Invertendo a lógica do projeto escolar de esclarecer o ignorante em matéria de língua

June 30, 2017 | Autor: Inês Signorini | Categoria: Linguistica aplicada, Formação De Professores, Educação e Formação de Adultos, Letramento
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Signorini, I. (2012) Invertendo a lógica do projeto escolar de esclarecer o ignorante em matéria de língua. In: Izabel Magalhães (org.) Discursos e práticas de letramento: pesquisa etnográfica e formação de professores. Campinas: Mercado de Letras, 271288.

Invertendo a lógica do projeto escolar de esclarecer o ignorante em matéria de língua* Inês Signorini (UNICAMP)

1. Colocando a questão: práticas letradas e uso adequado da escrita e dos materiais escritos

O tema deste capítulo é uma preocupação recorrente dos que lidam com a questão do letramento1 de grupos socioculturais não hegemônicos, isto é, grupos sociais não familiarizados ou pouco familiarizados com práticas de leitura/escrita que professores, enquanto grupo socioprofissional, compartilham e acreditam serem importantes, relevantes para a vida de toda/o e qualquer cidadã ou cidadão. Se tivéssemos que resumir numa frase o essencial dessas práticas, comumente chamadas práticas letradas, ou próprias de uma sociedade letrada, provavelmente diríamos genericamente: fazer uso adequado da escrita e dos materiais escritos em diferentes contextos e situações do

Este trabalho reune resultados de pesquisa do Projeto Integrado “Práticas de escrita e de reflexão sobre a escrita em contextos de ensino” (CNPq 5204272002-5 – (NV)) e é uma versão revista e ampliada da comunicação apresentada no I Simpósio de Língua Portuguesa e *

Literatura: interseções (PUC-Minas, 1-3/10/2003) e publicada na revista Scripta, Editora PUC-Minas, vol 7 (14): 90-106, 2004. 1 Estamos compreendendo letramento enquanto conjunto de práticas de comunicação social relacionadas ao uso de materiais escritos (cf. Street, 1984; Barton, 1994; Kleiman, 1995) e que envolvem ações de natureza não só física, mental e lingüístico-discursiva (codificar/decodificar; textualizar/ler) como também social e político-ideológica (compreender/avaliar/replicar/intervir) (cf. Signorini, 2001: 8-9).

cotidiano daquela sociedade2, ou, mais genericamente ainda, ler/interpretar e escrever de maneira adequada em diferentes contextos e situações, por exemplo. Mas quando nos propomos a ensinar práticas letradas pouco familiares à\ao aprendiz, ou seja, quando vamos traduzir isso no ensino, uma questão importante que temos enfrentado é a de saber de que escrita, ou de que tipo(s) de escrita estamos falando, de que tipo(s) de texto é preciso fazer uso adequado. Dizendo de outra forma, é preciso ler, escrever, produzir adequadamente o quê para afastar o estigma e, conforme afixam os documentos oficiais, para exercer a cidadania plena? Sobre essa primeira pergunta, temos tido, acredito eu, muitas respostas, ou pelo menos muitas tentativas: desde os estudos mais tradicionais sobre tipos de textos e suas características lingüísticas e funcionais, como por exemplo os estudos sobre narração, descrição, argumentação até, mais recentemente, os estudos sobre gêneros discursivos e suas características funcionais e lingüísticas, suas relações com o suporte textual e com a comunicação na esfera pública. São cada vez mais numerosos os estudos contemporâneos sobre gêneros orais e escritos, sobre gêneros institucionais, gêneros midiáticos, e também os chamados gêneros do cotidiano. Basta que se dê uma olhada em documentos oficiais e materiais didáticos, sobretudo os relacionados à pós-alfabetização, para verificar que são várias as propostas de ancoragem do ensino de práticas de leitura/escrita em tipologias textuais ou discursivas. Os materiais mais antigos privilegiando a narrativa como o primeiro tipo de texto a ser abordado na escola, em qualquer nível, os mais recentes privilegiando os gêneros do cotidiano, tipo relato, bilhete, cartaz, anúncio, por exemplo. O que não significa, evidentemente, que não haja mais dúvidas a respeito disso, e que essa seja uma questão de fato resolvida. Penso, inclusive, que a tipologia textual tradicional e a tipologia discursiva dos gêneros acabam sendo justapostas nesses materiais, sem nenhuma articulação entre uma e outra. Mas a questão que me interessa mais de perto aqui é uma segunda questão que temos enfrentado quando nos propomos a ensinar práticas letradas pouco familiares à/ao aprendiz, seja ela/ele aluna/o ou professora/or. Trata-se da questão do sentido atribuído a "adequado" e a “adequadamente” nas expressões "fazer uso adequado da escrita e dos 2

Estamos nos referindo aqui à variedade local de eventos e práticas de comunicação social que constituem, segundo Barton (1994), a "ecologia da escrita" num dado tempo e lugar.

materiais escritos" e “ler, escrever, produzir adequadamente” materiais escritos. Conforme pretendo mostrar na sequência do artigo, a tradição escolar tem atribuído à noção de adequação sentidos específicos e, a nosso ver, pouco produtivos para

o

processo de letramento de grupos socioculturalmente periféricos, particularmente na Educação de Jovens e Adultos (doravante EJA).

2. Os sentidos atribuídos à noção de adequação no ensino e na formação do professor

Por muito tempo compreendemos "adequado" como formalmente correto na produção, isto é, na textualização, e como autorizado, institucionalmente aceito ou legítimo na recepção, ou seja, na leitura e interpretação. Assim, quanto menos erros gramaticais, ortográficos, de pontuação, disposição na página, por exemplo, fossem identificados, mais adequada considerávamos a produção escrita (critério da correção lingüística, comumente descrito em manuais e gramáticas de uso escolar). Quanto menos dependente dos contextos de produção, ou seja, menos dependente da situação em que foi escrito, mais adequado o texto (critério da clareza, comumente descrito em manuais de ensino de redação). Da mesma forma, quanto mais próxima dos sentidos convencionais ou socialmente valorizados, mais adequada a leitura (importância das instituições e seus mecanismos de padronização e controle das interpretações, cf. Fairclough, 1992). Assim, num texto como este, por exemplo,

Ilmo Sr J. P., Dignissimo Prefeito desta Cidade.

Venho através desta desferir votos de agradecimento pelo que tens feito à mim, e a outros cidadãos cosmopolense; principalmente os benificiados pelo projeto Chico Mendes [grifado no original]. Através deste projeto foi que realizei o sonho de ter uma casa própria, casa esta, situada na Quadra C Lote 08 Jd Chico Mendes. Este projeto é a demonstração de um político voltado para os interesse dos menos favorecidos. (...) Obrigado

Estes são os sinceros agradecimentos do Guarda Municipal A. S. de O.

[assinatura ilegível]

nossa atenção estaria voltada sobretudo para os erros que geralmente são assinalados em vermelho (sublinhados na transcrição acima). Na ordem: falta de acentuação, uso indevido de letra maiúscula, inadequação lexical, uso indevido do pronome, uso indevido da pontuação, falta de concordância do adjetivo, uso indevido do demonstrativo este, falta de concordância do substantivo e inadequação da forma de fechamento. Mas com a preocupação crescente com os contextos de produção e de recepção, isto é, com os contextos nos quais os materiais escritos são produzidos, lidos e interpretados, passamos a incluir uma dimensão denominada sócio-pragmática (cf. Mey, 2001a) à idéia de adequação. Assim, além dos padrões formais de construção da frase e do texto, passaram a ser também consideradas como determinantes para a adequação do ler/escrever as funções comunicativas do que estava sendo produzido:

qual é a/o

interlocutor/a projetada/o, qual é a situação de comunicação e quais são os objetivos visados. Na recepção, ou seja, na leitura/interpretação, passaram a ser consideradas as tipologias textuais (qual é o tipo de texto que está sendo escrito ou lido) e os contextos de produção (quem está falando, está se dirigindo a quem, em que situação ou veículo de comunicação e com que objetivos). Tanto na produção quanto na recepção, passaram a ser considerados também os graus de proximidade e distanciamento entre interlocutores e, consequentemente, os graus de formalidade e informalidade, bem como os padrões locais de comunicação, ou seja, os modos habituais de comunicação naquela comunidade, naquela instituição, por exemplo; além das modalidades e das variedades lingüísticas presentes (não se escreve sempre da mesma maneira para qualquer um, em qualquer situação e com qualquer objetivo, da mesma forma que não se lê/interpreta sempre da mesma forma qualquer texto em qualquer situação e com qualquer objetivo)3.

3

Foram fundamentais para isso as contribuições dos estudos lingüísticos de diferentes filiações teórico-metodológicas que vêem sendo sistematicamente inccrporadas às orientações oficiais para o ensino fundamental no Brasil, desde o final dos anos 1970

Assim, a inclusão dessa dimensão sócio-pragmática no caso do exemplo que acabamos de citar, faria com que nossa atenção estivesse voltada também para o fato de se tratar de um texto do gênero carta formal de agradecimento. Essa carta foi de fato endereçada ao prefeito de uma cidade próxima a Campinas por um guarda municipal, beneficiado por um projeto municipal de construção de casas populares. O fato de se tratar, portanto, de uma carta de um cidadão a uma autoridade nos faria observar dois aspectos não salientes na análise anterior: por um lado, o caráter formulaico e solene de expressões como formas de tratamento típicas da escrita burocrática e cerimoniosa _ “Ilmo Sr”; “Dignissimo Prefeito”; “Venho através desta”_ da escrita estereotipada de mensagens curtas de apresentação e agradecimento de votos _ “Estes são os sinceros agradecimentos do (...)”; de notação de endereços - "Quadra C Lote 08 Jd Chico Mendes", bem como expressões cristalizadas da correspondência burocrática _ “casa esta, situada na Quadra (...)” _ e da propaganda eleitoral _ “um político voltado para os interesse dos menos favorecidos”. Outro aspecto saliente nesse texto é o uso concomitante de formas mais frequentes na escrita informal das cartas pessoais _ uso do pronome “tu”; uso do termo “obrigado” como fechamento do texto. E essa mistura de referências ou modelos apontaria para as dificuldades do escrevente, no caso as dificuldades do guarda municipal, no manejo adequado da língua para uma interlocução desse tipo, ou seja, para dirigir-se por escrito a uma autoridade, a um agente institucional, a um representante do Estado. Do ponto de vista sócio-pragmático tais dificuldades seriam, no final das contas, o grande problema a ser detectado, uma vez que todos os demais, já apontados pelo critério da correção lingüística, seriam causados por ele, seriam conseqüência dessas dificuldades. Do ponto de vista sócio-pragmático o que é saliente é a falta de familiaridade e treino do autor da carta com esse tipo de escrita, com esse tipo de situação de produção/intervenção escrita. Mais recentemente, com a noção de letramento, veio a preocupação com as práticas sociais nas quais estão situados os usos de materiais escritos. Assim, além da dimensão sócio-pragmática, passamos a incluir também uma dimensão político-ideológica à idéia de adequação, uma vez que as práticas sociais são múltiplas e heterogêneas, isto é, não em São Paulo (Aparício, 1999) e desde os anos 1980 para os demais Estados (Pietri, 2003), culminando nos Parâmetros Curriculares Nacionais, do final dos anos 1990.

são sempre as mesmas quando variam os contextos, e estão sujeitas a hierarquizações em função das chamadas práticas de prestígio ou práticas hegemônicas (cf. Bourdieu, 1977; Mey, 2001b). O que significa dizer que muitas são as práticas de uso da escrita, mas há as mais valorizadas em determinado contexto, em determinada situação. Portanto, além dos padrões locais de comunicação, das modalidades de uso e das variedades da língua, passaram a nos interessar também as ideologias lingüísticas (cf. Blommaert & Verschueren, 1992; Jaffe, 1999) e, assim, as crenças e os valores associados à cultura escrita e aos usos dos materiais escritos, porque tais ideologias sustentam os discursos tidos como verdadeiros sobre o que é correto, aceitável, desejável, adequado enfim, em matéria de uso da língua. Passaram a nos interessar também as estruturas de poder e os modos de organização social como fatores que constituem a interlocução mediada pela escrita: quem dita os usos valorizados? A língua dada como padrão, como exemplo, é língua de quem? Quais os interesses em jogo quando se discute o que é certo, bom e bonito em matéria de língua? Voltando mais uma vez à carta do guarda municipal ao prefeito, nos interessaria, pois, observar também que, se por um lado esse modo de construir o texto aponta para deficiências atribuíveis ao grau de escolarização do remetente (curso primário incompleto) e, sobretudo, para sua posição periférica nas redes letradas de comunicação social, por outro, também aponta para um sujeito ativamente empenhado não só em se fazer ouvir, mas também em legitimar sua voz através do uso estratégico de recursos indexicalizados, ou seja, de fragmentos lingüísticos, de modos de dizer que sinalizam sua condição de membro, isto é, de não excluído dessas mesmas redes letradas de prestígio. Reconstituindo, pois, rapidamente esse movimento de redirecionamento do foco de investigação da adequação nos usos da língua, verifica-se uma passagem do foco inicial no lingüístico propriamente dito, isto é, nas formas lingüísticas e suas articulações, para o foco no(s) modo(s) de funcionamento dessas formas tendo em vista uma série de fatores não estritamente lingüísticos mas também discursivos, socioculturais, políticos e ideológicos.

3. Interesse do foco no(s) modo(s) de funcionamento das formas lingüísticas para o ensino e para a formação do professor

O foco nas formas lingüísticas e suas articulações em sintagmas, frases e textos, seja através da gramática, da lingüística da frase ou da lingüística do texto, tende a equacionar a questão da adequação no uso da escrita e dos materiais escritos em função de um padrão tomado como referência. Assim, o critério da correção lingüística tem como referência a chamada língua padrão, ou padrão culto da língua, e o critério da clareza tem como padrão de referência a linguagem dita objetiva, inspirada dos usos científicos. Desse modo, tornam-se importantes as descrições de um padrão culto escrito e também de um padrão oral culto. Em contexto de ensino, essas descrições tendem a funcionar mais como prescrições sobre como devem ser as formas e os usos para serem consideradas inequivocamente como adequados. A questão da variação na língua dos grupos dominantes, dos escolarizados, das pessoas cultas, que sempre foi levantada pela lingüística e desprezada pela gramática, é tida como um complicador até certo ponto desnecessário: costuma-se trabalhar com a idéia de que sempre há uma forma ou um modo de dizer/escrever/ler que é tido, visto como mais adequado, ou mais correto, que todos os demais. A tendência, nesse caso, é desconsiderar a diversidade dos usos reais para considerar apenas a unidade de um padrão ideal, estabelecido por convenções institucionais, não só escolares, como também pela burocracia de Estado, pela mídia, pelas academias científicas e literárias, por exemplo. Em contraste, o foco no(s) modo(s) de funcionamento das formas lingüísticas considerando uma série de fatores não estritamente lingüísticos, tende a manter o complicador da variação lingüística, entendida em sentido amplo, ou seja, variação nas formas, nos usos e parâmetros de avaliação. Tende também a equacionar a questão da adequação no uso da escrita e dos materiais escritos em função de fronteiras socioideológicas e de posições do falante/escrevente/leitor no campo social hierarquizado. Desse modo, o que se pode verificar é que uma mesma produção pode gerar diferentes sentidos e diferentes avaliações em função da/o interlocutora/or, isto é, de quem está ouvindo ou lendo, e da situação, o que faz com que todo e qualquer parâmetro estritamente lingüístico, cultural ou político-ideológico não se sustente em toda e qualquer contexto, em toda e qualquer situação, mesmo os legitimados pela escola e outras agências. Um exemplo caricatural mas significativo é o quanto um “fi-lo porque

qui-lo” chega a ser considerado pedante ou mesmo ridículo num discurso em praça pública e a ser considerado adequado, precioso e até sublime num discurso em academias literárias. A mesma coisa em relação à carta do nosso guarda municipal: quantos verão nela a mistura de que falamos há pouco? Vai depender da posição sociocultural de quem estiver lendo. Portanto, quando se considera a questão da adequação no uso da escrita e dos materiais escritos em função de fronteiras socioideológicas e de posições do falante/escrevente/leitor no campo social, a tendência é ir na direção inversa da que foi descrita anteriormente: a tendência é focar a diversidade das formas e dos usos reais da língua falada e escrita em seus embates com a imposição de um padrão ideal, unificado por convenções institucionais. Isso significa focar não só as diferenças em relação a esse padrão, mas sobretudo os modos como vão se transformando as fronteiras e as interfaces entre uma coisa e outra. Isso porque na realidade empírica observada, as fronteiras não são estáveis e nem inequívocas e muitas são as zonas de interface e de contaminação recíproca (Signorini, 2002), como no exemplo da carta endereçada ao prefeito pelo guarda municipal, em que há vários gêneros imbricados. O grande interesse, a meu ver, desse enfoque para o ensino e a formação do professor está justamente em fazer valer no aqui e agora da comunicação social o princípio democrático da igualdade intelectual entre falantes de uma mesma língua de que fala Rancière (1987), e em olhar para as zonas de fronteira e de interface tanto como espaços de circulação dos saberes ou discursos sobre a língua que estão atuando na sociedade num dado tempo e lugar, quanto como espaços onde se dão as transformações desses saberes, desses discursos. Tais mudanças se verificam tanto em função das mudanças nas posições assumidas pelo falante/escrevente/leitor, seja em função do confronto, nem sempre puramente teórico ou metodológico, mas também políticoideológico entre todos esses saberes, ou discursos sobre o que é racional, adequado, correto, bom e bonito no uso da língua falada e escrita. Na diversidade desses saberes, desses discursos sobre a língua, estão atuando evidentemente os saberes eruditos, letrados, tanto teóricos quanto práticos, legitimados e perpetuados pelas instituições e grupos socioculturais de maior prestígio na sociedade, mas também estão atuando os saberes teóricos e práticos de grupos profissionais não

eruditos, dos grupos socioculturais periféricos e do senso comum. Nesse sentido é que se pode dizer que na escrita do guarda municipal não estão só presentes as práticas da escrita burocrática e cerimoniosa, mas também as da escrita formulaica e solene das saudações e agradecimentos encontrados em cartões impressos e em discursos de autoridades, além das práticas da escrita informal encontrada em cartas e comunicações pessoais.

4. Polarização diglóssica e produção de estados de afasia entre falantes pouco letrados No caso específico do ensino fundamental e da formação do professor, uma zona de fronteira e de interface de grande relevância e visibilidade é a da oralidade/escrita, não só porque a/o aprendiz já funciona plenamente no campo da oralidade e apenas precariamente, ou lacunarmente, no campo da escrita, como também porque há uma polarização diglóssica que é produzida sistematicamente pelos discursos letrados, inclusive os acadêmicos e escolares, que tende a descaracterizar o campo das interseções entre práticas orais e práticas escritas como uma zona de fronteira e ao mesmo tempo de interface onde operam os processos de transformação do sujeito aprendiz e de sua língua (a esse respeito, ver também Signorini, 2001). Por polarização diglóssica estou entendendo a contraposição entre língua oral e língua escrita como dois polos que se excluem. Mesmo nos modelos que prevêem uma linha contínua entre esses dois polos e trabalha com escalas que vão do mais ou menos oral para o mais ou menos escrito (Marcuschi, 2002), a lógica diglóssica da parametrização dos usos da língua pela escrita está presente: língua correta, língua adequada, língua verdadeira é a escrita, portanto quanto mais próxima da escrita estiver a fala, mais próxima estará da chamada língua padrão, ou língua culta e, consequentemente, menos sujeita à variação; quanto mais afastada da escrita estiver a fala, mais sujeita à variação e, consequentemente, mais afastada da língua culta ou padrão. Seguindo a mesma lógica, quanto mais próxima da fala estiver a escrita, mais afastada estará da língua culta ou padrão e, consequentemente, mais sujeita à variação; quanto mais afastada da fala estiver a escrita, menos sujeita à variação e, consequentemente, mais próxima do padrão.

Conforme verificamos em trabalho anterior, a sobreposição do constructo língua ao de escrita pelas tradições retóricas, gramaticais e lingüísticas está relacionada “à caracterização da escrita a partir simultaneamente de uma diferença congênita com a fala - a escrita se contrapõe à fala e não se confunde com ela - e de uma proximidade também congênita com ela - tanto a escrita quanto a fala são realizações da mesma língua.” (Signorini, 2001: 107-8). Isso faz com que, como lembra Taylor (1997: 57), tanto falante quanto escrevente são tidas/os como se estivessem tentando a mesma coisa: produzir formas que se aproximem das formas ideais da língua (tanto as descritas pelos linguistas quanto as prescritas pelos gramáticos), com a diferença de que na escrita teriam sucesso "quase invariavelmente", enquanto na fala "só raramente". Observar melhor como funciona essa lógica nas práticas de ensino/aprendizagem é crucial para se compreender porque ela acaba produzindo o que se costuma chamar "mentalidade diglóssica" (Jaffe, 1999), inclusive na/o aprendiz. Isso porque, ao trabalhar com a idéia de uma fronteira clara e distinta, isto é, sempre visível por todos, entre oralidade e escrita nos usos da língua, dificulta-se, quando não se impede, que a/o falante das variedades não parametrizadas pela escrita, como é o caso de grande parte da clientela da EJA, seja colocada/o desde o início na condição de falante competente de uma língua, no sentido dado a essa expressão pela tradição lingüística e antropológica. Na verdade, a mentalidade diglóssica exclui justamente toda igualdade de condições que possa existir basicamente entre falantes de uma mesma língua, enquanto falantes nativos, no sentido de autorizados, daquela língua e transfere para a língua padrão, portanto para a língua parametrizada pela escrita e unificada pelas convenções institucionais, o papel de instaurar a igualdade de condições entre as/os falantes da língua. Esse modo de equacionar o problema propriamente político da heterogeneidade das formas hierarquizadas nos usos da língua é tributário de um projeto emancipatório, herdado do Iluminismo europeu dos séculos XVII/XVIII, de universalização do saber (o conceito de esclarecer o ignorante) e articulado aos princípios do liberalismo democrático (a idéia de formar o cidadão esclarecido e participativo) através do modelo da chamada escola republicana, isto é, leiga e voltada para a construção do que é comum e compartilhado na fala/escrita das/os cidadãs/ãos (o conceito de aquisição de padrões de prestígio), em detrimento das heterogeneidades constitutivas da língua falada pelo

conjunto também heterogêneo de falantes da língua nacional (Signorini, 1994a). Segundo esse modelo, a igualdade das condições entre falantes de uma mesma língua é o objetivo a ser alcançado através da escolarização/universalização dos saberes sobre a língua: serão iguais as/os que adquirirem os mesmos padrões; no caso específico da língua: serão iguais as/os que falarem/escreverem da mesma forma. Mas o que se tem observado é que ao trabalhar com a desigualdade de condições das/os falantes como ponto de partida do processo de letramento, essa mentalidade diglóssica acaba reservando às/aos aprendizes da escrita a condição de afásicas/os em diferentes graus (Signorini, 1994b; Kleiman & Signorini, 2000), ou seja, a condição daquelas/es que têm o que dizer, mas não têm como, daquelas/es que têm o pensamento, a experiência, o desejo, mas não têm as palavras certas, a língua adequada, ou, como bem explicita um agricultor não escolarizado, não têm as palavras "profundas". E na condição de afásica/o, a/o aprendiz geralmente opta por uma das duas saídas que vimos observando em nossas pesquisas sobre letramento e alfabetização de grupos periféricos: ou ela/e assume a lógica diglóssica da necessidade de extirpar de sua escrita toda interferência do oral ou contaminação pela sua própria fala (Signorini, 1999), pelos modos de dizer de seu cotidiano, ou se cala, fica muda/o, faz qualquer coisa para não expor a si e a sua língua, isto é, seus modos de dizer, mas também de raciocinar, de agir, de avaliar (Signorini & Dias, 2000). Quando ela/e assume a lógica diglóssica, a tendência é adotar a chamada técnica do recorta e cola, ou seja, recortar e reproduzir fragmentos extraídos dos modelos institucionais mais fortemente associados com fórmulas de sucesso na comunicação na esfera pública (como no caso da carta do guarda municipal, focalizada acima) ou extraídos dos padrões escolares de modelização da escrita e da leitura. Os recortes vão desde palavras às chamadas "máscaras" textuais, passando por recortes de expressões, frases e parágrafos. Variam o tamanho e o grau de articulação desses blocos congelados na escrita e também na fala da\o aprendiz, variando também os efeitos daí advindos para a compreensão/avaliação do que está sendo produzido. Se forem visíveis para a/o interlocutora/or as fraturas entre os blocos ou qualquer outro tipo de descontrole na organização e articulação das formas, ao mesmo tempo em que o sujeito estará escrevendo/falando segundo modelos reconhecidamente testados e

aprovados, estará também sinalizando diferentes graus de inabilidade, de incompetência na tarefa de escrever/falar adequadamente, como foi verificado para o guarda municipal no exemplo mostrado anteriormente. Nesse caso lhe seria atribuída a condição de precariamente esclarecido (ou não mais totalmente ignorante em matéria de língua) e, em função disso, ainda não incluído no rol das/os que conquistaram a igualdade de condições enquanto falantes competentes, cidadãs/ãos autônomas/os, etc (também verificado entre vereadores nordestinos pouco escolarizados, cf. Signorini, 1998). Mas se forem invisíveis para a/o interlocutora/or as tais fraturas e descontroles, estará certamente atingindo dois objetivos concomitantes: estará sendo vista/o como conhecedora/or da escrita descontaminada da fala e, ao mesmo tempo, como hábil e competente no manejo da língua padrão ou de qualidade e, em função disso, já incluída/o no rol dos que conquistaram a igualdade de condições enquanto falantes e cidadãs/ãos de qualidade (Signorini, 2001).

5. Considerações finais

Entretanto, a condição de afásico, no sentido descrito na seção anterior, mesmo quando resolvida de alguma forma pela citada técnica do recorta e cola, não tem se mostrado produtiva para clientelas vindas de grupos sociais periféricos, inclusive porque essa é uma técnica que exige treino sistemático e prolongado, do tipo do que fazem os cursos de redação para o vestibular com suas fórmulas genéricas e adaptáveis a qualquer tema, a diferentes gêneros e tipos de texto. Tais clientelas têm que cortar caminho, sendo que muitas começaram pelo meio, portanto nunca vão poder reproduzir o percurso dos que começaram mais cedo. E, o mais importante, querem ter voz e visibilidade nas práticas de leitura/escrita em que se envolverem. Ou pelo menos nós acreditamos que queiram. Isso significa que querem ir além da troca de fórmulas que funcionam até certo ponto, mas que podem desqualificá-las em contextos estratégicos ou muito assimétricos, ou seja, em contextos em que os avaliadores de sua escrita ou de sua fala estejam em posições de maior saber, de maior poder. Querem também ir além das fórmulas que funcionam muito bem em contextos estratégicos ou muito assimétricos, como em

concursos, por exemplo, mas que obliteram por completo todas as marcas, as pegadas que remetem a uma/um falante/escrevente sociohistoricamente situada/o, ou seja, não genérica/o, não desencarnada/o, como a/o autora/or projetada/o pela colagem perfeita de frases feitas de muitas das redações nota 10 dos concursos vestibulares. Mas para isso, teríamos

que

deslocá-las/los

dessa

condição

de

afásicas/os

investindo

mais

sistematicamente nas zonas de fronteira e de interface entre variantes e modalidades de uso da língua. Isso significa na prática trabalhar com alternativas de leitura/escrita que não reproduzam a lógica diglóssica de dicotomias estanques do tipo: ou é padrão ou não padrão, culto ou inculto, letrado ou não letrado, oral ou escrito, formal ou informal, para citar as mais banalizadas. A observação das práticas reais e das formas em circulação, ou seja, a observação dos usos contextualizados da língua, mostra como são de fato movediços os limites assim traçados e frágeis as relações de oposição assim demarcadas. Quando, por exemplo, nós professores escrevemos numa mensagem eletrônica algo como: "lhe devolvo o livro amanhã", em vez de "devolvo-lhe o livro amanhã", ou ainda, porque não, "devolver-lhe-ei o livro amanhã", estamos atuando numa zona de interface entre práticas orais e escritas que nos são familiares. Caso apresentássemos às/aos nossas/os aprendizes, diferentemente posicionadas/os no campo sociocultural e diferentemente familiarizadas/os com o gênero mensagem eletrônica, seria no mínimo injusto se apresentássemos como únicas alternativas adequadas, no sentido de inequivocamente corretas, as formas da escrita padrão "devolvo-lhe" /"devolver-lhe-ei". Injusto porque não lhes daria a chance de transitar, como nós transitamos, do oral para o escrito e assim sair, mesmo que precariamente, do estado de afasia em que se encontram.

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Campinas: Programa de Pós-graduação em

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