tentativa de construir uma visão sistêmica, integrada à própria sistemática da posse e ao atual paradigma da função social. Premissa básica para abordagem da matéria é a compreensão da evolução dos próprios conceitos de posse e detenção, desde as teorias clássicas até a concepção social da atualidade, com ênfase nas alterações da concepção do animus – elemento da vontade, que sempre orienta as ações humanas – e sua relevância para a caracterização da posse. Na Teoria Subjetiva, tem-se o animus como intenção de dono, ou de ter a coisa para si, e a posse como soma dessa intenção com o poder de disposição sobre a coisa, o corpus. Tal conceito limitava, porém o entendimento da posse, excluindo de seu conceito várias situações, hoje, tidas como fundamentais para a sociedade, e claramente possessórias. Quanto à Teoria Objetiva, tem-se o animus ínsito ao corpus, de modo que a intenção não mais importa para a configuração da posse, e sim os atos de ingerência econômica sobre a coisa, com aparência de propriedade. A posse é mero exercício da propriedade, sendo a única razão pela qual mereça proteção pelo direito objetivo. De fato, não pode ser juridicamente relevante a vontade ou a intenção que não sejam manifestas no plano dos fatos – quanto a isso, posicionou-se com acerto Jhering. Contudo, a visão do direito de posse como subordinado e inferior ao direito de propriedade é incompatível com a orientação atual, que prioriza a função social do patrimônio, mais do que o patrimônio em si. A própria Constituição Federal estabelece como princípio a função social da propriedade, conceito que deve, no entanto ser estendido aos demais direitos reais e, principalmente, à posse. Pode-se afirmar, inclusive, que a “balança” se equilibrou, verificando-se a igualdade de importância entre posse e propriedade, por ser instrumento por excelência de exercício da função social. É com lastro nesse entendimento que se impõe a análise da inversão do animus da posse: somente por meio de uma perspectiva social da posse e da propriedade é possível compreender o porquê da possibilidade de interversão do caráter da posse, permitindo a ocorrência de usucapião em favor do possuidor que conceda função social ao bem, em detrimento do proprietário relapso, inerte ou indiferente. Tradicionalmente, apega-se ao “princípio” de nemo sibi ipse causam possessionis mutare potest, para alegar a impossibilidade de interversio possessionis, como forma de impedir que se premie a injustiça, a obtenção de vantagem com ofensa ao direito de outrem. Mas superado está o dogma de que a

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propriedade é absoluta, direito real acima de qualquer outro, sendo sempre bom ao passo que toda oposição que se lhe oponha seja sempre ruim. Urge, pois, adaptar a velha máxima, o antigo pensamento, à realidade atual, realidade esta na qual a posse representa verdadeiro instrumento de efetivação da função social. O Direito é mutável, alterando-se seus institutos e conceitos conforme o contexto histórico e as necessidades sociais. E assim deve ser, sob pena de anacronismo, e risco de manutenção de determinadas situações que não trazem qualquer ganho social.

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