Investigações Filosóficas-Sophia Umuarama: Filosofia, Educação e Autonomia - 2012

September 5, 2017 | Autor: J. Provetti Junior | Categoria: Filosofía, Filosofía contemporánea
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Descrição do Produto

Investigações Φilosóficas-SOPHIA

UMUARAMA

FILOSOFIA, EDUCAÇÃO E AUTONOMIA

2012

1ª EDIÇÃO

ALAN RODRIGO PADILHA

RAFAEL EGÍDIO LEAL E SILVA & JOSÉ PROVETTI JUNIOR (Orgs.)

ASSIS CHATEAUBRIAND JPJ Editor 2015

IF-SOPHIA – UMUARAMA: FILOSOFIA, EDUCAÇÃO E AUTONOMIA 2012

ORGANIZADORES ALAN RODRIGO PADILHA Mestrando em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, Especialista em Educação Especial pela UNIVALE, graduado em Filosofia pela Faculdade Bagozzi, Coordenador de Pesquisa e Pesquisador-efetivo do Grupo de Pesquisas Filosofia, Ciência e Tecnologias – IFPR, na Linha de Pesquisa Filosofia, Co-proponente, Coordenador do Projeto de Extensão IF-Sophia. É docente efetivo da disciplina de Filosofia do Instituto Federal do Paraná – IFPR, na cidade de Umuarama. RAFAEL EGÍDIO LEAL E SILVA Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá – UEM, Especialista em Teoria Histórico-Cultural e em História das Religiões pela mesma universidade, graduado em Direito e em Ciências Sociais, sendo nesta licenciado. É pesquisador-efetivo do Grupo de Pesquisas Filosofia, Ciência e Tecnologias – IFPR, na Linha de Pesquisa Educação, Cognição e Linguagem, participante como estudante-pesquisador do Grupo de Pesquisas Psicologia Histórico-cultural e Educação, Linha de Pesquisa Psicologia do Ensino e da Aprendizagem. Participa como estudante´pesquisador do Grupo de Pesquisa Laboratório de estudos e pesquisas sobre a interação humana e contemporaneidade. Co-proponente e Coordenador do Projeto de Extensão IFSophia. É docente efetivo da disciplina de Sociologia do Instituto Federal do Paraná – IFPR, na cidade de Umuarama. JOSÉ PROVETTI JUNIOR Mestre em Cognição e Linguagem, com ênfase em Filosofia da Mente e Processos Cognitivos pela Universidade Estadual do Norte-Fluminense Prof. Darcy Ribeiro – UENF, mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea, com ênfase em Metafísica e Teoria do Conhecimento pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Toledo, especialista em Saúde para Professores dos Ensinos Fundamental e Médio pela Universidade Federal do Paraná – UFPR – Cruzeiro do Oeste, especialista em História, Arte e Cultura pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – Umuarama, graduado e licenciado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ – RJ, graduando em Pedagogia pela Universidade Estadual de

Maringá – UEM – Umuarama, professor e pesquisador voluntário do Núcleo de Estudos da Antiguidade – NEA – UERJ, pesquisador do Grupo de Estudos Karl R. Popper – UNIOESTE – Toledo, pesquisador-efetivo e Coordenador Geral do Grupo de Pesquisas Filosofia, Ciência e Tecnologias – IFPR, autor dos livros “A alma na Hélade: a origem da subjetividade Ocidental” (2011) e “Dualismo em Platão” (2014), servidor público federal, docente de Sociologia no Instituto Federal do Paraná – IFPR – Assis Chateaubriand, atuando nos Cursos Técnicos de Informática, Eletromecânica, Agroecologia e Orientação Comunitária.

AUTORES ROSALVO SCHUTZ Doutor em Filosofia pela Universidade Kassel, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-RS, graduação em Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. É líder do Grupo de Pesquisa Ética e Política da UNIOESTE – Toledo, na Linha de Pesquisa Autonomia e heteronomia em ética e Poder, política e legitimidade. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Filosofia, Educação e Práxis Social, na linha de Pesquisa de mesmo nome. É servidor público estadual, docente atuante na graduação em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, na cidade de Toledo, docente do programa de pós-graduação stricto sensu, no nível de mestrado, em Filosofia Moderna e Contemporânea na UNIOESTE – Toledo. É membro do corpo editorial dos periódicos Humanidades em Revista, Editora e Distribuidora Tykhe, Revista Espaço Acadêmico (UEM) e Argumentos: revista de filosofia. Autor dos livros “Die abstrahierende Dynamik der modernen Gesellschaft - Konsequenzen für die Beziehung der Menschen untereinander und mit der Natur” (2007) e “Capitalismo e religião: uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx” (2001). É co-autor da obra “Práxis filosófica e movimentos sociais em questão” (2012) e organizador dos livros “Crítica e utopia: perspectivas brasileira e alemãs” (2012) e “Economia popular solidária: pesquisa/ação” (2000). JOSÉ MATEUS BIDO É mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Toledo, especialista em Docência em Educação Profissional pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – SENAC – PR, especialista em Gestão Educacional pelo Centro Nacional de Educação a Distância, especialista em Filosofia Clínica pela faculdade Padre João Bagozzi, especialista em Filosofia e os valores fundantes da civilização ocidental pela Faculdade de Filosofia pela Universidade Estadual do Paraná – FECILCAM – Campo Mourão , é graduado e licenciado em Filosofia pela Faculdade de Ciências Humanas Arnaldo Busato – Toledo. É servidor público federal, docente das disciplinas de Filosofia e Sociologia do Instituto Federal do Paraná, campus da cidade de IvaiporãPR e autor do livro “A problemática da pós-modernidade” (2001). MARCOS ANTÔNIO DE SOUZA BRITO Graduado em Filosofia pela Universidade Metodista de São Desenvolve estudos em torno do pensamento de Arthur Schopenhauer.

Paulo.

ALAN RODRIGO PADILHA Mestrando em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE/ Toledo, especialista em Educação Especial pelo Centro de Estudos Avançados e Pós-graduação das Faculdades Integradas do Vale do Ivaí – UNIVALE, graduado e licenciado em Filosofia pela Faculdade Padre João Bagozzi, é pesquisador-efetivo e Coordenador de Pesquisa do Grupo de Pesquisa Filosofia, Ciência e Tecnologias – IFPR e servidor público federal, docente de Filosofia do Instituto Federal do Paraná – IFPR – Umuarama. HERNESTINA DA SILVA FIAUX MENDES Mestranda em Educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE, especialista em Educação e Saúde, com ênfase em Pedagogia Hospitalar pelo Centro Técnico Educacional Superior do Oeste do Paraná, especialista em Educação Especial pelas Faculdades Integradas do Vale do Ivaí – UNIVALI, especialista em Orientação Educacional pela Universidade Paranaense – UNIPAR, especialista Psicopedagogia pela Universidade Paranaense – UNIPAR, graduação em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Umuarama, docente do Instituto São Francisco de Assis – ISFACES, da Faculdade Global de Umuarama, servidora pública estadual, no Núcleo Regional de Educação – Umuarama – SEED – PR, servidora pública federal, Pedagoga do Instituto Federal do Paraná – IFPR – Umuarama e membro do Comitê da Secretaria Estadual de Saúde, 12ª Regional de Saúde – Umuarama. AMÍLCAR MACHADO PROFETA FILHO Mestre em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, especialista em História Econômica pela Universidade Estadual de Maringá – UEM, graduado em História pela Universidade Estadual de Maringá – UEM e é servidor público federal, docente de História no Instituto Federal do Paraná – IFPR – Assis Chateaubriand. DANIEL SALÉSIO VANDRESEN Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Toledo, especialista em História do Brasil pela Universidade Paranaense – UNIPAR, graduado em Filosofia pelo Centro Universitário de Brusque, pesquisador-efetivo e Coordenador Financeiro do Grupo de Pesquisas Filosofia, Ciência e Tecnologias – IFPR, servidor público federal, docente de Filosofia no Instituto Federal do Paraná – IFPR – Assis Chateaubriand e Coordenador do Curso Técnico em Orientação Comunitária.

SÍLVIA ELIANE DE OLIVEIRA BASSO Mestra em Educação pela Universidade Estadual de Maringá – UEM, especialista em História do Mundo Contemporâneo pela Universidade Paranaense – UNIPAR – Umuarama, graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá – UEM, graduado em Estudos Sociais pela Universidade Paranaense – UNIPAR – Umuarama, servidora pública federal, docente no Instituto Federal do Paraná – IFPR – Umuarama.

1ª EDIÇÃO ASSIS CHATEAUBRIAND/ PR 2015 JPJ Editor Coordenação editorial: Claudia Dell'Agnolo Petry Edição de texto: José Provetti Junior Preparação do texto: José Provetti Junior Projeto gráfico: José Provetti Junior Capa: José Provetti Junior. Coordenação de produção gráfica: Lidiane Cardoso Remde Provetti Coordenação de revisão: José Provetti Junior Revisão: Michelli Cristina Galli Edição de arte: José Provetti Junior Assistência de produção: José Provetti Junior Coordenação de produção: José Provetti Junior Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

123

ΙΦ-SOPHIA UMUARAMA: filosofia, educação e autonomia 2012./ Organizado por Alan Rodrigo Padilha; Rafael Egídio Leal e Silva, José Provetti Junior. – 1. ed. – Assis Chateaubriand : JPJ Editor, 2015. 168 p.; 21 x 29,7 cm. ISBN 978-85-912927-3-8 1. Filosofia. 2. Educação. I. Padilha, Alan Rodrigo, Org. II. Leal e Silva, Rafael Egídeo, Org. III. Provetti Jr., José Org. CDD: (22.ed.) 100 Bibliotecária: Cler Rosane Coldebella Muraro CRB 9/ 1430

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Todos os direitos reservados JPJ Editor Av. dos Pioneiros, 225 – Jardim Europa Assis Chateaubriand/ PR – Brasil – CEP.: 85.935-000 Tel.: (44) 8813-1127 www.grupodepesquisafilosofiacienciaetecnologiasifpr.com/#!jpj-editor/c1qjf [email protected] 2015 Impresso em Assis Chateaubriand/ PR – Brasil.

Dedicamos essa obra a todos os trabalhadores e trabalhadoras em educação do Estado do Paraná, principalmente aos nossos mestres que corajosamente enfrentaram o furor do aparelho de estado naquele funesto dia 30 de agosto de 1988, em que a passeata pacífica tornou-se um palco de violência pela força policial do estado do Paraná. É importante não apagar da memória aquele ato de violência real, que se tornou simbólico e que ainda hoje faz ressonância nas novas gerações de professores. A luta pela educação pública, gratuita e de qualidade continua em todas as esferas, Municipal, Estadual e Federal. Existem muitas coisas a serem conquistadas. Por isso o tema da primeira edição do projeto IF-Sophia foi FILOSOFIA, EDUCAÇÃO E AUTONOMIA 2012.

Que é que fiz, não fiz, de mim? Insciente, perplexo, inexplicado. Só cheio de saudades de mim. De tantos eus que fui. Sidos. Idos. Somos descartáveis, sei, mas dói. (Darcy Ribeiro)

No fim das contas, o conhecimento serve e só adquire sentido para a humanidade à medida que contribui para melhorar sua capacidade de fruir a vida e para diminuir o sofrimento humano (…) Podemos, então, ver o conhecimento como fator de liberdade, como elemento para a felicidade.” Gildo Magalhães . Introdução à metodologia da ciência: caminhos da ciência e da tecnologia, 2005.

ÍNDICE

Apresentação ….........................................................

11

Introdução …...........................................................

13

“Antigas” concepções de Homem: o Positivismo e o materialismohistórico. Por que o século XIX ainda nos explica? …...................

16

As bases epistemológicas para pensar a metodologia da pesquisa ….......

34

Educação para “produção da consciência verdadeira”: uma abertura de diálogo educacional com a perspectiva crítica …........................

46

Iluminismo, Kant e Filosofia da História: uma reflexão para o IF-Sophia como projeto educativo …...............................................

67

A razão instrumental e a razão crítica em Horkheimer ….................

77

Crítica ao sujeito e a razão governamental no domínio da biopolítica de Michel Foucault …......................................................

97

O Homem desumanizado como limite do Esclarecimento …...................

125

Filosofia e Crítica Social …...........................................

148

APRESENTAÇÃO O Grupo de Pesquisas Filosofia, Ciência e Tecnologias – IFPR tem a satisfação de oferecer aos públicos acadêmico e geral o resultado primeiro da iniciativa dos professores e pesquisadores-efetivos Alan Rodrigo Padilha e Rafael Egídio Leal e Silva, servidores do Instituto Federal do Paraná, lotados no campus da cidade de Umuarama, desde 2012, em parceria com filósofos e outros profissionais da educação da Secretaria de Estado da Educação do Paraná – SEED/ PR, no Núcleo Regional de Educação – NRE – Umuarama, do SESC/ PR da APP – Sindicato

e

de

outras

instituições

que

possibilitaram

o

lançamento

das

necessidade

dos

atividades do IF-Sophia – Umuarama, no ano de 2012. Essa

importante

ação

veio

ao

encontro

de

uma

profissionais de educação como um todo, em especial dos campos dos saberes filosófico

e

sociológico,

devido

à

constante

demande

por

atualização

e

aperfeiçoamento profissional. Nesse particular, o Instituto Federal do Paraná, com base na legislação que lhe deu vida institucional, isto é, a Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008, que fixa a demanda dos Institutos se esforçarem por se tornar referências regionais em Ciência e Tecnologia, principalmente para as Redes de Ensino municipais, estaduais e privadas, possibilitando, assim, ações que ofertem o estímulo aos profissionais de educação a se tornarem pesquisadores e agentes de transformação social, em atendimento às demandas locais. Foi nesse sentido que o IF-Sophia – Umuarama impulsionou a reunião de professores, estudantes, cidadãos e representantes de instituições da sociedade civil organizada em torno de temáticas filosóficas contemporâneas, provocando o desafio da aprendizagem continuada, do debate crítico e a reflexão sobre o papel dos saberes filosóficos na sociedade brasileira do século XXI. Portanto, apresento ao leitor amigo o produto dessa primeira experiência em solo umuaramense, de maneira a convidá-lo à reflexão e ao engajamento nos debates sobre as temáticas aqui apresentadas, de modo que possamos atingir a maturidade filosófica do “a cada dia que passa, apenas sabemos que nada

sabemos! Boa leitura! Assis Chateaubriand, 22 de janeiro de 2015. O Editor.

INTRODUÇÃO Filosofia, Educação e Autonomia. O

título

da

primeira

edição

da

Coletânea

Filosófica

IF-Sophia

é

sugestivo, pois estabelece um vínculo entre a autonomia, a educação e o filosofar. Não é um vínculo natural, pois nenhum dos três conceitos são naturais, mas fruto de um processo social histórico e cultural específico, a saber: o helênico, a partir do século VIII a. C. nas cidades-estado gregas da região da Jônia, atual Turquia. O fundador dessa tradição, o pensador Tales, da polis de Mileto, que era a sede de uma liga informal de cidades helênicas com predominância étnica ática e eólia, se tornou próspera a partir do século VI a. C., congregando em suas ruas, elementos de diversas nacionalidades que traziam aos cidadãos, o resumo das vivências culturais de seus povos. É em Mileto que Tales, em parceria com seu genro e concidadão, Anaximandro, iniciou uma inovação pedagógica nas relações ensino-aprendizagem existentes à época. O que se verifica na História de países como o Egito, Israel e Índia, dentre outros, é que a sabedoria era patrimônio de indivíduos especiais, que além de vivê-la a ensinavam em escolas, em geral vinculadas a alguma tradição religiosa e/ ou mítica senão até mesmo revelada por alguma deidade. Nessas escolas se observa que a relação mestre-iniciado se estabelece como uma via de mão única, em que o neófito recebe a bênção do mestre através de seu

conhecimento

excepcional,

se

esforça

por

compreendê-lo,

vivê-lo

e,

sobretudo, preservá-lo, transmitindo-o de geração em geração, da melhor maneira possível. Quando organizado,

essas

escolas

verifica-se

que

estavam os

ligadas

registros

a

algum

feitos

tipo

sobre

de

sacerdócio

essa

sabedoria,

normalmente privilégio desse grupo, registra, por meio de livros sagrados, revelados ou redigidos por esses mestres da Verdade, de maneira a estratificar

os ensinamentos do mestre como dogmas aos quais qualquer melhoria dos saberes ai expressos, normalmente levados a efeito por algum avançado discípulo, não é atribuído a este, mas a uma espécie de revelação interpretativa do texto divinizado do mestre que até ao momento não havia sido percebido. Isso se verifica com a tradição homérica na Grécia e, ainda, com a tradição médica, tanto na Hélade quanto nos demais países orientais ou africanos com os quais os helênicos travaram conhecimento. Tales, ao contrário de seguir essa metodologia pedagógica, estabeleceu ao genro e demais estudantes de seu grupo, a saber: Anaxímenes de Mileto e Heráclito de Éfeso, as seguintes regras: a) A única certeza inquestionável é a que o acesso irrestrito à realidade é privilégio dos deuses; b) Portanto, ao homem apenas é possível tecer teias de conjecturas sobre a realidade; c)

Assim,

conjecturas,

para

faz-se que

se

necessária

a

alcance

algum

constante

revisão

conhecimento

crítica

verossímil

dessas sobre

a

realidade; d) Se houver uma nova conjectura sobre qualquer fenômeno que seja diferente

da

que

propus,

exponha-a

e

a

discutamos,

a

fim

de

melhor

aperfeiçoarmos nossa compreensão sobre a realidade, o conhecimento e o mundo. A postura inovadora de Tales rompeu com a tradição da sabedoria oriental acima

mencionada.

Ao

mesmo

tempo,

inaugurou

o

racionalismo

crítico

e

revisionista que iniciou a delimitar o campo e método de atuação do que no futuro, após a conceituação de Pitágoras de Samos, veio a ser denominado de “filósofo”, desenvolvendo uma análise crítica sistemática à tradição mítica, teogônica e cosmogônica helênica. Com essa atitude, Tales deu autonomia a seus discípulos e na posse delas, os discípulos deram mérito ao mestre de impulsioná-los a propagarem a nova didática que revolucionou a educação grega arcaica, atingindo a tradição educacional Ocidental filosófica e científica de tal maneira que hoje se

depara

com o desafio de vencer mais de mil anos em que o pensar filosófico esteve a

serviços da religião, se remitificando e retomando a visão inovadora e desafiadora de ver a totalidade da vida e de suas relações cosmologicamente, à maneira dos primeiros pensadores racionalistas, críticos e revisionistas. Eis o novo e inquietante desafio da educação. Demover-nos da zona de conforto da tradição filosófica e científica inducionista e reconectar-mos a uma visão cosmológica da realidade. Romper com a perspectiva da exclusividade do método indutivo como ferramenta de trabalho investigativo e as incomunicáveis compartimentalizações positivistas ou neopositivistas da vida e dos saberes sobre esta que a ciência e a sociedade implantaram e mantém por meio do processo de escolarização formal, em qualquer nível. Como reatar tal visão, abandonando o tradicional modelo de docente “dador de aulas” que não foram totalmente elaboradas pelo profissional de educação,

estandartizados

pelos

medalhões

das

academias

e

de

maneira

transdisciplinar se tornar um professor-investigador, criada não apenas de aulas interessantes e motivadoras, mas dos conteúdos que nelas serão apresentados? Eis os desafios que são ofertados a todos os profissionais da educação de nossa época. Um inquietante questionamento que se dirige a cada um que cruza os umbrais de uma instituição de ensino e de sua sala de aula: ao entrar e encarar seus concidadãos, de maneira a bem orientá-los sobre os conteúdos de sua área, tanto quanto realizar a ação pedagógica; ao sair, ficar tranquilo com sua consciência, ao identificar nos noticiários diários, aqueles que passaram horas a fio diante de nós, a escutar-nos e, talvez, nos questionar sobre a pertinência ou não do que se tratava e felicitar-se ou não, conforme a qualidade do interesse que didicara a eles. O que temos feito para efetivamente transformar a realidade em que estamos inseridos por meio de nossa área de atuação? É disso que trata a coleção IF-Sophia, com o volume “Filosofia, educação e autonomia”. José Provetti Junior Assis Chateaubriand, 22 de janeiro de 2015.

“Antigas” concepções de Homem: o Positivismo e o materialismo-histórico. Por que o século XIX ainda nos explica? Rafael Egidio Leal e Silva1 RESUMO A discussão que será desenvolvida neste capítulo refere-se à importância de dois pensadores do século XIX, cujas obras ainda são alvo de debates por parte das Ciências Humanas. Transcendendo a filosofia e a ciência, o Positivismo e o Materialismo-histórico espraiam-se pela política, arte e chegam a ser considerados (em tom depreciativo) como religiões, pelo comportamento demasiado acentuado de alguns de seus adeptos, que acabam por tentar vivenciar tais concepções, gerando uma espécie de modo de vida capaz de transformar a dura realidade cotidiana. Palavras chaves: Positivismo; Augusto Comte; Karl Marx.

Materialismo

histórico;

Homem;

Sendo assim, podemos considerar as obras de Augusto Comte (1798-1857) e Karl

Marx

(1818-1883)

como

fundamentais

para

a

compreensão

do

homem

contemporâneo? O que esses dois pensadores observaram (e refletiram) que faz de seus pensamentos tão duradouros e tão debatidos? O objetivo deste capítulo é investigar alguns aspectos de seus pensamentos a fim de compreendermos sua historicidade, e o papel que o homem ocupa em suas concepções. Tal discussão insere-se tanto como introdução à Sociologia Clássica, como também nas histórias das ideias filosóficas do século XIX. Pretendemos não apenas contribuir com um debate necessário sobre a influência de tais teorias, como também colaborar com a formação de professores dessas disciplinas no ensino 1

Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá – UEM, Especialista em Teoria Histórico-Cultural e em História das Religiões pela mesma universidade, graduado em Direito e em Ciências Sociais, sendo nesta licenciado. É pesquisador-efetivo do Grupo de Pesquisas Filosofia, Ciência e Tecnologias – IFPR, na Linha de Pesquisa Educação, Cognição e Linguagem, participante como estudante-pesquisador do Grupo de Pesquisas Psicologia Histórico-cultural e Educação, Linha de Pesquisa Psicologia do Ensino e da Aprendizagem. Participa como estudante pesquisador do Grupo de Pesquisa Laboratório de estudos e pesquisas sobre a interação humana e contemporaneidade. Co-proponente e Coordenador do Projeto de Extensão IF-Sophia. É docente efetivo da disciplina de Sociologia do Instituto Federal do Paraná – IFPR, na cidade de Umuarama.

básico, que precisam expor de modo didático tais teorias. É importante lembrarmos que a Europa viveu o século XIX estremecida por graves crises políticas e sociais, com diversos golpes de Estado, tendo por início a própria Revolução Francesa de 1789-1799. Esta revolução alterou de forma radical e definitiva as bases da sociedade: se antes, a nobreza e o Clero detinham o poder político, com a revolução esse poder passou às mãos da burguesia, que já detinha o controle da economia e da produção de riquezas. Com essa revolução a escolástica foi definitivamente substituída pela ciência como modo de produzir conhecimentos para a nova sociedade (comandada pela burguesia). A própria burguesia fundamentava-se no pensamento moderno e liberal, que colocava no indivíduo (e não mais em Deus) a responsabilidade por seu próprio destino. Esse indivíduo liberto, proprietário e natural, estaria destinado a governar a sociedade, tendo o pensamento científico (e único racional) como seu guia para bem exercer esse governo. Claro que por mais universalista que possa parecer esse discurso, ele estava destinado a uma única classe: a própria burguesia. Se de um lado assistimos, durante o século XIX, que a Europa realizando suas revoluções liberal-burguesas, de outro observamos um sem número de revoltas populares, como, por exemplo, a já citada Revolução de 1848, na França e as comunas instauradas (em 1848 e em 1870) além do movimento operário e comunista que se espalhou, como um fantasma, por todo o Velho Continente. Entretanto, a idéia de ciência permeou todos esses movimentos. Desde a ciência liberal, que resultou na formulação de um método positivista, até a formulação, por parte de Marx e Engels, de um socialismo científico, com metodologia e análise da realidade destinadas a fundamentar a revolução proletária. Diante disso, a Ciência e a indústria são, desta forma, palavras chaves para a compreensão do século XIX. Como o homem foi retratado pelas lentes da filosofia desse século?

Comte, do método Positivista à Religião da Humanidade. Comte nasceu em Montpellier, França, no dia 19 de Janeiro de 1798, e faleceu em 1857. Estudou na Escola Politécnica e cursou medicina em sua cidade

natal, mas não concluiu nenhum desses cursos. Em 1817 tornou-se secretário do pensador francês Saint-Simon (pensador socialista) e, tornou-se seu discípulo e colaborador. Assim, Comte foi orientado para o estudo das ciências sociais com a idéia de que tanto os fenômenos sociais, como os físicos poderiam ser reduzidos e submetidos às leis naturais, e que todo o conhecimento científico deveria ter por finalidade o aperfeiçoamento moral e político da humanidade. Entretanto, Comte e Saint-Simon romperam em 1824, quando Comte passou a formular os primórdios de seu sistema positivista, ao publicar o texto Plano de trabalhos científicos necessários à reorganização da sociedade sob o título de Sistema de política positiva. Simon, partidário do socialismo utópico, não concordou com os pensamentos progressistas de Comte. A partir daí, Comte passou a formular pensamento próprio e original. Em 1826 iniciou um curso em sua própria casa, que marcou o início do Positivismo: o Curso de Filosofia Positiva, resultou em obra homônima, composta de 06 volumes, iniciado em 1830, com a publicação do primeiro volume e terminado em 1842, com a publicação do último volume. Dois fatos foram especialmente marcantes em sua vida pessoal: ainda na terceira aula do curso de filosofia, teve uma grave crise mental, que o levou a ficar internado por dois anos em estabelecimento psiquiátrico. Recuperado, trabalhou intensamente na sistematização da filosofia positiva. Dessa época, além de textos e fragmentos (não reconhecidos) publicou, além dos volumes do Curso de filosofia positiva, o Tratado de Geometria analítica (1843), Tratado de astronomia popular (1844) e Discurso sobre o espírito positivo (1844). O segundo fato marcante em sua produção, foi também o início de uma nova fase do pensamento e até mesmo de sua vida; em 1845-46, segundo suas palavras, opera-se em seu espírito uma conversão, ressurreição, regeneração sentimental: a relação platônica com Clotilde de Vaux. Após a morte precoce de Clotilde, Comte mudou o foco de seu pensamento, e assim começa a aparecer em seus textos a afirmação da supremacia na vida humana, do sentimento, da subjetividade, do ponto de vista feminino e artístico, identificados com a moralidade como fator de coesão social. Desse período, publicou, o Catecismo Positivista ou exposição sumária da Religião Universal em 1852 e Sistema de

política positiva ou Tratado de Sociologia instituindo a Religião da Humanidade iniciado em 1851 e finalizado em 1854. Na primeira fase de sua vida ele elaborou o POSITIVISMO, a partir deste momento, surge o COMTISMO. Enquanto o primeiro (que corresponde ao Curso de filosofia positiva) foi mais um movimento acadêmico e político, o segundo momento corresponde à uma religião e reforma completa da sociedade (a Igreja Positivista), onde cultua-se a Deusa Humanidade (culto ao feminino), conforme passaremos a expor. O pensamento de Comte, coadunou-se perfeitamente com sua época, não obstante ele pretendesse desenvolver um método neutro e progressista, conforme pode-se observar: Comte, indubitavelmente, toma o partido da parcela mais conservadora da burguesia, que, no seu caso, significa não apenas conservadorismo (manter o poder), com sua defesa de um regime ditatorial e não parlamentarista, mas, significa também, criar as condições para fortalecer este poder e impedir quaisquer ameaças, identificadas com todas as tentativas democratizantes ou revolucionárias. Neste sentido, sua proposta de uma filosofia e de reforma das ciências tem como objetivo sustentar esta ideologia. (...). (Andery & Sério, 1988, p. 379).

Comte elaborou uma fórmula que sintetizasse sua proposta filosófica: “saber para prever, prever para prover”. O conhecimento, assim, está voltado para o aspecto prático, ou seja, a resolução dos problemas da sociedade, através da elaboração de fórmulas que sintetizassem os fenômenos, para daí explicar e antevê-los,

“combinando

a

estabilidade

e

a

atividade,

às

necessidades

simultâneas da ordem e progresso” (Quintaneiro et ali, 2003, p. 19). Podemos notar que é uma concepção que nitidamente tem uma vinculação com os problemas sociais de seu tempo, mas sob a ótica burguesa. “A chamada ‘filosofia positiva’, segundo Comte, é fundamentalmente um sistema geral do conhecimento humano que se antepõe à ‘filosofia negativa’ com a pretensão de organizar, e não

de destruir

a sociedade”

(Quintaneiro

et ali, 2003, p. 19). Essa

“filosofia negativa” refere-se às tentativas de restaurações ao Antigo Regime monárquico e absolutista na França, e a manutenção do poder da Igreja, e daí a luta ferrenha de Comte aos sistemas metafísicos e teológicos, ou seja, tudo o que se vinculasse ao passado feudal. Podemos observar que o próprio Comte, em

relação ao seu pensamento é um visionário: O positivismo se compõe essencialmente duma filosofia e duma política, necessariamente inseparáveis, uma constituindo a base, a outra a meta dum mesmo sistema universal, onde inteligência e sociabilidade se encontram intimamente combinados. (...) na medida que o curso natural dos acontecimentos caracteriza a grande crise moderna, a reorganização política se apresenta cada vez mais como necessariamente impossível, sem a reconstrução prévia das opiniões e dos costumes. Uma sistematização real de todos os pensamentos humanos constitui pois nossa primeira necessidade social, igualmente quanto a ordem e ao progresso. (Comte, 1983A, p: 97).

Comte, tinha um plano para a sociedade de sua época. Contudo, ele mesmo prevê que o positivismo necessita de indivíduos diferenciados, muito embora em sua própria filosofia a sociedade deva se manter hierarquizada, entre aqueles que mandam e os que obedecem. A preocupação educacional é assim, muito presente em sua obra, pois acreditava que “somente através do processo educacional é que ele

conseguia

vislumbrar

alguma

mudança

substancial

na

sociedade,

pois,

educados, os homens teriam os instrumentos necessários para conduzir suas próprias vidas” (Rodrigues, 1997, p. 2). A educação positiva tem por finalidade demonstrar a todos os homens as leis naturais que regem cada uma das ciências 2. Educar não objetiva a reflexão, ou uma visão mais crítica do mundo. A educação é uma espécie de convencimento das massas, que o mundo (tanto natural, quanto o humano e social) é regido por leis inflexíveis, cabendo ao homem adaptar-se a elas, por uma simples questão de evolução. O homem civilizado é o homem que conhece e vive de acordo com as leis da ciência. No entanto, a crise em sua sociedade impede que a ordem ocorra. A filosofia deve,

intervir para formar

esse novo homem: A verdadeira filosofia se propõe a sistematizar, tanto quanto possível, toda a existência humana, individual e sobretudo coletiva, contemplada ao mesmo tempo nas três ordens de fenômenos que a caracterizam, pensamentos, sentimentos e atos. Sob todos os aspectos, a evolução fundamental da humanidade é necessariamente 2

As ciências também estão ordenadas de acordo com a complexidade do objeto. Segundo Comte, trata-se de uma “classificação natural em seis categorias elementares: matemática, astronômica, física, química, biológica e, enfim, sociológica; cada uma sofrendo antes da seguinte os diferentes graus essenciais da evolução total” (Comte, 1983A, p: 113), sendo incompreensíveis se tomadas fora desta classificação, segundo ele.

espontânea, e a exata apreciação de sua marcha natural é a única a nos fornecer a base geral duma sábia intervenção. (Comte, 1983A, p: 101).

No entanto, para Comte o progresso da sociedade significa a “incessante especialização das funções, como todo desenvolvimento orgânico, para maior aperfeiçoamento na evolução dos órgãos particulares” (Ribeiro Jr., 2003, p: 24).

Embora

Comte

transformação

fale

para a

da

necessidade

adequação em

da

transformação

uma sociedade

do

homem,

progressista (em

é

a

termos

científicos) e burguesa que ele objetiva. Essa transformação nada tem de revolucionária e muito menos reformista, uma vez que ela já deverá estar prevista no progressismo cientificista que ele preconizava: “Para Comte, sociologia é a ciência abstrata que estuda os fenômenos dos agrupamentos sociais. A ciência política é a aplicação prática da sociologia, estudando casos particulares, tendo porém sempre em mira o ponto de vista moral” (Ribeiro Jr., 2003, p:

25). A sociedade era vista, ainda, como um todo único, distinto do

indivíduo. Diferente da concepção liberal, que ele combateu, “Comte rejeitava a concepção contratualista de que a sociedade é formada de indivíduos, afirmando que tudo que é humano além do nível meramente fisiológico deriva da vida social” (Quintaneiro et ali, 2003, p:

19), tese essa de grande importância

para a construção da ciência social, ainda no século XIX. Assim, se Comte, por um lado, rejeita a teoria liberal, por outro sustenta que o positivismo é corolário da modernidade de Descartes: “Esse novo princípio filosófico, depois de ter por muito modificado cada vez mais o princípio teológico e metafísico3, esforça-se

evidentemente,

desde

Descartes

irrevogavelmente” (Comte, 1983A, p:

e

Bacon,

por

substituí-lo

102). No entanto, se o pensamento

cartesiano concentrava-se na Razão como forma de conferir certeza perante nossas percepções do mundo, em Comte a função do espírito é o de servir às nossas emoções: “o espírito só deve essencialmente tratar as questões propostas pelo 3

A história, para ele, passa a ser uma visão apropriada do mundo burguês, pois significa uma evolução constante, materializada na lei dos três estados. Segundo esta lei, as ciências e o espírito humano como um todo se desenvolvem por fases: o estado teológico, o metafísico e o positivo.

coração para a justa satisfação final de nossas diversas necessidades” (Comte, 1983A, p:

106). Comte, vê o homem da mesma forma que o pensamento cartesiano,

como um ser dividido, e naturalmente propenso para uma determinada forma de humanidade, positiva. Mas ao contrário de Descartes que sustentava que o método deveria guiar a Razão para o conhecimento certo, afastando a emoção e os sentimentos (as paixões da alma), Comte coloca em preponderância a emotividade, o que pode ser sintetizada em sua fórmula: “Enfastia-se de pensar e até de agir, mas nunca de amar” (Comte, 1983A, p: 97). O pensamento de Comte, representante do mundo burguês do século XIX, ao procurar organizá-lo socialmente, acabou por não ir contra os mandamentos de organização livre baseada no mercado. Talvez em suas reformas ele pretendesse uma nova visão do mundo, mas não uma realidade social que não fosse a aspiração da burguesia de seu tempo. Devemos atentar que a burguesia francesa do século XVIII foi aquela com a incumbência de estabelecer uma organização política nova e,

“aos ‘espíritos

revolucionários’ do

século XIX

coube consolidar

e

conservar essas mesmas instituições. A classe burguesa de revolucionária no passado passa a ser a conservadora, e a classe operária, recolhendo a bandeira abandonada pela burguesia, surge como a nova classe revolucionária” (Carrosi & Toledo, 2002, p: 51). O proletariado transforma-se cada vez mais em um problema a ser resolvido, não apenas com a violência, mas com uma nova educação, que não mais ensinasse valores revolucionários, mas sim a estabilidade e a cidadania. Seu pensamento subdividiu-se entre seus seguidores, em uma visão acadêmica que reflete o mundo burguês, o positivismo, e na Religião Positivista, conforme veremos. Em determinado período de sua vida, Comte desviou-se de sua teoria cientificista inicial e criou a Religião Positivista, conforme já nos referimos. No entanto, muito embora pareça um rompimento com o positivismo, em que pese as suas críticas à teologia e à metafísica conforme vimos, Comte manteve a coerência de seu pensamento, o que demonstra que seu projeto inicial já continha a abertura para a elaboração teológica e metafísica, assim como o projeto

liberal, sendo, portanto, uma tendência das teses que pregam o ideal capitalista de

desembocarem

em

uma

espécie

de

religião,

justamente

por

não

serem

emancipatórias da humanidade. Dessa forma, em 1852 Comte publicou o Catecismo positivista, texto “em que a Humanidade vem a substituir Deus, e o altruísmo ocupa o lugar do egoísmo” (Quintaneiro et ali, 2003, p:

20). Desta forma,

Comte radicaliza o movimento que ele iniciou. O Catecismo é um diálogo entre um Sacerdote da Humanidade e uma mulher. Para ele, tanto a religião quanto a mulher tem o significado de que se há a necessidade de mudanças na humanidade, essa mudança deve primeiro ocorrer nos corações dos homens, pelo apelo sentimental para depois modificar-lhes as mentes. Vejamos, por exemplo, como ele define o termo religião: Ele é construído de maneira a caracterizar uma dupla ligação, cuja noção exata basta para resumir toda a teoria abstrata de nossa unidade. Com efeito, a fim de constituir uma harmonia completa e duradoura, é preciso ligar o interior pelo amor e religar ao exterior pela fé. Tais são, em geral, as participações necessárias do coração e do espírito nesse estado sintético, individual ou coletivo. (Comte, 1983, p: 141).

O

positivismo

pretendia

ser

um

método,

uma

análise

da

realidade

extremamente cientificista que se apóia na descrição exata dos fatos, o comtismo constitui um discurso que vai se apoiar nos sentimentos para formar o indivíduo, sendo, entretanto, coerente com a teoria que ele desenvolveu, como vimos. A mulher, considerada por ele como essencialmente sentimental, ganha papel central em sua religião. A iniciar pela figura divina, a Deusa Humanidade. O homem, ser racional, deve ficar submetido sentimentalmente à mulher. O homem, no entanto, deve manter o seu papel de provedor e de racionalidade, porém, sentimentalmente reformado, o que ele considera uma verdadeira revolução, da seguinte forma: A revolução feminina deve agora completar a revolução proletária, como esta consolidou a revolução burguesa, dimanada a principio da revolução filosófica. (...) O melhor resumo prático de todo o programa moderno breve constituirá neste principio incontestável: O homem deve sustentar a mulher, a fim de que ela possa preencher convenientemente seu santo destino social. (...) O conjunto desta construção episódica caracteriza, por sua

própria forma e marcha, todos os grandes atributos, intelectuais e morais, da nova fé. Sempre há de sentir-se aqui uma digna subordinação da razão masculina ao sentimento feminino, a fim de que o coração aplique todas as forças do espírito ao ensino difícil e importante. (Comte, 1983, p: 131-132).

A revolução que ele nos apresenta é um rearranjo da realidade. É a purificação do ideal burguês, ao livrar a sociedade do ranço do Antigo Regime (a restauração, a nobreza e a Igreja). Ele abre espaço para uma teologia dentro do positivismo, e quem sabe, uma metafísica positivista. Comte faz um retorno cíclico no seu pensamento, assumindo que a sua proposta sempre fora, no fundo, teológica e metafísica, já que seu ideal de mudança ocorre apenas na cabeça dos homens, e não na realidade em si. É interessante notarmos que Comte desenvolveu às últimas consequências o pensamento moderno, mostrando que a revolução cartesiana é, ainda, uma metafísica da natureza. A base necessária para uma transformação social desse porte não se encontraria em nenhuma vontade sobrenatural, em nenhum ente divino, em nenhuma promessa de milagres, como outrora, mas na própria Humanidade, a deusa da nova religião proposta por Comte: a Religião Positivista. Para tanto, impõe-se aos homens a necessidade de se render ao que existe, ao demonstrável, ao comprovável, não mais se pode acreditar naquilo que não é passível de comprovação. (Rodrigues, 1997, p: 2).

A proposta de Comte é revolucionária enquanto pensarmos na burguesia e sua revolução. A teoria do positivismo pregava, portanto, uma hierarquia social, e um governo da Ciência, e isso no estado máximo de evolução social, o positivo, que coincide com a modernidade burguesa. O homem, em um estágio já evoluído – o positivo –, tem por escopo a busca (já predeterminada) das leis que regem a natureza, e a posterior internalização dessas leis. No entanto, a racionalidade nesse momento é dispensável: o guia do homem, para o positivismo comteano é o coração. Esse paradoxo resolve-se historicamente, pois Comte não vislumbrava a emancipação humana da hierarquia imposta pela ordem burguesa. Não havia a necessidade de transformar o mundo, mas de senti-lo e adaptar-se a ele, naturalmente e socialmente.

Karl Marx e o materialismo histórico O filósofo alemão Karl Marx viveu entre os anos de 1818 e 1883. Em 1835 iniciou seus estudos superiores em Bonn e os prossegue em Berlim, onde passa a fazer parte do Circulo dos Jovens hegelianos. Em 1841, com uma tese sobre os atomistas gregos Demócrito e Epicuro, doutorou-se em filosofia, e, no ano seguinte, tornou-se jornalista de um jornal da burguesia liberal renana, no qual passa a escrever em forte tom de esquerda. Em 1843 vai para Paris, tendo sido expulso da França em 1845, devido às suas atividades como comunista. Refugiou-se em Bruxelas, até 1848, quando foi para Londres. Produziu uma extensa obra, situada entre a economia, a história, as ciências sociais e a filosofia. Entre as principais obras, estão A ideologia alemã (1845) e Manifesto do partido comunista (1848) (ambos com F. Engels), Miséria da filosofia (1847), O 18 de Brumário de Luis Bonaparte (1852) e O capital (1867). Marx foi um pensador que analisou e criticou a fundo a sociedade burguesa, além de estabelecer um método de análise da realidade: o materialismo histórico. Enquanto os idealistas de seu tempo, amparados na teoria de Hegel faziam “história das idéias”, Marx tomou como ponto de partida a vida material dos homens. O que isso significa? Vimos anteriormente que Comte foi um visionário de uma revolução sem precedentes na história. Segundo ele, o positivismo estaria destinado a mudar o mundo, mas as relações sociais não seriam alteradas. Mudariam apenas a cabeça dos homens. O idealismo alemão, a partir das teses de Hegel fazia algo parecido com a realidade alemã. No entanto, os idealistas justificavam o Estado burguês prussiano a partir da derivação dialética das leis do Espírito hegelianas. Contudo, assim como Comte, os idealistas alemães consideravam-se partidários de uma revolução, assim como Marx ironiza na “Ideologia alemã” ao opor as visões idealista e materialista: Foi uma Revolução diante da qual a Revolução Francesa não passou de uma brincadeira de criança, foi uma luta mundial que faz parecerem mesquinhos os combates dos Diádocos. Os valores foram substituídos, os heróis do pensamento derrubaram-se uns aos outros com um rapidez inaudita e, em três anos, de 1842 a 1845, arrasaram

a Alemanha mais do que se faria em qualquer outro lugar em três séculos. E tudo isso teria acontecido no domínio do pensamento puro (Marx, 2002a, p: 5)

A crítica que Marx faz ao idealismo inicia-se pela própria crítica ao Espírito, ou melhor, à religião. Para ele, e os materialistas de sua época, o idealismo derivado de Hegel não passava de uma teologia que não se assumia como tal. A crítica do sistema de pensamento foi iniciada por ele pela crítica à religião, conforme se observa na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel publicado em 1844, o texto que consta a célebre frase “A religião é o ópio do povo” (Marx, 2005, p:

145). Vejamos este trecho:

A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem os suporte sem fantasias ou consolo, mas para que lance fora os grilhões e a flor viva brote. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que pense, atue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo, e, assim, em volta do seu verdadeiro sol. A religião é o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não circula em torno de si mesmo. (Marx, 2005, p: 146).

Desse modo, se o projeto comteano teve como ponto de chegada a doutrina religiosa, o ponto de partida de Marx foi a crítica à ela. A crítica à propriedade e as relações burguesas, próximo passo de seu pensamento: Na consciência burguesa, a maior parte dos problemas tende a ser equacionada a partir do principio da mercantilização universal das relações, pessoas e coisas. Por isso, a liberdade religiosa surge de par com a constituição do mercado de trabalho, que supõe direito de livre circulação das pessoas e mercadorias. (Ianni,

1984, p:

25)

A obra de Marx assume essa característica: uma crítica aos fundamentos da sociedade burguesa e ao capitalismo: Desde a crítica da dialética hegeliana à análise da dominação inglesa na Índia, todos os trabalhos de Marx são, fundamentalmente, de interpretação de como o modo capitalista de produção mercantiliza as relações, as pessoas e as coisas, em

âmbito nacional e mundial, ao mesmo tempo que desenvolve as suas contradições. (Ianni, 1984, p: 8).

Entretanto, a crítica ao mundo burguês, para ser radical, não deveria basear-se nas categorias científicas da ciência burguesa, desenvolvida até então. Isso implicaria no retorno às conclusões que Marx estava disposto a criticar.

Dessa forma,

Marx deveria

fugir da

concepção de

homem livre,

proprietário e racional da filosofia moderna. Assim, como ele apreenderia o homem?

O

homem

não

poderia

mais

ser

um

modelo,

mas

sim

apreendido

historicamente, em sua realidade humana. O homem passa a ser visto a partir de sua produção material, ou seja a produção dos meios necessários para sua manutenção no mundo, e não mais como o produto do mundo. A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua produção. (Marx, 2002A, p: 11)

O pensamento marxiano conclui que cada época resulta na configuração de um determinado tipo de homem. No entanto, a história é dinâmica, refletida nas necessidades dos homens, que produzem os meios de satisfazê-las, e na formação de classes sociais, que, pela divergência de interesses e pela oposição na forma de produzir a realidade, estão em verdadeira luta – a luta de classes. Marx, no Prefácio que escreveu ao seu texto Crítica da economia política, fez uma espécie de resumo acerca de sua visão social: Na produção social da própria existência, os homens, entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência (Marx, 1984, p: 233)

Em um processo dinâmico e histórico, em determinado momento, a estrutura econômica desenvolvendo-se em outro sentido (por exemplo, a transformação do modo feudal para o capitalista) passa a conflitar com a superestrutura jurídica e política, comprometida com a manutenção da antiga ordem. Desses entraves, surgem um momento de revolução social, de renovação da superestrutura, onde ela passará a se adequar à nova realidade. Nesse sentido, ele caracteriza a burguesia: As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo de produção social, antagônica não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições de existência sociais dos indivíduos; as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para resolver este antagonismo. (Marx, 1984, p: 233).

A burguesia moderna é fruto de um longo processo de transformações e desenvolvimento no modo de produção e de intercâmbio. A burguesia, com o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, tendo conquistado a hegemonia econômica, tornou-se também detentora do mando político. Marx e Engels afirmam que a ascensão social da burguesia destruiu todas as relações de poder existentes, laços feudais que ligavam os homens, não tendo deixado nenhum outro vínculo a não ser o dinheiro. Se os objetos eram pautados pelo seu valor de uso, a burguesia introduziu o valor de troca da mercadoria no mercado, e a liberdade única e natural, a do comércio, de vender e de comprar. A liberdade também ganha seu valor, regida pelas leis do mercado. No entanto, a própria burguesia planta a semente de sua destruição enquanto classe, assim como ocorreu com as relações feudais, destruídas pelos burgueses, ao criar e manter o proletariado, conforme podemos observar nesses trechos do Manifesto do partido comunista: A moderna sociedade burguesa, surgida das ruínas da sociedade feudal, não eliminou os antagonismos entre as classes. Apenas estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das antigas. A nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se, entretanto, por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade inteira vai-se dividindo cada vez mais em dois grandes campos inimigos, em duas classes diretamente opostas entre si: burgueses

e proletariado. (Marx, 2002, p: 46). (...) A burguesia vive em luta contínua; no início, contra a aristocracia; depois, contra as partes da própria burguesia cujos interesses entram em conflito com os progressos da indústria; e sempre conta a burguesia dos países estrangeiro. Em todas essas lutas, vê-se obrigada a apelar para o proletariado, a solicitar seu auxílio e arrastá-lo assim para o movimento político. A burguesia mesma, portanto, fornece ao proletariado os elementos de sua própria educação, isto é, armas contra si mesma. (Marx, 2002, p: 55).

Notamos

que

Marx



a

história

da

burguesia

como

um

processo

contraditório de superação dos antagonismos da sociedade feudal, e que implicam, dialeticamente, na criação de novos antagonismos. A burguesia não é mais vista como resultante da racionalidade natural do homem, mas como resultante da historicidade, da construção social a partir de uma base material, base esta que é a forma de produção e manutenção da vida humana. A passagem para a modernidade, por ser uma alteração radical na base material produtiva da sociedade foi, muitas vezes, um processo de grande violência e exclusão das classes pobres, não tendo, portanto, vinculação com a racionalidade e a liberdade pregada por esses pensadores. Na citação acima, Marx faz referência à educação, há também um interessante excerto nas Teses sobre Feuerbach, precisamente na terceira tese, onde Marx diz: A teoria materialista que pretende que os homens sejam produtos das circunstâncias e da educação, e que, consequentemente, homens transformados sejam produtos de outras circunstâncias e de uma educação modificada, esquece que são precisamente os homens que transformam as circunstâncias e que o próprio educador precisa ser educado (...) A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana ou auto mudança só pode ser considerada e compreendida racionalmente como práxis revolucionária. (Marx, 2002A, p: 100).

Se a educação em Comte insere-se como forma de manter a ordem e o progresso do capitalismo, em Marx ela é tomada em seu movimento dialético, sendo, inclusive, uma forma do antagonismo próprio da divisão em classes da sociedade, a partir da divisão social do trabalho, e também como arma ao

proletariado em sua luta para substituir a própria burguesia. A educação tem uma perspectiva transformadora, mas que somente será assim quando o proletariado passar a tomar consciência de si enquanto classe social inserida nessa divisão social e puder, assim, compreender o real significado das teses que sustentam a burguesia. Vimos em Comte que a burguesia do século XIX abandonou seu viés revolucionário para se tornar uma classe altamente conservadora, ficando para a classe operária o caminho revolucionário. No entanto, o operariado encampou para si

o

discurso

universalista

burguês,

que,

como

vimos,

tem

apenas

um

destinatário: a própria classe burguesa. O proletariado deveria, compreender-se como classe não a partir dos velhos pressupostos, mas a partir da crítica de sua constituição material, e a partir de suas características de classe, que os distinguem do burguês. A filosofia marxiana é uma filosofia da transformação do mundo e das relações sociais, e por isso foi violentamente rechaçada pelos pensadores comprometidos com o ideário liberal-burguês. Assim, de acordo com Berman a burguesia está fadada ao desaparecimento: A vida e a energia interiores do desenvolvimento burguês acabarão por alijar do processo a classe que pioneiramente os trouxe à vida. Podemos ver esse movimento dialético tanto na esfera do desenvolvimento pessoal como na do econômico: em um sistema no qual todas as relações são voláteis, como podem as formas capitalistas de vida – propriedade privada, trabalho assalariado, valor de troca, a insaciável busca de lucro – subsistir isolada? (...) Quanto mais furiosamente a sociedade burguesa exortar seus membros a crescer ou perecer de modo desmesurado, mais furiosamente se voltarão contra ela como uma draga impetuosa, mais implacavelmente lutarão contra ela, em nome de uma nova vida que ela própria os forçou a buscar. (Berman, 1986, p: 95)

Marx critica, ainda, que o burguês afirmou que sua liberdade e sua forma de ver o mundo é a “natural”. Claro, acompanhando o raciocínio de Berman, é justamente para se assegurar que as formas essenciais da vida capitalista sejam plenamente

mantidas

e

defendidas

pelos

homens



justamente

por

serem

“naturais”. Se considerarmos a teoria lockiana do estado de natureza (cf. Arnaut & Leal e Silva, 2003), o liberalismo nasceu de uma utopia ao contrário,

uma vez seu ponto de partida é a teoria do “homem natural” que Marx critica: o homem é produto de sua época. A vida material determina a visão do espírito, e não o contrário. O pressuposto defendido por Marx e Engels, então, é que os homens devem viver

para produzir

história e

para viver

é necessário

suprir as

suas

necessidades mais básicas, como comer, beber, morar, etc. Além dos aspectos das relações naturais e sociais, o homem possui consciência. Até aqui falamos da formação da classe burguesa e de sua consciência na modernidade, em Marx, no entanto, o materialismo é dialético, o que significa que há a negação vigente e concomitante dos aspectos da realidade. Conforme vimos, o homem produz a base material de sua existência, mas também produz historicamente a negação dela, assim como o capitalismo foi gerido nas entranhas do feudalismo. Dessa forma, dialeticamente à consciência do homem, está a sua alienação. Vejamos o que nos diz Fromm: O conceito de homem ativo e produtivo, que compreende e controla o mundo objetivo com suas próprias faculdades, não pode ser plenamente entendido sem o conceito de negação da produtividade: a alienação. Para Marx, a história do gênero humano é uma história do crescente desenvolvimento do homem e, concomitantemente, da crescente alienação. Seu conceito do socialismo é a emancipação da alienação, a volta do homem para si mesmo, a realização de si próprio. A alienação (ou “alheamento”) significa, para Marx, que o homem não se vivencia como agente ativo de seu controle sobre o mundo, mas que o mundo (a natureza, os outros, e ele mesmo) permanece alheio ou estranho a ele. Eles ficam acima e contra ele como objetos, malgrado possam ser objetos por ele mesmo criados. (Fromm, 1979, p: 50)

A realidade social compõe-se do movimento histórico e dialético em torno do trabalho humano: “O motor da dialética materialista é a forma determinada das condições de trabalho, isto é, das condições de produção e reprodução da existência social dos homens, forma que é sempre determinada por uma contradição interna” (Chauí, 2004, p:

53), que é a luta de classes. A produção de

mercadorias no capitalismo, que são produzidas e tem seu valor baseado no trabalho humano, é uma produção alienada, pois o proletário não consegue ver que

na mercadoria está algo que é seu. A mercadoria passa a ser mera coisa no comércio, quando, na verdade, é “trabalho humano concentrado e não pago” (Chauí, 2004, p: 54). Marx coloca que a mercadoria, por ser fruto do trabalho alienado, transforma-se em fetiche: O primeiro momento do fetichismo é este: a mercadoria é um fetiche (no sentido religioso da palavra), uma coisa que existe em si e por si. O segundo momento do fetichismo, mais importante, é o seguinte: assim como o fetiche religioso (deuses, objetos, símbolos, gestos) tem poder sobre seus crentes ou adoradores, domina-os como uma força estranha, assim também age a mercadoria. O mundo transformase numa imensa fantasmagoria. (Chauí, 2004, p: 55).

Podemos

assim

observar

que

Marx

conseguiu

identificar

o

sentido

metafísico, praticamente religioso que a modernidade assumiu como verdade. Vemos, portanto, que se a modernidade nasceu como a negação da religiosidade ínsita ao mundo feudal, ela pouco a pouco passa a assumir seu aspecto de religiosidade, através do culto aos objetos e às mercadorias. As obras de Augusto Comte e Karl Marx são, portanto, fundamentais para compreendermos a contemporaneidade. Seus pensamentos tão díspares, produzidos no século XIX captaram as engrenagens do motor da sociedade capitalista que o século XX e XXI acabam por confirmar em suas monumentais façanhas. No entanto, que diferenças o nosso homem tem do homem deles? E como um espaço de debate filosófico pode nos auxiliar a desvendar tão intrigante mistério?

Referências Bibliográficas ANDERY, M. et alii. Para compreender a ciência. 4. ed. Rio de janeiro: Espaço e tempo, 1988. ARNAUT & LEAL E SILVA. O tema da propriedade na filosofia política de John Locke, na Revista Acta Scientiarum v. 23 n. 1 p. 197-205, 2001. BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. CARROSSI, S. S. & TOLEDO, M. A. Da história ensinada aos seus fundamentos teóricos: a concepção de história em Augusto Comte. Maringá: Revista Teoria e Prática da Educação, vol. 5, n. 10, mar/2002. CHAUÍ, M. O que é ideologia. 2. ed. 4. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2004. COMTE, A. Catecismo positivista. In: 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

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AS BASES EPISTEMOLÓGICAS PARA PENSAR A METODOLOGIA DA PESQUISA Alan Rodrigo Padilha4 IFPR/ UNIOESTE/ESCRILEITURAS/CAPES/INEP [email protected] Hernestina da Silvia Fiaux Mendes5 SEED-PR/ IFPR/ UNIOESTE [email protected]

RESUMO Este trabalho busca apresentar noções sobre as bases epistemológicas elementares da teoria científica, tais, como o Positivismo, a Fenomenologia e o Materialismo Histórico Dialético, sendo elas as três principais correntes epistemológicas ocidentais. Partindo do pressuposto de que o método científico e orienta a pesquisa para seu fim, entretanto, mesmo sendo evidente tal proposição, encontramos problemas ao desenvolver um projeto de pesquisa, seja ela de cunho estritamente teórico ou de campo, isto, porque não conhecemos as bases teóricas que fundamentam a pesquisa, considerando essa necessidade, julgamos ser pertinente aprestar algumas bases epistemológicas para orientar o caminho da pesquisa em relação à necessidade do método que melhor contribua a análise do objeto a ser pesquisado. Neste presente artigo não temos a pretensão de esgotar o assunto devido a sua complexidade e extensão, mas apenas fazer uma breve apresentação com fim de realmente provocar quanto à necessidade de conhecer e eleger um método efetivo para a pesquisa. Palavras chaves: Epistemologia; Metodologia de pesquisa; Positivismo; Fenomenologia; Materialismo histórico

INTRODUÇÃO O presente trabalho objetiva discorrer sobre as três grandes matrizes 4

Professor do Ensino Básico Técnico e Tecnológico do Instituto Federal do Paraná, IFPR,Câmpus Umuarama,Pesquisador do Observatório Nacional de Educação/Projeto Escrileituras/CAPES/INEP. Mestrado em andamento em filosofia Moderna e Contemporânea Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE, Brasil e pesquisador efetivo do Grupo de pesquisas Filosofia, Ciência e Tecnologias – IFPR, Linha de Pesquisa Filosofia. 5 Professora do Ensino Superior e Pedagoga do Ensino Básico Técnico e Tecnológico do Instituto Federal do Paraná, IFPR, Campus Umuarama. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa do Ensino de Astronomia para Pessoas Cegas e com Baixa Visão e A Inclusão da Pessoa com Deficiência na Educação Superior: Acesso, Permanência e Aprendizagem, IFPR/ UNIOESTE/. Mestranda em Educação. Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE, Brasil.

epistemológicas

ocidentais,

destacando:

contexto

histórico;

concepção

de

sociedade; concepção de conhecimento; concepção de sujeito (relação sujeito X objeto) e características do método de pesquisa de cada uma dessas correntes. Vale ressaltar, como ponto de partida para esta discussão, alguns conceitos epistemológicos. Uma filosofia preocupada com os problemas da própria filosofia ao analisar os fundamentos dos conhecimentos científicos. Segundo Borges (2005, p.:2), “o termo vem do grego, episteme que significa ciência, conhecimento e logia, estudo.” ; refere-se ao estudo da natureza e dos fundamentos do saber,

particularmente, de seus limites e de suas condições de

produção. Isso posto, abordaremos o Positivismo, a Fenomenologia e o Materialismo Histórico Dialético, sendo elas as três principais correntes epistemológicas ocidentais. Segundo estudos, apud Staub et al ( 2012 ), no século XVIII, o grande desenvolvimento da ciência e da tecnologia resultou

na Revolução Industrial e

capitalista, criando um ambiente propício para o surgimento do

movimento

positivista no século XIX, pois, segundo Xavier (2009, p. 02), esse movimento acreditava que

a industrialização, associada à técnica e à ciência, traria

benefícios para a sociedade da época.

POSITIVISMO O positivismo, portanto, surge na segunda metade do século XIX, tendo como principal referência o Filósofo Augusto Comte, que se propõe a pesquisar sobre a inteligência humana desde os antepassados, para propor um norte no comportamento do homem diante do então progresso das ciências. Para Triviños (1987), Comte acreditava que a pregação moral levaria os capitalistas a serem mais humanizados, eliminando o conflito de classes com vistas a uma nova sociedade. Abrindo, assim, horizonte para uma nova cultura e nova visão, cujo lema é o de ordem e progresso, de maneira que um não existe sem o outro. Em outras palavras, apenas há progresso, onde existe ordem e viceversa.

Com relação ao conhecimento científico, o Positivismo acredita que ele proporciona tanto a mudança na realidade quanto o domínio do homem sobre a natureza.

Na

perspectiva

positivista,

não

pode

haver

qualquer

tipo

de

conhecimento a priori. Ou seja, ele não admite outra realidade que não se refira a fatos que possam ser observados. Dessa forma, o positivismo aceita, como legítimos, apenas dois tipos de conhecimentos: o empírico e o lógico. Aquele reconhecido pelas ciências naturais é considerado o mais importante; este constituído pela lógica e pela matemática. Em relação à concepção de sujeito, o Positivismo o vê, simplesmente, como um coletor de informações, que registra e analisa minuciosamente fatos presentes em documentos, sem apreciação crítica ou julgamentos. Nesse sentido, em uma pesquisa positivista, na relação sujeito e objeto, prima-se pela realidade, exige-se a separação dos fatos (propriedades do mundo empírico) e de seus significados (propriedade do observador); mantém-se um distanciamento objetivo em que o observador apresenta os fatos através de linguagem descritiva, objetiva. O positivismo assume que existe, no mundo, uma verdade objetiva. Ele [...] apresenta três pontos: 1) Todo conhecimento do mundo material decorre dos dados ‘positivos’ da experiência, e é somente a eles que o investigador deve ater-se; 2) existe um âmbito puramente formal, no qual se relacionam as ideias, que é o da lógica pura e o da matemática; e, 3) todo conhecimento dito ‘transcendente’ – metafísica, teologia e especulação acrítica – que se situa além de qualquer possibilidade de verificação prática, deve ser descartado. (BORGES, 2005:3)

Dessa forma, seu método visa à investigação das leis gerais que regem os fenômenos

naturais.

Tal

método

se

baseia,

portanto,

na

observação,

experimentação e mensuração sistemática e estatística de relacionamentos entre variáveis; procura testar teorias; formular e testar hipóteses; comprovar proposições formais, medidas quantificáveis de variáveis. Enfim, o método científico baseia-se nos dados e recusa qualquer discussão metafísica.

FENOMENOLOGIA A Fenomenologia teve grande representatividade na segunda metade do século XIX e início do século XX. Seu representante é Edmund Husserl, o qual sofreu influências de grandes nomes como Platão, Descartes e Brentano e também influenciou, na Europa, pensadores como Heidegger, Schutz, Sartre, MerleauPonty. Além disso, teve repercussão nos Estados Unidos e, atualmente, existe em todos os continentes. Edmund Husserl opôs-se ao psicologismo, procurou introduzir uma visão lógica às ciências humanas, dedicou-se à investigação do “mundo vivido” pelos sujeitos, considerados isoladamente. A ideia base dessa corrente filosófica é a noção de Intencionalidade. A qual se refere à consciência ligada a um objeto. Em outras palavras, acredita-se no princípio de que não há objeto sem sujeito e que só há possibilidade de conhecer o homem e o mundo a partir de suas ações. Segundo Triviños (1987, p.43), [...] A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, tornam a definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas também a fenomenologia é uma filosofia que substitui as essências nas existências e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra forma senão a partir de sua “facticidade”. É uma filosofia transcendental que coloca em “suspensa”, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas também uma filosofia segundo a qual o mundo está “aí”, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço está em reencontrar esse contato ingênuo com o mundo para lhe dar enfim um status filosófico. É ambição de uma filosofia que pretende ser uma “ciência exata”, mas também uma exposição do espaço, do tempo e do “ mundo vivido”.

Em outras palavras, Triviños (1987, p.43) define que a fenomenologia “é o estudo das essências, buscando-se no mundo aquilo que está sempre, aí, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço repousa em encontrar este, contato ingênuo com o mundo.” Portanto, podemos perceber que, ao promover o isolamento do fenômeno em questão, no seu contexto, permite-se ao estudo do fenômeno realizar questionamentos e discutir as hipóteses consideradas naturais, evidentes, da intencionalidade do sujeito diante da realidade de sua ação. Objetivo principal da fenomenologia é a compreensão do fenômeno, para

explicar como funciona e não para dizer seus motivos últimos e políticos. Assim, apresenta como alvo a compreensão do mundo, do fenômeno por inteiro, ou seja, como ele aparece para o pesquisador nas suas diversas formas. Seu ponto de partida é a compreensão do viver. E essa compreensão está voltada para o significado do perceber e, segundo Masini (1989, p.62), para o significado da “[...] volta ao mundo da vida, no confronto com o mundo dos valores, crenças, ações conjuntas, no qual o ser humano se reconhece como aquele que pensa a partir desse fundo anônimo que aí está e aí se visualiza como protagonista nesse mundo.”

O método toma como objeto de estudo de investigação e como principal instrumento do conhecimento os fenômenos em si mesmos, ou melhor, sem levar em conta fatores exteriores a eles. Esse método emprega a intuição, pela qual as essências se consolidam. O objeto percebido, o fenômeno, é considerado tema, ao qual o indivíduo atribui significado ao apresentar uma visão intelectual a ele. Nas ideias de Husserl, pode-se perceber a volta às coisas mesmas, isto é, a volta às essências (eidós), pelo enfoque fenomenológico, que possibilita surgir a essência como construção decorrente de ação intencional da consciência. Podese considerar que Husserl parte primeiramente do eu e depois das relações entre as pessoas. Para Guimarães (s. d.) In STAUB, T. et al,(2012, p. 7), O método fenomenológico de Husserl consistiria em fazer reduções das partes questionáveis ou sujeitas a deduções e contradições (GUIMARÃES, s.d). Segundo Guimarães (s.d), desenvolve-se gradualmente, submetendo-se a várias “epochés” (a "contemplação desinteressada" de quaisquer interesses naturais na existência). Haveriam três reduções fenomenológicas (ou epochés): 1) redução do objeto à consciência - de um lado a realidade transcendente, que corresponde às coisas enquanto existentes fora, ou para além da consciência e, de outro lado a realidade transcendental, que se aplica às coisas enquanto reduzidas à consciência. Ambos os mundos são reais, porque nenhum deles é ilusório, porém, o primeiro é real num sentido natural e meramente prático. O segundo é real num sentido primordial; 2) redução psicológica do objeto “suspendemos” o juízo relativo à existência de tudo o que é exterior ao sujeito. Considera-se apenas o próprio sujeito cognoscente com seus atos conscientes; 3) redução transcendental do objeto -através da redução transcendental, para atingir a consciência transcendental, chamada de consciência pura.

De acordo com Triviños (1987 p. 46), Husserl aborda o conhecimento “como uma realidade à margem do sujeito e não como um conhecimento próprio do sujeito”. Sendo assim, entende-se que o pesquisador deixa em suspenso as hipóteses do mundo natural, feitas por meio de uma consciência intencional frente ao objeto. Suspende as suas concepções conceituais sobre o fenômeno, esvaziando-se dos preconceitos particulares e inerentes ao ser humano. Significa redução a suspensão ou a retirada de toda e qualquer crença, teoria ou explicações existentes sobre o fenômeno; significa deixar de lado os préconceitos estabelecidos a priori a fim de permitir o encontro do pesquisador com o fenômeno. Cabe

destacar

resumidamente

as

principais

características

da

fenomenologia hesserliana de acordo com Guimarães (s.d.) In STAUB, T. et al, ( 2012, p. 8): a) o “a priori” (epoché) - temos de proceder com plena ausência de pressupostos e com inteira liberdade, “reduzindo” (epoché) todas as influências de opiniões científicas ou filosóficas, para podermos nos orientar exclusivamente pelas coisas em si, aprioristicamente; b) a evidência - os fatos devem excluir as dúvidas de modo absoluto e imediato, tal como um reflexo, uma auto-reflexão, plenamente esclarecedora do sentido da coisa; c) a intencionalidade - a intencionalidade parte do eu e invade temporariamente os dados materiais, unificando-os em ordem à constituição e designação do objeto enquanto consciente e significado; d) a lógica da contradição - é o ato que depende das leis do conteúdo, para estar em conformidade com a matemática; e) a intersubjetividade - quando a objetividade se fundamenta pela relação a um objeto exterior, basta provar esta imposição como necessária, para garantir sua validade. Mas se o objeto é considerado como meramente significado, o único modo absolutamente válido de garantir o seu caráter de existência é esclarecer que o conhecimento dele não é meramente subjetivo, mas intersubjetivo.

Dessa forma, percebe-se que Husserl tentou mudar as ideias subjetivas em ideias que pudessem ser cabíveis a todos, atribuindo o termo Intersubjetividade, pois a Fenomenologia estuda o que pode ter validade a todos sem se preocupar ou se interessar com a historicidade dos fenômenos. Busca entender os fenômenos, sem querer aplicar transformações.

MATERIALISMO HISTÓRICO E DIALÉTICO Em se tratando do Materialismo Histórico Dialético, vale ressaltar que iniciou na primeira metade do século XIX, na Europa, em meio ao processo de industrialização e de consolidação do capitalismo, um período em que se estruturava

uma sociedade com diferentes classes e consequentemente com

diferentes espaços de relações sociais. Segundo Triviños (1987), Karl Marx 6

foi

quem fundou essa doutrina, revolucionando o pensamento filosófico da época. De acordo com o mesmo autor, essa corrente contou com algumas fases. A primeira representada por Marx , fundada em 1940; a segunda em que Marx e Engels trabalharam juntos, com o objetivo de buscar a igualdade de classes; a terceira, na qual ocorre, contribuições de Lênin e, por fim, a quarta, considerada contemporânea e que se subdivide em várias tendências, sendo as principais: a Chinesa e a Soviética, as quais retomam as ideias originais de

Marx.

Triviños acentua que Marx tem uma visão materialista do mundo, para o filósofo, a matéria é o princípio primordial e que o espírito seria o aspecto secundário. A consciência, que é um produto da matéria, permite que o mundo se reflita nela, o que assegura a possibilidade que tem o homem de conhecer o universo. A idéia materialista todo mundo reconhece que a realidade existe independentemente da consciência. (TRIVINOS, 1987, p. 49)

Ainda, conforme o autor, “o Marxismo compreende, precisamente, três aspectos principais: o materialismo dialético, o materialismo histórico e a economia política.” (TRIVIÑOS, 1987, p. 49), sendo o materialismo dialético a base filosófica do marxismo. Esse materialismo associa em seus princípios à matéria, à dialética e à prática social; objetiva também discussões teóricas

6

Karl Marx, de origem alemã, filósofo, economista, jornalista e militante político, foi considerado um dos pensadores que mais exerceu influência em relação a filosofia contemporânea. Considerado amigo inseparável de Engels, os dois promoveram os ideais do marxismo, procurou inteirar-se e compreender a história dos seres humanos a partir das condições materiais nas quais eles vivem (COTRIM, 2010). Marx buscava meios epistemológicos, uma direção que fundamentasse o conhecimento para pudesse fazer a interpretação das origens históricas e sociais que o provocava, superou as posições de Hegel no que dizia respeito à dialética e conferiu-lhe um caráter materialista e histórico (PIRES, 1997). (STAUB, T. et al, 2012, p. 6)

capazes de orientar ações de revolução da classe proletária. O Materialismo Dialético é a base filosófica do Marxismo e procura encontrar respostas coerentes para explicar não só a sociedade como também os fenômenos da natureza e do pensamento.

Conforme Triviños (1987, p. 51)

[...] o materialismo dialético tem uma longa tradição na filosofia materialista e, por outro, que é também antiga concepção na evolução das ideias, baseia-se numa interpretação dialética do mundo. Ambas as raízes do pensar humano se unem para construir, o materialismo dialético, uma concepção científica da realidade, enriquecida com a prática social da humanidade.

O materialismo histórico é a ciência filosófica do Marxismo, que estuda as leis sociológicas. Ele reflete sobre as leis que regem essa sociedade, sua história e como a prática dos homens interfere no desenvolvimento da humanidade. Antes do materialismo histórico, o homem possuía uma visão idealista sobre a formação social. Nesse sentido, Marx criticava jovens, que, influenciados por Hegel e por Ludwig Feuerbach, acreditavam que a sociedade era determinada por “heróis”. A partir das contribuições de Marx, a constituição da sociedade passou a ser vista como resultado das formações socioeconômicas e das relações de produção.

Para Marx os seres humanos não podem ser pensados de forma abstrata, nem de forma isolada. Marx defende que não existe o indivíduo formado fora das relações sociais. Isso significa que as formas como os indivíduos se comportam, agem, sentem e pensam, vinculam-se a forma como se dão as relações sociais. Essas relações sociais, por seu lado, são determinadas pela forma de produção da vida material, ou seja, pela maneira como os seres humanos trabalham e produzem os meios necessários para a sustentação material das sociedades. (STAUB et al, 2012, p. 6)

Na

perspectiva do

Materialismo histórico

dialético, só

é possível

construir conhecimento científico a partir da distinção do que é primário e do que é secundário. Além disso, para que o processo de conhecimento seja dialético,

é necessário

considerar a

historicidade, por

isso, durante

a

investigação, teorias devem ser revisitadas e categorias reconstituídas. A teoria materialista histórica sustenta que o conhecimento efetivamente se dá na e pela práxis. A práxis expressa, justamente, a unidade indissolúvel de duas dimensões distintas, diversas do processo de conhecimento: a teoria e a ação. A reflexão teórica sobre a realidade não é uma reflexão diletante, mas uma reflexão em função da ação para transformar. (FRIGOTTO, 2001, 81)

Na visão Marxista, o sujeito é constituído historicamente. Assim, como ser histórico, é necessário que conheça a realidade, principalmente da classe proletária, a fim de poder transformá-la. É igualmente necessário que tenha consciência ampla da sociedade e da dialética que a movimenta. O Materialismo Histórico Dialético não separa sujeito e objeto, visto que, ao mesmo tempo em que o sujeito transforma esse objeto, é também transformado por ele. Essa e uma relação dialética, dinâmica que define a ciência como um produto social e histórico. O método, no Materialismo Histórico Dialético, revela o desenvolvimento, a estruturação e as transformações sociais. A principal condição para se estabelecer um método de investigação nessa perspectiva, é romper com os pensamentos e a ideologia dominante (FRIGOTO, 2001, 76). Chasin

(1995)

pontua

que

se

entende

método

como

um

conjunto

de

procedimentos de base científica, com o qual o pesquisador deve operar seus procedimentos para efetuar seu trabalho, sua pesquisa. Entretanto, para Marx, método possui outra característica: [...] é de outra natureza, de núcleo absolutamente original, se considerarmos que em seu entender o método de interpretação histórica apenas se resolve no fim da pesquisa. A pesquisa tem que captar detalhadamente a matéria e analisar suas formas de evolução, apensas posteriormente nos é facultado expor o movimento real e indicar os caminhos ainda não tracejados. (PICOLLO; MENDES, 2013, p. 75)

Tal

método

consiste

em

um

instrumento

de

mediação,

embasado

por

princípios científicos, entre o pesquisador e o objeto. É necessário entender que o pesquisador não pode ir ao objeto imbuído de pré-conceitos, pois

[...] um dos fundamentos básicos de uma ontologia materialista toma como pressuposto a existência do objeto/fenômeno de forma independente ao processo de conhecimento, embora esse indelevelmente influencie a relação e a forma como percebemos o mesmo. (PICOLLO; MENDES, 2013, p. 75).

Entende-se que, para Marx, o que importa como ponto de partida, não são as idéias, mas sim

os fenômenos. A natureza dos métodos e das técnicas para o estudo depende, principalmente, das características do conteúdo do mesmo. No enfoque marxista, diferentes tipos de teoria podem orientar a atividade do investigador. Todas elas, porém, serão baseadas na pesquisa social, no materialismo histórico. (TRIVINOS, 1987, p. 74)

Uma pesquisa na linha do Materialismo Histórico Dialético só é possível a partir de uma ampla visão de mundo, ou melhor, é necessário que o pesquisador conheça a realidade social e a materialidade dos fenômenos. Além disso, é necessário entender que há uma realidade objetiva exterior à consciência, a qual é um produto, um resultado do material.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste presente trabalho apresentamos um breve relato das principais idéias epistemológicas ocidentais. Sendo elas de grande representatividade para as pesquisas.

É de fundamental importância para o pesquisador, ter conhecimento

da produção científica de um determinado período histórico, como também saber qual a importância e o significado das produções para o desenvolvimento social. Por meio de análise dessas matrizes, percebe-se para que os resultados das pesquisas sejam de qualidade, é preciso que se tenha realidade, para

conhecimento da

fazer uso de uma metodologia adequada ao objeto de estudo,

escolher a matriz epistemológica coerente à pesquisa científica. É importante também, conhecer as diferentes correntes filosóficas que servem de bases para as pesquisas, para garantir o aumento da eficácia da qualidade das investigações, bem como garantir maior rigor e cientificidade. A escolha certa da matriz epistemológica, contribui para justificar a necessidade da pesquisa, dá clareza

aos conceitos de homem, de educação, da história e elucida também os conceitos de causalidade na explicação científica. Este trabalho contribuiu para o entendimento das características das matrizes epistemológicas, possibilitando a escolha da matriz mais conveniente para ser aplicada na pesquisa. Para Triviños, a pesquisa de enfoque positivista tem uma visão artificial e limitada do contexto, enquanto que, para as pesquisas de concepção marxista assim como fenomenológica, elas estabelecem estruturas ao assunto que se investiga. O que diferencia estas matrizes, é que a fenomenologia é a-histórica e idealista e o marxismo dá importância à busca das relações dos contextos, no desenvolvimento do fenômeno, vinculada a sua história com base em uma visão materialista. Uma pesquisa de cunho fenomenológico, “analisa as percepções dentro de uma realidade imediata, buscando o significado e os pressupostos dos fenômenos sem avançar em suas raízes históricas para explicar os significados”, (TRIVIÑOS, 1987, p. 92), enquanto que a pesquisa positivista isola os problemas do pesquisador, os denuncia, os quantifica e os analisa, mas esquece as bases teóricas e os significados. Tais correntes epistemológicas são importantíssimas, para o

auxílio do

pesquisador objetivando definir com clareza as dimensões e perspectivas que apresenta o problema.

REFERÊNCIAS BORGES, M. C., As correntes filosóficas que orientam as pesquisas em educação: uma análise reflexiva, São Paulo, 2005. Disponívelttp://pt.scribd.com/doc/7320750/AS-Correntes-Filosoficas-Que-Orientam-asPesquisas-Em-Educacao. Acesso: 24/07/2013 CHASIN, j. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. In: TEIXEIRA, F. Pensando com Marx, São Paulo: Ensaio, 1995. FRIGOTTO, G. O enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa educacional. In: Metodologia da pesquisa educacional. – 6 ed. – São Paulo: Cortez, 2000, p. 69-90. MANSINI, Elsie F. S, O enfoque fenomenológico de pesquisa em educação. In: FAZENDA, Ivani (organizador) Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 1989, 1ª edição. PICCOLI, G. M.; MENDES, E. G. Sobre o método de Marx. São Paulo, 1013. Disponível em: STAUB, T. et al, ( 2012, p. 8): Discutindo As Três Grandes Matrizes

Epistemológicas Ocidentais E A Formação Docente. Disponível em: http://cacphp.unioeste.br/eventos/encontroletras/docs/anais/ensino_aprendizagem_de_lingua_ portuguesa_novo.pdf. Acesso: 31/07/2013 TRIVINOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciência social: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

EDUCAÇÃO PARA “PRODUÇÃO DA CONSCIÊNCIA VERDADEIRA”7: Uma abertura de diálogo educacional com a perspectiva crítica.

José Mateus Bido8 Introdução Os educadores têm a missão pessoal e profissional de pensar e instituir um processo formador que garanta aos educandos, de diferentes classes sociais e de distintas condições culturais, uma formação humana, social e profissional, integradas a partir de um conjunto de saberes historicamente constituído. Essa formação deve ser dada aos educandos, de sorte que cada um tenha condições de desenvolver a consciência sobre o processo educacional em que está inserido. Processo esse que propiciado aos educandos o despertar e o desenvolver de seu potencial crítico e criativo em meio à volatilidade das convicções do mundo contemporâneo. Como agentes do processo educativo, os docentes, discentes e demais

profissionais da

educação devem

lutar pela

formação da

autonomia

intelectual e da emancipação política da pessoa humana. Devem proporcionar espaços formadores que orientem a comunidade educacional para o esclarecimento constante de seu papel, enquanto sujeitos sociais e históricos. A presente reflexão busca apresentar rapidamente uma proposta dialógica entre a realidade formativa, vivida nos espaços educacionais, com a perspectiva da

reflexão

da

teoria

crítica,

especificamente

defendida

pela

noção

de

esclarecimento em Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. Nessa linha de pensamento, a compreensão do conceito de Esclarecimento em 7

A proposta do texto se inspira na definição dada por Theodor W. Adorno sobre educação no texto “Educação para quê?” (In. ADORNO, Educação e Emancipação. 4ª Ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2006. P 141). 8 É mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Toledo, especialista em Docência em Educação Profissional pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – SENAC – PR, especialista em Gestão Educacional pelo Centro Nacional de Educação a Distância, especialista em Filosofia Clínica pela faculdade Padre João Bagozzi, especialista em Filosofia e os valores fundantes da civilização ocidental pela Faculdade de Filosofia pela Universidade Estadual do Paraná – FECILCAM – Campo Mourão , é graduado e licenciado em Filosofia pela Faculdade de Ciências Humanas Arnaldo Busato – Toledo. É servidor público federal, docente das disciplinas de Filosofia e Sociologia do Instituto Federal do Paraná, campus da cidade de Ivaiporã-PR e autor do livro “A problemática da pós-modernidade” (2001).

Theodor W. Adorno9 está intimamente ligada ao conceito de formação do sujeito para uma subjetividade mais segura de si, frente ao processo massificador do sistema capitalista. A subjetividade, que nasce da disposição filosófica moderna de conceder ao homem a condição de autoridade racional10, garante a instituição da noção de sujeito a partir da legitimação de um eu 11 centralizado no domínio lógico,

inspirado

pela

ciência

positiva12.

Essa

concepção

de

sujeito

se

apresenta como uma expressão de universalidade categórica, afastando-se de sua condição histórica de contingência. A reflexão, nesse cenário, prioriza a condição transcendente e transcendental, em detrimento da avaliação da realidade imanente e contingente. Um olhar crítico sobre esse modelo de raciocinar da cultura europeia permite conceber outra vertente investigativa13. Esta racionalidade, concebida a partir da leitura da tradição marxista, e, inspirada pelo pensamento de Adorno e Horkheimer, garante um retorno ao sujeito histórico e, por isso, existente e responsável pelo seu fazer-se no e do mundo. Garante também um pensamento a partir do imanente, que está em processo de construção. A situação e a condição humana, que se faz e se refaz na realidade histórica, passam a ser concebida como a perspectiva material para a reflexão crítica. Pensar o contingente passou a ser um foco da filosofia da teoria crítica, exatamente para descrever a realidade que impera sobre a ação e a vontade do homem, no sistema capitalista. Decorre, deste contexto, a necessidade de se pensar a condição de ser e de formar um sujeito crítico. A concepção de sujeito crítico está, neste cenário, necessariamente vinculada à materialidade de sua existência, pois é com ela que este sujeito precisa manter diálogo de percepção, de entendimento e de proposta de mudança, por sua postura reflexiva no meio 9

ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985 10 BIDO, José Mateus. A Problemática da Pós-modernidade. Uma leitura sobre o viver do homem na modernidade. Londrina, Ed. UEL, 2001. P. 61-72. 11 Uma obra muito importante pode nos ajudar a refletir sobre subjetividade moderna. TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. 12 HORKHEIMER, M. & ADORNO, T. W. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In. Textos Escolhidos. 5ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 31-68. 13 Idem. ibidem.

social.

Agir

pensando

e

pensar

agindo

são

elementos

de

um

novo

olhar

educacional. Para conceber, na ótica da teoria crítica de Adorno, um sujeito histórico e contingente, que tenha uma postura crítica frente à realidade em que está imerso, faz-se necessário entendê-lo a partir do papel deste sujeito na sociedade. A condição de ser um agente efetivamente envolvido, reflexivo e ativamente no seu meio, é que inspira a base da formação da postura crítica. Não há verdadeira crítica sem a efetiva concepção e ação política, presentes no processo formador do cidadão pensante e produtivo. Se lida na perspectiva da Dialética Negativa14, essa postura se desenvolve através do exercício da liberdade do sujeito, por meio de um processo educacional que o introduza em discussões eminentemente críticas acerca do seu papel em meio à dinâmica da Indústria Cultural. Neste horizonte de discussão, o propósito do texto é apresentar um breve diagnóstico situacional e, a partir da perspectiva da teoria crítica, avaliar possibilidades de encaminhamento filosófico para o entendimento de um processo ensino-aprendizagem, com base na inspiração adorniana, que seja efetivamente concreto. O texto será dividido em três momentos. O

primeiro

se

apresenta

como

um

rápido

diagnóstico

da

realidade

educacional e seus referenciais históricos e comerciais. O segundo passa a ser uma apresentação da perspectiva de leitura que orienta-se nas ações educativas em favor da formação de uma individualidade subjetiva de significado humano e produtivo. O terceiro momento busca apresentar a prospectiva formadora, por meio da compreensão do papel essencial da educação crítica, da educação para a autonomia e para o empreender, referenciada nos horizontes do currículo do Instituto Federal do Paraná.

Diagnóstico Pensar um processo de educação com foco na autonomia racional do educando, isto é, a capacidade de pensar por si, para que este adquira uma 14

ADORNO, T. W. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

identidade própria em ler, interpretar e posicionar-se social e politicamente frente aos eventos que terá que enfrentar, é pensar nos meios educacionais ou formadores que são constituídos na contemporaneidade brasileira e que devem contemplar todos os cidadãos. Contemplar em igualdade de direito e igualdade condição. Estabelecer um parâmetro de entendimento sobre a igualdade de direito nos remete propriamente ao que está estabelecido na Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. A Carta Maior assegura, ao falar dos Direitos e Deveres Fundamentais, especificamente no Capítulo Primeiro, do Título que trata dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, no Artigo 5º 15, que: Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Aprofundando e evidenciando as condições dos Direitos Sociais, dados legalmente a todos os cidadãos brasileiros, o Artigo 20516 estabelece: Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Já o Artigo 20617 ressalta: Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

Essa referência à Constituição permite focar a noção de igualdade legal, ou igualdade de direito, razão óbvia pela qual foi citada. Essa noção deve ser pensada pela perspectiva da realidade nacional, precisamente para referenciar a noção de igualdade de fato, ou das condições reais de igualdade, asseguradas pela Lei. A igualdade de direito deve ser perseguida constantemente para que se instaure nas diferentes esferas em que os poderes Executivo, Legislativo e 15

SENADO FEDERAL. Constituição de República Federativa do Brasil. Brasília: Editoração Senado, 2010. p. 05. 16 Op. cit. p. 34. 17 Op. cit. p. 34.

Judiciário se manifestam. Entretanto não deve estar desassociada das condições reais. A lei deve inspirar e assegurar a realidade a que se refere. Municípios, Estados e a Federação devem contribuir para que este direito constitucional não seja ferido ou esteja legado a um mero discurso situacional. Ao observar a dinâmica da história da sociedade brasileira é possível perceber nela a condição em que o processo educacional se encontra, assim como o grau de importância que a ela foi dado. É na manifestação ou na estruturação do processo educativo que a educação pode se manifestar de maneira objetivamente desigual. As circunstâncias materiais, humanas e geográficas têm enfatizado a difícil tarefa de construir a igualdade de condição, presente na Lei Maior. A igualdade de condição de acesso e permanência de muitos cidadãos no processo educacional é o desafio a ser vencido. Vivenciando o processo educativo, especificamente no ambiente da escola, algumas considerações precisam ser postas diante da reflexão e da ação, a partir da perspectiva dos educadores. Como compreender o papel da escola em face do processo da construção da identidade social da subjetividade contemporânea? Como repensar o papel do educador e do educando frente às exigências do mundo contemporâneo? Considerações dessa natureza são feitas por muitos educadores anônimos, as quais precisam ser refletidas constante e profundamente. Mas as propostas ou possibilidades de respostas não se encerram em si mesmas. Ou seja, não devem ser fechadas. Estas devem desafiar os educadores e profissionais da educação à abertura de mente para que possam ser pensadas dinamicamente na compreensão do processo educativo, em diálogo com a sociedade concreta e próxima, na análise dos meios e nos resultados das ações educacionais. Para melhor ajudar na abertura de diálogo educacional com a perspectiva crítica e melhor compreender a leitura diagnóstica da realidade, tomamos por base uma obra da antropóloga argentina Paula Sibilia 18. A obra: “Redes ou Paredes - A Escola em tempos de dispersão”, lançada no dia oito de outubro de

18

SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

2012, no Rio de Janeiro, pela Editora Contraponto, nos desafia na análise da reinterpretação do papel da escola na sociedade do consumo. Partindo de uma leitura antropológica do processo formativo, a obra centra sua reflexão na noção de

subjetividade que

a sociedade

capitalista estabelece

e na

noção que

necessariamente precisa ser formada para os desafios de ser no mundo. A leitura do texto nos coloca, de início, frente aos limites históricos da instituição escola, construído pela dinâmica de uma sociedade distinta da organização social que lhe deu origem. Nascida num contexto moderno, a escola se apresenta contemporaneamente em processo de necessária reestruturação em seus fundamentos, em seus processos e em seu significado. Esses limites são reforçados ainda mais, seja pela estrutura física, seja pela dinâmica no processo ou pela resposta dada efetivamente à organização produtiva. Para a autora, a escola sempre foi pensada e repensada, nos diferentes momentos históricos, para responder aos interesses do modelo produtivo e de Estado vigente19. Por esse mesmo motivo é que ela passou a ser questionada, em sua intencionalidade e em seus resultados, pelos próprios resultados produzidos. Em outras palavras, a escola forma a pessoa de acordo com a necessidade instituída pelo seu contexto. A escola, contemporaneamente a nós, devido ao surgimento de novas frentes de informações, como as apregoadas pelas redes sociais virtuais e outros meios tecnologicamente pensados para a oferta da instantaneidade, está sendo questionada tanto em sua eficiência, quanto em sua eficácia. Questões

que se

dirigem à

sua estrutura,

à sua

dinâmica, à

sua

organização e ao seu próprio conceito. O centro desta referência reflexiva, a partir da postura antropológica, está no conceito e na formação da subjetividade contemporânea. Este é o foco que a autora persegue na obra: identificar os meios que formam a nova subjetividade, face aos desafios culturais e produtivos do mundo contemporâneo. A pergunta central feita pela antropóloga é dirigida para entendimento de quais são os meios encontrados ou produzidos pela sociedade contemporânea para a 19

Op. Cit., p. 11.

formação da subjetividade humana. A realidade histórica, refletida por ela, dá a evidência de que são muitos e variados estes meios formadores da subjetividade humana na contemporaneidade20. Contudo, há algo de comum percebido no processo de formação desta subjetividade: a plasticidade e a volatilidade com que o ser humano encara o seu processo formativo. Para a pesquisadora, essa característica assim se manifesta porque houve uma substituição ou inversão de focos na criação e construção dos referidos meios. A insistente pressão mantida pelo processo produtivo

capitalista

sobre

cada

subjetividade

provocou,

social

e

historicamente, a passagem do cuidado da escola, que antes era regido pelo modelo de Estado (especificamente do modelo de Estado moderno fomentado pelo iluminismo), para o cuidado regido pelo modelo empresarial, que é modelo do Estado contemporâneo21. A busca pela formação de um ser humano para os conhecimentos gerais e a formação do caráter para a cidadania passa a ser reorganizada e dirigida para formar um ser humano que responda ao processo produtivo, com conhecimentos e habilidades técnicos. Para Paula Sibilia, os meios formadores e educativos, mesmo assistidos pelo modelo de Estado tradicional, vão sendo adaptados às necessidades ou demandas empresariais.

O conceito de formação para a emancipação, pensada pelo

modelo kantiano22 e pela perspectiva crítica de Adorno23, é redefinido pela necessidade da formação para a produção. Os saberes se orientam para responder aos

desafios

do

mundo

produtivo.

Formam-se

operadores

para

um

processo

produtivo. A lógica produtiva, instituída a partir da dinâmica do consumo, cria a necessidade de novos sujeitos históricos, com atitudes que venham responder ao modelo de pessoa procurado pelas empresas. buscado,

que

é

formado

pela

ingerência

Nesta lógica, o modelo de homem direta

das

forças

legais

e

organizacionais do Estado, da família e das relações sociais, sofre uma estagnação na reflexão e na postura críticas e na ação política. Enquanto o 20

Op. Cit. P. 97. Op. Cit. P. 17. 22 Op. Cit. P. 18. 23 ADORNO, Educação e Emancipação. 4ª Ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2006. p. 169-185. 21

Estado moderno pensava um processo formativo para disciplinar, civilizar, adestrar e moralizar24, o modelo de Estado contemporâneo exige resultados, no menor prazo de tempo e com o menor custo possível, usando-se das mesmas pessoas. Quem não se adapta, está fora do processo, sofrendo as mesmas condições de um produto que pode ser substituído a qualquer momento. A pressão por resultados, estimulada

pela cadeia

produtiva e

pela criação

de inúmeras

ferramentas

informativas e de consumo, desencadeia uma espécie de desinteresse pelos meios educacionais

ou

formadores

tradicionais,

responsáveis

pela

formação

da

subjetividade das gerações anteriores. Destes meios, a escola é quem mais tem sofrido com o “desapoderamento”25 de sua finalidade. O poder específico da escola é questionado. Com ela, todas as subjetividades que a mantém para formar outras subjetividades também padecem do desalento de significarem-se a si mesmas. O papel dos educadores são postos em questionamento, mensurados a partir da capacidade de respostas aos resultados esperados pelo meio produtivo. Segundo

a

antropóloga,

os

meios

formadores

são

constituídos

para

estabelecer laços sociais e culturais das mais variadas espécies. Entretanto, outros espaços e meios são apresentados a estes sujeitos contemporâneos em formação, os quais são mais atrativos que os tradicionais26. As tecnologias, postas a serviço do processo produtivo para o consumo, criam maior atratividade. Celulares smartphone, tablete e outros aparelhos estabelecem conexões variadas e diversas, dando informações em tempo real e permitindo que o sujeito selecione, ao seu gosto, o que e com quem pretende manter conexão. Neste sentido, a subjetividade contemporânea não constrói laços. Ela busca conectar-se não com a subjetividade do outro, mas com o que a outra subjetividade pode despertar interesse ou se interessar. O interesse pelo aparente é que estimula a relação. Esta dinâmica está se inculturando de tal maneira nas novas gerações que tem exigido do Estado ou de organizações educacionais um reposicionamento sobre a concepção do processo formativo, seja em seus fundamentos, ou a partir dos seus resultados estatisticamente comprovados. Ambientes que deveriam ser expressão de 24

Cf. KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. 3.ª Ed. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2002. SIBILIA, op. cit. p. 105. 26 Op. Cit. P. 93-94. 25

“processo civilizatório” tornam-se espaços de barbárie. A escola, em muitos ambientes geográficos, torna-se um espaço de desconstrução do eu subjetivo para a construção do eu midiático. A situação pode ser percebida por dois focos. De um lado, é possível ver um programa educacional instituído, que recebe investimentos físicos e humanos. Por

outro, temos

a visão

de um

contexto que

impulsiona, pela

inovação

tecnológica, as relações sociais e o consumo humano para a busca crescente e constante

pela novidade.

Essa tendência

pode conduzir

ao obsoletismo

as

estruturas e métodos educacionais, assim como pode também fazer com os agentes. Temos, então, duas realidades que se chocam na dinâmica pela formação da subjetividade contemporânea. O fato é que a subjetividade em formação se apresenta como subjetividade midiática, ao passo que a proposta pela formação do letramento ou do esclarecimento é ofuscada pela condição do interesse. O entusiasmo (a excitação da subjetividade) está mais no princípio do prazer do que no princípio do dever. A formação moderna orientava para o dever do homem em relação às suas atitudes e ao convívio social. Já a contemporânea se orienta pela satisfação pelo e no fazer. Neste aspecto, o que prende a atenção desses sujeitos digitais é mais um mundo virtual que o mundo real. Por isto mesmo é que esses novos sujeitos se entusiasmam mais pelo divertimento e se desinteressam pelo processo que exige deles o esforço mental para compor os caminhos de uma lógica racional, ainda apresentada e validada com verdade pelos meios formadores. Para contrapor esta realidade inúmeras tendências pedagógicas foram desenvolvidas para fazer com que o aluno aprenda se divertindo. O fato é que a dinâmica de mercado foi obrigando, aos poucos, as instituições geridas para a formação do cidadão a criarem uma identidade peculiar. Especificamente no caso da escola, assiste-se a passagem da busca pela formação do cidadão para a capacitação do cliente27. Isto significa dizer que os encaminhamentos

didáticos e

pedagógicos da

escola (fornecedor)

vão sendo

centralizados mais no interesse dos alunos (clientes), como consumidor de propostas de um processo formativo. Se a escola se torna atrativa, os educando 27

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. I. São Paulo: Loyola, 1993. p. 63-71.

consomem. Sendo desinteressante, recusam.

Perspectiva Há

uma

tendência

cultural,

quase

que

naturalmente

constituída

na

concepção contemporânea, de projetar as análises ou avaliações (juízos de valores) numa oscilação latente entre os contrários. Vivemos quase que imersos na luta entre os opostos: bem ou mal, certo ou errado, direita ou esquerda, o que atrai ou o que repele etc. Herdamos esta tendência formativa da clássica tradição filosófica, composta exatamente para pensar a dinâmica das coisas. Tal dinâmica é estruturada mais propriamente a partir de Heráclito 28, na qual seu propósito era o de apresentar que no mundo tudo segue um fluxo permanente e que envolve todas as coisas. Nesse fluir, os opostos se apresentam num processo permanente de confronto, no qual a oposição está para conciliar as diferenças numa novidade que, pela divergência, faz brotar a unidade de uma nova realidade. Essa realidade se compreende por um constante “devir” (vir-a-ser) exatamente para

superar

a

concepção

da

inércia

que

paira

na

compreensão

do

ser,

profundamente pensado pela filosofia da natureza clássica. O estudo desta perspectiva dialética de Heráclito, que envolve a noção de ser, ganha vulto e significância em diferentes momentos da reflexão filosófica. Por isso mesmo é que a dinâmica de ser das coisas passa a ser retomada por Hegel, na análise do movimento do “Espírito”29, no conhecer das coisas e no caminho do próprio “Espírito”. Tudo faz parte de uma universalidade. Marx, ao retomar a discussão sobre a dialética hegeliana, aproxima a sua leitura da realidade histórica, concretamente vivida por uma humanidade que realiza a sua condição pelo seu fazer no mundo. A postura idealista hegeliana é realinhada pela postura materialista em Marx. A perspectiva de Marx está em compreender uma dinâmica transformadora, não somente na maneira de conceber, mas na condição existencial do ser. Não somente quanto ao saber, mas quanto ao fazer. O homem que vive os problemas de uma 28

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Partes I e II. Petrópolis: Vozes, 1992. MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. Vol. I a VI. 26ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 29

sociedade que explora a sua condição de ser, pelo produzir, precisa responder contrariamente,

por

meio

de

sua

ação,

com

outra

realidade30,

que

seja

significativamente expressão da condição do homem no mundo. A perspectiva dialética também é retomada, a partir da tradição marxiana, pelos teóricos da Escola de Frankfurt, na contemporaneidade 31. Assumida pelo viés negativo, a dialética se coloca como um esforço de compreensão e ação para realizar, na realidade, aquilo que ainda não é, mas traz em si a possibilidade de ser, a potencialidade que se coloca em construção. Se aplicada esta condição de análise também no processo educativo, a leitura dialética é de grande relevância e necessária. Assim se mostra como relevante e necessária por migrar entre os opostos formativos que envolvem o indivíduo concreto. A luta entre os divergentes, que deve projetar o novo, passa a ter uma prerrogativa impar na compreensão da formação do sujeito para a autonomia intelectual e emancipação política. Nesse processo, o que deve ser evitado é a deficiência situacional e intelectual que criam ou forçam a condição dos opostos para o rebatimento ou nulidade recíproca, tanto no planejamento, quanto na implementação dos espaços formativos. Avaliada

historicamente

a

dimensão

educacional

brasileira

é

comum

perceber nela a constante busca da nulidade entre opostos. Como os espaços educacionais nascem, fundamentam-se e são organizados a partir da intenção e do planejamento de uma força superior à vontade particular, socialmente instituída (Estado), a escola, como um desses espaços formadores, está sempre vinculada ao propósito da organização social vigente. Ao mudar a perspectiva sócio-política, pela tomada de poder pelos agentes do Estado, vê-se a necessidade de mudar também a postura formadora dos cidadãos. A instituição escola, submetida ao poder real e intencional do Estado Moderno, desenvolveu um modelo de homem preocupado com um saber mais clássico e 30

HORKHEIMER, M. & ADORNO, T. W. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In. Textos Escolhidos. 5ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 31-68. Conferir também: ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. Conferir ainda: ADORNO, T. W. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. 31 ADORNO, T.W. Mínima Moralia. Reflexão a partir da vida lesada. Rio de Janeiro: Azougue, 2008. p. 150, aforismo, 99.

geral. Neste sentido, a escola do Estado Moderno, a partir do seu programa formador, visa construir um saber voltado para a compreensão cultural do sujeito formado.

A

escola

organizacional.

Mas

contemporânea, como

o

Estado

por

sua

vez,

segue

a

mesma

lógica

contemporâneo

sofre

a

interferência

administrativa a partir do modelo empresarial herdado, o projeto formador desse espaço

cultural

contempla

um

sujeito

especializado,

que



respostas

operacionais com foco nos resultados. Um sujeito definido pela técnica. Neste aspecto, a escola passa a ter por objetivo central a formação de um indivíduo produtivo. Este cenário pode levar a uma reflexão que se limita à avaliação do processo formativo oscilante entre os dois polos: sujeito de formação geral e sujeito de formação especializada. A coerência crítica deve fundamentar a reflexão filosófica para dialogar significativamente com as duas esferas e, a partir delas, criar novas possibilidades, principalmente pelo diálogo entre estes dois focos. A organização de espaços formadores, que educam o sujeito para uma visão de mundo, a fim de que compreenda o seu papel histórico e a sua participação no processo produtivo, simultaneamente, passa a ser uma exigência de uma nova formação humana na contemporaneidade. Entretanto, mesmo sendo necessária, essa proposta educacional não pode encerrar-se em si mesma, como uma vertente conciliadora em programas pedagógicos que visam formar ou para pensar ou para produzir. Exatamente por ser necessária, essa proposta deve estimular outras

possibilidades de

organização do

processo educacional,

tendo como

referência a busca pela autonomia e emancipação do sujeito frente ao processo massificador do setor produtivo. Portanto, deve formar o educando para tornar-se um ser que compreende o mundo em que se encontra e nele agir como agente que pensa, sente, se relaciona e trabalha. Se o processo educacional se volta para o aspecto da produtividade, isto é, formar indivíduos para produzir, o risco de educar pessoas sem identidade crítica é evidente. Carece, assim, esse processo educativo, de uma formação para a compreensão do todo, na qual ressalta-se o papel do indivíduo como um ser de significado. Em outras palavras, o sentido da realidade deve chocar ou afetar

cada sujeito sobre sua condição de ser e de fazer no mundo. É na descoberta da identidade pessoal e da sua comunidade social que o sujeito adquire a noção de pertença e se organiza histórica e politicamente em favor de mudanças que sejam significativas

para significar

a sua

existência, não

somente como

visão

ideológica, mas como condição real da contingência de ser. Por outro lado, pensar um processo educativo que privilegie a formação integral de um indivíduo, sem dar as habilidades necessárias ao processo produtivo, também não é pertinente. Nesse aspecto, conhecer para ser e conhecer para produzir são dois polos que se apresentam com a possibilidade necessária de diálogo. Sentir-se parte do processo formativo, de maneira consciente, e participar da construção de sua identidade cultural e produtiva é que dará fundamento à subjetividade significativa de cada indivíduo em meio à sociedade de consumo. Frente à perspectiva contemporânea da formação da individualidade humana chamamos ao diálogo o pensador da teoria crítica da escola de Frankfurt, Theodor W. Adorno, para inspirar uma reflexão sobre a noção de individualidade do sujeito com ser de significado. Para Adorno (1985, p. 198), [...] Atualmente, o declínio da individualidade não ensina simplesmente a compreender sua categoria como algo de histórico, mas também desperta dúvidas quanto à sua essência positiva. A injustiça que sofre o indivíduo era o princípio de sua própria existência na fase da concorrência. Mas isso não se aplica apenas à função do indivíduo e de seus interesses particulares na sociedade, mas também à complexidade interna da própria individualidade. Foi sob o seu signo que se colocou a tendência à emancipação do homem, mas ela é, ao mesmo tempo, o resultado justamente dos mecanismos dos quais é preciso emancipar a humanidade. É na autonomia e na incomparabilidade do indivíduo que se cristaliza a resistência contra o poder cego e opressor do todo racional. Mas essa resistência só foi possível historicamente através da cegueira e irracionalidade daquele indivíduo autônomo e incomparável.

Esse foco filosófico sobre o sujeito é determinante para dar-lhe uma outra condição na contemporaneidade, distinta da apresentada pela mentalidade burguesa. Esta condição é a da reflexibilidade. Segundo Adorno, “[...] No

trajeto da mitologia à logística, o pensamento perdeu o elemento da reflexão sobre si mesmo, e hoje a maquinaria mutila os homens, mesmo quando os alimenta” (idem., p.42). Um processo educacional que fortaleça a dimensão da individualidade provoca uma consciência da e para a diferença. Para a diversidade, consciência para o não idêntico, ou seja, o distinto. Isto significa dizer que o indivíduo possui uma “incomparabilidade”. Esta “incomparabilidade” deve ser pensada como uma referência pela qual se busca a suplantação do processo massificador imposto pela indústria cultural. Isto é, reduzir os diversos em iguais. Por outro lado, ela deve ser pensada como um ponto central, pelo qual cada indivíduo pensador e produtor possui uma identidade constitutiva em sua maneira de pensar, ser e produzir. A maneira com que cada educando é preparado para enfrentar o processo produtivo no sistema capitalista deve dar a ele a consciência para fugir

da

reificação32

(coisificação),

ou

objeto

da

vontade

produtiva

institucionalizada. Adorno

aborda

especificamente

um

referencial

significativo

para

a

formação do homem contemporâneo: a relação com o outro. A relação com a diversidade. É preciso que o indivíduo esteja em relacionamento com outros indivíduos de forma consciente e integrada. É essa relação que prepara o eu objetivo na esfera social e política para superar a massificação do Eu subjetivo, imposta pela sociedade do consumo. Segundo Adorno (2009, p.188), [...] A introspecção não descobre em si nem a liberdade, nem a não-liberdade como algo positivo. Ela concebe as duas coisas em relação com algo extramental: a liberdade como a contraimagem polêmica do sofrimento sob a compulsão social, a não-liberdade como a própria imagem desse sofrimento. Assim como o sujeito não é a “esfera das origens absolutas” pela qual ele se faz passar na filosofia, as determinações graças às quais ele se atribui a seu caráter soberano não pode jamais prescindir daquilo que, segundo a sua própria autocompreensão, não pode existir sem elas. Só se pode julgar aquilo que é decisivo no eu, sua independência e sua autonomia, em relação à sua alteridade, em relação ao seu não-eu.

Parece evidente que esse argumento de Adorno está pontuando o fato de que 32

Estatuto do IFPR – missão content/uploads/2012/07/estatuto.pdf

institucional.

In:

http://reitoria.ifpr.edu.br/wp-

a subjetividade moderna se compreende a partir da conceituação que efetivamente faz de si mesma. É a racionalidade moderna, utilizando-se dos seus argumentos, para instituir uma subjetividade superior, para a qual se convergem as respostas aos problemas por ela mesma formulados. Implícita a esta reflexão está o desejo da sociedade burguesia de tornar-se a autêntica detentora de si mesma, por meio da concepção de um eu autodeterminado a ser determinante. A crítica de Adorno se dirige a esta postura, a postura de uma razão autoritária perante a condição do saber e da perspectiva da noção de verdade. Ao dar à subjetividade a real condição a que o sujeito se submete, o pensador recoloca o problema filosófico. A condição de sujeito se realiza na sua ligação com as condições históricas, as quais dão a ele a noção de existência e permanência no mundo. Condições estas que o colocam como um ser contingente e necessário à formação de si mesmo. A característica

exclusiva do exercício do

pensamento não o torna sujeito de si mesmo. Isto apenas o descreve como tal. Ele se torna sujeito na medida em que sua percepção, ação e reflexão se fazem pela existência do “não-idêntico”33 a si, que se dá na sua relação com o outro que é também indivíduo existente e contingente. É na reflexão sobre suas condições históricas que o homem descobre-se a si mesmo como possibilidade de dialogar com os elementos da sua cultura e contribuir realmente para o desenvolvimento e para a mudança. Mas não o faz isoladamente. Também não o faz por meio de um processo educacional que privilegia a formação individualista, do eu, para o eu. Ela se faz na descoberta recíproca do eu na relação com o não-eu. É na relação entre a diversidade de sujeitos, distintos e significativos, que se instaura uma formação para a autonomia intelectual e para a emancipação político-social. Caso contrário, como absoluto

o

indivíduo

não

passa

de

forma

de

reflexão

das

relações

de

propriedades.

Prospectiva A realidade presente deve inspirar-nos por um esforço conjunto de 33

Cf. http://www.nre.seed.pr.gov.br/umuarama/modules/noticias/article.php?storyid=507.

construção do futuro, distinto significativamente do presente. Uma prospectiva desse ideal educacional se instaura pelo viés didático, pedagógico e filosófico presentes no currículo do Instituto Federal do Paraná, como projeto formador do educando. Criado legalmente com o propósito de promover e valorizar a educação profissional e tecnológica, com base na indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão, contribuindo para a formação do cidadão e da sustentabilidade da sociedade paranaense e brasileira, com amparo nos princípios da ética e da responsabilidade social, o Instituto, especificamente no Estado do Paraná, nos seus diversos campi, se coloca como um referencial para a formação humanoprofissional, tecnologicamente preparados para os desafios do mundo do trabalho. Através de suas políticas para o ensino, pesquisa e extensão, o Instituto Federal do Paraná se coloca como um espaço para a formação de uma pessoa para a consciência cidadã voltada para a compreensão da realidade social em que vivem e a importância da participação no processo de transformação dessa realidade, para que se possa construir uma sociedade mais livre, igualitária, justa, fraterna, solidária e soberana. Com a possibilidade de construir um caminho formativo para o

indivíduo,

a

partir

da

formação

inicial

e

continuada,

passando

pela

capacitação técnica de nível médio, chegando à formação superior, o IFPR colocase em um cenário significativo para visão sistêmica e dinâmica do processo produtivo. A formação complementar pelos programas de especialização humana e profissional, através da pesquisa lato sensu, fomenta o desenvolvimento de tecnologias específicas para as demandas especializadas dos setores produtivos e da formação de formadores. Pela proposta do mestrado e doutorado, o IFPR visa a implantação de um programa de pesquisa continuada que contribua para o estímulo, geração e desenvolvimento da inovação tecnológica, e da compreensão de um ser humano consciente de seu meio. Esta pesquisa Stricto Sensu, embasada em uma concepção de educação, de ciência e de tecnologia, extrapola os horizontes meramente da técnica pela técnica e visa contribuir para uma formação diferenciada e integradora. apregoada

A

pelo

novidade modelo

institucional de

produção,

é

combater

presente

a na

formação

tecnicista,

sociedade

brasileira

contemporânea e estimulada por muitos centros e instituições formadores. Seu referencial de educação crítica, visa possibilitar nos educandos um entendimento do seu papel, enquanto cidadão pertencente a um meio social concreto. É a condição crítica que permite ao aluno romper com os laços ideológicos que o subjugam como massa produtiva. Pela proposta de uma formação para a autonomia, o teor pedagógico e filosófico do IFPR prima pela condição política, histórica e social do sujeito. A formação do sujeito para a autonomia e a emancipação é aquela que garante a condição de liberdade da dependência de outra vontade que não a sua. Contudo,

para

que

essa

proposta

curricular

seja

filosoficamente

fundamentada, os professores e demais profissionais da educação também precisam se sentir sujeitos do processo. Por essa razão, o corpo docente, após passar por um

rigoroso

processo

de

seleção

institucional,

deve

ser

assumido

institucionalmente, para que os docentes sejam integrados num processo de formação educacional constante, contínua e permanentemente. Por propor uma formação com foco na autonomia intelectual e na emancipação política dos educandos,

os

docentes

também

devem

receber

estímulos

para

a

produção

continuada, por meio da pesquisa. Por aproximar os alunos como sujeitos de sua própria história de outros sujeitos, os docentes devem ser integrados e estimulados aos projetos de extensão, pelos quais aproximam a academia da sociedade

e traz

para a

academia os

problemas da

sociedade (humanos

e

produtivos) a fim de pensarem possibilidades de respostas. Como

espaço

especificamente

formador,

sobre

a

o

formação

Instituto de

seus

Federal

do

discentes,

Paraná, deve

pensado

esforçar-se

continuadamente em seus métodos e em seus projetos pela formação de uma nova subjetividade para o mundo contemporâneo. Ele tem a convicção, pelos seus trabalhos desenvolvidos, de que é preciso que este sujeito dê respostas também para os seus próprios anseios produtivos. Esta capacidade de ir em busca da superação de suas dificuldades, por suas próprias condições, se dá por meio de uma educação para o empreender. Empreender é constituir uma visão proativa, com maior condição de assertividade. Empreender é ousar conhecer e produzir por meio

do domínio de tecnologias, que inovam a visão e a produção do sujeito numa sociedade concreta. As possibilidades formativas do Instituto Federal do Paraná se estendem às diferentes esferas do setor produtivo. As especialidades do campo, da indústria, do comércio, da prestação de serviços e da inovação tecnológica são conjugadas para superar as carências de uma formação dissociada da cadeia produtiva e impregnada pela ausência de um pensamento e atitudes críticos.

Por

outro lado, conjuga também esforços didáticos, pedagógicos e técnicos para convergir

elementos

de

um

processo

formativo

integrativo,

não

departamentalizado, ou positivista. Prospectar um processo educacional diferenciado é vislumbrar no IFPR uma proposta educacional que garanta o diálogo do educando consigo mesmo, com os outros, com a cultura construída, com o conhecimento científico desenvolvido e com a sociedade produtiva. No diálogo consigo mesmo, a proposta está em descobrir-se como sujeito histórico e responsável por seu meio. Na sua relação com os outros, o foco é descobrir e construir o seu papel de agente, de um ser político responsável pelo ideal comunitário. Na sua relação com a sociedade produtiva, o que se espera desse humano em formação é a consciência e as habilidades bem desenvolvidas para a competitividade profissional, pois produzir é característica do ser humano. Portanto, trata-se de uma consciência da importância de sua profissão e habilidades, as quais o tornam um profissional diferenciado, mediante o domínio de tecnologias para a produção, com foco na sustentabilidade e na responsabilidade socioambiental. Além disso, é estimulado para se realizar pessoalmente na descoberta de si mesmo, pelo fazer-se crítico e criativo, realizando a sua dimensão de diálogo com a cultura e o saber científico. O ideal de uma educação para a “produção da consciência verdadeira” não se realiza apenas pela criação de uma escola. Sem dúvida que a instituição de um espaço formativo é relevante para esse propósito. Entretanto, é na finalidade pela qual essa escola é criada que se percebe realmente a sua condição. É obvio que uma escola está sujeita aos desafios de seu contexto. Até os erros devem ser

vistos como um processo pedagógico. Contudo, a ousadia deve estimular seus agentes formadores para o novo. Estes, não podem se reclusarem nas orientações estritamente administrativas, bem características de uma sociedade administrada, como a única medida da ação pedagógica e dos métodos de ensino. A dinâmica formativa deve ter diante de si os sujeitos, pelos quais e para os quais a escola existe, a sociedade em transformação e a postura reflexiva desse contexto. Uma escola, comprometida com seus agentes, aberta a métodos inovadores, que motiva e valoriza a pesquisa, que vai até a comunidade e permite que a comunidade seja inserida na produção do seu saber, dá um passo enorme para a “produção de uma consciência verdadeira”. Este feito pode ser percebido em diferentes projetos de extensão do IFPR, os quais se mostram como uma abertura de diálogo educacional com a perspectiva crítica. Ressaltamos aqui, dentre muitos já implantados nos diferentes campi, o projeto “IF-SOPHIA”, planejado e executado pelo IFPR, Campus de Umuarama. Segundo seus idealizadores, o IF SOPHIA é um projeto de pesquisa e extensão do Instituto Federal do Paraná - IFPR – Campus Umuarama, que tem por finalidade promover formação continuada para professores na área de Filosofia. O objetivo do projeto prima pela aproximação entre diferentes agentes formadores e estimula a reflexão crítica, ao enfocar a compreensão das questões: ética, estética, política, trabalho, ciência e a tecnologia, mediante ciclo de estudos, palestras e seminários. A sua primeira versão, realizada no ano de 2012, comprova a maturidade administrativa, didática e pedagógica do Instituto Federal do Paraná.

Conclusão Participar de um processo educacional, na qualidade de professor, é um desafio enorme nos dias de hoje. É desafiador porque é um estímulo contínuo para o diálogo com os diferentes, com a diversidade. É na percepção e formação dos diferentes,

para

serem

diferentes

no

meio

social,

que

se

ampliam

consideravelmente os horizontes de um projeto educacional. Ser diferente na

compreensão de mundo. Ser diferente no mundo do trabalho. Ser diferente na participação política. Ser diferente na postura ética. Ser diferente nas atitudes produtivas. Mas faz parte também desse projeto educacional o estímulo permanente para que essas diferenças se convirjam para o sentido de pertença a uma mesma sociedade. A compreensão da condição de pertença é reveladora de uma “consciência verdadeira”. Assim, a verdadeira consciência não se constrói instantaneamente, ou exclusivamente dentro de horários pré-determinados de um espaço educacional. É claro que estes momentos definidos são importantes no processo. Contudo, trata-se de um processo que deve ser estimulado pela busca de uma vida toda. É por isto que empregamos a expressão “construção”, elaborada pelo próprio Adorno. A “consciência verdadeira” se faz em meio ao movimento da história, na aproximação dos opostos, no confronto promotor entre os gêneros, na criação do novo, no processo produtivo, na busca pela reformulação desse processo, na busca pelo significado do ser humano no mundo pelo que é e faz. Como o homem não é um ser acabado, mas em constante fazer-se, a sua leitura de mundo também não pode se

fechar

circunstancialmente.

Ela

deve

ser

formada

para

estar

aberta

historicamente, para entender que o movimento do ser e do seu contexto no tempo é produto do próprio homem. Estamos na história e fazemos a história, sendo parte ativa e consciente dela.

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do homem na modernidade. Londrina, Ed. UEL, 2001. HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Partes I e II. Petrópolis: Vozes, 1992. HORKHEIMER, M. & ADORNO, T. W. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In. Textos Escolhidos. 5ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. Vol. I a VI. 26ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. I. São Paulo: Loyola, 1993. SENADO FEDERAL. Constituição de República Federativa do Brasil. Brasília: Editoração Senado, 2010. SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

ILUMINISMO, KANT E FILOSOFIA DA HISTÓRIA – UMA REFLEXÃO PARA O IF-SOPHIA COMO PROJETO EDUCATIVO Silvia Eliane de Oliveira Basso34

Introdução Na academia deve-se dar a discussão e preocupação com o ser humano no século XXI e seu lugar, refletindo profundamente sobre os modelos que temos adotado para viver. Assim discutir o meio ambiente, por exemplo, tornou-se vital, e então nos voltamos a ecologia e nela descobrimos a necessidade de cuidar da casa, oikos, e descobrimos mais, a necessidade de cuidar desse oikos que é o próprio ser humano. Estudos indicam que há um princípio de integração, que devemos buscar, presente desde a Grécia Antiga com Heráclito, passando por Francisco de Assis e Dante Alighieri e chegando a Spinosa e Heidegger. Sem encontrar eco nas prioridades de consumo, conforto, liberdade e educação que propalamos, tais conceitos ficaram restritos às concepções privativas e secretas de cada um, manifestando-se, quase que exclusivamente nas religiões. Enxergamos o IF SOPHIA35 como uma das oportunidades de nos voltarmos a nós mesmos, de nos reencontrarmos nesse processo de reintegração de nossa posse. Percebam que essa fala em que usamos termos íntimos da política, da ecologia, da história, só é possível por meio da filosofia – que ela esteja, portanto, na nossa cultura acadêmica, nas escolas e em nossa jornada diária permitindo-nos não nos perdermos de nós mesmos. 34

Professora de História no Instituto Federal do Paraná, campus Umuarama. Graduada em História, Especialista em História do Mundo Contemporâneo, Mestre em Educação. 35

O IF Sophia é um projeto de pesquisa e extensão do Instituto Federal do Paraná - IFPR – campus Umuarama, que tem por finalidade promover formação continuada para professores na área de filosofia. E também abre seu espaço à comunidade interessada em participar dos ciclos de estudos e dos seminários. Tem por objetivo aproximar a Filosofia do público por meio de ciclo de estudos e dos seminários. Enfocando a compreensão das seguintes questões: ética, estética, política, trabalho, ciência e a tecnologia. (ciclo de estudos, palestras e seminários). Este artigo é resultado de nossa co-participação com o Professor Vicente Estevãm Sandeski no terceiro ciclo do IF Sophia em sua edição de 2012.

Iluminismo - contexto O objetivo deste texto é o de apresentação do Iluminismo e de um de seus mais produtivos personagens, Immanuel Kant, o filósofo. No entanto, dadas as aproximações de nossos objetos de estudo, nos propomos a apresentação não do movimento filosófico em si, mas de seu contexto, e não do filósofo e suas elucubrações, mas sim do personagem histórico e suas contribuições teóricas na explicação de nossas formas ou possibilidade de viver e organizar a vida. De acordo com Eric Hobsbawn36 o mundo no século XVIII, e ele o descreve a partir da década de 1780, na ebulição das ideias e debates iluministas e às vésperas da Revolução, “era menor e maior que o nosso”. As distâncias eram longas e mais difíceis de se percorrer no interior dos territórios do que de um continente a outro, já que as navegações e os portos encurtavam caminhos. A maioria da Europa ainda vivia em regime de servidão – 4 em cada 5 habitantes eram camponeses. As poucas cidades provincianas mantinham o monopólio do

mercado local, e o domínio da terra por nobres, ainda mantinha privilégios

políticos e sociais. Havia poucos jornais em circulação e a população era majoritariamente analfabeta. Apesar do avanço galopante do comércio nas cidades portuárias e das riquezas possibilitadas pelo grande produção e trabalho escravo nas Américas, o industrial era apenas um gerente de trabalho especializado nas mãos do mercador que detinha o poder sobre a matéria-prima. É no seio dessas categorias de homens enriquecidos, enriquecendo-se ou buscando soluções para os entraves sobre a produção e o comércio, que as ideias de pensadores como Adam Smith, John Locke, Voltaire, Montesquieu e Kant, entre outros ganham repercussão. Em todos esses pensadores, com ênfase maior na economia, na política ou na ética, há o consenso de crítica ao Antigo Regime em 36

A Era das Revoluções (1789-1848). Neste livro Hobsbawn mostra como a Revolução Francesa e a Revolução Industrial inglesa abriram o caminho para a renascença das ciências, da filosofia, da religião e das artes; mas não conseguiram resolver os impasses criados pelas fortes contradições sociais, que transformaram este período numa conturbada fase de movimentos revolucionários (apresentação da editora ).

todas as suas acepções. Ou seja, a forma de governo, relações sociais, organização da sociedade e mentalidade, eram questionadas por restringirem o desenvolvimento do homem em sua capacidade e liberdade. De maneira geral as práticas mercantilistas e absolutistas, o poder e as verdades estabelecidas pela Igreja eram objetos de estudos e dissertações de todos esses pensadores. [...] o "iluminismo", a convicção no progresso do conhecimento humano, na racionalidade, na riqueza e no controle sobre a natureza - de que estava profundamente imbuído o século XVIII derivou sua força primordialmente do evidente progresso da produção, do comércio e da racionalidade econômica e científica que se acreditava estar associada a ambos. E seus maiores campeões eram as classes economicamente mais progressistas, as que mais diretamente se envolviam nos avanços tangíveis da época: os círculos mercantis e os financistas e proprietários economicamente iluminados, os administradores sociais e econômicos de espírito científico, a classe média instruída, os fabricantes e os empresários (HOBSBAWN, 1996,p.36-37).

As ideias propagam-se, mas a História nos mostra que isso não é o suficiente para o estabelecimento de uma revolução. Para além dos discursos, desejo, e debates, a concreta realidade é essa a que cria as condições e o estopim que deflagram a mudança. Embora muitos governantes, os chamados Déspotas Esclarecidos, reconhecessem e estabelecessem em seus programas “iluminados” a necessidade da abolição da servidão, por exemplo, nenhum deles efetivamente passou do papel, das intenções e do discurso para a efetivação. Seria preciso esperar que os reais interessados, os intimamente afetados pela mudança, tivessem nela presença determinante. O cenário seria a França, a mais poderosa monarquia da Europa, modelo de absolutismo sob as mãos da Família dos Bourbons desde o século XVII, tendo tido seu auge com Luís XIV, o Rei Sol. As constantes diferenças entre receita e despesas foram fazendo dos cofres públicos franceses um buraco sem fundo que carregava o histórico, desde de Luís XVI, de abrigar e manter centenas de nobres no Palácio de Versalhes, regando-os a bebidas e requintes caros. Acrescida tal situação, de guerras externas expansionistas desde meados do século XVIII, como a Guerra dos Sete Anos e Independência dos EUA.

Iluminismo - significância A sociedade, construindo sua capacidade de governar a si própria, por meio da razão, sem a mediação de qualquer instituição ou poder estabelecido, como era o caso da Igreja Católica, onde se verificou que a razão, preconizada pelos renascentistas, é tornada lei pelos iluministas. No processo histórico como no educacional a negação é uma forma de construção. Ao negar a forma de organização medieval, a modernidade pode ser construída, como o filho nega o pai, o aluno nega o professor. Embora ele negue, ele se constrói daquela negação. Isso é necessário para reconhecer que as novas formas de organização política e social surgem a partir de uma existente. Nada surge do nada. É preciso fazer a negação do passado para a construção do novo, mas a construção do novo pressupõe a existência de algo. Assim a modernidade nasce da medievalidade e bebe de toda a sua produção, o que desmistifica a Idade Média como Idade das Trevas, ou mil anos de escuridão na Europa. Talvez isso se deva ao fato que o conhecimento produzido durante a medievalidade não era disseminado, ou seja, não se acreditava, como se acredita no iluminismo, que o conhecimento devesse chegar a todos. Não é possível separar as várias áreas do conhecimento em que o iluminismo vai demonstrando a eminência de uma nova forma de organização. Todo assunto, todo tema, todas as áreas de atuação do ser humano são objetos de estudo que precisam ser iluminados, esclarecidos, explicados a fim de que os homens guiados pela razão sejam capazes de realizar suas potencialidades. Se olharmos do ponto de vista da economia, é possível dizer que é nas alterações do modo de produzir, nas relações sociais de produção e no choque das classes

antagônicas

que

as

compõem,

que

se

deram

as

modificações,

que

refletiram-se então em mudanças na forma de governar e das relações sociais, e esse é o viés marxista. É possível ampliar essa abordagem e dizer que as transformações se dão concomitantemente em várias áreas e que como humanos somos o emaranhado dessas informações. Não somos o tempo todo política, ou economia, ou religião. Dependendo

da região

e do

contexto sócio-histórico

apresentado, o

iluminismo ganhava caráter especial. As transformações na Inglaterra, por exemplo, estão ligadas ao renascimento comercial e urbano, que ao lado do renascimento científico e cultural, trazem junto com as mercadorias, ideias e valores. O comércio, incipiente do período medieval, torna-se internacional na conquista dos mares e das terras - África, Ásia e América, e a Inglaterra, que acumula, inclusive pela atividade corsária, terá um Iluminismo econômico. Os homens enriquecidos por esse comércio internacional, financiadores da marinha britânica, exigirão voz no parlamento, embora não tenham nobreza de berço. É o poderio econômico que abriria espaço para outras ideias e formas de organização. E a Inglaterra pioneiramente reforma sua monarquia permitindo a participação e a representatividade dessa nova categoria – a burguesia. É dessa forma, que temos na Inglaterra o filósofo Adam Smith, que pensa no valor das coisas, como elas valem, como as valoramos e valorizamos e como isso muda a nossa forma de viver. Ao dizer, por exemplo, que o padeiro produz o pão todos os dias pensando não em nós, mas em seu próprio benefício, e assim estende o benefício até nós e provoca o progresso geral37, Smith enuncia uma “crença” iluminista que se aplica também ao conhecimento, de que aquilo que é pensado,

defendido

e

propalado

por

uma

determinada

categoria,

espalhará

benefícios a todos. Se na Inglaterra o cunho é econômico, a França – referencial de monarquia na Europa, como modelo absolutista imortalizado em Luís XVI – “O estado sou eu”, o movimento iluminista, o pensar uma nova sociedade, terá um cunho político. O questionamento da validade do poder acumulado na mão de um monarca e de seu séquito. Se diante de um novo mundo, que não é mais retangular, que conhece outras civilizações, que acresce outras culturas que disputa espaço com outros mercados, a forma de governo que centraliza decisões é ou não a mais adequada. Nós sabemos que não é, mas nós somos os homens do mundo contemporâneo gerado pela revolução, mas para os homens que viviam aquele contexto, isso precisava ser pensado, discutido. Não é natural, é histórico. Daí a figura de 37

Esta passagem está no texto Investigação Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações em seu livro I, capítulo I.

Montesquieu, ele não é burguês, é nobre, mas ao pensar a sociedade e as transformações do mundo, ele diz que é preciso que o poder esteja dividido. É preciso que existam aqueles que vão legislar, aqueles que executem a partir dessa legislação e aqueles que julguem os problemas que vão surgir, também a partir

dessa

legislação,

dividindo

o

poder

em

legislativo,

executivo

e

judiciário. Da França, esse movimento de pensar a política, chega à América e se efetiva lá antes do que na Europa. Para os colonos o iluminismo é filosofia libertária por conta do contexto vivido pelos americanos. Seu problema maior era libertar-se do opressor e o opressor é a metrópole europeia. Colonos ingleses radicados na América do Norte fazem a revolução e escrevem sua Declaração de Independência pautados nessas ideias de divisão dos poderes

e de

participação das

pessoas, independente

de sua

condição de

nascimento, sendo o primeiro documento dessa nossa forma contemporânea de nos organizarmos. São documentos que representam a certidão de nascimento do Estado Contemporâneo, pautado na ideia do progresso para todas as pessoas, entendido esse como o esclarecimento, o uso da razão, o conforto, o progresso econômico. E a promessa desse período será de que todos vão progredir e viver numa sociedade em que o homem liberte-se, das amarras do trabalho forçado por exemplo, daí a luta contra a escravidão ter origem nos mesmos movimentos do esclarecimento. Na Alemanha, donde sai um outro grande expoente do movimento iluminista, objeto de estudo neste ciclo (IF Sophia), a discussão, embora como já foi dito, não possa separar-se das várias áreas, não está centralizada nem no campo da economia como na Inglaterra, nem no campo da política como na França. Mas, obedecendo ao contexto na Alemanha, a discussão está centralizada no campo da moral, procurando fazer uma nova revolução, que já havia se iniciado também no século XVI com a Reforma Protestante encabeçada por Martinho Lutero, a partir da premissa de que os homens pudessem desenvolver sua fé por meio dos estudos, da análise direta dos textos bíblicos traduzidos do latim para o alemão. Immanuel Kant vai propor que a libertação tem que dar um passo além: que

não haja, no estabelecimento da moralidade humana, o viés da interpretação religiosa. É preciso ir além da interpretação religiosa no contexto político da Alemanha, que ainda não é Alemanha, é Prússia, dirigida por Frederico II38. Embora o iluminismo seja esse amplo processo de discussão nas nossas várias formas de atuação, nas relações econômicas, políticas, e sociais, Kant foi proibido de escrever sobre religião, pelo próprio Frederico II da Prússia. O monarca tentava separar a religião do Estado. Kant obedece o imperador e só divulga seus textos sobre religião após sua morte. Apesar de defender a liberdade, Kant, como outros filósofos não estão para a derrubada da monarquia. Defendendo governos que sejam iluminados pela razão, eles entendem que o governante deve-se deixar iluminar e o povo deve respeitar e obedecer o governante. Kant, como a maioria dos iluministas, é um libertário, mas não um revolucionário. Não é propriamente correto chamarmos o "iluminismo" de uma ideologia da classe média*, embora houvesse muitos iluministas - e foram eles os politicamente decisivos – que assumiram como verdadeira a proposição de que a sociedade livre seria uma sociedade capitalista. Em teoria seu objetivo era libertar todos os seres humanos. Todas as ideologias humanistas, racionalistas e progressistas estão implícitas nele, e de fato surgiram dele. Embora na prática os líderes da emancipação exigida pelo iluminismo fossem provavelmente membros dos escalões médios da sociedade, embora os novos homens racionais o fossem por habilidade e mérito e não por nascimento, e embora a ordem social que surgiria de suas atividades tenha sido uma ordem capitalista e "burguesa". É mais correto chamarmos o "iluminismo" de ideologia revolucionária, apesar da cautela e moderação política de muitos de seus expoentes continentais, a maioria dos quais - até a década de 1780 - depositava sua fé no despotismo esclarecido (HOBSBAWN, 1996, p.38).

Esclarecimento e fio da história Em meio à tempestade de ideias, debates, transformações epistemológicas nos vários campos do pensamento, um jornal alemão lança em uma edição de dezembro de 1783 uma pergunta ao público: Was ist Aufklärung? 38

- Que é

Déspota Esclarecido, como reflexo do movimento iluminista dentro da política, Frederico era um desses monarcas que apreciam a discussão filosófica, que procuram trazer para dentro sua atuação política algumas das ideias iluministas. Frederico II trocava cartas com iluminista Voltaire, uma das almas dos conceitos políticas iluministas, acerca de todos assuntos, até que Voltaire rompeu as discussões por conta do expansionismo prussiano.

II de o os

esclarecimento? Das várias respostas recebidas uma nos é especialmente importante. É a resposta dada por ninguém menos que Immanuel Kant. O jornal a publica no mesmo dezembro e inicia-se assim: Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung] (KANT, 1985, p.100).

Esclarecimento nos remete imediatamente à responsabilidade, talvez mais marcante que Iluminação, termo que pode estar ligado a uma benesse espiritual. Aquele que se esclarece tomou alguma atitude para isto, e é essa a conclamação feita por Kant. Podemos dizer, portanto, que em Kant temos a responsabilidade de aprender, o que nos remete à escola e a nossa identidade acadêmica. Esclarecer leva à autonomia, à liberdade, ao fim da tutela e da dependência, tarefas que cotidianamente tem sido imputadas à escola e seus profissionais, que contraditoriamente (e não por acaso) carecem de condições concretas e de acesso real ao esclarecimento para esclarecer-se e colaborar no esclarecimento do outro. Se na Alemanha Iluminismo é esclarecimento, e se para Kant, este esclarecimento é autonomia, fim da tutela, por que ele defende o Estado? Por que diz que é preciso que se obedeça ao monarca? Kant e muitos outros iluministas escrevem aos governantes na expectativa de que os mesmos se esclareçam e assim governem. Ao buscar um fio condutor para a história Kant apresenta um plano oculto em que as sociedades são levadas ao estabelecimento de uma perfeita constituição política. Diz-nos que ainda não é possível enxergar-se esse fio condutor do ponto onde se está, já que faltaria ainda muito para se completar esse ciclo, mas que é possível saber que esse ciclo existe. Kant aponta indícios desse plano, tais como: a fragilidade das relações

entre os Estados - o que os leva a respeitar a cultura interna de seus povos, o constante avanço do respeito à liberdade civil - principalmente nas atividades comerciais, que se não levada a efeito pode enfraquecer os Estados, e o próprio Iluminismo (Aufklarüng) - que se bem entendido deverá ter influência sobre os princípios de governo.

Crê, que destarte a falta de investimentos dos governos

em ensino público, que as iniciativas particulares pelo mesmo, ajudarão e que embora invistam em guerra, os abalos que a destruição de um país pode provocar na indústria de todos os outros

gera

entre eles a necessidade de arbitrar,

evitando conflitos, e que isso levará, futuramente a um Estado cosmopolita universal. Pode-se considerar a história da espécie humana, em seu conjunto, como a realização de um plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição política (Staatsverfassung) perfeita interiormente e, quanto a este fim, também exteriormente perfeita, como o único estado no qual a natureza pode desenvolver plenamente na humanidade, todas as suas disposições (KANT, 2001, p.17).

Vivendo no contexto dos estados germânicos, liderados pela Prússia que só se tornariam a Alemanha no século XIX, com marcas bastante fortes da organização feudalista no campo, com o modelo do estado francês absolutista estabelecido no século XV, portanto há pouco mais de 200 anos antes de sua época, Kant talvez enxergue um Estado que não realizou ainda sua culminância, mas ainda pode realizar.

O

Estado

moderno

é

recente

e

sob

os

auspícios

das

ideias

esclarecedoras e da razão, pode tornar-se o governo ideal, a concretização do plano oculto. Assim, a preocupação de Kant é libertar as pessoas principalmente do domínio da religião, que as mantém na menoridade. Equivocava-se Kant? Provavelmente, como se equivoca qualquer um que tente vê-lo

como

um

profeta

da

modernidade.

Não

lhe

era

possível

prever

os

acontecimentos, e talvez ele tenha sido tentado a isso quando buscou descobrir o fio condutor da história. Está no indivíduo a mudança, a melhora, o progresso, a realização, toda a responsabilidade enfim. Mas e a sociedade? E as condições para que este indivíduo que quer, que faz, mas que se vê limitado por amarras que por vezes

nem podem ser vistas e identificadas para serem abolidas, os poderes com os quais terá que lutar? Kant não fala sobre isso. Há limites em suas elucubrações. O sistema filosófico de Kant pertence à tradição racionalista da burguesia alemã, que enfatiza a liberdade e o individualismo (valores de pensamento burguês) e enfatiza a possibilidade de existirem condições a priori do pensamento humano e da ação moral (valores da filosofia alemã) uma tradição cujos limites a obra de Kant começa a indicar (ANDERY,2007, p. 342).

Cremos

que

suas

maiores

contribuições

não

estão

aí,

mas

em

sua

insistência de que assumamos corajosamente nossa responsabilidade por sairmos da minoridade e entrarmos na maioridade. Não imputemos a ele a responsabilidade de conhecer nosso contexto, de enxergarmos e prepararmos nossa realidade concreta. Se precisamos como educadores ouvir dele alguma coisa, e cremos que sim, basta apurar um pouco os ouvidos e escutar: Iluminem-se! Esclareçam-se!

Sapere aude!

REFERÊNCIAS ANDERY, Maria Amália P. et al. Para compreender a ciência: uma perspectiva histórica. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. HOBSBAWN. Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 1996. NODARI, Paulo Cesar; SAUGO, Fernando. Esclarecimento, educação e autonomia em Kant. Disponível em http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/viewFile/892/615. Acesso em: 11 out 2012. KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento? In: Textos Seletos. Petrópolis: Vozes, 1985. _______. Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. SMITH, Adam. Investigação Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores).

A razão instrumental e a razão crítica em Horkheimer Por: José Provetti Junior39

Max Horkheimer nasceu na cidade de Estugarda, na Alemanha, em quatorze de fevereiro de 1895. Descendente de judeus alemães que viviam da indústria teve uma educação que objetivava dar continuidade aos negócios paternos; no entanto, mostrou-se propenso aos estudos acadêmicos e graduou-se em filosofia e mais tarde em sociologia. Afirma-se que dentre sua formação eclética destaca-se a influência da filosofia de Arthur Schopenhauer cuja admiração de Horkheimer o levava a ter um retrato de Schopenhauer em seu escritório. Outra importante influência, embora considerada de maneira diagonal, é a proveniente do pensamento de Karl Marx, em especial do marxismo, embora pouco se veja em suas obras, referência a Marx. Em

1923

através

da

influência

de

Friedrich

Pollock,

sociólogo

e

economista alemão especializado em marxismo, na época diretor do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt, na Alemanha, Horkheimer associou-se à instituição, sendo mais tarde seu diretor, em torno de 1931 (REALE & ANTISERI, 2003, p. 837). Com a ascensão do nazismo na Alemanha, ideologia de fundamentação política nacional-socialista, assimilada pelo então Partido Nazista, formulada por Adolf Hitler e adotada pelo governo alemão a partir de 1933, é que 39

Mestre em Cognição e Linguagem pela UENF, mestrando em Filosofia Moderna e Contemporânea pela UNIOESTE, especialista em História, Arte e Cultura pela UEPG, especialista em Saúde para Professores dos Ensinos Fundamental e Médio pela UFPR, graduado e licenciado em Filosofia pela UERJ, graduando em Pedagogia pela UEM, professor e pesquisador do Núcleo de Estudos da Antiguidade – NEA – UERJ, pesquisador do Grupo de Estudos Karl Popper – UNIOESTE, membro da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos – SBEC, parecerista da Revista Espaço Acadêmico – UEM e Acta Scientiorum – Ciências Humanas e Sociais - UEM, autor de artigos em periódicos nacionais, autor do livro “A alma na Hélade: a origem da subjetividade Ocidental” (2011), atua como professor de Filosofia no Instituto Federal do Paraná – IFPR, campus de Assis Chateaubriand, lecionando as disciplinas de Sociologia, Prática Profissional Orientada e Oficina de Planejamento, Execução e Avaliação de Projetos para os cursos técnicos em Orientação Comunitária e Informática, é membro da Comissão Permanente de Projetos – CPP, vinculado a Próreitoria de Extensão, Pesquisa e Inovação – PROEPI, vice-coordenador do curso técnico de Orientação Comunitária, no eixo tecnológico de Desenvolvimento Educacional e Social e Presidente do Comitê de Pesquisa e Extensão – COPE – IFPR – Assis Chateaubriand. Contato através do email [email protected] ou sítio: http://pensamento.mentalidades.zip.net/

Hormkheimer toma uma perspectiva revolucionária e crítica. Segundo Reale & Antiseri (Idem, p. 846), a partir de 1939 Horkheimer inicia sua atividade reflexiva em torno da identificação do fascismo com o capitalismo. Tão logo eclodiram as hostilidades entre a Alemanha e a Polônia em seis de outubro de 1939, Horkheimer e os demais membros da Escola de Frankfurt iniciaram uma emigração, inicialmente para Genebra, na Suíça, em seguida para Paris, na França e finalmente para a cidade de Nova York, nos Estados Unidos da América, de onde levaram a efeito as atividades durante o conflito. Nesse texto tratar-se-á da questão da razão instrumental e da razão crítica em Horkheimer, contudo, antes de mais nada, enquanto texto filosófico desenvolver-se-á junto ao leitor o exercício reflexivo para que não se caia na superficialidade jornalística em torno do tema. Portando, a pergunta para que se inicie a discussão e se venha a compreender exatamente do que trata Horkheimer é: que é a razão? Ora, em um rápido apanhado, dado o supetão da proposta, pensa-se no uso cotidiano concedido ao termo, a saber: “fulano ou beltrano está (ou tem) razão!” Isto é, nesse sentido, quer-se dizer que a pessoa tem sobre alguma coisa a verdade ou que está correta. Outra aplicação do senso comum quanto ao termo “razão” diz respeito a sua aplicação matemática, ou seja, quando alguém se preocupa em investigar a “razão entre certos números” querendo através deste processo descobrir a relação existente entre duas ou mais grandezas matemáticas. No entanto, já que se trata de uma questão filosófica, faz-se necessária uma investigação no campo e, portanto, segundo Japiassu & Marcondes (1993, p. 209-210) existem seis sentidos nos quais se pode compreender o termo “razão”. Esclarecem que a palavra, isto é, “razão” não nos remete à cultura helênica, criadora da razão enquanto λογοσ (logos) e que neste sentido, segundo Isidro Pereira (1990, p. 350) significa: (...) palavra, dito, revelação divina, resposta de um oráculo, máxima, sentença, exemplo, decisão, resolução, condição, promessa, pretexto, argumento, ordem, menção, notícia que corre, conversação, relato, matéria de estudo ou de conversação, razão, inteligência, senso, motivo, juízo, opinião, estima, valor que se

dá a alguma coisa, justificação, explicação, a razão divina

Como atestam Japiassu & Marcondes (1993, p. 209-210) a termo razão utilizado por nós, contemporaneamente é de origem latina, isto é, vem do termo

ratio que por sua vez, em Latim, segundo Faria (1967, p. 843) significa: (...) Sentido próprio: Cálculo, conta, objeto de cálculo, livro de contas, registro (…) (César, Bellum Gallicum, 7, 71, 4); (Cícero, Verrinas, 5, 71; 5, 147). Sentido figurado: cálculo, consideração, interesse, empenho, causa, partido (Cícero, Verrinas, 5, 38). Dai: faculdade de calcular, razão, inteligência, juízo, bom senso (Cícero, De Finibus, 1, 32). Método, plano, disposição, sistema, regra, ordem, doutrina, opinião, pensamento, ponto de vista (Cícero, Pompei, 1). Argumentação, razão determinante, causa, motivo, prova, (em sentido filosófico) (Cícero, De Natura Deorum, 2, 22). Modo, maneira, gênero, espécie, natureza (César, Bellum Gallicum, 2, 19, 1). Relação, trato, comércio, negócios (sentido genérico) (Cícero, Epistolae ad Atticum, 2, 5, 2).

Nos seis sentidos mencionados acima por Japiassu & Marcondes, vê-se: 1) segundo Descartes; 2) formalismo lógico; 3) segundo Leibniz; 4) segundo o determinismo; 5) segundo Kant, dividindo-se em razão teórica e 6) razão prática. Antes, porém, de adentrar-se às alusões estabelecidas por Japiassu & Marcondes, deve-se retornar às definições de Isidro Pereira (1990) e Faria (1967) e refletir-se sobre elas, pois sugerem algumas considerações que de futuro serão melhor exploradas neste texto. Em se considerando as definições, pretende-se chamar a atenção do leitor para a contextualização histórica e cultural relativas às sociedades helênica e latina, pois os usos que o termo razão recebe são reveladores para os intentos de Horkheimer em suas considerações. Dado que os gregos são os criadores da filosofia cujos registros remontam ao término do século VII, início do século VI a. C. (PROVETTI JR, 2011), em especial com as reflexões de Tales de Mileto, na Jônia (KIRK; RAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 73-98; POPPER, 2002, p. 7-32), sobre a cosmologia e as bases de funcionamento da phýsis (natureza) (Cornford, 1989), percebe-se que a razão teve sua origem em processos sociais e culturais decorrentes da criação da polis (cidade-estado), a partir do século VIII a. C. (VERNANT, 1998) e acentuadas, mais tarde, com a reintrodução da escrita e as mudanças mentais decorrentes

dessa

tecnologia (HAVELOCK,

1996; PROVETTI

JR, 2011),

de maneira

que o

pensamento racional emerge dessas mudanças sobre a maneira tradicional dos helênicos se expressarem, a saber: a oralidade, base do exercício poético inspirado, levado a efeito pelos rapsodos, como se vê na Ilíada (2008) e

Odisseia (2006) de Homero. Nesse sentido, os gregos se exercitaram na razão a partir de uma experiência muito distinta da atual, passados mais de dois mil e quatrocentos anos que em si, se relacionava, conforme se vê na definição do termo por Isidro Pereira (1990, p. 350) numa relação significante muito próxima a do mito, enquanto palavra de expressão sacralizada, indicando a relação cultural que era vivenciada pelos helênicos na criação da razão, a saber: uma palavra eficiente, sacralizada, instituída em práticas mentais decorrentes das tecnologias da oralidade, isto é, fundadas na imagética reforçada pelo canto e dança poéticos e no poder da Memória (Mnemosýne), a deusa mãe das Musas (Musai), divindades que inspiravam os poetas a passarem e reeditarem as estórias da tribo, importantes a sua sobrevivência. (PROVETTI JR, 2009). O grego comum, o homem do povo tinha uma experiência de phýsis que se distinguia da nossa por se tratar de uma vivência exclusivamente objetivista, isto é, não possuíam o conhecimento nem a consciência de que neles havia algo que mais tarde seria chamado de “subjetividade” ou “interioridade” (PROVETTI JR, 2011; MONDOLFO, 1970) e, portanto, sua relação com a natureza era a de um

Eu aberto, um ser que tem a possibilidade de ser possuído pelas forças naturais que em si e por si são divinas, pois os deuses gregos são forças naturais e políticas simultaneamente. Nesse sentido, a razão não era um atributo do homem, compreendida como alguma espécie de instrumento, mas ao contrário, ela nem ao homem cabia, pois o helênico não se via como um algo que pensa a si, seus estados mentais, emocionais e alguma coisa como os outros e a natureza, enquanto instâncias diferenciadas, individualizadas, quiçá personalizadas inexistiam. Tanto é que o famoso dito de Sócrates: - “Homem, conhece-te a ti mesmo” segundo Mondolfo (Ibidem) não se remetia a um processo de autoconhecimento,

enquanto exame de consciência e emoções inerentes às vivências experienciadas pelo sujeito do conhecimento. Tudo isso era inexistente para os helênicos. Portanto, quando se remetiam ao uso do (logos) falavam de algo que era inerente à natureza e enquanto tal, a eles próprios, pois os homens eram seres profundamente integrados aos movimentos da phýsis em sua ordem (kosmos). Logo,

a

razão,

na

cultura

helênica

denunciava

a

necessidade

de

“leitura” da natureza, por parte do homem, por sua vez, ser tão natural quanto à natureza e enquanto tal, mesmo sem desconfiar de que em si essa natureza abria-se de maneira infinitamente profunda e particularizante, pode-se afirmar que a filosofia, nos inícios da criação e experimentação racional tinha como finalidade apropriar-se do logos para em entendê-lo, compreender a necessidade de seguir-lhes os divinos impulsos naturais. Já em Faria (1967, p. 843), percebe-se uma mudança significativa do sentido próprio do termo ratio em relação a logos, pois se trata de outra cultura,

de

outra

vivência,

a

saber,

da

romana,

que

através

de

suas

movimentações políticas, militares e sociais se apropriou da filosofia helênica e de sua racionalidade de maneira particularmente distinta das motivações que levaram os gregos a criarem e viverem a razão como acima descrita. É interessante observar que Faria (Ibidem) inicia sua conceituação citando César e Cícero, enquanto “sentido próprio” do termo ratio como “(...) cálculo, conta, objeto de cálculo, livro de contas, registro (...)”. Apenas nos sentidos figurado e genérico é que surge a razão conceituada como “(...) consideração, interesse, faculdade de calcular, inteligência, juízo, bom senso, opinião, argumentação (...)” dentre outros correlatos. Ora, é notória a distinção de sentidos da ideia de razão, matéria e modo operacional da filosofia e, após os séculos XIV-XV d. C. e, acentuadamente após o século XIX d. C., o modo através do qual a Ciência viria a se estabelecer enquanto projeto não apenas gnosiológico, mas psicológico, educacional, social e político, em especial, no Ocidente. Não é curioso tal direcionamento distinto do original grego, embora se afirme uma linha de continuidade do exercício racional filosófico dos gregos aos

romanos, a despeito de

algumas adaptações? Por enquanto fiquemos com esta

questão decorrente da análise lexical da razão e voltemos às definições filosóficas do conceito. Para

Japiassu

&

Marcondes

(1993,

p.

209-210)

a

primeira

acepção

filosófica aplicada ao termo remete-nos ao pensador francês René Descartes, que afirmava que a razão é: “(...) Faculdade de julgar que caracteriza o ser humano. 'A capacidade de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é o que propriamente se denomina de bom senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens' (Discurso do Método, 1)”. Percebe-se que Descartes atribui à razão o status de “faculdade humana natural”, isto é, inerente a qualquer humano e relaciona-se ao exercício do juízo, isto é, à capacidade de distinguir o verdadeiro do falso; em outras palavras, a razão cartesiana, parte integrante do processo científico iluminista do século XVII d. C., que integrou o método científico utilizado até o presente, vincula-se necessariamente a um afastamento do homem da visão original dos helênicos e, interessante observar, embora se fundamentasse em parte sobre a visão romana nela encontra-se duas diferenciações radicais sobre o projeto de racionalidade grega original: a) a visão de relacionamento do homem com a natureza e b) a predominância de uma auto percepção cognitiva em que se assinala a existência de uma interioridade que em si consolida-se enquanto “substância pensante” res cogitans em oposição à própria corporeidade humana e a partir deste, do mundo exterior à alma, a saber, a res extensa. Note-se que a questão do posicionamento do homem em relação à natureza constitui influências culturais decorrentes ainda da Antiguidade, no período romano, a saber, as influências judaico-cristã (GILSON, 1995, p. 1-203, 423-453 e 454-494; MANN, 2012; BÍBLIA, 2001) e, posteriormente, já na Idade Média, da cultura muçulmana (MOHAMED, 2001) que em se apropriando da Filosofia helênica por diversas fontes adaptou-a à fundamentação de suas tradições religiosas e segundo essas, o homem é a imagem e semelhança de Jeová (Deus ou Halah) e enquanto elas, toda a criação foi-lhe posta à disposição enquanto “coroa da criação” para seu usufruto. Portanto, é em especial com o cristianismo em seus

inícios, que se instaura a percepção parcial da interioridade, na medida em que os evangelhos apregoavam a existência do Reino de Deus no coração de cada crente e nessa medida, indiferentemente de sua posição social, status financeiro, etc., a salvação se torna pessoal, individual conforme atesta Mondolfo (1970) e nesse sentido, posteriormente, já Santo Agostinho (“Confissões”, 1980) instaura o auto inquérito enquanto meio de conhecer-se e modificar-se para a glória do Altíssimo. Logo, o conceito de razão para Descartes enunciado por Japiassu & Marcondes (1993, p. 209) parte de uma visão totalmente distinta da grega e mesmo da romana, em certa medida, uma visão subjetivista e em oposição à natureza já instaurado o afastamento entre o chamado “sujeito e objeto de conhecimento”. Na segunda acepção, que Japiassu & Marcondes (Ibidem) assinalam como “formal”, vê-se: (...) a razão é a capacidade de, partindo de certos princípios a priori, isto é, estabelecidos independentemente da experiência, estabelecer determinadas relações constantes entre as coisas, permitindo assim chegar à verdade, ou demonstrar, justificar, uma hipótese ou uma afirmação qualquer. Nesse sentido, a razão é discursiva, ou seja, articula conceitos e proposições para deles extrair conclusões de acordo com princípios lógicos. (...).

Nessa conceituação de razão, observa-se novamente a razão no sentido de instrumento linguístico humano que parte da análise lógico-conceitual das essências apreensíveis pelo pensamento e logicamente avaliadas de maneira indutiva, mesmo a despeito da experiência e tendo como consequência operacional a elaboração de certa descrição conceitual que em si, nada mais é do que a influência da noção aristotélico-baconiana sobre o método de se fazer Ciência, a saber, através do método indutivo, conforme assinala Popper (2002, p. 1-5). Portanto, mais uma vez, se demonstra o afastamento radical da vivência original da

razão

tal

qual

fora

projetada

e

vivenciada

pelos

helênicos,

embora

Aristóteles fosse um participante do mundo grego, na verdade pelos atenienses pelo menos era considerado “bárbaro helenizado” e enquanto tal, tinha uma vivência já distinta da original, embora tenha vivido em imersão cultural em Atenas durante muitos anos. Sua lógica trata de um projeto enciclopedista e

dicionarista através do qual imaginou através do método indutivo frenar os problemas

decorrentes

da

catástrofe

da

linguagem

gerada

pelos

sofistas.

(PROVETTI JR, 2009). A terceira acepção de razão para Japiassu & Marcondes (1993, p. 209) remete-nos ao filósofo Leibniz em sua Teodicéia: (...) identifica-se ainda com a luz natural, ou o conhecimento de que o homem é capaz de naturalmente, por oposição à fé e à revelação. 'A razão é o encadeamento de verdades; mais particularmente, ao ser comparado com a fé, das verdades que podem ser atingidas pelo espírito humano naturalmente sem o auxílio das luzes da fé'.

Novamente

se percebe

nessa definição

as questões

já indicadas

na

definição de Descartes, porém ressalta-se na definição de Leibniz a razão no papel de “luz natural” numa evidente menção às teses Iluministas que apostaram na razão enquanto capacidade inerente à Humanidade e que através de seu cultivo afastar-se-iam as sombras da fé enquanto considerada superstição que travava o avanço do homem, tornando-o sempre um projeto para a vida do além e não para o fulgor da existência humana, demasiadamente humana do homem enquanto algo natural. Note-se que em Leibniz sob o aspecto filosófico do Iluminismo, atrelado a este está o Humanismo, tão caro aos séculos XVI e XVII d. C. e que pela época das

Luzes

instituiu-se

enquanto

processo

liberador

do

homem

das

teias

supersticiosas da religião e seus conflitos pelas almas humanas no pós-morte, assinalando ainda, o aspecto do ceticismo inerente ao período. Portanto, à razão humana, através da luz natural, pode-se atingir o conhecimento possível ao homem e enquanto tal, faz-se mister desprender-se das luzes da fé para que se amadureça o entendimento. A razão, nesse caso, mantém-se como

instrumento

inerente

ao

homem

(alma

humana)



então

considerada

explicitamente como um elemento à parte da natureza e, sobretudo, que deve se utilizar da razão para conhecê-la e dominá-la, seguindo o princípio judaicocirstão-muçulmano. Outra definição de Japiassu & Marcondes (Ibidem) arrolada a Leibniz é a que segue:

Razão suficiente. (…) o princípio da razão suficiente estabelece que para todo o fato que ocorre há uma razão pela qual esse fato ocorre, e ocorre de determinada maneira e não de outra. (...).

Ora, partindo-se das explicações acima descritas sobre a razão em Leibniz acrescenta-se a questão da chamada “razão suficiente”, isto é, em última análise, o princípio de funcionamento da razão. Segundo tal princípio, qualquer coisa que ocorra está de certa forma regido por alguma razão, no sentido de “motivo” e essa motivação é necessária, isto é, não haveria de ser outra além da que foi. Portanto, segundo essa definição a razão seria a descrição da causa inerente ao fenômeno dado de tal maneira que seria sua causa motriz, possibilitando assim, por dedução, remontar as particularidades dos efeitos para se identificar sua(s) causa(s). Vê-se nisso uma forte influência do pensamento empirista e experimental da Ciência, pois se infere que um fenômeno seja da ordem do empírico e não do mental ou lógico. As duas últimas definições de razão citadas por Japiassu & Marcondes (Idem, p. 209-210) se relacionam à filosofia de Kant, a saber: Razão teórica ou especulativa: (…) trata-se da faculdade dos princípios a priori, que em sua função crítica tem o papel de estabelecer as condições de possibilidade do conhecimento. 'Distinguimos a razão do entendimento, definindo-a como a faculdade dos princípios (…). Se o entendimento pode ser definido como a faculdade de dar aos fenômenos unidade por meio de regras, a razão é a faculdade de dar unidade às regras do entendimento sob forma de princípios'. (Crítica da razão pura). Razão prática: a razão tal qual aplicada no campo da ação humana, permitindo que o homem tome suas decisões ao agir baseado em princípios, para Kant, é a razão prática que responde à pergunta 'que devo fazer?', estabelecendo os princípios morais que regem a ação humana. (...).

Para Kant, filósofo dos séculos XVIII-XIX d. C., se verifica que em sua epistemologia, a razão assume a total formalidade no que se refere à razão teórica ou especulativa, tornando-se uma função da mente humana com o objetivo de estabelecer as relações e condições de possibilidade para o conhecimento. Note-se ainda, que Kant distingue a razão teórica do entendimento, isto é, do intelecto e de sua capacidade de compreender e pensar ideias gerais. Nesse sentido, portanto, para Kant a razão teórica se constitui na

capacidade humana de “dar unidade às regras do entendimento sob a forma de princípios” (JAPIASSU & MARCONTES, 1993, p. 209), ou seja, seria alguma espécie de instrumento mental inerente ao ser humano através do qual, dado a existência do entendimento enquanto capacidade mental de compreender e pensar ideias, destas a razão teórica organizaria através da elaboração de princípios racionais a realidade. No outro sentido alegado por Kant, isto é, da razão prática, a razão se caracteriza como uma “ação humana” vinculada, então, à capacidade de juízo diante de situações, decisões em que o valor moral destas implica uma tomada de decisão que segundo Kant necessita estar condizente com a moral que orienta as ações dos homens segundo os princípios racionais, isto é, estabelecidos pela razão teórica a priori, mas que encontram nos hábitos e costumes sociais certa fundamentação que por dever orienta as práticas humanas em sociedade. Portanto, a razão nesse sentido tornar-se uma capacidade de apreender as ideias inerentes aos hábitos sociais considerados morais e a despeito da vontade do indivíduo, por respeito ao princípio da razão teórica tornado um dever na razão prática, o sujeito do conhecimento toma ações éticas com base nesses princípios da moralidade aos quais a razão prática o conduz. Nesse momento de reflexão em torno do significado do termo “razão” chamo a atenção dos leitores para as seguintes características históricas em torno desse conceito, a saber: a) A razão é criação grega decorrente do processo de criação da polis grega e da reintrodução da escrita na sociedade helênica. Os gregos não tinham conhecimento de qualquer menção de alguma interioridade e não desconfiavam da existência em si de alguma subjetividade e suas consequências, encarando a natureza enquanto Eu aberto às forças naturais, considerando-se, eles próprios elementos inerentes à natureza dela um pouco distanciados devido à vida políade, mas profundamente integrados nas dinâmicas cósmicas da natureza. Portanto a natureza era considerada provida de um logos e enquanto tal, cabia ao homem através de seu próprio logos compreender a phýsis de maneira a intuir as motivações do comportamento da natureza do micro ao macro. b) Na sociedade romana, após os contatos efetivados com os helênicos e,

em especial após o período alexandrino com a apropriação de traços culturais gregos, dentre eles a apreciação pela filosofia e suas tecnologias, o espírito latino adaptou o pensamento especulativo helênico e redirecionou-o a condições culturais mais próprias aos romanos e nesse sentido, a razão ao invés de manterse como ponto de acesso ao conhecimento possível ao homem enquanto inerentemente vinculado à natureza, tornou-se um elemento de cálculo, de quantificação na natureza e, por assim dizer, a razão mutou de uma função interpretativa da realidade

natural

para

uma

função

quantificadora,

calculadora

para

fins

pragmáticos, voltados às realizações grandiosas levadas a efeito pelos romanos. c) Ainda no período romano, sob a influência das permutas culturais levadas a efeito no mare nostrum (nosso mar), da comunidade judaica de Alexandria, importante centro cultural e agrícola para o mundo romano, a tradição judaica de Jeová compõe o fantástico mosaico religioso da grande metrópole helênico-egípcia sob administração romana a ponto de a Torah ser compilada pela primeira vez ainda sob a administração de Ptolomeu II entre 309246 a. C. e tornar-se acessível aos investigadores da Biblioteca. Séculos mais tarde, após o fenômeno Jesus em Israel, percebe-se em Alexandria como em diversos povoamentos de cunho judaico, o surgimento de núcleos comunitários cristãos, ora integrados às sinagogas hebraicas, ora delas distintas, mas perceba-se que nestes o estudo sistematizado mais ou menos intenso da Torah fazia-se eivado de reflexões filosóficas de diversa procedência, a ponto de surgir à época, a teoria de que a filosofia grega teve inspiração nos profetas judeus, tanto quanto em outros núcleos mais ortodoxos, estabeleceu-se o conflito entre a razão e a fé com a gradual expulsão das heresias helênico-romanas. No entanto, conforme atesta Gilson (1998, p. 2-203), o pensamento filosófico helênico e romano foi aos poucos sendo conjugado com as tradições da Torah e dos evangelhos, à época em processo de constituição tradicional, sendo posteriormente exportados para a sede imperial, em Roma, tornando-se objeto de sincretismo por filósofos como Teodoreto, João Damasceno, Ambrósio, Boécio, Gregório

e

Agostinho,

pensadores

cristãos

que

se

preocuparam

em

fundir

conceitualmente a filosofia com a tradição judaico-cristã. Foi nesse momento que

ocorreu gradualmente certa mudança de paradigma da razão enquanto algo natural, inerente aos elementos da natureza e por conseguinte, ao próprio homem para uma função, que já era compreendida em certa medida, em especial pelo mundo latino, como uma espécie de função do homem para quantificar a natureza de maneira pragmática, isto é, objetivando atingir certos fins e não interagir de maneira harmônica e equilibrada, como asseveravam as filosofias helênicas. d) Dado a mudança de paradigma natural, uma vez que o homem passou de elemento da e na natureza para filho de Jeová-Deus, dotado da razão enquanto função da alma que desde que encarada com a humildade do filho em relação ao Pai possibilitar-lhe-ia o conhecimento sobre a natureza, toda usufruto dedicado por Jeová-Deus-Halah ao homem, por graça divina, o crente a teria iluminada a razão para dela usufruir-lhe enquanto “coroa da criação”, imagem e semelhança de Deus. Da razão já cristianizada através de vários séculos, viu-se em Descartes o reconhecimento da tese cristã da autonomia da vontade do Eu rumo à glória do Altíssimo durante a sua existência, na interioridade de seu coração, de sua consciência ser fundada pela clara oposição de fundamentação platônica entre a

res cogitas e a res extensa e, dessa maneira, a razão definitivamente tornar-se uma propriedade dessa “coisa pensante”, capaz de conduzi-la à verdade a partir de seu próprio conhecimento elementar, isto é, de que sabe que existe. Ainda nessa vertente, porém de inspiração aristotélico-formal, percebe-se que a razão é um atributo da alma para a emissão de juízos sobre proposições e essenciais e não necessariamente sobre objetos do mundo natural. e) Em Leibniz vê-se a razão conseguindo opor-se à fé enquanto “luz natural” e como “razão suficiente” em nada se distinguindo da concepção instrumentalista dela em relação ao homem como “sujeito do conhecimento” diante do “objeto do conhecimento”, a saber, a natureza. f) Com Kant, nota-se a percepção da razão enquanto justificação formal de princípios inerentes à natureza enquanto objeto do conhecimento e na vida social, ética, a razão se apresenta como uma função da alma para intuir as ideias próprias aos costumes e estratificá-las em princípios universais e

necessários sobre os quais o homem deve pautar seu comportamento a despeito de sua vontade. Ora, de tudo isso se depreende que a razão tornou-se algo muito estranha a seus criadores, os helênicos! Pois além de ser interiorizada, subjetivada, regulada por leis linguísticas, instrumentalizada enquanto meio do homem, ser oposto por sua dignidade religiosa aos demais elementos da natureza e devido a isso, esta se tornou um outro diferente do homem e enquanto tal, um desafio a ser esquadrinhado pela mente humana e sua luz natural, de maneira que possa ser compreendida e como tal, submetida à vontade de poder do homem através de sua nova ferramenta de trabalho, a saber, a Ciência, criando pela observação e experiência indutivo-racionais a tecnologia com os fins claros e objetivos de facilitar

a vida

humana, libertando-o

do bruto

trato para

com a

vida,

melhorando-lhe a qualidade de vida e libertando-o da ignorância inerente à fé e aos conflitos político-religiosos em busca da Verdade. Esses foram os princípios Iluministas que em busca de tornarem efetivos os ideais Humanistas dos séculos XIV-XV d. C. proporcionaram aos europeus dos séculos vindouros o arroubo cientificista e tecnológico instrumental capaz de estudar,

compreender,

quantificar,

dominar

e

subverter

diversos

aspectos

naturais para o usufruto da coroa da criação, isto é, o homem. Para Horkheimer, no século XX d. C. observa-se o ápice do desenvolvimento do que nomeia como “a civilização industrial”. Fruto do mercantilismo europeu dos séculos XV-XVIII d. C., o capitalismo proporcionou aos estados europeus, a partir do século XVI d. C. um sistema econômico baseado no comércio e acúmulo de capitais que derivou e subverteu o antigo sistema, o feudalismo após a reabertura das atividades comerciais continentais e intercontinentais por terra e, posteriormente por mar, após as descobertas e sendo capitaneada inicialmente por Portugal e Espanha, esses países rapidamente abriram espaço para que a Inglaterra e França, mais tarde a Holanda e muito tardiamente a Alemanha ingressassem na era industrial. Em

um

pouco

mais

de

quinhentos

anos

a

civilização

ocidental

e,

posteriormente, o fenômeno se alastrou por todo o planeta, embora algumas

diferenciações, tornando-se um parâmetro existencial com características de produção, racionalização, tecnologização mercadorização de todas as instâncias da existência alterando o modo de vida do homem e sua relação com a natureza. Muito criticado por filósofos e sociólogos como Henri de Saint Simon, Robert Owen, Karl Marx, Friedrich Engels, dentre outros, por ser um sistema econômico, ideológico, político e comportamental que tende a provocar êxodo rural, inchamento das cidades, capitalização por parte dos proprietários dos meios de produção, exacerbação do consumo e competitividade, individualismo, alienação pessoal, política, educacional e financeira, e outros fenômenos sociais que coisificam o homem em torno de uma lógica de mercado, o capitalismo em si para Horkheimer não é o vilão exclusivo que caracteriza a civilização industrial. Segundo Horkheimer apud Reale e Antiseri (2003, p. 846), os problemas inerentes ao “lucro” e ao “planejamento” como geradores de repressão não são particularidades específicas do capitalismo, mas ao contrário, afirma que o verdadeiro problema é “(...) o fascismo é a verdade da sociedade moderna (…) quem não quer falar do capitalismo deve também calar sobre o fascismo”. Isso se daria devido à crença de Horkheimer de que o fascismo é inerente às leis do capitalismo, o que o filósofo chamou de “pura lei econômica” que segundo as tradições liberais e neoliberais chama-se “lei do mercado e do lucro”, para Horkheimer chama-se “pura lei do poder”. Para o entendimento de todos faz-se necessário verificar do que se trata quando Horkheimer indica o fascismo como inerente às leis do sistema econômico capitalista. O fascismo foi uma doutrina totalitária, isto é, um sistema político no qual o Estado se encontra normalmente sob o controle de uma pessoa, sistema político, facção social ou classe social que não reconhece limites à sua autoridade e que busca regulamentar todos os aspectos da vida pública e privada. Além dessas características, o fascismo é uma doutrina radical de extrema direita, desenvolvida na Itália por Benito Mussolini a partir de 1919, sendo o nome da doutrina política decorrente do partido a que o criador estava vinculado no final do século XIX início do século XX.

Portanto,

para

Horkheimer,

o

sistema

econômico

predominante

na

civilização industrial, o capitalismo, mascara a realidade funcional de suas teses através da ideia de “harmonia social” gerada pelas chamadas “leis do mercado” de cunho liberal, na medida em que se consolida enquanto poder de uma minoria que detém a propriedade privada das forças de produção. Ainda sob a influência do que os economistas chamam de “segunda revolução industrial”, Horkheimer analisa a civilização industrial desde o início da influenciação do liberalismo clássico, que se baseia na concorrência de mercado, até o capitalismo monopolista que tem como princípio a destruição da economia de mercado para num momento posterior, progredir para uma abordagem totalitária e excludente de uma de suas falácias iniciais, a saber: a livre concorrência; já que a tendência da disputa mercadológica é suprimir os oponentes através do aperfeiçoamento tecnológico a ponto de ser predominante ou totalitário no nicho mercadológico em que se estabelece. No âmbito da gestão do Estado sob o fascismo capitalista, Horkheimer observa a necessidade de crescimento da burocracia em todos os setores da vida, uma vez que se faz necessária a institucionalização do poder enquanto mediador mais ou menos ativo no mercado para que seja manipulado pelos donos do capital, na medida de seus interesses, embora com a desculpa de que sua função precípua é a de representar o povo, o Estado acaba por se tornar inacessível aos representantes populares e veicula-se em mais uma instância de apropriação pública

da

iniciativa

privada,

defendendo-lhe

os

interesses

e

quando

conveniente, socorrendo-se dos recursos públicos em prejuízo ao Estado. Por

outro lado

e curiosamente

a despeito

dos indícios

que nossa

argumentação pode dar ao leitor, Horkheimer pouco se atém à defesa do comunismo, enquanto sistema ideológico, político e econômico teoricamente assinalado por Marx, Engels e os vários marxismos posteriores aos filósofos opostos ao capitalismo-liberalismo. Para Horkheimer o comunismo é “capitalismo de estado, constitui uma variante do estado totalitário” e por conseguinte, fascista tanto quanto o capitalismo.

Isso

se



devido

às

organizações

proletárias

se

tornarem

burocráticas, isto é, uma proposta organizacional que se caracteriza por regras e procedimentos explícitos e regularizados cuja divisão das responsabilidades e especialização do trabalho prioriza a hierarquização funcional e impessoaliza as relações

humanas.

Como

se

percebe,

ao

burocratizarem-se

as

organizações

proletárias submetem-se a um dos princípios operacionais do capitalismo, a saber, a divisão e especialização do trabalho que efetivam a alienação dos que não são proprietários dos meios de produção. Portanto, o comunismo também é um capitalismo de estado e enquanto tal, um regime fascista. É nesse sentido que Horkheimer em sua Crítica da razão instrumental (1973) leva a efeito o exame do conceito de racionalidade implícito a cultura industrial e tenta identificar algum vício essencial. Em a Crítica da razão instrumental (1973) Horkheimer conceitua razão instrumental como sendo a operacionalização dos processos racionais, entendendo estes no sentido investigado no início deste artigo, isto é, no sentido de algo que não se relaciona mais com a natureza enquanto o humano é a própria parte constitutiva da natureza e portanto, capaz de apreendê-la e nela e por ela interagir de maneira harmoniosa e equilibrada; ao contrário, razão aqui se entende nos desdobramentos que são decorrentes dos usos instituídos desde o período romano, em franca oposição à vivência helênica. A razão instrumental é uma “operacionalização” da razão que em si e por si já é instrumento do homem coroa da criação, subjetivo, mas objetivamente tendo que lidar com a natureza para dominá-la e submetê-la a seus interesses. Nesse sentido, Horkheimer (1973, p. 184) afiança que a civilização industrial está de início, podre, podendo-se inclusive, falar em “doença da razão”, isto é: (...) essa doença deveria ser entendida não como o a razão em dado momento histórico, e sim como algo natureza da razão na civilização, assim como a aqui. A doença da razão está no fato de que necessidade humana de dominar a natureza.

mal que atacou inseparável da conhecemos até ela nasceu da

Nesse particular, discordo parcialmente de Horkheimer, na medida em que sua

fala

abrange

a

totalidade

do

fenômeno

razão,

pois

conforme

visto

anteriormente, é a partir da civilização romana, após a apropriação do logos helênico com a consequente adaptação a sua peculiar maneira de ver a natureza que se iniciou certa deturpação do sentido de “razão”, passando de um elemento natural cujo homem faz parte e por isso pode interpretá-la para certa faculdade humana que após a judaico-cristianismo-islamização ocidental contrapôs homemnatureza e privilegiou o homem e sua razão como usufrutuários incondicionais da natureza. Por outro lado, concordo com Horkheimer quanto ao adoecimento da razão em nível genético, desde que se leva em consideração a História Psicológica implícita a sua história da mentalidade racional. Para Horkheimer essa ânsia de dominação da natureza por parte do homem só se deu devido a uma organização burocrática e impessoal que possibilitou a auto visão humana enquanto “instrumento”, isto é, para que o homem pudesse racionalmente operar sobre a natureza e estudando-a dominá-la. A civilização industrial necessitou coisificar o homem, torná-la desprovido de pessoalidade, vê-lo enquanto número tão quantificável indistintamente quanto qualquer elemento natural, embora na raiz de sua existencialidade, no âmbito da moral, da ética e da política, a dignidade humana é tida como o que nos torna humanos, distintos dos animais por naturalização decorrente de nossa filiação divina com JeováDeus-Halah; nos âmbitos econômico e industrial, o homem é um número, um consumidor, capaz de gerar certo número de bens, serviços e de consumi-los a troco de certo valor atribuído a sua existencialidade e, até certo nível, dispensável quando se opõe aos processos burocraticamente instituídos como essenciais à produção industrial. A partir disso, procede que a instrumentalização da razão contradiz exatamente ao que a Ciência, a tecnologia e a industrialização se propuseram fazer com a humanidade nos idos do Iluminismo, enquanto processo que: (…) identifica-se ainda com a luz natural, ou o conhecimento de que o homem é capaz de naturalmente, por oposição à fé e à revelação. 'A razão é o encadeamento de verdades; mais particularmente, ao ser comparada com a fé, das verdades que podem ser atingidas pelo espírito humano naturalmente sem o auxílio das luzes da fé'. (Leibniz apud JAPIASSU & MARCONDES, 1993, p. 209).

Dado as corrupções as quais a noção helênica original de razão e racionalidade foram expostas ao longo da História da Filosofia e da Ciência, a doença a qual Horkheimer indica enquanto “inseparável” da ideia de razão, se caracteriza pela atitude do homem ver-se distinto da natureza e no direito e poder de tomar uma decisão, de conhecê-la objetivando exercer domínio sobre ela, coisificando-se

e,

como

contrapartida,

uma

vez

que

desconhece

as

bases

históricas da razão, ao coisificar a natureza intentando dominá-la coisifica-se, desumaniza-se, despersonaliza-se crendo ilusoriamente reforçar seu ato decisório individual e personalisticamente na sociedade através da tecnologia, implicando com isso a sua total, brutal e drástica desumanização. A razão, elemento que no Iluminismo foi tomado como libertador das supersticiosas

clausuras

da



religiosa

e

da

ignorância

generalizada

consolidou-se através da Ciência e da Tecnologia, de heroína a vilã, pois dado o descompromisso ético dos cientistas e industriais para com a humanidade, incitados pelo aumento constante de poder por eliminação da concorrência a tecnologia acabrunha o homem ao invés de torná-lo livre e feliz; nos dizeres de Horkeimer (1973, p. 10): “(...) pesa sobre todos a sensação de medo, e desilusão:

hoje,

as

esperanças

da

humanidade

parecem

mais

longe

de

se

concretizarem do que eram nas épocas bem mais obscuras em que foram formuladas pela primeira vez”. Isso se deu devido ao deslocamento do centro de gravidade da razão helênica enquanto paradigma inicial na criação dessa linguagem adotada e deturpada pela Filosofia, Ciência e Tecnologia contemporâneas como conjunto de estratégias (meios) para se atingir um fim (pragmatismo). Portanto, a razão instrumental tende a se engessar nos meios, não realizando a reflexão objetiva dos fins e nesse sentido, a Filosofia, a Ciência e a Tecnologia deixam de se preocupar com o conhecimento verdadeiro para deter-se e se tornar em instrumento de dominação, poder e exploração do homem coisificado, desumanizado e tratado como “sujeito” ou “consumidor” ao invés de “homem”, “pessoa” “Eu”. A razão crítica a qual Horkheimer contrapõe à razão instrumental se

caracteriza por ser uma reflexão objetiva dos fins cujos meios são analisados levando-se em consideração a ideia de “homem”, isto é, a emancipação que este possui diante da sociedade, do respeito a seu poder de crítica e de criatividade que

estão em

constante ameaça

na civilização

industrial, seja

de cunho

capitalista ou comunista. Na medida em que a civilização industrial valoriza os fins em detrimento dos meios no paradigma de oposição entre homem e natureza, a razão tende a não saber nada, o indivíduo repete unicamente que apenas existe um caminho no mundo, a saber: o de renunciar a si mesmo, isto é, o de se coisificar, intensificando o processo que o sistema econômico já prioriza, tornando-se assim, predeterminado a cumprir o seu papel na engrenagem do sistema. Apenas a não renúncia da razão ao exercício crítico que tende a observar os meios para não supervalorizar os fins, descoisificando o homem e incentivando seu desenvolvimento racional crítico é que a razão pode furtar-se à sua aplicação

pragmatista

e

irresponsável,

tirando

o

homem

à

prateleira

e

entregando-lhe o destino para que através de uma razão não calculadora, mas integrada entre o homem e a natureza resgate-se a possibilidade ecológica de interação complementar e não dominadora e destruidora, atenuando-se os efeitos de uma lógica produtiva perversa, consumista, irresponsável, não sustentável, criada

e

mantida

ainda

hoje

pelos

usuários

da

razão

instrumental

que

possibilitaram, por exemplo, o cúmulo da coisificação humana em prol de fins sem consideração sobre os meios, com a pulverização, carbonização e múltiplas lesões causadas a centenas de milhares de civis inocentes no desenvolvimento e término da Segunda Guerra Mundial, em 1945, com o ataque-experimento das bombas nucleares de Hiroshima e Nagasaki. Instrumentalmente pragmático, racional, isto é, finalizar a guerra sem mais custos humanos e materiais; ao mesmo tempo porém, brutal, irresponsável, desumano e acrítico racionalmente, portanto, uma pérola da razão instrumental.

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CRÍTICA AO SUJEITO E A RAZÃO GOVERNAMENTAL NO DOMÍNIO DA BIOPOLÍTICA DE MICHEL FOUCAULT Amílcar Machado Profeta Filho e Daniel Salésio Vandresen INTRODUÇÃO O empreendimento filosófico de Michel Foucault pode ser situado na tradição kantiana da filosofia crítica, embora não como a proposta de Kant de uma crítica dos limites da razão ou na dimensão da política moderna de vigiar os excessos do poder inerente a racionalidade política. Isso significa que não adianta colocar a razão em um tribunal para ser julgada, porque não se trata de analisar o processo de racionalização de uma sociedade como um todo. A perspectiva adotada por Foucault visa investigar as racionalidades especificas presentes nas relações de poderes locais, como: a forma de poder disciplinar presente nas prisões, escolas, fábricas, hospitais e demais instituições, bem como a forma de poder que preserva a vida (biopoder), inerente as políticas que administram as populações. Outra unidade na obra de Foucault pode ser situada no enfoque dado ao sujeito. Em todo o seu pensamento o sujeito aparece como uma construção histórica. Defende que ele se constitui a partir dos modos de subjetivação, ou seja, a partir de um jogo de verdade e de poder que o submetem ao controle do outro e, também, de si mesmo. No entanto, com enfoques diferentes na trajetória de seu pensamento40, a saber: primeiro a abordagem da década de 60, uma análise da produção dos saberes (descrição arqueológica do que pode ser dito e aceito como verdadeiro, uma investigação do processo de objetivação do sujeito pelas ciências humanas); segundo, a partir da década de 70, uma análise do poder (descrição genealógica dos poderes disciplinares que produzem individuação e das 40

A produção intelectual de Michel Foucault (1926-1984) é frequentemente caracterizada pela seguinte divisão: período arqueológico, período genealógico e, o período da ética e estética de si. Adotou-se essa classificação unicamente por conveniência, a fim de situar o leitor nesta proposta de trabalho. Deste modo, este estudo não pretende problematizar as polêmicas que envolvem tal classificação.

estratégias de governamentalidade pela biopolítica) e, terceiro, década de 80, uma estética da existência (por meio das técnicas de si ou cuidado de si, resgata a construção de uma subjetividade emancipatória, em que o indivíduo através de práticas que o relacionam a si mesmo, se produz e se transforma). Nesta última fase, o autor encaminha seu trabalho em busca de uma solução éticopolítica para o processo de sujeição. Este trabalho prioriza a análise do sujeito e da razão governamental na biopolítica de Foucault. Com isso, utilizou-se dos outras fases apenas para situar o leitor na trajetória do seu pensamento. Desse modo, esta exposição inicia-se com a sua concepção de sujeito e como ela aparece na análise do discurso. Em seguida, apresenta-se sua abordagem do poder e biopoder, mostrando como estes conceitos foram incorporados pela razão governamental moderna. Por fim, analisa-se como a educação aparece como um instrumento que coloca em movimento as forças da razão governamental, mas que, também, por meio dela é possível produzir resistência.

O SUJEITO HISTÓRICO Foucault declara (1995, 232) que o tema principal de seus estudos é o sujeito e não o poder, sendo que o seu trabalho atual (última fase) visa entender “[...] o modo pelo qual um ser humano torna-se um sujeito”. (FOUCAULT, 1995, 232). Portanto, sua investigação trata principalmente da constituição da subjetividade. Seu interesse em problematizar o discurso é o de entender a forma como nos constituímos enquanto sujeitos do nosso saber e como os indivíduos exercem e sofrem relações de poder. Daí sua preocupação, a partir dos anos 80, gira em torno da “estética de si”, ou seja, os mecanismos que os indivíduos utilizam na construção de si mesmos, tema da subjetividade. A subjetividade, para Foucault, se refere às práticas por meio das quais o

indivíduo

constrói

uma

verdade

sobre

si.

Em

suas

palavras,

define

subjetividade como: “a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo num jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo”. (FOUCAULT, 1984

apud

REVEL,

2005,

85).

Abordar

o

tema

da

produção

histórica

da

subjetividade

na

perspectiva

foucaultiana

significa

tratar

dos

modos

de

subjetivação, ou seja, os modos – as práticas, as técnicas, os exercícios – colocados em ação em um determinado espaço institucionalizado, no qual o sujeito se constrói nas relações de saber-poder e na produção de uma verdade. O problema da subjetividade em Foucault pode ser caracterizado por dois tipos de análise dos modos de subjetivação (REVEL, 2005, p. 82): como processo de sujeição do indivíduo, seja por meio dos saberes que o objetivam, seja por meio dos poderes que o submetem a um governo e, de outro modo, por meio de técnicas de si, que fazem com que o sujeito constitua sua própria existência. No texto Subjetividade e Verdade (1980/81), Foucault descreve o que pretende com o estudo deste tema: O fio condutor que parece ser o mais útil, nesse caso, é constituído por aquilo que poderia ser chamar de “técnicas de si”, isto é, os procedimentos, que, sem dúvida, existem em toda civilização, pressupostos ou prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de determinados fins, e isso graças a relações de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si por si. (FOUCUALT, 1997, p. 109).

Para o pensador francês, o indivíduo se constrói por meio de práticas que impõe uma verdade sobre si e que devemos reconhecer como tal. É o poder que produz o sujeito e não o contrário. “É uma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos” (FOUCAULT, 1995, p. 135). A formação do sujeito consiste em um processo de sujeição que o faz estar preso a uma identidade construída. Em cada momento histórico, existem práticas de si que visam a construção de identidades para atender a determinados fins, segundo as relações de saber-poder vigentes.

Assim, quando trata do poder, o autor quer investigar as estratégias

utilizadas em uma sociedade para a subjetivação do indivíduo e como seria possível

através

de

forças

de

resistência

buscar

a

libertação

ou

desassujeitamento.

O SUJEITO DISCURSIVO: UM DEBATE EM CONSTRUÇÃO O “sujeito” é dotado de contradições das quais esta breve apresentação não pode dar conta de abordar sua amplitude. Concentram-se as energias em

analisar o sujeito em alguns aspectos filosóficos, interligando-o à análise do discurso (AD), ao “sujeito discursivo”. O conceito de “sujeito”, por exemplo, em Foucault é muito complexo de ser compreendido. Esse autor foi considerado historiador, linguista, pensador, filósofo. Daí se observa seu grau de erudição. Em seu ciclo de aulas entre 1981-1982, Foucault (1997) 41 trouxe indícios para responder: quem é este “sujeito”? O que são “cuidado de si”, “técnicas de si”? Essas questões fizeram parte das preocupações do pensador. Para respondê-las, ele retornou a Antiguidade. Foucault afirma que, desde tempos antigos, o homem preocupou-se com o “cuidado de si” com o objetivo de conhecer a si mesmo. O autor trouxe uma abordagem

filosófica do

“sujeito”, porém

essencial, porque

partindo do

pressuposto de que o “sujeito” é fruto de um contexto social e histórico, compreendendo-o, entende-se seu discurso. Ao estudar Sócrates, Foucault afirma que o filósofo grego foi condenado a tomar cicuta42 porque seu objetivo durante a vida foi reconhecer que a divindade está sempre perto do homem até seu último suspiro. Sócrates também ajudou a formar a juventude ateniense. Segundo Foucault, o filósofo grego se considerava um “mestre” do cuidado de si mesmo. Interpelava as pessoas dizendo: “vos ocupais de vossas riquezas, e de vossa reputação e de vossas honras, mas não vos ocupais com vossa virtude e vossa alma”. (FOUCAULT, 1997, p. 119). Com essa tarefa de autorreflexão, Sócrates as ensinava, desinteressadamente, não pedia retribuição, não almejava condecoração, mas realizava por benevolência. O autor salienta que os juízes de Sócrates não deveriam condená-lo, mas recompensá-lo “por ter ensinado aos outros a cuidarem de si mesmos”. (FOUCAULT, 1997, p. 120). Com essa postura, Sócrates colaborou para a emancipação, para a busca da consciência, da juventude ateniense, mas essa atitude ocasionou sua própria morte. Em Atenas, havia uma estrutura de poder em que apenas uma parcela da população 41

era

beneficiada.

Essa

pequena

parcela,

composta

por

cidadãos

Em Foucault (1997), estudamos, especificamente, o curso intitulado A hermenêutica do sujeito. Planta venenosa que era encontrada na Antiguidade em regiões como o Oriente Médio e a Europa. Foi utilizada para envenenar o filósofo grego Sócrates. 42

atenienses,

era

formada

pela

elite.

A

escravidão

e

as

guerras

traziam

enriquecimento para a cidade. Quem não fosse nascido em Atenas não poderia ser cidadão, ou seja, não tinha voz na praça pública, na Ágora. Sócrates deveria observar o privilégio desses poucos cidadãos, os abusos de poder, a corrupção latente, por isso era seu dever, enquanto filósofo e preceptor, despertar a juventude para a reflexão de seus próprios atos, para o cuidado de si, de seu nível moral, de sua ética. Entretanto, no decorrer do processo histórico, sabese qual é o desfecho daqueles que buscam o resgate da consciência. Sócrates incomodava muitos “poderosos” e não restou alternativa senão a de silenciar seu discurso. Aqui, tem-se uma prova de que o sujeito discursivo pode ser silenciado. Foucault

leva

a

indagar

questões

contraditórias

que

podem

ser

consideradas exemplos atuais. O problema da seleção e da “interdição” do discurso (FOUCAULT, 2006a, p. 9) existente hoje nas instituições, na sociedade, na família, vem de séculos. Comprova que o “sujeito” pode ser influenciado pelo contexto que se insere e que, ao buscar um entendimento maior sobre os discursos que o cerca, sobre a economia, a política, a ciência, as instituições jurídicas, a sociedade, corre-se o risco de sua fala ser “excluída”, ser “desqualificada”, ser considerada “louca”, porque pode abalar estruturas de poder consolidadas, organizadas por indivíduos que não querem perder seus privilégios econômicos, seu status social. Retomando Sócrates, Gregório de Nícia e outros filósofos da Antiguidade, Foucault (1997, p. 121-122) diz que o [...] cuidado de si constituiu não somente um princípio, mas uma prática constante. [...] Será preciso, então, compreender quando os filósofos e moralistas recomendarão o cuidado de si (epimeleïsthai heautô), não aconselhando simplesmente prestar atenção em si mesmo, evitar as faltas ou os perigos ou se proteger. Referem-se a um campo de atividades complexas e reguladas. Pode-se dizer que, em toda filosofia antiga, o cuidado de si foi considerado, ao mesmo tempo, como um dever e como uma técnica, uma obrigação fundamental e um conjunto de procedimentos cuidadosamente elaborados. (grifo nosso).

O sujeito tem a função de cuidar mais de seu “interior”, de suas ideias

e

representações

sobre

o

exterioridade/materialidade.

mundo, Para

de

atingir

sua tal

alma, estado

do de

que

de

sua

introspecção,

de

reflexão interior, de postura ética em ações diárias, o sujeito deve utilizar-se de

técnicas: “meditatio”,

“exercitatio” (FOUCAULT,

1997, p.

132). Na

meditação, na reflexão profunda, na atenção aos pensamentos, nas representações que a mente produz, devem-se observar esses pensamentos como um soldado em estado de guerra, meditar sobre as atitudes. Isso leva à autorreflexão e à busca de ações corretas. O sujeito não se deve deixar influenciar por acontecimentos “exteriores”. Mas deve aprender a não se deixar afetar por problemas materiais e emocionais, por acontecimentos que ocorrem no dia a dia, buscando transcendêlos. Mas como conseguir atingir esse estágio de plenitude individual? Foucault (1997, p. 127), na tentativa de entender os filósofos antigos, conclui que “Precisamos de ‘discurso’: de logoï, entendidos como discursos verdadeiros. [...] São eles que permitem afrontar o real”. Decifrar o que Foucault entende como “discurso verdadeiro” não é tarefa para iniciantes. Arriscamos a dizer que esses discursos poderiam ser a retomada íntima e profunda da consciência humana, consciência que se perdeu devido um emaranhado de teorias, de explicações sobre a vida e o mundo, entretidos em um ego robustecido,

cacarejado

de

autoimportância

e

autosapiência,

de

querer

transformar o mundo tendo como mola secreta da ação humana a inveja e a cobiça. Mas Foucault (1997, p. 130) diz que esses “discursos verdadeiros” não ajudam a decifrar os desejos e as representações: “Trata-se, ao contrário, de armar o sujeito de uma verdade que não conhecia e que não residia nele; trata-se de fazer dessa verdade aprendida, memorizada, progressivamente aplicada, um quasesujeito que reina soberano em nós mesmos”. Como o texto A hermenêutica do sujeito é um dos mais difíceis que o pensador francês escreveu, é relevante reportar-se à análise de Revel (2005). Segundo a autora, o que Foucault intentava era um resgate a um “ideal ético” do sujeito, por isso estudava a Antiguidade (REVEL, 2005, p. 33). Ou seja, ao retomar a Antiguidade Clássica, Foucault relaciona o “cuidado de si” com o cuidado dos outros. O “sujeito” deve saber se autogovernar primeiro para

depois governar a comunidade. O homem deve se preparar para governar sua casa, sua mulher, seus filhos e, para uma “boa conduta” em sociedade, uma conduta ética, buscar princípios que colaborem para o seu desenvolvimento pessoal e da sociedade. A autora expõe que o “cuidado de si” é “igualmente uma arte de governar os outros” (REVEL, 2005, p. 34). Avançando em suas análises, salienta que, para Foucault, “se o sujeito se constitui, não é sobre o fundo de uma identidade psicológica, mas por meio de práticas que podem ser de poder ou de conhecimento, ou ainda por técnicas de si”. (REVEL, 2005, p. 85). E conclui que o “sujeito” não é um indivíduo livre, autoconstituído: O pensamento de Foucault apresenta-se, desde o início, como uma crítica radical do sujeito tal como ele é entendido pela filosofia ‘de Descartes a Sartre’, isto é, como consciência solipsista e a-histórica, autoconstituída e absolutamente livre. [...] Tratase, portanto, de pensar o sujeito como um objeto historicamente constituído sobre a base de determinações que lhe são exteriores. (REVEL, 2005, p. 84, grifo nosso).

O sujeito é fruto de um processo histórico que o influencia, que o constitui,

que o

determina. Esse

debate fez

com que

surgissem inúmeras

polêmicas. Como não é o foco do presente estudo aprofundar somente os aspectos filosóficos

do

“sujeito”,

conduzir-se-á

este

debate

para

o

“sujeito

discursivo”, que vai além do sujeito individual, único, do “indivíduo livre” citado. Segundo Fernandes (2008, p. 34-35), o “sujeito discursivo” é plural, heterogêneo, fruto de um contexto sócio-histórico e ideológico formado por diferentes vozes sociais. Os aspectos ideológicos influenciam diretamente na formação do discurso e do sujeito, sendo a ideologia inerente ao “sujeito discursivo”. Em toda e qualquer formação discursiva, as contradições representam uma coerência visto que desvelam elementos exteriores à materialidade linguística, mas inerentes à constutividade dos discursos e dos sujeitos. Os sujeitos são marcados por inscrições ideológicas e são atravessados por discursos de outros sujeitos, com os quais se unem, e dos quais se diferenciam. (FERNANDES, 2008, p. 56)

Neste momento, talvez se possa estabelecer uma convergência entre o pensador Bakhtin43 e Michel Foucault. No primeiro, observa-se que o “sujeito” se constitui em decorrência do dialogismo (o sujeito é constituído socialmente). No segundo, observa-se a importância da história (o sujeito é formado por determinações históricas). Parece que, para os dois pensadores, o sujeito sofre a influência da “exterioridade”, onde é gerado o discurso. Nesse sentido, o “sujeito discursivo” é influenciado por um contexto ideológico e social, interligado às formações discursivas e aos discursos de outros sujeitos em um processo

de

criação,

recriação,

deslocamento,

aproximação,

articulação

e

desarticulação do discurso. Eni Orlandi (2007) afirma que o sujeito é atravessado pela história e pela língua. A autora analisa o “sujeito discursivo” e o considera um sujeito assujeitado. Devemos ainda lembrar que o sujeito discursivo é pensado como ‘posição’ entre outras. Não é uma forma de subjetividade, mas um ‘lugar’ que ocupa para ser sujeito do que diz (M.Foucault, 1969): é a posição que deve e pode ocupar todo indivíduo para ser sujeito do que diz. O modo como o sujeito ocupa seu lugar, enquanto posição, não lhe é acessível, ele não tem acesso direto a exterioridade (interdiscurso) que o constitui. Da mesma maneira, a língua também não é transparente nem o mundo diretamente apreensível quando se trata da significação pois o vivido dos sujeitos é informado, constituído pela estrutura da ideologia (M. Pêcheux, 1975). (ORLANDI, 2007, p.49, grifo nosso).

Entretanto, Possenti (2009) traz problemáticas em relação ao “sujeito” que, em abordagem fundamentada e crítica à Análise de Discurso (AD), observa questões das quais uma parte dos analistas parecem não considerar: A leitura de O uso dos prazeres (Foucault 1984) me mostrou que Foucault também abandonara seu posto antigo, e visava agora a um sujeito das práticas do cotidiano, cercado de circunstâncias que certamente não o deixam livre, mas que não o subjugam. O sistema é frouxo, digamos assim, e obriga a escolhas, a uma estética – um estilo, por que não? – da existência. Estamos longe do sujeito assujeitado. (POSSENTI, 2009, p. 87, grifo nosso).

43

BAKHTIN, Mikhail. (Voloshinov). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979.

Essa colocação traz a dificuldade não só em conceituar o “sujeito” (sujeito discursivo), mas também de relacioná-lo a outros conceitos, como o de “ideologia”. Pode-se afirmar que esse movimento realizado pela AD, o de relacionar sujeito/ideologia, dá base e fundamentação para suas pesquisas, no entanto também poderia ser considerado um procedimento metodológico de cunho ideológico. Possenti concorda, em alguns aspectos, com a AD, com a importância da história, da psicanálise e da linguística para os estudos e dentre essas três áreas do conhecimento, parece tender mais para a última. Em relação às problematizações que envolvem o “sujeito”, o autor salienta que A questão do sujeito é uma questão aberta. Para analistas do discurso afetados de alguma forma pelo ‘ar do tempo’ da época heroica da fundação da disciplina, só há um consenso absoluto: o fim do sujeito cartesiano. [...] trata-se fundamentalmente de aceitar que o sujeito é segundo em relação a seu entorno – social, linguageiro, ideológico, cultural, até mesmo biológico. Ou seja, nos termos mais ou menos correntes da AD: o sujeito é efeito [...]. Dito de outra forma, também corrente, o sujeito não é origem (do sentido, da história etc.). [...] Assinalaria, por isso, que, se, em seguida, passei a não aceitar a tese corrente em AD segundo a qual o sujeito é assujeitado, não foi por desconhecêla. Foi exatamente porque eu a conhecia bastante bem e a tinha anteriormente aceito. (POSSENTI, 2009, p. 82-83, grifo nosso).

O autor primeiro critica o sujeito “uno e consciente” para, em seguida, dizer que o sujeito é “efeito” e que não é a origem do sentido, da história etc. Finaliza criticando a ideia de que o sujeito é assujeitado e que acreditava nessa última, porém justifica que mudou de opinião por razões empíricas e teóricas (POSSENTI, 2009, p. 83). Diante

de

tantas

polêmicas,

interpretações

e

debates

sobre

o

sujeito/sujeito discursivo realizados nesta breve análise, não se arrisca fazer definições. Há autores que entendem o sujeito discursivo como fruto de um processo de determinações históricas. Outros pensadores afirmam que o sujeito é uma construção ideológica e, por isso, tudo que diz é ideológico, constituindose dialogicamente no contexto social. E outros ainda afirmam que o sujeito não

pode ser assujeitado, ou seja, o que o sujeito diz, suas atitudes, extrapola talvez esse “assujeitamento”. Enfim, são polêmicas longe de serem resolvidas.

O DOMÍNIO DA BIOPOLÍTICA O pensamento de Foucault busca analisar a constituição do sujeito em meio a produção de verdade, de discursos, de saberes e de poderes. Neste tópico, será abordado como o poder e o biopoder tornam-se forças que na razão governamental permitem o governo do outro, a construção de um eu, uma subjetividade.

O PODER E O BIOPODER Foucault faz duas abordagens em relação ao poder que se exerce na sociedade moderna a partir do séc. XVIII: primeiro, uma sociedade disciplinar (principalmente na obra Vigiar e Punir - 1975), onde analisa as instituições e revela que o poder que se exerce sobre o corpo do indivíduo através de dispositivos

de

vigilância

e

coerção,

visa

objetivar

o

indivíduo,

para

normalizá-lo e adestrá-lo, tornando-o frágil e dócil aos interesses de uma sociedade industrial. Segundo, uma sociedade governada pela biopolítica (Cursos do Collège de France - 1975-1980), onde o poder através de dispositivos de segurança age sobre a vida para preservá-la. A noção de poder e a compreensão de como esse conceito evolui no pensamento de Foucault é indispensável para compreender sua obra. Embora declare que o tema principal de suas investigações seja a constituição do sujeito, a compreensão do poder, além de provocar um novo olhar sobre o modo como o poder funciona, também é essencial e está presente em suas obras a partir da década de 70. Essa investigação é caracterizada pelo autor como genealógica, para designar o sentido de sua análise das condições do funcionamento do poder e, também, para diferenciar de sua investigação anterior, da década de 60, em que privilegiou a análise

da

epistemé

ou

constituição

dos

saberes,

fase

denominada

de

arqueológica. Foucault admite (2005c, p. 03 e 06), na obra Microfísica do Poder, que o evento de maio de 1968 foi decisivo para que ele começasse abordar a questão do

poder. Esse evento diz respeito a uma série de greves estudantis que irrompem em algumas universidades e escolas de ensino secundário em Paris e que rapidamente assumiu um significado de proporção revolucionária (houve mobilizações operárias na França e em outros países). Foi a partir desse momento que as questões adquiriram para si uma significação política. Para o autor, ninguém nesse momento (tanto da direita como da esquerda) se preocupava com a questão de como o poder se exercia; foi a partir das lutas cotidianas realizadas com aqueles que tinham que se debater, “[...] nas malhas mais finas da rede do poder” (FOUCAULT, 2005c, p. 7), que apareceu a necessidade de se refletir sobre o exercício do poder. Foucault não teve a intenção de elaborar uma teoria do poder, antes realizou uma analítica do poder, ou seja, seu objetivo era analisar como o poder funcionava, operava e governava. “O poder não é uma substância. [...] O poder não é senão um tipo particular de relações entre os indivíduos”. (FOUCAULT, 2006b, p. 384). No seu modo de ver, o poder não tem essência, o qual poderia ser conquistado, nem pode ser reduzido a uma substância unitária (Estado, por exemplo), onde pudesse ser localizado. Com isso, não quer negar o poder que o Estado possui, antes quer deslocar a análise para os micro-poderes que estão em jogo na constituição do sujeito. Sua principal ênfase é na compreensão do sujeito assujeitado, ou seja, analisar os mecanismos de poder que estão em jogo quando obedecemos. Que forças são ativadas quando obedecemos? Além disso, seu problema não é o puro poder, mas as relações entre saberpoder presente nos discursos que nos constitui. Seu objetivo é analisar os efeitos positivos que o poder exerce sobre os indivíduos, ou seja, entender como estes aceitam o seu exercício sem reagir. Sua hipótese é de que o poder se exerce justamente porque constitui uma positividade (ligação com o saber). Tratar

o poder

pela positividade

significa não

investigar em

sua

instância negativa, como algo que reprime e diz não, mas como poder produtivo, produz coisas, forma saberes, produz discurso e verdade. Pretende analisar seus efeitos positivos sobre o indivíduo. Para Foucault, o poder é sempre uma ação

sobre ação (FOUCAULT, 1995, p. 243), isto é, o poder é uma ação que age sobre

corpos em ação. O poder constitui uma força que está em relação. Nesse sentido, segundo Deleuze (2005, p.78): “[...] o poder é uma relação de forças, ou melhor, toda relação de forças já é uma ‘relação de poder’”. O autor francês trata da relação saber-poder principalmente na obra

Vigiar e Punir, de 1975. Em sua leitura, para entender esse liame é preciso superar uma tradição que pensa esses dois conceitos separadamente. Desse modo afirma: Seria talvez preciso também renunciar a toda uma tradição que deixa imaginar que só pode haver saber onde as relações de poder estão suspensas e que o saber só pode desenvolver-se fora de suas injunções, suas exigências e seus interesses. [...] Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. (FOUCAULT, 2005d, p. 27).

Foucault defende a tese de que esse grande mito de que a verdade nunca pertence ao poder se iniciou com a cultura grega. Ruptura que precisa ser eliminada. Nietzsche deu o primeiro passo ao afirmar que o conhecimento não passa de um jogo de forças, uma luta de e pelo poder.

O caminho de Foucault se

dá pelo restabelecimento do liame entre saber e o poder. “E é somente nessas relações de luta e de poder – na maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder – que compreendemos em que consiste o conhecimento”. (FOUCAULT, 2005a, p. 23). Declara ainda, que para realizar essa tarefa é preciso se aproximar dos políticos e não dos filósofos. Enfim, o poder e o saber não existem separadamente; embora cada um tenha suas especificidades, ambos só podem ser compreendidos em relação. “O exercício do poder cria perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeitos de poder. [...] Não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre poder”. (FOUCAULT, 2005c, p. 142). Saber não é poder, tem efeitos de poder. O poder legitimado só se exerce positivamente por meio de um saber e este, por sua vez, é uma forma de exercício de poder.

Toda essa análise do poder se realiza através da investigação do conceito de disciplina colocada em ação pelas instituições modernas. Na obra de 1975, Foucault define disciplina como: “Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade”. (FOUCAULT, 2005d, p. 118).

Para

exemplificar

o

exercício

da

disciplina,

Foucault

analisa

o

Panóptico44 de Bentham como modelo do funcionamento do poder que coloca em ação o disciplinamento dos corpos através controle do tempo, da organização do espaço, do mecanismo da vigília constante e invisível e, dos registros como produção de saberes. Ao descrever sobre o panoptismo o autor quer mostrar que toda a sociedade é dominada por uma vigilância constante. “Uma forma de arquitetura que permite um tipo de poder do espírito sobre o espírito”, diz Foucault (2005d, p. 179). Ainda, segundo Foucault (2005d, p. 103), as relações de

poder em

nossa sociedade

se assemelham

à tríplice

característica do

panoptismo: ser vigilante, controlador e coercitivo. Para Foucault, as instituições da nossa sociedade se organizam sob um mesmo modelo, funcionam conforme a estrutura do panoptismo. Com isso, não se quer dizer que existe analogia entre escolas, hospitais, fábricas, prisões, etc., mas que há identidade morfológica do sistema de poder (FOUCAULT, 2006b, p. 75). Isso significa que é o mesmo tipo de poder que nelas se coloca em exercício, com o objetivo de tornar o homem disciplinado, mas não como tipo ideal de moralidade, antes como exercício de normalização dos corpos, para atender a interesses locais: seja a aprendizagem escolar ou a produtividade de um operário. Dentro do modelo do panoptismo pode ser colocado qualquer indivíduo 44

O Panóptico é um modelo de penitenciaria proposto por Bentham que Foucault se utiliza para mostrar como modelo de funcionamento de toda a nossa sociedade disciplinar. O modo como Foucault descreve o Panóptico é o seguinte: “na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é divida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito de contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível”. (FOUCAULT, 2005d, p. 165-166).

que se queira vigiado. “Em cada uma dessas pequenas celas, havia segundo o objetivo

da instituição,

uma criança

aprendendo a

escrever, um

operário

trabalhando, um prisioneiro se corrigindo, um louco atualizando sua loucura, etc.”. (FOUCAULT, 2005a, p. 87). Para o filósofo francês, a partir do fim do século XVIII e início do século XIX, começa a se formar o que chama de sociedade disciplinar (2005d, p. 179), ou seja, uma sociedade em que o corpo torna-se objeto e algo do poder. Esse poder não é um poder violento ou repressor, porque se o fosse as pessoas de um modo ou de outro se revoltariam e procurariam meios de resistência. Antes, este poder ligado ao saber age como agregador, pois as pessoas que se deixam conduzir por um determinado saber o fazem porque esse os convence. “O poder, longe de impedir o saber, o produz”, afirma Foucault (2005c, p. 148). Segundo

Deleuze

(2005,

p.

90)

o

poder

não

é

violento

por

duas

características: por um lado, o poder exprime relações de forças (como incitar, induzir, produz um afeto útil, etc.); por outro lado, está relacionado com o saber, que produz verdade enquanto faz ver e falar. Ou ainda, nas palavras de Foucault (2006b, p. 219-220): “como o poder seria leve e fácil, sem dúvida, de desmantelar, se ele não fizesse senão vigiar, espreitar, surpreender, interditar e punir; mas ele incita, suscita, produz; [...] ele faz agir e falar”. Já a noção de biopoder, como um poder que se exerce sobre a vida dos indivíduos e, de biopolítica, como forma de governo que age sobre a população, constituem outro enfoque de análise de Foucault e estão presentes nos textos do curso do Collège de France de 1975 a 1980, dentre alguns, destacam-se: “Segurança, Território, População” (1977-78), “Nascimento da Biopolítica” (1978-79)

e

“Do

Governo

dos

Vivos”

(1979-80).

Obras

que

publicadas

recentemente estão possibilitando um novo olhar para as análises de Foucault. Contudo, ainda que esses conceitos não apareçam, esse enfoque de análise já está presente em sua obra já publicada: História da Sexualidade I: vontade de saber (1984). Nesta obra, o sexo aparece como problema político e econômico que precisa ser administrado. Ao estudar a sexualidade, Foucault revela um poder que a produz, são vários os procedimentos que são colocados em ação para “gerir a

vida” (FOUCAULT, 1988, p. 128) dos indivíduos na sociedade moderna: é preciso analisar a taxa de natalidade, a idade do casamento, as relações sexuais, a incidência

das práticas

contraceptivas, entre

outras.

“O

homem, durante

milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”. (FOUCAULT, 1988, p. 134). Com o texto “O que é a crítica?” [Crítica e Aufklärung] (1978), Foucault resgata o desenvolvimento histórico do conceito de biopolítica no que ele chama de “arte de governar” (FOUCAULT, 2010, p. 2). Sendo que entende por governo uma: “[...] prática social de sujeitar os indivíduos por mecanismos de poder que reclamam de uma verdade [...]”. (FOUCAULT, 2010, p. 5). Nesse texto, defende que a origem da arte de governar remonta a pastoral cristã. Durante a Idade Média desenvolveu-se uma forma de governo sobre os homens que tinham como objetivo a direção de sua consciência para conduzi-los para a salvação, isto implicava todo um jogo de saber e técnicas de poder. Já no texto Omnes et singulatim: para uma crítica da razão política (1979),

publicado

em

Ditos

&

Escritos

IV,

Foucault

aborda

o

poder

individualizante que o poder pastoral exerce sobre a vida dos indivíduos e, também, como esta atitude foi incorporada pela arte de governar moderna. Este segundo aspecto será abordado mais a diante. Segundo Foucault (2006b, p. 368) o cristianismo está baseado em uma pastoral que se exerce por um conhecimento particular

de suas

ovelhas, prática

que se

realizava pelas

práticas da

confissão, do exame e da direção da consciência. Tais práticas permitem ao pastor conhecer a necessidade de cada um, suas angústias, pecados, desejos, segredos, etc. Fazendo com que o indivíduo mesmo professe a verdade sobre si. Verdade que tem como parâmetro a obediência às regras e dogmas estabelecidos. Retomando o texto de 1978, Foucault afirma (2010, p. 2) que a partir do sec. XV houve uma verdadeira explosão da arte de governar os homens, ou seja, há uma laicização de uma atitude que estava restrita à prática religiosa. [...] multiplicação dessa arte de governar em domínios variados: como governar as crianças, como governar os pobres e os mendigos, como governar uma família, uma casa, como governar os exércitos,

como governar os diferentes grupos, as cidades, os Estados, como governar seu próprio corpo, como governar seu próprio espírito. Como governar, acredito que esta foi uma das questões fundamentais do que se passou no século XV ou no XVI. (FOUCAULT, 2010, p. 2).

Como governar? Como se governar? Como governar os outros? Essas são questões que estão em jogo na arte de governar que se multiplica. Dentre todas essas formas de governo, o interesse de Foucault se direcionará para a análise do governo político. Com o conceito de biopolítica, Foucault volta suas análises para o Estado enquanto prática de governo baseada em uma racionalidade que visa certas estratégias políticas com pretensões de administrar a vida e o corpo da população. Na obra “Segurança, Território, População” (1977-78), Foucault mostra que a partir do séc. XVIII a questão do governo irá se desenvolver sob um novo enfoque: a vida dos indivíduos considerados na dimensão da população. Esse poder está presente nos diferentes meios e instrumentos que o Estado utiliza para controlar os problemas que surgem em torno da cidade, tais como: as doenças epidêmicas (como a varíola), a fome (escassez alimentar), a guerra (com feridos e mortos), a distribuição demográfica, o controle da natalidade, entre outros. Para Foucault o problema político moderno gira em torno da população. Assim, afirma: [...] noção capital do século XVIII, é a população considerada do ponto de vista das suas opiniões, das suas maneiras de fazer, comportamentos, dos seus hábitos, dos seus temores, dos seus preconceitos, das suas exigências, é aquilo sobre o que se age por meio da educação, das campanhas, dos convencimentos. (FOUCAULT, 2008b, p. 118).

Nesse sentido, trata-se de governar populações, educar, controlar sua mobilidade territorial, medicalizar, favorecer o seu crescimento e bem-estar. A população torna-se um objeto que importa conhecer para poder controlar. Somente é possível agir sobre ela, quando se conhece seus desejos, comportamentos, angústias, enfim, tudo que envolve a vida de um indivíduo em grupo. Para Foucault (2008b, p. 17s), aparece neste momento a preocupação com a cidade ligada ao desenvolvimento de um Estado administrativo. A cidade é o espaço onde surge novos saberes (estatística, economia e demografia e, em seguida, a preocupação com a

saúde pública e as ciências humanas da psicologia, psiquiatria e psicanálise) indispensáveis para o governo biopolítico. Quanto mais conhecido, melhor para modificá-lo, transformá-lo, manejá-lo. A produção de saberes é imprescindível ao exercício do biopoder. É a partir do séc. XVIII que diferentes questões que envolvem a vida da população tomam a dimensão de um problema político. É então que vemos as coisas aparecem, problemas como habitat, as condições de vida em uma cidade, higiene pública, a mudança da relação entre fecundidade e da mortalidade. Isso levanta a questão de como fazer para que as pessoas tenham mais filhos, em qualquer caso, como podemos regular o fluxo de pessoas, como também podemos controlar a taxa de crescimento da população e da migração. E a partir daí uma série de técnicas observacionais entre os quais está, evidentemente, a estatística, mas também todos os grandes organismos administrativos, econômicos e políticos, que são responsáveis pela regulação da população (FOUCAULT, 2012, p. 246, tradução nossa).

Embora não haja contradição entre as análises do poder disciplinar e da biopolítica, pois ambas se complementam com o propósito de analisar o processo de normalização, deve-se notar a relevância da mudança na pesquisa genealógica para dar conta de explicar porque o biológico tornou-se algo de lutas políticas. A diferença nas análises é evidente, pois enquanto o poder disciplinar busca revelar como o indivíduo torna-se um sujeito dócil e útil, o biopoder pretende mostrar que o indivíduo enquanto espécie humana (enquanto população) tornou-se algo da gestão calculada da vida. Nesse sentido, o trabalho de Michael Hardt e Antonio Negri, na obra “Império”, expõe no mesmo horizonte da biopolítica de Foucault e do conceito de Sociedade de Controle de Gilles Deleuze, como a gestão da vida tornou-se alvo do governo político. Nessa obra, defendem que o “Império”, diferente do Imperialismo cujo poder estava centralizado na força do soberano: o Estado moderno, antes se constitui como um biopoder, que intensificado pelo processo de globalização da informação e comunicação, governa o fluxo da vida por meio das relações de produção. “As grandes potências industriais e financeiras produzem, desse

modo,

não

apenas

mercadorias

mas

também

subjetividades.

Produzem

subjetividades agenciais dentro do contexto biopolítico: produzem necessidades, relações sociais, corpos e mentes – ou seja, produzem produtores”. (HART; NEGRI, 2002, p. 51). Para os autores, a vida tornou-se mercantilizada, somos produzidos

como

produtores,

nossa

subjetividade

precisa

guiar-se

pela

criatividade.

PARA UMA CRÍTICA DA RAZÃO GOVERNAMENTAL No texto Omnes et singulatim: para uma crítica da razão política (1979), Foucault associa a arte de governar o Estado com o poder individualizador do governo pastoral da tradição cristã. O interesse de Foucault é resgatar a evolução do pastorado como uma tecnologia de poder e o problema do poder individualizante. “Aparentemente, essa evolução é oposta à evolução para um Estado centralizado. Penso, de fato, no desenvolvimento das técnicas de poder voltadas para os indivíduos e destinadas a dirigi-los de maneira contínua e permanente”. (FOUCAULT, 2006b, p. 357). Seu objetivo (FOUCAULT, 2006b, p. 372) não visa discutir sobre a formação do Estado moderno, nem quer resgatar os processos econômicos, sociais e políticos que possibilitaram sua origem. Antes, sua investigação pretende analisar a organização política estatal como prática de uma racionalidade presente no exercício do poder do Estado e que se constitui como um “[...] governo dos indivíduos por sua própria verdade” (FOUCAULT, 2006b, p. 370). O propósito de Foucault ao analisar o Estado é o de investigar, como o próprio título da obra indica, uma crítica a racionalidade presente na forma de governo, isto é, analisar a racionalidade que está em jogo no exercício do poder do Estado. O autor mesmo admite que é um título pretencioso (FOUCAULT, 2006b, p. 355). Tal empreendimento será realizado através da investigação de “[...] dois corpos de doutrina: a razão de Estado e a teoria da polícia”. (FOUCAULT, 2006b, p. 372, grifo do autor). A razão de Estado deve ser entendida como “[...] uma racionalidade própria à arte de governar os Estados”. (FOUCAULT, 2006b, p. 374). E é justamente nesta racionalidade que o governo do Estado tem sua especificidade em

relação às outras formas de governo. Em que consiste essa racionalidade? Foucault diz ser algo “[...] simples: a arte de governar é racional se a reflexão a conduz a observar a natureza daquilo que é governado – no caso, o

Estado”. (FOUCAULT, 2006b, p. 374, grifo do autor). Essa razão de Estado busca constituir um governo autônomo, tendo uma identidade enquanto instituição e uma forma de organização capaz de reger-se a si mesmo. Para conquistar essa autonomia, essa razão de Estado precisa conhecer a própria

natureza

daquilo

que

pretende

governar:

o

Estado.



reside

a

especificidade dessa racionalidade: precisa estar alicerçado em certo saber capaz de aumentar e reforçar sua potência. Nisto consiste a razão de Estado: “[...] um governo racional capaz de aumentar a potência do Estado de acordo com ele próprio, passa pela constituição prévia de um certo tipo de saber”. (FOUCAULT, 2006b, p. 376). Essa razão de Estado se opõe a duas tradições. Primeiro, a tradição cristã, para a qual o governo era justo em sua natureza porque tem como referência todo um sistema de leis: humanas, natural e divina. Tal concepção não se interessa pelo que é o Estado, mas pelo que ele deve ser. Segunda ruptura com a tradição política de Maquiavel, para o qual o modelo de governo do príncipe (Soberano) era critério para manter o Estado. A razão, ao contrário, a razão de Estado busca justamente reforçar o Estado e não o Soberano. A teoria da polícia diz respeito “[...] à doutrina da polícia, ela define a natureza dos objetivos da atividade racional do Estado; ela definiu a natureza dos objetivos que ele persegue, a forma geral dos instrumentos que ele emprega”. (FOUCAULT, 2006b, p. 373). Assim, não se deve associar “polícia” com a instituição que conhecemos, mas o que os autores do séc. XVII e XVIII se referem com este termo é a uma técnica de governo própria ao Estado. Com esse conceito Foucault quer se referir ao Estado enquanto governo que tem o homem em todo o domínio de sua existência como alvo de sua administração. A polícia engloba tudo, mas de um ponto de vista extremamente particular. Homens e coisas são consideradas em suas relações: a coexistência dos homens sobre um território; as relações de propriedade; o que eles produzem; o que se troca no mercado. Ela se interessa também pela maneira como eles vivem, pelas doenças e

pelos acidentes aos quais estão expostos. É o homem vivo, ativo e produtivo que a polícia vigia. (FOUCAULT, 2006b, p. 378-379, grifo nosso).

Para fundamentar essa ideia da ação da polícia sobre a vida do indivíduo, Foucault (2006b, p. 377-382) resgata alguns teóricos da época, como: Turquet de Mayerne, que em 1961 elaborou para a Holanda uma das “primeiras utopias-programas de Estado policiado”; O administrador De Lamare, que no início do séc. XVIII apresenta sua “compilação dos regulamentos de polícia” para o reino Francês. Para De Lamare, aponta Foucault, a polícia “vela por tudo o que diz respeito à felicidade dos homens” e “tudo o que regulamenta a sociedade (as relações sociais)”; já Von Justi, autor alemão, é para Foucault o melhor que reflete a evolução do problema da polícia como arte de governar os homens. Segundo Foucault, Von Justi consegue expressar com maior clareza alguns elementos fundamentais na doutrina da polícia. Um primeiro, a finalidade da arte de governar é fazer a associação entre a vida do indivíduo e a fortalecimento do Estado: “[...] o objetivo da arte moderna de governar, ou da racionalidade estatal: desenvolver esses elementos constitutivos da vida dos indivíduos de tal forma que seu desenvolvimento reforce também a potência do Estado”. (FOUCAULT, 2006b, p. 383). Outro elemento, se refere a população como objeto da polícia: “Ao longo do

século XVIII, e sobretudo na Alemanha, é a população – isto é, um grupo de

indivíduos vivendo em uma área dada – que é definida como o objeto da polícia”. (FOUCAULT, 2006b, p. 383). Enfim, um terceiro elemento, diz respeito a associação do saber da estatística (enquanto descrição do Estado) com a arte de governar: o que permite, “[...] ao mesmo tempo, uma arte de governar e método para analisar uma população vivendo sobre um território. (FOUCAULT, 2006b, p. 384). Segundo Rabinow e Dreyfus (1995, p. 154), Foucault mostra que a tarefa da polícia é o controle do indivíduo e da população enquanto conquista de um Estado administrativo de bem-estar. “A polícia cuida para que o homem esteja vivo, ativo e produtivo”. (RABINOW; DREYFUS, 1995, p. 154). As necessidades humanas tornam-se algo da polícia, da intervenção do Estado, para assegurar a força e a vitalidade do mesmo.

O que Foucault quis mostrar, com a descrição dos autores acima, foi a descrição do desenvolvimento de certa racionalidade política que tem como alvo a gestão do corpo social: a população. Daí pode-se entender melhor o propósito deste texto, como já exposto no início deste tópico, que o próprio título revela: ser uma crítica do papel da razão na arte de governar. O governo dos homens pelos homens [...] supõe uma certa forma de racionalidade, e não uma violência instrumental. [...] Não basta fazer o processo da razão em geral. O que é preciso recolocar em questão é a forma de racionalidade com que se depara. [...] A questão é: como são racionalizadas as relações de poder? Apresentá-la é a única maneira de evitar que outras instituições, com os mesmos objetivos e os mesmos efeitos, tomem seu lugar. (FOUCAULT, 2006b, p. 385, grifo nosso).

Nisto consiste a importância do termo “crítica” no título deste texto: vigiar os abusos dos mecanismos de poder presente nas formas de racionalidade política. O texto acima mencionado O que é a crítica? [Crítica e Aufklärung] (1978) também contribui para compreender o que Foucault entende pela noção de crítica. Nesse texto, o autor francês buscará em Kant um fundamento para a filosofia como uma história crítica do pensamento em sua atualidade. Para Foucault, quando Kant em 1784 publica um texto como resposta a questão “Was ist Aufklärung?” (FOUCAULT, 2005b, p. 335)45, surge o primeiro passo para fazer da filosofia uma constante problematização do presente, postura esta que faz parte do mais íntimo que procurou praticar em sua filosofia. A simpatia de Foucault pelo escrito de Kant sobre a Aufklärung se deve ao modo como este relaciona sua filosofia com a atualidade: uma análise das condições do exercício da razão. A referência ao modelo kantiano não se deve ao fato do que pretende Kant, ao exaltar a razão, mas, pelo contrário, refere-se à postura crítica em relação ao presente. O que diferencia os projetos de Foucault 45

Para entender o contexto histórico do texto de Kant conferir Ditos & Escritos II (2005b, p. 335). Em relação ao conteúdo do escrito: para Foucault o pensador alemão ao tratar da Aufklärung está discutindo a questão do Iluminismo (movimento pelo esclarecimento), sobre o papel da razão na luta contra a “minoridade” (incapacidade dos homens se utilizarem de seu próprio entendimento). Segundo Foucault (2005b, p. 340), Kant “[...] descreve de fato a Aufklärung como o momento em que a humanidade fará uso de sua própria razão, sem se submeter a nenhuma autoridade”. Portanto, a atitude de Kant busca libertar a razão no que a aprisiona em sua atualidade.

e Kant, entre outras questões, é que enquanto este faz uma crítica do presente procurando libertar a razão das formas de aprisionamento, aquele quer questionar a própria forma como nos guiamos pela racionalidade. É isso que defende Michel Senellart, em “A crítica da razão governamental em Michel Foucault” (1995), onde afirma: “A atitude crítica consiste pois em repensar a Aufklärung, não como a aurora do reino luminoso da razão, mas como esforço permanente para interrogar

as

racionalidades,

tagarelas

ou

mudas,

que

nos

conduzem”.

(SENELLART, 1995, p. 5). Enquanto, Kant desloca a crítica para as condições do saber (condições de possibilidade do conhecimento), neutralizando seus efeitos políticos; Foucault irá fazer da crítica uma atitude política. Essa atitude crítica é interpretada como vontade de não ser governado, nas palavras de Foucault: [...] uma sorte de forma cultural geral, ao mesmo tempo atitude moral e política, maneira de pensar etc. e que eu chamaria simplesmente arte de não ser governado ou ainda arte de não ser governado assim e a esse preço. E eu proporia então, como uma primeira definição da crítica, esta caracterização geral: a arte de não ser de tal forma governado (FOUCAULT, 2010, p. 3-4).

A atitude de não ser governado, não no sentido de um desgoverno em absoluto ou de um anarquismo fundamental, mas como vontade de “não ser governado assim”, ou seja, não aceitar esse tipo de governo específico que age com poder sobre mim. “Como não ser governado assim, por isso, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não dessa forma, não para isso, não por eles”. (FOUCAULT, 2010, p.3, grifo do autor). Na atitude kantiana, Foucault vê nascer uma maneira de filosofar que problematiza a atualidade. Uma ontologia do presente, de nós mesmos. “ ’O que

acontece atualmente e o que somos nós, nós que talvez não sejamos nada mais e nada além daquilo que acontece atualmente?’ A questão da filosofia é a questão deste presente que é o que somos”. (FOUCAULT, 2005b, p. 239, grifo do autor). Essa atitude visa fazer uma inquirição do presente, não apenas para fazer uma descrição do que se passa, mas, porque só é sabendo como se formou o que nós somos que é possível libertar-se do que nos constituiu.

Diante de um poder que produz indivíduos assujeitados, como pensar a liberdade? A liberdade constitui, em Foucault, uma atitude de resistência. “Não há poder sem recusa ou revolta em potência”. (FOUCAULT, 2006b, p. 384). Onde existe poder, existe também a possibilidade de resistência. Segundo Foucault (2005c, p. 241) a resistência é coextensiva e contemporânea ao poder. “[...] a partir do momento em que há relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa”. (2005c, p. 241). Contudo, não se trata de produzir uma luta contra o poder, antes, deve-se localizar seus pontos de apoio, as forças onde atua. “O que se pode é recusar o tipo de saber e as práticas que excluem o diferente, que não deixam opção para o que ele chamou de atos concretos de liberdade”. (ARAÚJO, 2009, p. 226). A atitude crítica contribui para a construção da resistência, pois como diz Foucault, ela se realiza como a “arte da inservidão voluntária” (FOUCAULT, 2010, p. 3), mas não no sentido de uma insubmissão anárquica, antes deve ser compreendida como um desassujeitamento, nisso reside a função essencial da crítica. A crítica é um ato criativo, pois o indivíduo livre das amarras que o constitui, busca a construção de si. Postura que coloca em ação o “princípio de uma crítica e de uma criação permanente de nós mesmos em nossa autonomia”. (2005b, p. 346). Nas obras dos anos 80, Foucault pensará a construção da liberdade através do que chama estética da existência, ou seja, em oposição as práticas de subjetivação, o indivíduo através da prática de si constrói sua subjetividade, sua própria existência e das práticas sociais. O governo de si, como superação ao governo dos outros (biopolítica), constitui uma solução ético-política, em que a conquista da liberdade e da autonomia se dá pela recriação e reinvenção de novas formas de existência. Uma ética do cuidado de si como prática da liberdade.

EDUCAÇÃO E SUBJETIVIDADE Embora Foucault não tenha construído nenhuma teoria sobre a educação,

suas análises do poder disciplinar e do biopoder permitem investigar como ela é utilizada e para que fins. Seu interesse pela educação está em perceber como uma sociedade utiliza dela para colocar em ação os poderes que nela agem. “Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”. (FOUCAULT, 2006a, p. 44). Desse modo, a escola/educação no modelo disciplinar aparece como um dispositivo estratégico para formar um indivíduo disciplinado. A organização do tempo e a disposição do espaço, que nasce na modernidade com o processo de industrialização, visam o controle das ações humanas com o objetivo de otimizar seus movimentos para atender a demanda da produção burguesa. O poder disciplinar age sobre o corpo do indivíduo, anulando sua capacidade intelectual, tornando-o frágil e dócil ao modelo capitalista. A disciplina é, em essência, o mecanismo de poder pelo qual chegamos a controlar no corpo social até os elementos mais tênues pelos quais chegamos a atingir os próprios átomos sociais, ou seja, os indivíduos. Técnicas de individualização do poder. Como cuidar de alguém, como controlar sua conduta, comportamento, habilidades, como intensificar seu desempenho, como multiplicar suas capacidades, como colocá-lo no lugar onde ele será mais útil, isto é, do meu ponto de vista, a disciplina. (FOUCAULT, 2012, p. 243, tradução nossa).

O que Foucault entende por disciplina está diretamente ligado com certa prática de domínio sobre si, dentro os quais a educação cumpre um papel fundamental. A partir da abordagem do biopoder, pode-se perceber a educação como um mecanismo que intensifica seus poderes sobre o indivíduo, isto porque, além de agir sobre o corpo através dos saberes médicos que visam preservar a vida e suas energias, também exerce um poder sobre a mente, pois o que a sociedade espera formar é um sujeito flexível e criativo. Essa ideia, Foucault defende na obra

Nascimento da Biopolítica (1978-1979), onde mostra como na sociedade neoliberal o trabalho passa a ser analisado a partir das estratégias de conduta de quem trabalha, ou seja, o trabalho será relacionado ao próprio comportamento humano. “O que é trabalhar para quem trabalha?”, pergunta Foucault. O trabalhador

deixa de ser um objeto no processo do capital e passa a ser sujeito na construção de si, contudo esse processo ainda constitui uma sujeição, pois sua identidade é formada a partir de uma verdade que está fora de si. Nessa

obra,

Foucault

desenvolve

o

conceito

de

“capital

humano”

(FOUCAULT, 2008a, p. 311)46, o qual diz respeito as competências que o trabalhador possui e desenvolve no decorrer de sua vida. Assim, afirma: [...] um capital humano no curso da vida dos indivíduos, que se colocam todos os problemas e que novos tipos de análise são apresentados pelos neoliberais. Formar capital humano, formar portanto essas espécies de competência-máquina que vão produzir renda, ou melhor, que vão ser remuneradas por renda, quer dizer o quê? Quer dizer, é claro, fazer o que se chama de investimentos educacionais. (FOUCAULT, 2008a, p. 315, grifo nosso).

Aqui defende a tese de que a economia neoliberal visa investir e formar no indivíduo um capital humano para o mercado de trabalho.

Ainda, segundo

Foucault (2008a, p. 315), os investimentos educacionais que produzem o capital humano na economia neoliberal, vai além da prática do aprendizado escolar e profissional. Ele passa também pelo tempo que os pais dedicam na formação dos filhos, que não depende apenas do nível cultural dos pais, mas de suas condições econômicas,

famílias mais

abastadas dedicam

mais qualidade

no cuidado

e

vigilância para com seus filhos. Passa ainda, pelos problemas de higiene pública e proteção à saúde. O cuidado médico com a saúde do indivíduo constitui um investimento no capital humano, conservando e utilizando-o pelo maior tempo possível. A educação, na governamentalidade neoliberal, passa a ser valorizada e investida pelo indivíduo, por empresas e Estado, com vista a melhorar o capital humano. A formação educacional aparece na racionalidade do governo neoliberal como elemento estratégico para seu funcionamento. Para se referir a biopolítica de Foucault, Gilles Deleuze usa o termo “sociedade

de

controle”

(texto

“Post-Scriptum

sobre

as

Sociedades

de

Controle”). Nesse texto, a educação em uma sociedade de controle aparece sob o modelo da empresa, ou seja, nessa realidade cria-se um ambiente de competição, 46

No curso Nascimento da Biopolítica (2008a, p. 312-314) Foucault aborda elementos inatos e adquiridos que podem compor o capital humano. Os elementos inatos dizem respeito a utilização da genética para a melhoria do capital humano. Já os elementos adquiridos é a constituição voluntária de sua competência no curso de sua vida, sendo esse o alvo da razão neoliberal.

tendo como princípio o salário por mérito e a ênfase na formação permanente. O autor aponta que na sociedade disciplinar era preciso sempre recomeçar, seja na escola, na fábrica, etc., já na sociedade de controle nunca se termina nada. No texto a seguir, Deleuze descreve o que marca a escola nessa sociedade de controle: “No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua,

e

a

ação

da

formação

permanente

sobre

a

escola,

o

abandono

correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da ‘empresa’ em todos os níveis de escolaridade” (DELEUZE, 1992, p. 226). Nesse

sentido,

a

ideia

de

formação

permanente/continuada

além

de

constituir na sociedade de controle uma ferramenta capaz de instigar o indivíduo a estar sempre investindo em seu capital humano, também funciona como um poderoso elemento de construção de subjetividade, ou seja, um instrumento político para direcionar as condutas individuais e coletivas sob o modelo das competências e da criatividade. A educação permanente é uma exigência nestes novos tempos do governo neoliberal. Embora seja ilusório pensar que por meio dela haja transformação social, ao contrário, sua prática mantém os indivíduos ocupados consigo e, por consequência, fechados aos problemas éticos e políticos. Apesar de Foucault mostrar um olhar da educação enredado aos poderes vigentes, torna-se imprescindível pensá-la como instrumento de libertação. É preciso superar a educação moderna como prática de poder sobre os outros e conduzir a educação como no sentido grego do cuidado de si, ou seja, a educação deve levar o indivíduo a uma prática de si, que ao escolher a si mesmo, busca sua emancipação. Para Foucault, os gregos inventaram a relação consigo, a subjetividade, mas, sobretudo, a ideia de que primeiro é preciso governar-se a si mesmo para depois cuidar dos outros. Além disso, governar a si próprio também é um ato de resistência aos poderes dos outros. Daí, a necessidade de se fazer da educação um instrumento político, isso significa, que por meio dela é possível opor resistência aos poderes constituídos. Segundo Deleuze e Guattari (1992, p. 140): “Falta-nos resis-

tência ao presente. [...] A europeização não constitui um devir, constitui somente a história do capitalismo que impede o devir dos povos sujeitados”. É

preciso pensar a educação como resistência, como exercício da diferença, que promove a transformação do presente, dos territórios estabelecidos.

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O Homem desumanizado como limite do Esclarecimento Marcos Antonio de Souza Brito47

RESUMO O Esclarecimento, como processo de autoconhecimento e conhecimento da natureza, contou com apologistas (a maioria dos pensadores) e com apontamentos dos seus limites, feitos primeiramente por Jean Jacques Rousseau; também Kant,apesar de ser grande entusiasta do processo,admitiu limites à sua efetivação;o anti-semitismo foi abordado como demonstração de limite para a razão, em sua tarefa de proporcionar a tão exaltada emancipação humana.No século XX a escola de Frankfurt retomou à crítica a idéia central deste processo: a idéia de que o esclarecimento representa um grande progresso para a humanidade, na medida em que permite ao homem conhecer a verdade sobre a natureza, fator fundamental para sua crescente conquista de autonomia. Palavras-chave: Esclarecimento; Razão; Emancipação.

O chamado movimento iluminista, registrado na história do pensamento enquanto um conjunto de idéias produzidas por diversos pensadores da época, contava com uma característica básica: a idéia relativa ao desenvolvimento da razão e da ciência, através do qual a humanidade seria esclarecida e com isso a vida em sociedade seria melhor. Ninguém mais apropriado para ilustrar esse posicionamento que o filósofo alemão Imanuel Kant; em toda sua obra o predomínio da razão sobre qualquer outro móvel da ação humana é notório, sobretudo ao que diz respeito aos instintos naturais. A questão central da obra kantiana é estabelecer quais são os limites da razão pura, quando discorre sobre as possibilidades do conhecimento teórico e da abstração, e da razão prática quando trata da ação humana. Há uma aparente contradição se considerarmos, sem nenhum cuidado, que o grande representante do esclarecimento foi quem, ele próprio, apontou os limites da razão e o descuido está justamente em não perceber que este limite não se deve a nenhum fator intrínseco a razão e sim, as condições 47

Graduado em filosofia pela Universidade Metodista de São Paulo, com ênfase na obra de Arthur [email protected]

com as quais podemos conhecer. É na perspectiva de “movimento”, ou seja, algo em processo de realização,que Kant concebe o estágio da ciência de sua época,marcada por crescente autonomia em relação aos fundamentos epistemológicos da antiguidade e da era medieval. Sendo movimento, deve partir de um ponto em direção a outro;equivale dizer que para o homem o Iluminismo possui percurso pré definido e se apresenta como processo de auto-conhecimento e conhecimento do mundo, capaz de tirá-lo da minoridade rumo à maioridade. É processo na medida em que, contando com princípios pré-estabelecidos,

parte em direção àquilo sobre o

que pretende se realizar. Ao referir-se ao homem moderno devemos levar em consideração sua inserção neste movimento de esclarecimento,não sendo mais que um processo contínuo de conquista de autonomia. Falamos apenas em “processo” quando nos referimos a este movimento. Em definitivo, os limites da razão assumidos por Kant coincidem com os limites da experiência possível. Conhecemos pelo tato até onde nossas mãos alcançam, nossa visão nos apresentam apenas o que os olhos podem ver... Alcançamos pela razão até onde pode ir o sujeito do conhecimento através da experiência; além disso, é perfeitamente possível que haja opiniões, crenças, hipóteses, mas não conhecimento, pois para isso é necessário conjugar as formas a priori da intuição sensível, as categorias do entendimento de um lado, somados aos

dados

da

experiência.

A

vinculação

de

Kant

à

modernidade

está,

principalmente, no fato de centralizar para o conhecimento, o foco na razão enquanto propriedade do sujeito cognoscente e não tanto no objeto; essa valorização da razão é uma das maiores características que se manifestam nas ciências quando entramos na modernidade e, de certa forma, este é o critério que se utiliza, com frequência, quando se quer referir a essa época. A forma como Kant opera esta centralidade da razão é bastante peculiar,representando para a História da filosofia uma “revolução copernicana”. É no sujeito que se encontram as condições a priori da experiência; a razão aparece como uma propriedade do sujeito que percebe o mundo através das condições a priori de todas as experiências possíveis. As condições, a priori concentradas

no

sujeito,

são

tão

importantes

quanto

“os

dados

da

observação”,ou seja, sem a experiência essas condições permanecem vazias e não podem sintetizar nenhum conhecimento. As citadas condições a priori na filosofia de Kant, são pelo menos em número de dezessete: as doze categorias do entendimento,exclusivamente pelas quais todas as formas de experiências do mundo são possíveis, somam-se às duas intuições sensíveis (tempo e espaço) e mais, às três ideias inatas de eu,mundo e liberdade. Se o objeto presente, percebido pelo nosso aparelho sensorial, representa o limite do que podemos conhecer é certo que nele, falando de termos cognoscíveis, só há aquilo que lhe doamos. Após quadricular o mundo, dizemos que cada parte é um quadrado; sendo assim, é conveniente para tal artifício a devida ridicularização promovida por Nietzsche, no século XIX, ressalvando que longe de se apresentar como prática enganosa, há um abismo infinito entre a mera aparência das coisas e como de fato ela é. Sua realidade, conforme pode nos proporcionar seu exame crítico,vale dizer,mesmo não estando de posse da coisaem-si a distância entre aquilo que a crítica da razão pode nos oferecer e a mera aparência é muito grande. Quando alguém esconde uma coisa atrás de um arbusto, vai procurála ali mesmo e a encontra, não há muito que gabar nesse procurar e encontrar: e é assim que passa com o procurar e encontrar da “verdade” no interior do distrito da razão. (Nietzsche,1974,p.50)

É nesse sentido que Kant faz “crítica”, não agregando ao objeto nenhum elemento que não faça parte de sua constituição e teoricamente isso se expressa em não dizer dele mais do que realmente se sabe. É preciso retomar que sob certo parâmetro, o de contemporaneidade, toda pessoa da época deve ser considerada Iluminista, porém há outro sentido e mais importante qual deve ser tomado como predominante: Iluminista é toda pessoa que incorporou seus princípios fundamentais, entre os quais, além daquele exposto acima,

destacamos

a

crença

na

emergência

de

um

homem

cada

vez

melhor

proporcionada pelo desenvolvimento da razão e da ciência.O homem cada vez mais esclarecido, proporcionalmente, estaria cada vez mais próximo da perfeição. O selo da contemporaneidade com o qual se pode atribuir a designação de

Iluminista a toda pessoa da época de seu surgimento e consolidação, tem o mesmo rigor (melhor, falta deste) comparado à atribuição de nazista a toda pessoa simplesmente por ter sido testemunha deste fenômeno

político do século XX . Tão

frágil critério resulta em descrédito justamente por não dizer nada mais que o fator cronológico prevaleceu. A identificação de Iluminista àquele que, talvez de forma inconsciente, incorporou seus princípios obra

contem

expediente,mais

notadamente ainda

por

um

critério

sermos

e refletiu isso em sua vida e

mais

compelidos

responsável;acatamos a

tratar

da

obra

este de

um

pensador,referência a esta distinção,quando nos propomos a tornar claro quais são realmente os limites do esclarecimento. Historicamente, seu início,apesar de se tratar de um processo teórico,foi marcado por uma certa euforia cada vez mais contagiosa à medida que se consolidava o método científico e novos conhecimentos acerca dos fenômenos naturais eram anunciados. A postura teórica típica era acreditar que a humanidade havia dado início a um acelerado processo de desvencilhamento dos produtos da mitologia, do misticismo e, brevemente, as nuvens que nos envolviam num mundo fantástico seriam dissipadas, não restando nada mais que fenômenos físicos regidos por leis físicas. Esse processo entrou para a História do pensamento como um corpo de ideias otimistas em relação ao homem,um

movimento

intelectual

basicamente,fato

que

não

gerou

impedimento de sua assimilação e execução prática por parte de

nenhum muitos

governantes da Europa. De certa forma, o conjunto de ideias trazidas à luz pelos pensadores iluministas formavam, para estes “Déspotas Esclarecidos”, uma teoria da administração pública, fazendo da incorporação dessas ideias no interior do Estado a origem da introdução do racionalismo no negócios políticos. A práxis do processo, ao promover a observação de suas ideias e sua aplicação prática por estes governantes, demonstra desde o início o seu caráter inexorável; mais tarde observou-se que o alto grau de racionalidade, ao ser introduzido nos assuntos políticos, foi progressivamente envolvendo o Estado com as amarras da burocracia. O conjunto das três críticas kantianas (da razão prática, da razão pura e do juízo), em comparação com esse clima, de nenhuma forma deve ser concebida

como contenção ao processo de esclarecimento, nessa época já estabelecido teórica e praticamente. Contrariamente, a obra kantiana demonstra o vigor irresistível,a força incalculável de um processo que transforma as iniciativas de sua contestação em fontes eficientes de sua afirmação. A reforma religiosa ocorrida no século XVI, poderia ser interpretada como demonstração de fraqueza e princípio de falência do catolicismo; porém, a manutenção de sua estrutura nos faz acreditar que serviu para mostrar o vigor dessa doutrina e principalmente da instituição que a protege.A princípio sendo uma crítica, a reforma religiosa logo

se

configurou

em

componente

necessário

a

uma

reestruturação

e

fortalecimento daquilo que atacava; papel que, em época mais próxima, foi relegada à indústria cultural cuja disseminação da ideologia do progresso converte as manifestações da

contracultura em significativa contribuição ao

status quo. No século XVIII, em pleno auge do movimento Iluminista, encontramos um pensador

distinto devido a marca de sua subversão à grande onda otimista de sua

época;na obra de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) pode ser encontrada com facilidade afirmações que o colocam do lado oposto a quase totalidade dos seus pares,apologistas do processo. O referencial bibliográfico, nesse caso é, principalmente, a obra Discurso sobre as Ciências e as Artes, na qual Rousseau demonstra evidente desconfiança quanto à conclusão da promessa feita pelo processo de esclarecimento. Em muitos momentos dessa obra (em outras também é possível tal verificação) uma suspeita é lançada

e, por vezes, declarações são

feitas no sentido de mostrar que o caminho do progresso, via original do esclarecimento,

responsável por fazer do homem um ser cada vez mais próximo da

perfeição, é inviável;uma ilusão para a qual tempo suficiente ainda não havia transcorrido para demonstrá-la. Onde não existe nenhum efeito, não há causa a procurar; mas aqui o efeito é certo, a depravação real; e nossas almas se foram corrompendo à medida que nossas ciências e nossas artes avançaram para a perfeição. (Rousseau,1974, p.213)

Declaração como essa, e mais outras tantas que são feitas, não podem

conferir a seu autor a insígnia de partidário do esclarecimento; há aí uma clara afirmação de pelo menos uma limitação e esta diz respeito ao efeito prometido de emancipação pelo progressivo processo de esclarecimento. O processo comprometeuse muito mais do que de fato pode executar; as promessa são bem maiores comparadas à capacidade de realização inerente ao processo,isto é, o que está na base da contestação Rousseauniana sobre um exaltado poder ilimitado da Razão. Melhor que apontar as debilidades de um processo e tentar antecipar sua frustração

a partir da Crítica do seu fundamento original, é fazê-lo partindo

dos resultados produzidos. Compromete-se, demasiada e gratuitamente, aquele que propõe:

desta

causa

tal

efeito

é

necessário,sendo

o

contrário

disso,o

pressuposto: os efeitos negativos presentes têm origem numa causa até então insuspeita;um método muito mais seguro e difícil de se contestar. Objetivamente podemos dizer, com base na concepção precedente, que o progresso

nas

ciências

e

nas

artes,

portanto

o

progresso

atribuído

ao

esclarecimento, não está alinhado ao aprimoramento de caráter do homem, não contribui para seu melhoramento e sim para sua corrupção tanto mais completa quanto mais esclarecida a humanidade. Na moral situa-se o limite preocupante e mais evidente do esclarecimento e a humanidade quando pensa estar usufruindo dos benefícios gerados por sua habilidade distintiva, a razão, no fundo padece vítima dos seus efeitos colaterais. A felicidade do homem pressupõe relação consequente,

mais com

o sentimento,base

da concepção

da bondade

natural

concernente a todo ser,em oposição ao propalado discurso da razão,instrumento de emancipação humana,da forma como os contemporâneos de Rousseau faziam. À razão deve-se o aperfeiçoamento dos vícios humanos e da infelicidade característica da sociedade civil, formada pelos signatários de um “contrato social”,cujo sentido está em cada um alienar todos os seus direitos pessoais, aderir a coletividade e, desta forma, ampliar suas possibilidades. Enfim,cada qual,dando-se a todos,não se dá a ninguém,e,como não existe um associado sobre quem não se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido,ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e maior força para conservar o que se tem. (Rousseau pp31)

Assim comentou Rousseau acerca da perpetuação do “conhecimento” tornada

possível pelo surgimento da imprensa e sua relação com as gerações futuras Deus todo poderoso! Tu, que tens nas mãos os espíritos, livra-nos das luzes e das artes funestas de nossos pais, e dai-nos a ignorância,a inocência e a pobreza,os únicos bens que nos trarão a felicidade e que serão preciosos a teus olhos! (Rousseau, p. 229).

Rousseau nunca se mostrou convencido desses benefícios; em todo campo investigativo por ele explorado, o pessimismo lançado ao processo civilizatório era patente. Na obra “Emílio”, dedicada à educação, está estabelecida a causa da corrupção moral do homem no contato social, mais precisamente na civilização originada por aquele modelo de sociedade germinada no solo fértil e promissor do esclarecimento. Em suma, importa-nos inserir Rousseau entre aqueles pensadores não contaminados pela onda otimista em relação ao futuro esclarecido do homem, à parte

ao

contingente

dotado

de

forte

crença

romântica

no

progresso,

especialmente no progresso caracterizado pela passagem do homem de uma situação rude e primitiva à posição de homem esclarecido, cujos mistérios da natureza aos poucos vão sendo desvendados e doravante ele pode pôr-se na condição de senhor do mundo e de si mesmo. De

forma

geral,

este

foi

o

ponto

mais

alto

e

comprometido

do

esclarecimento: o domínio da natureza, com tudo o que isso significa, enquanto categoria totalizante, logo foi percebida como a pretensão mais significativa; um novo homem nascia, à medida que este princípio fundamental seguia seu cumprimento e o homem, ao realizá-lo, é inegável que ia se refazendo. A humanidade deve, obrigatoriamente, assumir como critério de sobrevivência a exploração da natureza; nesse contato aparece a máxima da condição humana: relacionar-se com a natureza no sentido de retirar-lhe o necessário para a manutenção

da

vida,

essa

é

a

forma

da

exploração

referida,em

nada

se

assemelhando à atividade predatória e altamente destrutiva praticada pelos modernos esclarecidos. A irracionalidade desta violência auto infligida,na medida que se volta contra a natureza, vai desde a atitude de poluir as águas para depois despender enormes recursos com sua purificação, até o sério comprometimento de todas as espécies de vida pelo esgotamento dos recursos

naturais. Não resta dúvida, quanto a essa relação, que

ao fazê-la seu autor já

não é mais o mesmo:ao transformar a natureza o homem transforma-se, como qualquer processo natural para o qual, neste caso,concorre apenas essa relação dialética. Um novo modelo de homem é instaurado no instante em que deixa de enxergar

na natureza

algo a

ser contemplado,algo

dotado de

um mistério

divino,devendo por isso ser apenas vislumbrado, e quando muito apreciado, nas formas artísticas e passa a enxergá-la como algo que deve ser dominado,como objeto de conhecimento possível a partir do qual será racionalmente explorado. Vai aí uma diferença muito grande entre estes antípodas (…) Mesmo com exagero podemos falar em duas espécies,aquela que via na natureza simplesmente a fonte dos recursos necessários a sua sobrevivência, cujo domínio total sobre a natureza declara consolidado e se lança com mais audácia e cabeça mais esclarecida ao espaço em busca de matéria viva. Sob o pretexto de que o padecimento da espécie (o insistente problema da fome,por exemplo) sobre a Terra deve-se a incipiência do processo está o objetivo de oferecer a cada um a seguinte conclusão lógica: tão logo todo obscurantismo esteja ultrapassado,todo desconhecido seja conquistado estaremos em condições de sanar todo infortúnio. O fato é que há muito já reunimos as condições necessárias

à supressão das

carências humanas e se, atualmente, ainda somos acompanhados de perto por velhas “maldições”, sua razão deve ser buscada na segmentação social em classes com interesses diametralmente opostos,cuja plenitude de uma implica no fim dos privilégios infundados traduzem

exclusivamente

da outra. Domínio e exploração da natureza não se em

pesquisas

científicas

sobre

as

florestas,os

rios,espécies animais,etc. Da nova mentalidade que via na natureza algo possível de ser conhecido, com vistas a exploração predatória, para uma postura que, semelhantemente, concebia o homem também como algo a ser explorado friamente, a distância é bem pouca. Auschwitz nos proporcionou uma demonstração da verdade contida na sentença: “ciência neutra”. Da mesma forma, fez com que acordassem do sono dogmático, os últimos perseverantes,com seus sonhos vívidos de alívio e emancipação humana pela ciência. Faz muito sentido pensar em uma “Educação após Auschwitz”,como também

seria apropriado pensar em Arte após Auschwitz, política, ciência, religião,etc. Não restam dúvidas de que a existência desse campo obrigou a serem repensadas todas as esferas de convívio social; obriga, ainda hoje, a que sejam repensados os limites das crenças presentes na (in)consciência social. Um grande divisor de águas,assim pode ser designado sem problema e não seria nada de mais depositar as memórias dessa barbárie na fase pré-histórica da humanidade. Quando forem definitivamente superadas as lacunas que um dia possibilitaram Auschwitz, quando,inclusive, sua lembrança desaparecer por completo do imaginário popular e não houver nenhum rastro, estaremos em condições de inscrever para a eternidade a História do homem. A busca pelas raízes promotoras de Auschwitz continha, em todo caso, este pressuposto: impedir, a qualquer tempo, seu reaparecimento. As pesquisas de maior

sucesso

buscaram

na

psicologia

o

fundamento

para

a

formação

da

personalidade autoritária,fonte política do totalitarismo; Theodor W. Adorno, filósofo alemão do século XX, ligado à escola de Frankfurt e pesquisar da formação desta personalidade,admitindo com propriedade a impossibilidade de transformação

dos

funestos,depositou

pressupostos grande

subjetivos,imprescindíveis

objetivos

esperança

em

a torná-los,na

causadores

se

trabalhar

daqueles

eventos

com

fatores

origem, frustrados.

os

Vem daí

sua

valorização da educação, cuja atribuição maior está em tornar inviável uma reedição das desgraças havidas naquele campo, ou seja, anular qualquer chance de reaparecimento dos horrores causados pelo homem contra sua própria espécie. A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. (Adorno-Educação após Auschwitz ).

Depois

de

um

longo

período

de

ruído

estridente

causado

pelo

esclarecimento, tantos discursos exaltados, a emergência de um clima romântico altamente otimista, defesas apaixonadas proferidas a toda altura, enfim caímos no grande silêncio de Auschwitz...Silêncio profundo sob o qual paramos para refletir sobre o sentido do Ser,o que é o homem e qual seu papel no mundo. Desde os

gregos clássicos

nos isentamos

arbitrariamente desta

introspecção tão

importante;abandonamos a questão do Ser considerando tratar-se de problema já

resolvido mediante a entrada em cena do personagem divino, ou, lidamos com

ela

como algo carente de razão e, portanto, sem ao menos necessidade de colocação. Retornamos à questão da Ontologia como a mais premente de nossa época. O devido tratamento teórico e prático referente às guerras principalmente,

assumiu

tal

delicadeza

que

qualquer

mundiais e ao nazismo relativização

insere

automaticamente seu proponente entre os defensores da barbárie;no auge dos acontecimentos, o desconhecimento fazia da pessoa ignorante responsável por aquilo em decurso: ou se é contra ou se é favorável ao nazismo,tal é o sentido de lhe conferirmos a insígnia incontestável de divisor de águas e, igualmente, o sentido dos versos de Brecht48 na poesia “aos que virão depois de nós”. (...) Que tempos são esses, quando Falar sobre flores é quase um crime. Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?

Se alguma esperança ainda era possível de ser atribuída ao processo, Auschwitz dissipou violentamente todas elas: as do passado, nostalgicamente vistas como produto de uma felicidade inocente, e aquelas depositadas às gerações sucessoras. O esclarecimento, sutilmente, leva a acreditar que a idiossincrasia é uma questão de decodificação; cada gesto, cada detalhe da manifestação de vida, cada iniciativa, por mais insondável, é passível de reprodução em laboratório... Auschwitz, até o presente momento, foi nosso maior laboratório. Entretanto, se algo ali pôde ser verificado foi apenas o quanto podemos ser repugnantes e nocivos uns para os outros. Auschwitz é a Verdade teleológica do processo. Da impotência do processo inicialmente identificada com os limites da razão em decorrência da finitude das experiências possíveis, passando pela observação de aumento dos vícios humanos em proporção a autonomia

da razão,

chegamos ao século XX, na escola de Frankfurt com Adorno e Horkheimer apontando o anti-semitismo como símbolo maior dos limites do esclarecimento. Desta vez a razão não será tratada como estrutura única e neutra, operando apenas com base em sua aparelhagem, a priori somadas aos objetos como nos são dados; seu aspecto 48

Eugen Berthold Friedrich Brecht (1898-1956), Poeta, romancista, dramaturgo alemão, teórico renovador do teatro moderno.

dual é posto à mostra, uma parte esforça-se de fato pela emancipação humana, a outra, se encarrega dos infortúnios a que a humanidade é acometida. Independente da verdadeira causa ser ou não identificada, é incontestável a falência do processo em meados do século XX, especialmente ao que diz respeito às promessas de liberdade, felicidade, fim da miséria, da corrupção moral. A alegação da natureza dualística da razão tem como origem o apelo desesperado à identificação de uma causa, de algo que pudesse preencher o grande vazio na mente de quem procurava entender o porquê da barbárie representada pelas guerras mundiais e pelo nazismo. É espontânea a reação da busca por respostas quando nos deparamos em meio a uma situação de calamidade a qual julgamos não merecer; como também é natural,quando

não encontramos

respostas cabíveis,criarmos

nossas próprias

respostas ou, por fim,quando disso não somos capazes,creditar tudo a uma força mágica, divina, provinda do além-mundo. Platão quando viu serem esgotadas todas as respostas para a questão sobre a origem das virtudes nos homens, não hesitou em declará-las provenientes de um ser divino Sócrates: Assim, pois, meu excelente Mênon,segundo nosso raciocínio,a virtude nos pareceu resultar,naqueles em que se encontra,de um exclusivo favor divino. (Platão,1962,p.112)

Se, por ventura, ao inconsciente freudiano lhe falta uma demonstração empírica irrefutável, é inegável que dá conta com eficiência de uma soma de fenômenos para os quais até seu aparecimento eram incógnitas insolúveis. Reconhecer a falência do processo implica na aceitação do claro paradoxo tornado explícito pela dialética do esclarecimento entre o sucesso alcançado nas pesquisas da física quântica no interior da matéria e o inatingível conhecimento necessário à erradicação dos males como a miséria, a fome, doenças, etc. Dialética nesse caso não significa apenas a conversão de uma potência –a razãoinicialmente com seu discurso emancipador ao seu contrário, representado pelos graves episódios históricos do século XX; está presente quando reclamamos mais dos seus

poderes para entender o que ela própria causou. É como situarmo-nos

num ponto e almejar obter, por nossos próprios olhos, a vista distante desse ponto. O esclarecimento abriu espaço à metrificação do mundo, sua consolidação

produziu um tipo de homem sempre acompanhado por

régua e esquadro,com os quais

mede,quantifica,classifica, tudo a sua volta,lançando descrédito a tudo que não se reduza a meras equações. E mais: fez desse homem o modelo a ser seguido, espécie autorizada a existir. O que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento.(Adorno,2006,p.19)

Por ironia e para nosso prejuízo, seguimos avançando apressadamente rumo à realização plena da milenar tese pitagórica concernente a transformação de todas as experiências de vida em números; reduzimos a símbolos numéricos

desde

as coisas mais convenientes àquilo que em nenhuma outra época suspeitamos da possibilidade de seu cálculo. Transformamos todo procedimento científico em método de quantificação, a partir do qual o discurso da ciência edificou sua identidade como pretensa fonte de verdades

ao mesmo tempo que fez de todo

elemento dessa numerologia um signo sagrado digno de culto. O aspecto místico, característico da escola fundada por Pitágoras, em consequência da atribuição de poderes

mágicos

aos

números

e

fórmulas

matemáticas,

tomou

forma

sob

o

esclarecimento na medida em que a falta de clareza sobre a relação entre teoria e prática faz pensar que os fenômenos da natureza, assim como os da sociedade, seguem pressupostos teóricos rigorosamente. O moderno homem de ciência não procura proceder de forma a extrair das experiências práticas o conteúdo de sua teoria; contrariamente, em tudo vê submissão a leis naturais perfeitamente cognoscíveis,

o

que

lhe

permite

agregar

em

cada

coisa

um

caráter

de

previsibilidade. Ao prever o comportamento do tempo, os movimentos da economia, o futuro da política, etc, o homem de ciência desfila, na passarela em que só a razão importa, a moda do esclarecimento com os mesmos trajes de “mago dos números” dos pitagóricos. Caso não seja verificado

alinhamento do previsto com

sua teoria precedente, os fatos da natureza é que devem ser revistos; afinal o mundo da prática,nesta perspectiva, caminha a reboque da teoria com suas verdades cheias de luzes. Ao

tomar

conhecimento

pitagórica,principalmente

aquela

das

máximas

referente

ao

regentes governo

do

da

escola

mundo,o

homem

esclarecido tratou imediatamente de dominá-los; então chegamos ao ponto em que, para cada coisa ou fenômeno existente, há invariavelmente um gráfico para sua representação. Se não é possível assumir diretamente a direção da embarcação resta conquistar seu condutor: comandar o comandante, além da eficiência, nos isenta de incômodos. As relações que os homens promovem entre si, ao serem todas elas esquadrinhadas, classificadas, perderam seu elemento espontâneo, cada gesto está previamente calculado, e toda graça que poderíamos sentir com a presença do outro perdeu-se em meio a previsibilidade de tudo. Em relação à obra de Arte, Walter Benjamim49, aludia, com base nos mesmos pressupostos, ao fim daquilo que chamou de aura; com a técnica propiciada pela luzes cada obra tornou-se passível de ser reproduzida: na verdade cada aparição sua está destinada a esse fim. A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida. (Benjamim, 1985, p. 171)

No caso da arte foi possível encontrar um conceito que concentra

a soma

de tudo o que se perdeu com a reprodução técnica, tudo o que é esvaziado de valor, mesmo sob a cópia mais perfeita; e no caso da existência humana,haveria algo capaz de concentrar tudo o que se perdeu com a técnica decorrente do processo? O Existencialismo como movimento intelectual de idéias poderia ter surgido em qualquer fase da História da filosofia, porém não se deve creditar ao acaso seu aparecimento mediante as mesmas condições que permitiram falar em “perda da aura” e com isso, fim da arte. O encanto percebido na natureza, em seus fenômenos, na companhia dos semelhantes e, consequentemente, a alegria de viver disso derivada, tudo isso foi asfixiado com a chegada da maioridade kantiana. O total descrédito lançado à arte pré-socrática, sua condenação a forma de conhecimento incapaz de acessar a verdade e, por isso, incapaz de produzir algo de valor, ganhou impulso decisivo com o processo: agora,toda a palavra emitida à margem da ciência pretendente a 49

Walter Benjamim nasceu em Berlim em 1892; com a ascensão do nazismo na Alemanha refugiou-se na Dinamarca,onde escreveu A OBRA DE ARTE NA ÉPOCA DE SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA. Em 1940 quando as tropas alemãs entram na cidade, Benjamim foge,mas quando descobre que é impossível atravessa a fronteira franco-espanhola, suicida-se a 27 de Setembro em Port Bou na Catalunia.

ser conhecimento cai invariavelmente no ridículo e se houver insistência sua cassação pode contar com métodos violentos. O que um dia foi destinado a arte, doravante voltou-se contra tudo o que não se submete ao selo “testado cientificamente”. Há dois sentidos para desencanto, ambos são interdependentes e em todo o caso desanimadores para a vida ocidental cheia de luzes, porém sem nenhum brilho. Falamos de desencanto para traduzir o fim dos segredos da natureza, para aludir ao conjunto de conhecimento das leis físicas regentes do universo, acessíveis a nós por meio do qual passamos a saber que os sons fortes ouvidos num dia chuvoso, os raios intermitentes, não têm nada a ver com o estado de humor dos deuses, tratando-se tão somente de fenômenos físicos perfeitamente calculáveis, classificáveis, previsíveis, etc. Neste instante, é obvio que a chuva já perdeu sua magia, perdeu a beleza que existe naquilo que nos agrada tanto e, porém, não sabemos discorrer sobre nosso suposto merecimento, dado o desconhecimento dos mecanismos que a provoca. Encantar-se com as gotas d’água caindo gratuitamente passa a caracterizar o ignorante, aquele que devemos ridicularizar,

a

fazer

parte

do

típico

comportamento

da

loucura,

clara

manifestação de quem ainda não saiu da minoridade. Desencantar pode ser traduzido por aquele procedimento de retirada do “véu de Maia”50, atitude ousada que nos permite acessar as coisas diretamente e desta forma conhecer a Verdade; também pode ser apontado como consequência do método cientifico, com o qual passamos a conhecer a verdade acerca do mundo e do homem; típico comportamento marcado pela aceitação destas verdades,tornando a vida destituída de beleza, de arte, de magia;são estas as razões para desencantamento e, como adiantado, ambas fomentam grande desestímulo à percepção do prazer de viver, a contagiar-se mesmo com as banalidades a nossa volta, enfim a ser feliz num mundo transbordante de razão e carente de emoção. Em face disso, compete-nos sentir prazer com a presença do outro apenas pelo breve instante de duração da surpresa de sua chegada, mais exatamente: nosso entusiasmo só dura enquanto nosso cérebro não fez os “devidos cálculos”; tanto o prazer alcançado com a contemplação estética quanto a alegria experimentada com a 50

súbita percepção de alguém,

A expressão "Véu de Maia" ou "véu da ilusão" vem da filosofia indiana e significa esconder a realidade das coisas em sua essência.

esvaem-se ao primeiro contato nos trazendo à

”realidade”, pois neste instante

(num curtíssimo espaço de tempo) fazemos toda contabilidade,as memórias mais vantajosas são ativadas,destruindo aquele estado de graça e nos deixando apenas na presença de um dos elos de uma cadeia utilitária. Com permanente olhar calculador o homem esclarecido põe sob gráficos o tamanho de nossos sonhos, o quanto de amor somos capazes de compartilhar, a intensidade da saudade sentida, toma posse do que somos e sentimos agora e igualmente daquilo que ainda não consumamos; diz saber mais sobre cada um de nós comparado ao que nós mesmos sabemos. Quanta ousadia, quanta prepotência em declarar antecipadamente conhecida e quantificada nossas pretensões, nossas intenções de escolha, nossas sensações futuras, etc. Estampando seu selo em todo objeto, cuja inscrição contem “decodificado” na face, passamos a procurar pelos artifícios absolutamente humanos, pelas iniciativas notáveis por sua exclusividade e fuga do previsível. Nosso espaço de atuação autônoma fica esvaziado se para tudo que podemos há um cálculo precedente, dando-nos a certeza sobre as possibilidades de sua execução e de seus efeitos. O

grande êxito

do esclarecimento

implicaria no

fim dos

fenômenos

exclusivamente humanos, a ninguém caberia imprimir no planeta uma marca de nossa espécie

e enfim assistiríamos a real conversão do

mundo dos homens para o

mundo das máquinas. Se a massificação tornou-se um fenômeno moderno a isto não se deve outra coisa a não ser a conclusão sobre a possibilidade de conhecimento integral a cada singularidade, por mais diversos que sejamos. Por mais distintos que possam ser os desejos algo de comum está presente em todos eles, fazendo da contemplação de um a satisfação de todos. O esclarecimento, personificado na figura do capitalista, sabe muito bem qual é este elemento comum: os homens desejam mais o ato de desejar comparado ao próprio objeto desejado. Ao tomar conhecimento deste aspecto da existência humana o capitalista, típico modelo das luzes, entende que basta proceder alimentando a ilusão de satisfação definitiva dos desejos alheios para ter sucesso. Cada objeto oferecido deve ser apresentado como algo renovado, destinado a satisfação plena. Aos ouvidos alienados, diariamente massacrados pela indústria cultural,

assume status de verdade indubitável a manchete: Amanhã irá chover tantos milímetros, o frio será de tantos graus, mas as pessoas terão uma sensação térmica de apenas tantos graus. Até chegar ao ponto de antecipar daquilo

a intensidade

que sentiremos amanhã, o homem esclarecido contou com certo grau de

passividade dos ouvintes;agora, investido de tamanha

autoridade,a verdade de

seu discurso parece depender dele exclusivamente,tornando a aprovação social algo dispensável. Entre as atuais pregações

deste

homem está a superabundância

de alimentos para todos, em decorrência das pesquisas cientificas fornecedoras de sementes transgênicas;sem dúvida a transgenia é o campo em que aparece mais claramente o entrelaçamento do desenvolvimento da ciência (o processo) e a indústria cultural. Os responsáveis pelas pesquisas com transgênicos,vestidos com trajes de defensores do bem comum, exaltam na ciência a possibilidade da produção de alimentos em dada magnitude capaz de sanar definitivamente o problema da fome pelo mundo,

e em consequência, pelo automático barateamento

dos produtos devido a alta quantidade, o alívio do fardo do trabalho. Como se fosse um problema de

produção e não de distribuição a indústria cultural se

encarrega de estampar os números que apontam uma produção maior a cada ano e simultaneamente cala-se quanto aos mecanismos de distribuição de renda. É com a tarefa de quebrar a resistência da sociedade e da comunidade cientifica sobre as pesquisas com transgênicos que a indústria cultural assume seu papel,anunciando para cada nova semente geneticamente modificada que se trata de “um pequeno passo para o homem e um grande salto para a humanidade”. Este campo de pesquisas, talvez o mais emblemático para mostrar a que e a quem de fato servem o processo, caracteriza-se pela investida da ciência sobre a natureza na busca por seus mecanismos de reprodução, com os quais a maximização da produção agrícola seria alcançada. O homem do esclarecimento se porta diante da natureza com os mesmos olhos que vê seus semelhantes: um olho para a eficiência, outro para o utilitarismo; em seu vocabulário as palavras chaves são otimização, maximização, exploração, utilidade. As experiências atuais com o material genético das plantas e animais, juntamente com o fundamento que as precedem, têm paralelo no auge do nazismo,

com as pesquisas diretamente feitas sobre o corpo de seres humanos em Auschwitz. Buscar uma “raça pura” é idêntico a desenvolver novas espécies de plantas e animais pela modificação genética. A pregação sobre os grandes benefícios da transgenia encaminham-se para o mesmo arquivo aonde irá se juntar às promessas do processo mais antigas; seus profetas autorizados, amparados pela indústria cultural, em cada manifestação dão vida a máxima de que os discursos dominantes de uma época são sempre os discursos da classe dominante. O grau de nocividade para a saúde humana com o consumo de alimentos geneticamente modificados se não são bem conhecidos, ao menos o são claramente as vantagens economicamente percebidas

pela

venda

destes

alimentos.

Quantas

técnicas,

invenções,

descobertas, não permaneceram ocultas até que se verificassem a existência de condições que as tornassem economicamente viáveis? Faz pensar que para os males em que a sociedade se envolve há sempre algo à espera de condições “ótimas”. Pensamos em modificação genética com vistas a produzir mais com uma quantidade fixa de insumos: sementes trabalhadas em laboratório podem reduzir os custos com inseticidas, gerar plantas mais resistentes às intempéries da natureza e, portanto produzir mais e melhores alimentos. Acontece que nada disso está ligado a algum objetivo humanitário de socialização dos seus resultados, apesar dos meios que compõem a indústria cultural insinuarem o contrário. Produz-se mais para obter maior apropriação privada, ficando explicado, desta forma, o fato de haver uma classe pequena com consumo acima do necessário, tornando este excesso de consumo tão grande a ponto de se tornar motivo de preocupação para a saúde pública, devido aos problemas da obesidade; e uma grande massa que mal consegue o básico para sobreviver. Poderíamos pensar que mesmo sendo egoísta o móvel da produtividade, importante é que seja alcançado para todos uma situação de abundância de alimentos: não é o caso. Quando se diz que o conhecimento é irresistível, pode-se estar fazendo referência tanto a sua sedução quanto a natureza totalitária do processo; irresistível, nesse caso, pode assumir a forma de sensação agradável quando temos

grandes

enigmas

decifrados

(agrada-nos

a

simples

contemplação

da

curiosidade),ao mesmo tempo indica a impotência de qualquer barreira que se

possa levantar para conter o processo. A sociedade,abastecida pela ideologia propagada pela indústria cultural sobre a dependência do progresso da humanidade com o desenvolvimento da ciência, não repudia com a devida força as pesquisas para modificação genética em plantas e animais,cujas razões não se tem bem ao certo;com comportamento similar encara o andamento das pesquisas regidas pelos mesmos fundamentos voltadas à exploração genética de sua própria espécie. O projeto genoma humano teve início em 1990,não registrando, desde seu início, nenhuma perturbação no sentido da contestação social; sua elaboração foi consequência de um esforço de pelo menos quinze países com o objetivo de fazer o mapeamento do código genético de plantas e animais, em sua previsão inicial isso demandaria cerca de quinze anos. À parte seu sentido mais amplo, anteriormente exposto, cujo risco maior está na inserção da sociedade numa fase em que as formas da sensibilidade seriam negadas, com todas as relações humanas sendo equacionadas pela numerologia e, portanto tornadas frias e mecânicas, a dialética do esclarecimento desenvolve seu aspecto mais restrito: o caso do racismo. Com relação a “sentido amplo” designamos um estado de desumanização em decorrência do império dos elementos da razão como única mediação autorizada das relações humanas. O que mais nos causa dano é a cultura edificada em torno da existência da Verdade e seu acesso exclusivo pelos processos racionais. Descartes partiu em busca do seu método infalível, de um fundamento sólido para sua ciência revolucionária, situando o homem num mar de incertezas, com as dúvidas cobrindo-lhe que mal conseguia tocar os pés no chão tão envolto estava; mas agora a situação é quase inversa,porém não tão confortável. Inventamos a Verdade! E ao fazê-lo reclamamos sua patente exclusiva, mais ainda ao mecanismo de sua conquista, a razão. De posse destes bens, entre os mais caros para nossa civilização ocidental, julgamos sermos capazes de abrir caminho direto para a felicidade; para nossa grande lamentação o feitiço virou: sentimo-nos cada vez mais longe de nossas mais altas aspirações de felicidade, liberdade, e seguimos resignando-nos com as evidências de um futuro incerto, da certeza de nossa capacidade de auto-destruição, das ilusões que criamos a nós mesmos. Chegamos a maturidade kantiana com a sensação de uma

dolorida

nostalgia

nas

memórias

de

nossa

infância,nem

tanto

ingênua,mas

certamente feliz. Depois de muito tempo correndo apressadamente, alcançamos o ponto de chegada; neste instante, subitamente, percebemos que já não sabemos mais por que queríamos tanto chegar,muito menos que fazer dessa conquista. O racismo,na versão específica do anti-semitismo, apareceu como a demonstração pontual do limite do esclarecimento;para sua emergência concorreram fatores objetivos,ligados

a situação

econômica dos

judeus na

Alemanha e

fatores

subjetivos,na expressão de uma contrapartida à dominação e humilhação impostas aos alemães após a II guerra, sobre um grupo eleito para isso. O anti-semitismo, como símbolo de falência do processo, cumpre o papel de declaração envergonhada de impotência de tudo aquilo que um dia se apresentou a humanidade como seu apanágio. Fomos incapazes de notar, apesar da quantidade de luzes, no semelhante algo distinto daquilo que na origem

foi declarado passível

de domínio e exploração: a natureza. Enquanto determinado grupo era mantido onde as luzes não alcançavam, vivendo seus dias mais escuros, simultaneamente produzimos as condições para o extermínio de todas as formas de vida do planeta. O anti-semitismo é um esquema profundamente arraigado, um ritual da civilização, e os pogroms são os verdadeiros assassinatos rituais. Neles fica demonstrada a impotência daquilo que poderia refreá-los, a impotência da reflexão, da significação e, por fim, da verdade.( Adorno,2006, p.141)

O esclarecimento é totalitário, fato que nos aparece mais evidente quando analisamos dois aspectos principais: O tratamento do outro ( o não-idêntico de Adorno)

e a

indústria cultural. Todas as manifestações artísticas por mais que

isso não transpareça claramente ou insinue algum grau de contestação já estão desde a origem incluídas como mais um produto da indústria cultural; o tratamento dado a diversidade (de métodos,estilos,ritmos,etc.) fortalece o poder da ideologia contida em cada produto ao prolongar seu alcance,incluindo na mesma seara desde os “ouvidos mais regredidos” aos apreciadores de música erudita. O sucesso supostamente alcançado pelos novos métodos e produtos da contracultura tem sempre destino certo: a vitrine onde são expostas as vitórias da cultural.

indústria

A

natureza

totalitária

do

esclarecimento

torna-se

explícita

quando

percebemos que ao seu domínio só podemos escapar adaptando-se, o que se dá depois das resistências serem todas vencidas. As formas de lazer possíveis são um prolongamento do trabalho alienado, para cada uma de suas formas a indústria cultural

disponibiliza

um

produto

especifico

para

nosso

entretenimento,

deixando-nos em condições de continuar sua realização. Longe da fábrica nos divertimos com os produtos de nosso próprio trabalho de forma a estarmos, a todo momento, ou diretamente envolvidos na produção ou fazendo dos bens produzidos fontes de relaxamento com vistas a uma produção futura. Na fábrica, o processo de

trabalho

controlados

com e

sua

tantos

linha

de

outros

produção,

mecanismos

segmentação de

hierárquica,

perpetuação

continuamente abastecido por indivíduos sobre os quais

esta

da

ritmos

alienação,

é

indústria, com seu

efeito de resignação, dar-lhes o tratamento adequando. Um novo grande sucesso é produzido cada vez que um grande contingente compra os produtos de um artista iniciante e paga por suas apresentações; falamos em “é produzido” e nada há de mais apropriado, pois sob o estopim de um

marketing

calculado

todos

pagam

pelas

apresentações

do

principiante,

realizando seu sucesso a partir do qual, agora, dizem estar adquirindo os produtos de um grande e genuíno mestre. No fundo a idolatria não é pelo artista com seus talentos natos, mas por uma mercadoria enigmática ( o dinheiro) dotada da capacidade de “descobrir” novos talentos. O fetiche se caracteriza pela concessão de poderes mágicos aos produtos de nossas mãos: damos forma a uma matéria

para

depois

adorá-la

e

admiti-la

como

possuidora

de

poderes

transcendentes capazes, inclusive, de nos determinar o comportamento. À industria cultural cabe a tarefa de

manutenção das massas em

permanente estado de ignorância; é bastante comum a afirmação, em referência aos produtos por ela oferecidos, de que se se tratam de cultura baixa é por que as massas assim a querem;portanto,a excelência da

indústria cultural está em

entregar ao grande público tão somente os conteúdos a ela reclamados e se, para um observador externo, tudo não passa de quinta categoria é nas massas que se deve procurar o culpado. Quando aparece um novo fenômeno artístico e fica

evidente sua desqualificação,inclusive para quem não tem a menor condição para a elaboração de

uma critica de arte coerente, diz-se: é isto o que o povo quer.

Este discurso faz da indústria cultural o mecanismo mais democrático presente na sociedade, na medida em que efetiva os desejos das

massas, entregando-lhes

numa bandeja seu pedido exatamente da forma como havia sido

requerido;sendo

democrática precisa ser exaltada,aprimorada e nunca criticada. A homogeneidade das

aspirações e,

facilitador

para

com isso, o

qual

a

daquilo que indústria

as satisfazem

cultural

nada

tem

aparece como a

ver;quando

um a

massificação já estava posta,fato explícito pela igual satisfação proporcionada pelos produtos da cultura em meio a indivíduos tão desiguais apareceu uma indústria com a incumbência de gerar estes produtos. Nada disso condiz com os fatos ao serem vistos mais detidamente

por um observador isento,segundo as

análises de Adorno e Horkheimer sobre o tema. O crescente espaço conquistado pela depravação cultural é consequência prevista do sucesso desta indústria,vale dizer: o gosto cultural medíocre é uma decorrência do sistema encarregado da manutenção de constante estado de obscuridade. A atitude do público que, pretensamente e de fato, favorece o sistema da indústria cultural é uma parte do sistema, não sua desculpa. (Adorno, 2006, p.101)

Primeiramente promove-se, entre as massas, o gosto pelo desprezível depois, colhe-se o fruto disso com a venda de supostos antídotos para o desprezo. Não é pela força e sim pelo convencimento que as pessoas adquirem a preferência por aquilo que não satisfaz suas reais necessidades, ou mesmo tratam-lhes com explícito desrespeito; veja-se, por exemplo, o gosto por músicas que denigrem o gênero humano,com maior evidencia a figura feminina. Derivado de convencimento, este gosto

pressupõe

certa ideologia,à base da qual aceita-se

que isto é o máximo que a arte pode oferecer e no fundo as pessoas atingidas são realmente baixas como a musica expõe. Criar o problema pra vender a solução, tal é o procedimento

planejado do

capitalista típico e do empresário encarregado do patrocínio de um “novo grande sucesso”,ambos filhos legítimos das luzes, em cujos cálculos o que menos

interessa é o esclarecimento das massas. A indústria cultural,enquanto reduto do ideal democrático e liberal, deixa cair sua máscara àqueles que perceberam no estado

de

ignorância

das

massas

um

pressuposto

necessário

à

manutenção

operacional da “roda do capitalismo”;enquanto ela estiver girando não faltarão produtos disponíveis para a alienação e embrutecimento de quem os procuram. Seguindo ao que já foi expresso, os homens preferem mais o desejo à coisa desejada; ao que nos interessa, implica reconhecer que mesmo se mostrando claramente como ilusão,para a

humanidade, apegar-se ao processo é melhor que

nada

Quanto

ter

a

que

se

apegar.

mais

claro

se

torna

a

falência

processo,quanto mais as promessas de emancipação transformam-se em

do

ilusão

consciente,com mais força os homens se apegam a razão em busca da fuga deste estado de coisas. À primeira vista a atitude natural seria abandonar o processo,ao menos relativizar a razão como fonte infalível e única de acesso a verdade;contrariamente naquilo que nos oprime buscamos liberdade. A civilização ocidental, erigida ao som da máxima bíblica demonstra

“conhecereis a Verdade...” não

preocupação sobre o método com o qual a ela se chega e com

razão,afinal não importa o caminho escolhido desde que se chegue ao destino certo. Queremos a Verdade a todo custo,era o que estava inscrito em nosso destino desde a época clássica;para consegui-la travamos luta com a mitologia e todas as formas de crendices,porém atualmente sentimos que para isso há limites: a superstição aparece

para o homem como uma espécie de segunda natureza,de

forma a preferirmos nossa extinção a ter que conviver com sua superação pelos conhecimentos conquistados nas

questões tocantes ao sentido da vida humana.

Acontece que descendemos de uma tradição levantada sobre os pilares da lógica e da razão: depois de milênios de predomínio desta via,é compreensível aceitarmos passivamente seu império com sua concepção de Verdade. Comportamo-nos como seus escravos pois para isso fomos educados. A certeza no caminho desta via reside em que (no limite de nossa existência) iremos preferir o nada,a destruição total,a nada ter a preferir. Quando esta via, a vitoriosa entre outras, estiver absolutamente

desacreditada

obstruídos,neste momento

e

os

demais

caminhos

de

esperança

forem

optaremos por não ter mais que depositar esperança em

nada,seguiremos à barbárie generalizada. A questão premente de nossa época aponta

neste sentido:

podemos conviver

admitindo a

falência de

qualquer

fundamento para a Verdade? Será possível haver humanidade quando todas

as

crenças forem extintas, inclusive a mais decisiva delas, a crença na existência da Verdade?

Referências ADORNO,T.W; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos .Tradução: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. ADORNO, T.W. Prismas: crítica cultural e sociedade. Tradução de Augustin Wernet, Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: editora ática, 1998. ______.Educação após Auschwits. Disponível em http://adorno.planetaclix.pt/tadorno10.htm. Acesso em julho/2012. BENJAMIM,Walter.Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. 4.ed. São Paulo: Brasiliense, 1985b BRECTH, B. Aos que virão depois de nós. Tradução de Manuel Bandeira. Disponível em http://www.releituras.com/bbrecht_aosquevierem.asp. Acesso em julho/2012. PLATÃO. Mênon. Trad. de Maura Iglésias. Rio de Janeiro: PUC - Rio, Loyola, 2001. NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os pensadores) ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, in O contrato social e outros escritos, tradução de Rolando Roque da Silva, São Paulo: Editora Cultrix.

Filosofia e Crítica Social 51

Rosalvo Schütz

Introdução Nosso

propósito neste

texto é

explicitar um

potencial crítico

da

filosofia. Da mesma forma pretendemos evidenciar que o pensamento crítico é importante para o fortalecimento de uma cultura democrática. A crítica social viabilizada pela filosofia é condição fundamental para resistirmos a pretensões totalitárias, como foi o caso do stalinismo e do nazismo, mas também da atual sociedade administrada na qual, como veremos, nossa liberdade geralmente não passa de aparência. Para tanto, faremos primeiramente uma distinção entre Teoria Crítica e Teoria Tradicional e em seguida iremos nos deter em dois exemplos de pensamentos/questões

em que

filosofia e

crítica social

se encontram.

Os

pensadores da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Herbert Marcuse, que contam entre os principais expoentes da chamada Teoria Crítica, serão nossas principais referências teóricas.

Teoria Tradicional e Teoria Crítica A

expressão

“teoria

crítica”

é

geralmente

atribuída

às

teorias

desenvolvidas no contexto da Escola de Frankfurt. De fato foi aí que a questão do que seja teoria crítica foi tematizada de forma mais explícita. Paradigmático nesse sentido é o texto de Max Horkheimer intitulado “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”. Nesse texto, além de buscar definir a diferença entre ambas as possibilidades de teorias, traçou-se uma espécie de perspectiva investigativa assumida pela maioria dos autores dessa escola. Ao mesmo tempo, nesse trabalho o autor faz questão de enfatizar que a perspectiva crítica aí explicitada teria sido inaugurada por Karl Marx, de forma que a teoria que estava sendo desenvolvida no momento era apenas uma expressão desse posicionamento teóricocrítico. Vejamos, resumidamente, alguns aspectos do que viria a caracterizar uma 51

Professor dos Cursos de Graduação e Pós-graduação (mestrado) em filosofia da (UNIOESTE) Universidade Estadual do Oeste do Paraná e bolsista de produtividade do CNPq.

teoria crítica, na forma como ela teria sido desenvolvida por Marx, segundo Horkheimer. Em primeiro lugar, a teoria tradicional não é desprezada pela teoria crítica. Ela não está errada! Marx, por exemplo, não costumava afirmar que as teorias de A. Smith, D. Ricardo ou mesmo de Hegel estivessem erradas. Pelo contrário, fazia a eles elogios no que diz respeito ao seu poder de descrição. Sem os avanços feitos por esses autores Marx certamente teria tido dificuldades enormes para desenvolver a sua teoria crítica. O reconhecimento da legitimidade e do potencial da teoria tradicional na forma de diagnósticos de uma época (na forma de autoconsciência de sua época, como diria Hegel), portanto, é um ingrediente fundamental de uma teoria crítica. Sem esse diálogo com as diversas áreas do conhecimento em suas expressões mais avançadas, a teoria crítica corre o risco de simplesmente balbuciar intenções moralizantes na forma de críticas externas. Isto, no entanto, não quer dizer que a teoria tradicional deva ser aceita enquanto expressão mais adequada da realidade: ela é insuficiente na medida em que quer domesticar o futuro determinando-o de forma prévia. A sua insuficiência,

e

não

o

erro,

portanto,

é

que

constitui

o

seu

caráter

tradicional. Segundo Horkheimer, o caráter tradicional de uma teoria pode ser detectado na medida em que “naturaliza” a realidade descrita; em que busca reduzir a realidade ao seu esquematismo supostamente a-histórico; na medida em que tem pretensões de explicação absoluta, bloqueando as possibilidades de transformação efetivamente existentes, “tal como seria possível em virtude dos meios

técnicos existentes”

(1975, p.

145). A

teoria tradicional

seria,

portanto, duplamente insuficiente (apesar de não poder ser acusada de errada!): ela

não

possibilita

o

evidenciamento

da

realidade

como

uma

realidade

contraditória e, portanto, portadora de novas possibilidades; ao mesmo tempo ela acomoda os sujeitos ao existente uma vez que o naturaliza. Essas insuficiências, portanto, têm caráter ideologicamente conservador, pois, ao não evidenciar as possibilidades objetivas imanentes à realidade (não redutíveis à sua teoria), bloqueia a efetivação das mesmas. A insuficiência, portanto, não é de caráter simplesmente quantitativo. É uma forma de teoria conivente com o existente e

esta é sua característica e função, função esta que os teóricos exercem de uma ou outra forma, pois, inequivocamente, “[...] estão atrelados ao aparelho social, suas realizações constituem um momento da autoprodução e da reprodução contínua do existente, independentemente daquilo que imaginam a respeito disto” (Idem, p. 131). O fato, por exemplo, de A. Smith não ter desenvolvido uma teoria crítica ao estilo de Marx não deve ser atribuído a um déficit teórico, mas, sim, ao comprometimento de A. Smith com a sociedade em questão. Nesse sentido, não se pode afirmar que Marx foi apenas um economista melhorado. Os teóricos da economia política da época jamais desenvolveriam tal teoria, simplesmente porque aquele não era seu objetivo, pois o lugar social que ocupavam e “desde onde” construíram suas teorias não os permitia. Ao mesmo tempo esse exemplo demonstra que a teoria crítica pode e até mesmo deve apropriar-se de elementos da teoria tradicional a fim de elaborar suas próprias teorias e diagnósticos da realidade. A teoria crítica, portanto, apoiada nos mais diversos diagnósticos fornecidos pela teoria tradicional, evidencia os limites dela ao apontar para as possibilidades objetivas imanentes, mas bloqueadas, na realidade em questão. A teoria crítica, portanto, não pode ser reduzida a uma “fabulação abstrata do pensamento”

(Nobre,

2008,

p.12),

mas

também

não

pode

se

acomodar

aos

diagnósticos da realidade apresentados pela teoria tradicional, uma vez que são sempre insuficientes por não apontarem as possibilidades de libertação. Ou, como afirma Horkheimer (1975, p. 143), a “simples descrição da consciência burguesa não é suficiente para mostrar a verdade sobre sua classe” e, por isso, a teoria crítica não pode estar “[...] nem ‘enraizada’ como a propaganda totalitária nem é ‘livre-flutuante’ como a intelligentsia liberal” (Idem, p. 149). Ocorre, no entanto, que a teoria crítica também apresenta e sugere um diagnóstico do presente: este, porém, “tem de ser produzido em razão das possibilidades de libertação da dominação do capital, à luz da emancipação possível que o capitalismo carrega dentro de si” (Nobre, 2008, p. 13). Ao apontar para a contradição existente entre promessa (descrita pela teoria tradicional) e a realidade, a teoria crítica evidencia o que poderia ser e que ainda não é por estar sendo bloqueado em vista da manutenção de um status quo. O

teórico crítico, portanto, deveria ter consciência de que sua teoria não é apenas “[...] uma expressão da situação histórica concreta, mas também um fator que estimula e que transforma” (Horkheimer, 1975, p. 144). É nesse sentido que Adorno e Horkheimer puderam afirmar que a “[...] filosofia acredita na divisão do trabalho e que ela exista para os homens, acredita no progresso e que ele leva à liberdade. É por isso que entra facilmente em conflito com a divisão do trabalho e com o progresso. Ela dá expressão à contradição entre crença e realidade” (2006, p. 200). As aparências e as promessas de uma realidade justa e livre, da sociedade moderna, por exemplo, são desmascarados por Marx na medida em que evidencia a exploração e a opressão como elementos constitutivos da sociedade capitalista. Ao mesmo tempo, ao demonstrar o caráter histórico e social dessa sociedade, Marx desconstrói a sua pretensa justificação natural, evidenciando, assim, que outra realidade seria objetivamente possível, caso não estivesse bloqueada. Disso se pode concluir com Horkheimer (1975, p. 140) que “[...] não existe teoria da sociedade (...) que não inclua interesses políticos, e por cuja verdade, ao invés de manter-se numa reflexão aparentemente neutra não tenha que se decidir ao agir e pensar, ou seja, na própria atividade histórica concreta”. A teoria passa, assim, a ser compreendida dentro de uma processualidade prática de transformação. Vejamos agora, exemplarmente, dois temas específicos a partir do olhar de dois dos principais pensadores vinculados à Escola de Frankfurt, de como a filosofia, numa perspectiva marcadamente crítica contribui para a crítica social.

(Exemplo 01) Adorno: Pensamento Filosófico enquanto Crítica. A clareza e a precisão dos conceitos é uma exigência que assola a filosofia. Essa exigência é legítima e a filosofia não pode abrir mão do zelo constante pela precisão e clareza conceitual. Esta, no entanto, é uma tarefa ingrata: uma definição absoluta dos conceitos e do seu uso linguístico seria, de certo modo, o fim da própria condição de possibilidade do filosofar. Quem

espera, em filosofia, chegar a conceitos absolutamente claros, precisos e evidentes já está, de antemão, condenado a decepcionar-se. A redução do pensamento filosófico a constructos lógico-causais de conceitos previamente definidos certamente seria o próprio fim da filosofia.

Alguém, com um olhar não

filosófico, tende, no entanto, a fazer a pergunta: “[...] por que vocês simplesmente não definem os conceitos fundamentais?” (ADORNO, 1973, p. 09). Ora, esta tentativa pode ser empreendida, porém, qualquer conceito que queiramos definir precisa, necessariamente, ser explicado por outros conceitos, que não ele mesmo (por vezes, inclusive, recorrendo ao seu contrário). O que nos leva a evidenciar e aceitar o fato de que “[...] os conceitos somente podem ser determinados

por conceitos”

(Idem, p.

11). Como

cada conceito

precisa,

evidentemente, ser esclarecido por outros, o propósito de trabalhar sempre com conceitos

claros

interminável.

e

distintos

não

é

uma

tarefa

fácil

e,

provavelmente,

Ou seja, uma determinação completa, definitiva e final de coisas

e pessoas não é possível. Isso seria o fim da possibilidade de pensamento. Em último caso somos obrigados a apontar para algo (uma cor, por exemplo) para poder indicar o que exatamente dizemos com determinados conceitos. Ou seja, os conceitos mostram sua insuficiência. Adorno chega mesmo a afirmar, de forma polêmica, que, embora seja um momento importante da filosofia, a questão da definição dos conceitos individuais não é tarefa essencial da filosofia. Entender os conceitos filosóficos nos remete, de certa forma, a toda a história da filosofia, a entender o seu significado e função ou funções específicas que assumiram em determinadas filosofias. Além disso, existem conceitos em filosofia (espaço, tempo e ser, por exemplo) que simplesmente não podem ser definidos por completo. É ilusão, portanto, pensar que o procedimento de definição possa ser suficiente para adentrar progressivamente no pensamento filosófico. Acrescente-se a isso que a definição diferenciada dos conceitos em momentos

diferenciados da

história da

filosofia aponta

para as

mudanças

subjacentes às construções filosóficas (que trazem à tona, inclusive, dimensões sociais nas quais foram gestadas) sem que seu valor de verdade seja diminuído. Mesmo que alguns conceitos se mantenham constantes na história da filosofia,

eles não podem se tornar imunes aos aspectos “qualitativamente novos” (Idem, p. 16) que se manifestam e são gerados a partir dos novos usos que deles se fazem. Essa vivacidade do pensamento não deixa que ele seja aprisionado por qualquer forma de esquematismo prévio. Segundo Türcke (2004, p. 48), Adorno estava convencido de que o “sistema é a prisão do espírito”. Conclui-se que, em filosofia, esclarecimentos “[...] isolados de palavras não podem ser dados; os esclarecimentos de palavras são apenas uma entrada e podem apenas ser possibilitados pela relação explícita com a conexão em que estão” (ADORNO, 1973, p. 17). É justamente nessa “vida dos conceitos” que se dá a filosofia e o pensamento filosófico52: “[...] que a vida dos conceitos [...] no fundo é o mesmo que a filosofia [...] enquanto é uma filosofia e não apenas uma técnica científica, é caracterizada sobremaneira por comportar-se de forma crítica diante deste conceito da definição” (Idem, p 18). Pode-se afirmar (SEEL, 2006, p. 77), que Adorno buscou superar a hipostasia dos conceitos sem, no entanto, enfraquecer a força do pensamento conceitual: ele é vitalizado. Mesmo assim, permanece um momento unificador na concepção defendida pelo autor, mas este “[...] sobrevive sem a negação da negação e mesmo sem entregarse à abstração enquanto princípio supremo, de modo que não se progride a partir de conceitos e por etapas até o conceito superior mais universal, mas esses conceitos entram em uma constelação” (ADORNO, 2009, p. 140). Por isso, para Adorno,

pensar

de

forma

filosófica

significa

configurar

constelações

(conceituais) de tal forma que elas se esclareçam mutuamente, mas também e, principalmente, para que, mesmo sendo produto da subjetividade humana, em seu conjunto iluminem o objeto, mesmo que este objeto seja o próprio pensamento. Ao mesmo tempo, dessa forma o próprio processo de vir-a-ser desses conceitos fica preservado,

não

permitindo

o

seu

enrijecimento

ou

a

sua

fetichização.

Constelação conceitual alguma pode, no entanto, se autoatribuir a pretensão de ter iluminado por completo o objeto, mesmo porque as constelações não são algo 52

Segundo Souza (2004, p. 95), todas as obras de Adorno podem ser compreendidas dessa forma, ou seja, elas mesmas significariam uma negação de uma discursividade linear, constituindo-se antes em “[...] constelações de categorias e articulações de sentido extremamente sutis que espelham também por sua estrutura [...] aquilo a que fazem referência”.

estático, mas estão em constante transformação. Adorno estabelece, inclusive, uma analogia com as composições musicais: “Produzidas subjetivamente, essas composições só dão bom resultado quando a produção subjetiva desaparece nelas. A conexão que ela instaura – precisamente esta de 'constelação' – torna-se legível como signo de verdade: do teor espiritual” (Idem, p. 143). Não se trata de uma definição isolada de conceitos, mas sempre de um combinar dinâmico. A metáfora

é

interessante:

“Enquanto

constelação,

o

pensamento

teórico

circunscreve o conceito que ele gostaria de abrir, esperando que ele salte, mais ou menos como os cadeados de cofres-fortes bem guardados: não apenas por meio de uma única chave ou de um único número, mas de uma combinação numérica” (Idem, p. 142). Isso poderia nos levar a supor que Adorno abre mão da noção de verdade. De fato ele próprio (1970, p.14) afirma que a contradição que resulta da renúncia do absoluto e de, ao mesmo tempo, não abrir mão de um conceito de verdade é o próprio elemento da filosofia, é nesse ínterim que ela se constitui. Para Adorno, a própria verdade pode ser tida como constelação, no entanto, como pode ser concluído do que foi dito acima, não uma constelação fixa e imutável, mas uma constelação em devir: “Verdade é constelação em devir, não algo que se percorre

automaticamente,

onde

o

sujeito

seria

talvez

aliviado,

mas

dispensável” (ADORNO, 1995b, p. 21). É no esforço subjetivo que as constelações são reconstruídas, e isso acontece a cada vez que ao menos uma unidade dela se transforma, pois assim “[...] a constelação de todas as categorias se altera, e, com isso, uma vez mais cada uma delas” (ADORNO, 2009, p. 144). Sempre que refletimos, ultrapassamos o pré-pensado e podemos implodir a realidade que se sustenta nesses pressupostos, e o esforço subjetivo (a capacidade de fazer experiências) para tal é indispensável. Ou, como sugere Türcke (2004, p. 51) interpretando a questão: “O tema não existe sem variações. São elas que revelam, por suas voltas e viradas grandiosas, cada vez mais o tema. Mas a sequência das variações não obedece a uma lógica estrita; não está conduzida pelos conceitos de fundamento e de consequência, pois o próprio tema questiona a validade incondicional dos termos”. A concepção de verdade, portanto, deixa de

ser algo com contornos fixados, mas, pelo contrário, para poder continuar sendo verdadeiro, o pensamento filosófico tem de se renovar constantemente, a partir daquilo que ele não é, daquilo que lhe devolve a vivacidade: a experiência. Tal experiência, só o sujeito pode realizar: “O pensar não deve reduzir-se ao método, a verdade não é o resto que permanece após a eliminação do sujeito” (1995b, p. 19). O pensamento que se enquadrar de forma a priori a regras tende a se atrofiar. Ele precisa, por seu compromisso com a verdade, nutrir-se pela admiração daquilo que ele ainda não é. Donde Adorno conclui que o “[...] pensar filosófico só começa quando não se contenta com conhecimentos que se deixam abstrair e dos quais nada mais se retira além daquilo que se colocou neles” (Idem, p. 16). Evidentemente isso não deve levar ao menosprezo da tradição e dos textos

filosóficos:

“Textos

para

interpretar

e

para

criticar

apoiam

a

objetividade do pensamento” (Idem, p. 23). Pensar, portanto, significa estar em constante construção de constelações buscando ‘iluminar’ mais, melhor e de forma diferenciada alguma realidade (mesmo que sejam outras estrelas/conceitos). O pensamento não pode permanecer ao que é dado: ao sugerir outras constelações sugere também outras configurações da realidade.

Conforme afirma Adorno em sua

Terminologia Filosófica I (1973, p.44), um caminho muito frutuoso na filosofia é aquele que liga conceitos às terminologias recebidas/herdados pela história da filosofia de modo a constituir com eles constelações de forma que estes termos, pelas relações estabelecidas, se apresentem de maneira totalmente outra. Um dos principais objetivos da filosofia seria, pois, fazer com que os conceitos percam o seu “endurecimento” (Idem, p.55), quebrando o seu engessamento e situando-os em outras constelações. O paralelo com configurações da realidade é evidente. Também

nela

não

percebemos

certos

aspectos

se

nosso

pensamento

for

demasiadamente estreitado, reduzido ao seu caráter classificatório em relação ao “ser assim” do mundo. O pensamento assim concebido pode viabilizar o vir à tona de coisas que a ideologia oculta. Esse

potencial

crítico

do

pensamento

filosófico

seria,

pois,

uma

propriedade inerente e constitutiva do mesmo pensamento. Sem isso, a filosofia tenderia a se degradar em sistema. Em vez de ser caracterizada pelo seu

potencial descritivo (a coruja de Minerva hegeliana), ela teria de estar, para permanecer viva, em constante choque com o outro dela mesma: resistindo ao que é apresentado como real. É uma concepção diretamente oposta àquela que sugere a capacidade de domínio absoluto da razão, sem, no entanto, abrir mão do trabalho do conceito e de uma noção de verdade. Se, por um lado, pensar não é dominar, por outro lado, não existe pensamento sem uma relação com o objeto. Sem uma relação produtiva que “resulta do longo e paciente olhar” sobre ele. Ao tornar evidente o caráter constitutivo do não-racional para a filosofia, Adorno questiona toda uma tradição filosófica que simplesmente procurava negar essa dimensão e, ao mesmo tempo, reabilita o

thaumatzein grego como condição do filosofar. O amor implícito na noção de amor à sabedoria (filosofia) não pode ser confundido com o domínio violento. Amor requer a aproximação não violenta e que reconhece a alteridade enquanto legítima não-identidade. Adorno insiste em afirmar que pensar é mais do que fazer uso da racionalidade formal53 (apenas uma das capacidades da inteligência), chegando mesmo

a

afirmar

que

pensar

se

aproxima

antes

da

capacidade

de

fazer

experiências. Na Dialética do Esclarecimento, as consequências dessa redução já haviam sido intuídas: “Reduzindo o objeto a uma lei ou a um número perde-se a vida deste objeto” (ADORNO e HORKHEIMER, 2006, p. 16). Ou seja, pensar implica fazer referência à realidade, a algum conteúdo sem deixar que a capacidade autônoma e a espontaneidade do sujeito se atrofiem. Por isso também, para nosso autor (1975, p.105 e ss.), a luta contra a indiferença é um dos principais desafios de qualquer processo educativo que queira, de fato, evitar que Auschwitz e seus pressupostos se repitam. É a superação da indiferença que possibilita a experiência, que é a base para o pensamento autônomo que pode gerar “[...] a força para a reflexão, para a autodeterminação, para o nãoparticipar” (ADORNO, 1975, p. 93). A autonomia do pensamento, que já não mais é identificada com o domínio 53

A denúncia de uma racionalidade estreita é uma temática que pode ser tomada como um elemento comum nos diversos integrantes da Escola de Frankfurt. Horkheimer (1974), por exemplo, em seu texto Meios e Fins, alerta que uma razão reduzida à capacidade de classificar, deduzir e inferir seria uma razão subjetiva, servil e incapaz de pensar sobre fins. Por estar reduzida ao seu caráter instrumental, ela também é denominada de razão instrumental.

do eu e do pensar sobre o ser, passa a ser concebida enquanto capacidade de pensar a contrapelo e em “nadar contra a correnteza” sem, no entanto, perder de vista o objeto ou o problema em questão. Ou seja: “Pensar filosoficamente é, assim,

como que

pensar intermitências,

ser perturbado

por aquilo

que o

pensamento não é. [...] A força do pensamento de não nadar a favor da própria corrente é a de resistir contra o previamente pensado. O pensamento enfático exige coragem civil” (1995b, p. 21). Por isso, de certa forma,se pode dizer que também a ingenuidade pertence à filosofia, pois o relacionar-se diretamente com as coisas é, embora nunca uma verdade última, uma condição “[...] para que não nos deixemos desencorajar, de ver num fenômeno, aquilo que ele nos sugere”. Para Adorno (1973, p. 17), quando se deixa definhar a capacidade de perceber algo nas coisas, então “[...] não se pode alcançar uma reflexão filosófica efetiva”. Por outro lado, mesmo sem ser possível sem essa referência, o pensar também é impossível de ser imaginado sem a ação de alguém que pensa: “Onde o pensar é realmente produtivo, onde é criador, ali é sempre também um reagir. A passividade está no âmago do ativo, é um constituir-se do Eu a partir do nãoEu” (1995b, p. 18). A proposta de Adorno, porém, não pode ser confundida com uma recaída no irracionalismo. Como afirma acertadamente Perius (2008, p. 105): “Adorno fala da insuficiência do conceito ou então do além-do-conceito, portanto, não fala de uma filosofia não-conceitual”. O esforço do conceito é imprescindível, ele é o esforço de, através dos conceitos, ir além dos próprios conceitos, mas também precisa revelar as suas próprias condições e, por isso, exige concentração: “A concentração do pensamento confere ao pensar produtivo uma propriedade que o clichê lhe nega. Ele se deixa comandar, nisso não deixando de assemelhar-se à assim chamada inspiração artística, na medida em que nada o distrai da coisa. Ela se abre à paciência, virtude do pensamento” (ADORNO, 1995b, p. 18-19). Para evitar mal-entendidos, Adorno sempre faz questão de enfatizar que, apesar dessa explícita proximidade da filosofia com a arte – que não dever ser confundida com a paródia do “sábio que contempla o próprio umbigo”! (Idem, p. 20) –, ela também se diferencia dela: “Em contraposição à arte, a filosofia defende o não

conceitual sempre e apenas través do conceito, ou então ela representa aquilo que não pode ser pensado através do pensamento” (1973, p. 87). O pensamento filosófico, portanto, de certa forma, se constitui em meio a um campo tenso: “Subjetivamente o pensamento filosófico é incessantemente confrontado com a exigência de conduzir-se em si mesmo de acordo com as regras da lógica e de, não obstante, receber em si aquilo que não é ele mesmo e que não se submete mais a ‘priori’ à sua própria lógica” (1995b, p. 18). Daí que a verdade não pode ser posta, segundo Adorno, nem exclusivamente na conta do sujeito nem do objeto: “Os pensamentos que são verdadeiros devem renovar-se incessantemente pela experiência da coisa, a qual, não obstante, só neles recebe sua determinação” (Idem, p. 21). Pode-se

afirmar

que

pensar

para

além

da

racionalidade

estreita

(denominada também de a ratio burguesa e razão instrumental) significa renunciar ao próprio impulso organizador do pensamento. O impulso organizador é expressão, como vimos, da pretensão de domínio, e domínio que pretende se perpetuar. Na medida em que isso é feito através de instrumentos conceituais, são os próprios conceitos que são petrificados e apresentados como se traduzissem a própria realidade.

Eles escondem,

portanto, a

sua origem

social e

histórica. A

fetichização desses conceitos é, ela própria, um instrumento ideológico. Dessa falta da capacidade de pensar, a filosofia pode ser afetada de diversas formas. Segundo Adorno, isso não acontece apenas na filosofia da identidade, que teve sua expressão máxima na tese da equivalência entre ser e pensar em Hegel. Também em tendências positivistas, na fenomenologia e mesmo na filosofia marxista (a versão que lhe foi impressa pelo materialismo dialético do Leste), essa tendência pode ser verificada. Ambas seriam formas disfarçadas de idealismo, reafirmações da primazia do sujeito. Quando, por exemplo, 1) em aproximação com tendências positivistas da ciência, a filosofia absolutiza o método, que se torna então uma instância de controle do próprio pensar, não aprovando mais nada a não ser aquilo que o procedimento do método prescrito aceita. A absolutização da objetividade dos conceitos camufla a função imprescindível da subjetividade na constituição de todo e qualquer conceito. Ou quando, 2) numa perspectiva

fenomenológica, por uma espécie de “golpe de mágica [se] supõe alcançar o olhar essencial” (1970, p. 22-23) das coisas mesmas na sua autenticidade fundamental, ocorre uma absolutização de conceitos como se eles não estivessem sempre mediados social e historicamente e constituídos por sujeitos. Essa pretensão de verdade, segundo Adorno, não passa de sofisticada ideologia que também se serve do

fetiche

dos

conceitos,

agourando-se

de

uma

suposta

profundidade

e

autenticidade primordial para se justificar. Em ambas as posições, o que acontece é a “[...] apresentação de fetiches, de conceitos propriamente construídos” (Idem, p. 23), como se eles existissem sem a ação da subjetividade humana. Mas também a 3) filosofia marxista do Leste, segundo Adorno, teria sido convertida em um dogma estático (em contraposição ao próprio conteúdo do pensamento de Marx) e se degradado em uma ideologia, em idealismo disfarçado. Na medida em que, por exemplo, o desenvolvimento do capitalismo depois de Marx é ignorado (com a integração do proletariado ao sistema) por essa visão, a própria teoria de Marx é degradada a um fetiche: “Marx teria sido o último a cindir o pensamento do andar real da história” (ADORNO, 1970, p. 24). A postura de Marx teria sido testemunho de que à filosofia cabe “[...] pensar aquilo que é diverso do pensamento e que o transforma pela primeira vez em pensamento” (ADORNO, 2009, p. 165). A essas tendências, Adorno (1995b, p. 22) se contrapõe afirmando

que

compreender

“[...]

filosoficamente

significa

certificar-se

daquela experiência na qual se reflete automaticamente54 (sic!) e, contudo, em estreito contato com o problema traçado a cada vez”. Diante desse horizonte filosófico, Adorno acredita que um dos grandes desafios da filosofia é romper, através da força do pensamento, com o fetiche dos conceitos, evidenciando seu caráter social, histórico, constelativo e provisório e mesmo o que lhes é anterior. Quem pensa não sucumbe ao fetiche dos conceitos (e sua função!) e subverte as referências ideológicas do status quo estabelecido, podendo, assim, “revelar um vestígio de esperança de que não liberdade, opressão e o mal [...] não têm a última palavra” (ADORNO, 1970, p. 18). 54

Há aqui um equivoco na tradução: “in der manautonom [...] reflektiert” deveria ser traduzido por“na qual se reflete autonomamente” e não “na qual se reflete automaticamente”.

(Exemplo 02) Marcuse: em busca de novos sujeitos sociais emancipatórios A suspeita, levantada por H. Marcuse em sua época é de que o horizonte de transformação tradicional, baseado em uma perspectiva puramente imanente, acaba aprisionando a práxis social (mesmo de muitas das assim chamadas esquerdas) ao interior dos sistemas, ao dogma idealista do inevitável progresso da razão e da história.

Ações

desenvolvidas

dentro

desse

horizonte

seriam

facilmente

neutralizadas e catalisadas pela própria totalidade existente. Nesse sentido, portanto, o autor busca apontar sempre para a necessidade de se compreender possibilidades

emancipatórias para

além das

contradições internas

de uma

totalidade. Para tanto, seria necessário atentar para necessidades objetivas simplesmente reprimidas pela totalidade antagônica existente. Essas necessidades estariam baseadas em forças e em movimentos que ainda não teriam sido manietados ou que já teriam se libertado do horizonte da produtividade agressiva e repressiva

da sociedade

moderna: “O

poder de

negação surge

fora dessa

totalidade repressiva, a partir de forças e movimentos que ainda não estão manietados pela produtividade agressiva e repressiva da chamada ‘sociedade de abundância’, ou que já se libertaram desse desenvolvimento” (1972, p. 165). Devido

à

integração

progressiva

da

tradicional

classe

trabalhadora

industrial ao sistema, para Marcuse, “[...] os catalizadores da mudança se tornam atuantes ‘desde fora’” (1969, p. 84). Isso ocorre porque, numa “[...] sociedade baseada no trabalho alienado [...] os homens só percebem as coisas nas formas e funções em que lhes são dadas, feitas, usadas pela sociedade existente; só percebem as possibilidades de transformação tal como são definidas e limitadas na sociedade existente” (Marcuse, 1973, p. 74). A superação a ser buscada não é do trabalho em si, uma vez que este é constitutivo do ser humano na sua relação tanto com a natureza quanto com a sociedade e consigo mesmo. Marcuse sugere uma nova forma de satisfação “[...] sem labuta – isto é, sem o domínio do trabalho alienado sobre a existência humana” (1999, p. 141). A superação das formas de trabalho alienado e, portanto, do indivíduo burguês e suas exigências de desempenho, no entanto, não pode se dar de forma apenas

individual. A libertação individual só pode acontecer de fato na medida em que vem acompanhada da libertação da sociedade e vice-versa. O grande desafio é conseguir fazer a contraposição a uma sociedade funcional e crescente, o que pode inclusive criar certo conflito com a “maioria trabalhadora bem integrada” (1969, p. 81). A tendência seria a de que as práticas políticas mais radicais se concentrem em grupos minoritários55. Marcuse, no entanto, está bem lúcido quanto aos limites e às dificuldades a serem enfrentadas: “O que acontece é a formação de grupos relativamente ainda pequenos muitas vezes com uma organização fraca (muitas vezes desorganizada), mas que, devido à força de sua consciência e de suas necessidades, atuam como catalizadores da rebelião em meio à maioria, à qual pertencem conforme sua origem de classe” (1969, p. 80). Percebe-se, portanto, que Marcuse busca superar uma ontologização dos sujeitos revolucionários, atribuindo-lhes um caráter histórico e dinâmico: “As forças revolucionárias surgem no próprio processo de transformação; a tradução do potencial em atualidade é o trabalho da práxis política” (1969, p. 117). A práxis política, portanto, não pode ser confinada a esquematismos e fabricações prévias. Ela não pode mais se orientar em uma concepção de revolução formulada no final do século XIX e início do século XX. Essa concepção está já determinada no passado por um horizonte marcado pela “tomada do poder” por um levante das massas dirigida por um partido revolucionário que pressupunha uma vanguarda da classe revolucionária a qual iria introduzir as mudanças fundamentais da sociedade. No atual capitalismo avançado, onde as massas foram integradas e se tornaram, elas próprias, forças de conservação e estabilização, não se pode mais esperar que efetivem essa sua função idealmente concebida. Por isso “[...] os grupos minoritários de hoje, sobre os quais recairá a tarefa de organização, serão muito diferentes da vanguarda leninista” (1973, p. 47). O seu potencial estaria (coerente com a formulação original das condições de constituição do lugar social da negação!) na sua consciência e objetivos que os tornam “[...] 55

Ao apontar esse potencial, Marcuse não nega objetivamente o proletariado enquanto potencial classe revolucionária: “Evidentemente é algo sem sentido afirmar que a oposição civil substitui o proletariado enquanto classe revolucionária e de que o lumpemproletariado adquire uma força política radical” (1969, p. 80).

verdadeiros representantes dos interesses gerais dos oprimidos. [...] É a luta pela vida – por uma vida não de senhores nem de servos, mas de homens e mulheres” (1969, p. 81). Essas posturas teóricas e políticas de Marcuse o levam a formular também uma crítica à democracia liberal-parlamentar: “Nas novas esquerdas disseminouse uma significativa não aceitação das práticas políticas tradicionais [...] o que aponta para uma nova reconsideração da democracia [...] e de sua função rumo a uma sociedade livre” (1969, p. 97). Em vez de deixar que as aspirações da chamada nova esquerda se diluam ou sejam represadas na esfera da legalidade constituída, o que precisa ser evidenciado, segundo Marcuse, é uma contradição entre promessa e realidade da democracia existente, de forma que, se “[...] democracia significa o autogoverno de seres humanos livres e justiça para todos, então a realização da democracia pressuporia a superação da pseudo-democracia atualmente existente” (1969, p. 99). É evidente que uma luta contra essa pseudodemocracia, do ponto de vista dela mesma, provavelmente será considerada não democrática. O que teria de estar claro nesse caso, como afirma Marcuse no calor dos debates dos protestos estudantis do final dos anos 1960, é que a “[...] linguagem dominante de lei e ordem, que é declarada como válida pelos tribunais e pela polícia, não é apenas a voz mas a própria ação de opressão” (1969, p. 110). Nesse sentido se poderia dizer que a luta de classes se dá, de fato, a partir dos “malditos desta terra” na medida em que estes se contrapõem ao status estabelecido. Por isso é que a “[...] análise crítica desta sociedade precisa de novas categorias: morais, políticas e estéticas” (Marcuse, 1969, p. 21). Segundo Marcuse, a oposição pode se evidenciar em diversas formas e organizações. Cita, como exemplos, as rebeliões difusas entre os jovens e as dos intelectuais, bem como a luta cotidiana das minorias perseguidas: “O movimento estudantil não é, apesar de revolucionário em sua teoria, revolucionário em suas necessidades impulsivas e últimos objetivos [...] no entanto, ele é o fermento da esperança nas sufocantes super-poderosas metrópoles: ela testemunha a verdade da alternativa – a real necessidade e real possibilidade de uma sociedade

livre” (1969, p. 92). O movimento de mulheres representa o potencial de negação de uma sociedade erigida a partir do princípio da produtividade destrutiva própria da forma mental e física da dominação masculina, que gera uma estrutura na qual “[...] nem homens nem mulheres são livres” (1973, p. 78). Por isto “[...] uma sociedade livre seria a ‘negação definitiva’ desse princípio – seria uma sociedade fêmea” (Idem, p. 77) e por isso a luta do movimento feminino encontra sua radicalidade não na afirmação de uma sociedade matriarcal, transformando valores biológicos em éticos e culturais, mas na possibilidade “[...] ascendente de Eros sobre a agressão, em homens e mulheres; e isto significa, numa civilização dominada pelo homem, a ‘feminilização’ do macho [...] não só a igualdade dentro do emprego e da estrutura de valores da sociedade estabelecida (o que seria uma igualdade de desumanização), mas, antes, uma mudança na própria estrutura" (1973, p. 77). A superação da mais-agressão masculina se daria simultaneamente com a superação da mais-passividade feminina: “É da natureza das relações sexuais que ambos, macho e fêmea, sejam objeto e sujeito ao mesmo tempo; a energia erótica e agressiva fundem-se em ambos. A mais-agressão do macho está socialmente condicionada – assim como a maispassividade da fêmea” (1973, p. 79). As mulheres, no entanto, provavelmente teriam um potencial de contribuição maior do que os homens nesse processo, uma vez que o relativo “[...] isolamento (separação) do mundo do trabalho alienado do capitalismo habilitou a mulher a permanecer menos brutalizada pelo Princípio de Desempenho, a ficar mais fiel à sua sensibilidade: mais humana do que o homem” (1973, p. 80). Como consequência política mais ampla dessas suas observações  aqui apenas sintética e exemplarmente indicadas por meio do movimento estudantil e de mulheres , Marcuse busca visualizar uma concepção política onde essas diversas formas de manifestação política seriam possíveis. Seria preciso, para tanto, reabilitar dimensões que, no processo de consolidação/instrumentalização da democracia, foram reprimidos. Um desses desafios indicados é recuperação de “[...] uma facunda realização da tradição revolucionária, os ‘conselhos’ (‘sovietes’, Räte) como organização de autodeterminação e autogoverno (ou,

melhor, de preparação para o autogoverno) nas assembleias populares locais” (1973, p. 50). Embora consciente da ambivalência e fragilidade dessa concepção (já que a “expressão imediata da opinião e vontade dos trabalhadores [...] não é, per se, progressiva nem uma força de mudança social; pode ser o oposto”), Marcuse insiste: “A democracia direta, a sujeição de toda a delegação de autoridade ao controle efetivo ‘por baixo’, é uma exigência essencial da estratégia da Esquerda” (Idem, p. 51). Ou seja, a nova sociedade não pode ser resultado exclusivo de alguma teoria: deve antes acontecer enquanto obra livre de homens libertos ou em processo de libertação. Trata-se de um processo que, apesar de não ser a realização de ideais impostos de fora, é marcado, desde o início, pelos seus objetivos.

Conclusão Pelo

que

pudemos

consideradaconstitutiva

de

ver um

acima, pensamento

a

dimensão

filosófico.

crítica Afinal,

pode para

que

ser o

pensamento possa se manter vivo ele não pode nem se reduzir a uma simples descrição da realidade nem se deixar reduzir a fantasia. É a partir da interação, da capacidade de se deixar afetar pela realidade social e histórica concreta que o pensamento filosófico adquire sua vigorosidade e atualidade. Se visualizar e superar as armadilhas ideológicas das teorias tradicionais; se subverter

realidades

opressoras

apontando

para

novas

possibilidades;

se

democracia é mais do que um puro formalismo; se buscar visualizar e fundamentar novas referências sociais emancipatórias são temas importantes na atualidade, então a atualidade da filosofia enquanto crítica social também fica evidente. Apesar de filosofia alguma poder oferecer receitas de como as coisas devem ser, as críticas sociais certamente também requerem muito mais do que ativismo cego: exigem o esforço do conceito.

Bibliografia ADORNO, Theodor. A atualidade de filosofia. Tradução: Bruno Pucci. Disponível em: . Acesso em: 21 jul. 2012.

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esclarecimento:fragmentos

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FOLHA DE APONTAMENTOS PARA DISCUTIR COM OS AUTORES ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________

IF-SOPHIA – UMUARAMA: FILOSOFIA, EDUCAÇÃO E AUTONOMIA é a transcrição dos seminários realizados durante o primeiro ano de realização Umuarama, enquanto

do

Projeto

versando processo

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extensão

sobre de

IF-Sophia,

questões

promoção

da

na

relacionadas educação

cidade a

e

de

Filosofia

autonomia

humana.

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É DISSO QUE TRATA esta obra: da análise crítica, por vários filósofos brasileiros, do papel dos saberes filosóficos na promoção da autonomia cidadã, através da educação, tendo como referência alguns dos importantes pensadores contemporâneos da atualidade.

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