INVOCAÇÃO AO CORPO DOCENTE: PARA ASSUMIR COMPROMISSO COM A VIDA, O SER HUMANO, A LIBERDADE E A PAZ

June 4, 2017 | Autor: Sergio Santos | Categoria: Docencia, Afetividade, Corporeidade
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Convenit Internacional 22

set-dez 2016

Cemoroc-Feusp / IJI - Univ. do Porto

Invocação ao corpo docente - para reassumir compromisso com a vida, o ser humano, a libertação e a paz

Sérgio Oliveira dos Santos1 Wesley Adriano Martins Dourado2

Resumo: A presente reflexão retoma a relação corpo e educação para tratar, de modo especial, da atividade docente e o chamamento que ela faz ao corpo do docente como uma afirmação da vida e um compromisso de colaborar com a construção de um certo jeito de ser gente. Palavras Chave: corpo. docência. afetividade. Abstract: This reflection resumes the relation between body and education to deal, in particular, with the teaching activity and the call that happens in the teacher's body as an affirmation of life and a commitment to collaborate with the building of a certain way of being a person. Keywords: body, teaching, affectivity.

Introdução Propor, uma vez mais, pensar junto corpo e educação se justifica pela compreensão, tão defendida por Paulo Freire e outros tantos educadores e filósofos, de que o ser humano precisa se construir, deve forjar a sua existência, o que não se pode realizar sem que outros humanos o auxiliem. Assumir compromisso com a prática educativa e os educandos transcende o “dever” e se apresenta como uma sensibilidade diante da vida e do viver, uma responsabilidade para que a existência alheia seja garantida. É neste sentido que o educador fala em “compromisso”, em querer bem3: não se está discorrendo sobre processos, conteúdos, mas antes de colaborar para que a docência possa cumprir o seu papel de colaborar com a construção da existência das crianças, a fim de que sejam os seres humanos que puderem ser. A referida sensibilidade, de algum modo, é apresentada por Julián Marías como condição para que a experiência de ensinar e aprender se constitua de modo significativo, autêntico. Doutorando e Mestre em Educação – UMESP. Prof. de Educação Física e Judô – PMSCS. Coordenador do Núcleo de Formação de Judô de SCSul. Membro fundador da REMoHC – Rede Educativa de Motricidade Humana e Corporeidade. Professor formador CECAPE - SCSul. Bolsista CAPES/PROSUP. 2 Possui graduação em Filosofia pela Universidade Metodista de São Paulo (2000), graduação em Teologia pela Faculdade de Teologia da Igreja Metodista (1997); mestrado em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo (2003) e doutorando em educação pela mesma Universidade. Atualmente é professor auxiliar da Universidade Metodista de São Paulo, coordenador do curso de filosofia desta Universidade e professor titular de filosofia da Escola Municipal de Ensino Alcina Dantas Feijão. Editor responsável pela revista Páginas de Filosofia (https://www.metodista.br/revistas/revistasims/index.php/PF) 3 Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 1

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Diz o pensador: Si los estudiantes no esperan ilusionados la llegada del maestro, su presencia, su enseñanza, no funciona para ellos como maestro, sino a lo sumo como «docente» o «profesor». Si el maestro, por su parte, no siente ilusión por su menester, y concretamente por sus discípulos, en grado muy alto por algunos, su función es una forma deficiente, una degeneración de una vocación. Uno y otros tienen que esperar, anticipar, sentir complacencia, asociarse a las trayectorias ajenas. Si esta ilusión falta, la auténtica función no se cumple. (MARIAS, 2015, p. 67) Neste ponto reside um risco. A atividade docente poderá representar colaboração para fazer com que as crianças sejam os humanos que se espera que sejam ou, nobre e desafiadora tarefa, oferecer as condições para que elas se constituam, sejam artífices de um existir que possa reservar espaço para outros modos de ser e, com eles, outros “êthos”, outras “pólis”, ou seja se constituírem como os homens e mulheres que podem ser. Aqui se inscreve uma pedagogia progressista ou da libertação, como defendeu Paulo Freire. Neste contexto, portanto, o papel da docência ocupa especial lugar. Mais precisamente o corpo do docente, posto que esta invocado, evocado neste compromisso com a humanidade, com as crianças. Invocar o corpo do docente é a possibilidade de ressignificar o fazer docente.

Invocações Estando diante dos nossos olhos este sentido da docência, como algo que envolve um visceral envolvimento com projetos de existir, que aceita o desafio de preparar para que as crianças estejam em condições de serem artífices de si mesmas, do seu lugar, do seu mundo, apresentamos elementos que seguem provocando àquele que se aventurou pela docência como profissão. A primeira invocação ao corpo docente implica em reconhecer que a sua atividade, em que pese resultar na sua objetiva sobrevivência, se envolve com uma tarefa de valor inestimável, que, por isto mesmo, o desafia a não perder o gosto pela vida – pela sua própria que se diga - de não poder aceitar qualquer negociação, acordo político, investimento financeiro que não esteja comprometido com as crianças e o oferecimento das condições para a construção da sua humanidade. Este é o primeiro chamamento do qual nenhum docente poderia olvidar. Entendida a educação como algo próprio dos humanos e, por isto mesmo, tarefa de importância e seriedade inquestionáveis, o docente encontra, no compromisso assumido com as crianças, a possibilidade de que se livre do embrutecimento de si mesmo, posto que não poderá seguir na sua atividade de colaborar para a modelagem do ser humano se ele mesmo tiver a sua existência diminuída e/ou impedida. Não é sem razão que Paulo Freire indique que o querer bem aos discentes e a prática educativa implica em seguir na luta política por melhores condições de trabalho. Diz o pensador:

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O desrespeito à educação, aos educandos, aos educadores e às educadoras corrói ou deteriora em nós, de um lado, a sensibilidade ou a abertura ao bem querer da própria prática educativa de outro, a alegria necessária ao que-fazer docente. É digno de nota a capacidade que tem a experiência pedagógica para despertar, estimular e desenvolver em nós o gosto de querer bem e o gosto da alegria sem a qual a prática educativa perde o sentido. É esta força misteriosa, às vezes chamada vocação, que explica a quase devoção com que a grande maioria do magistério nele permanece, apesar da imoralidade dos salários. E não apenas permanece, mas cumpre, como pode, seu dever. Amorosamente, acrescento. Mas é preciso, sublinho, que, permanecendo e amorosamente cumprindo o seu dever, não deixe de lutar politicamente, por seus direitos e pelo respeito à dignidade de sua tarefa, assim, como pelo zelo devido ao espaço pedagógico em que atua com seus alunos. (1996, p. 160 - 161) Aqui temos a segunda invocação ao corpo docente: a coragem de transformar, lutar para que a prática educativa seja lugar de inegociável respeito à humanidade, à vida, o que requer lutar contra tudo o que, na prática docente, na estrutura escolar, nas políticas educacionais desprezam não apenas a docência, enquanto uma área de atividade, mas sobretudo, os homens e mulheres que, aceitando o chamado, caminham pela docência como quem tem clareza de que colaboram para cultivar o jardim, para preservar a vida, para defender o direito de ser humano 4, os seus inclusive. A referida luta, nestes termos, assume um aspecto profundamente político: lutar para que as sociedades não descuidem do que é necessário para que as crianças se constituam humanos ou, como diz Paulo Freire, para que possam ser mais5. Esta luta não pode ser vista como um gesto de sacrifício em benefício das crianças, pois ela é uma luta pela vida, pela dignidade do viver que não pode faltar a discentes e nem a docentes. Não se trata, portanto, de defender que a docência deva ser abnegada. A invocação do corpo docente requer assumir a sua responsabilidade num embate que é o seu próprio e que, com muita nobreza, trabalha por aqueles que ainda não sabem e não podem pelejar por si, não compreendem bem o que significa mesmo o motivo do litigio. Esta tarefa é nobre não porque convida a docência ao martírio, mas porque a defesa da dignidade da vida é a própria condição e finalidade da docência. O recontro em defesa da docência, do respeito ao corpo docente, seguramente, se inscreve num movimento maior da consolidação da democracia neste país, da observância irrestrita dos direitos humanos, de avançar no aprofundamento do sentido mesmo da “política” entre nós, a fim de superar o uso privado, corporativista que dela ainda se faz. Nesta direção a prosa 24 do livro “Solte os Cachorros” de Adélia Prado nos ajuda a pensar. 4

Sobre compreensão da educação como um direito humano, como instrumento em favor da convivência fraternal, do cultivo da tolerância entre os povos cf. FISCHMANN, Roseli. Educação, direitos humanos, tolerância e paz. Paidéia (Ribeirão Preto), Ribeirão Preto, v. 11, n. 20, p. 67-77, 2001. Disponível em . Acesso em 28 fev. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-863X2001000100008. 5 Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1998. Sobre a relação entre o “ser mais” de Paulo Freire com a cidadania e a política Cf. DOURADO, Wesley Adriano Martins. Corpos transcendentes: sobre a cidadania. In: SILVA, Elena A.; PIZA, Suze de O. Cidadania, que coisa é essa? São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2010.

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Eu, SE FOSSE GOVERNO, subia num tamborete, batia palma e gritava bem alto pra todo mundo escutar: cala boca, gente, escuta aqui. Obrigava todo mundo a ficar quieto primeiro e explicava o meu programa administrativo. Governo não É Deus, muito pelo contrário, é o tipo da coisa que precisa de ajuda. Não ia fazer nada sozinho, que eu não sou bobo. Escolhia pra meus ajudantes só gente que tivesse duas coisinhas à-toa: honestidade e competência. Feito isso, falava pra eles: faz um levantamento do nosso país, aí, isto é, varre a casa primeiro. Depois conferia numa assembléia, que não ia ter recesso enquanto não me dessem, por escrito, quantos meninos sem escola, quanto pai de família sem emprego, quanto homem e mulher que fosse amarelo, feio, sem dente, sem saúde, sem alegria. Me aparecesse tudo anotado no papel. bom, depois dava um descanso de meia hora pras câmaras alta e baixa e ia de novo presidir eles arranjarem um meio de acabar com essa tristeza toda, em primeiro lugar com o problema da comida. Porque vou te dizer: passar fome não é coisa pra gente, não; passar fome é de uma desumanidade tão exagerada, que só pensar bole com a bile de quem tiver um grão de consciência. Eu não tenho poder nenhum, de política eu não entendo. Fico falando essas coisas, fico mais ridículo que galinha na chuva, já viu que dó? Aquele passo bobo, aquele pescoço esticado pra frente, olha aqui, olha acolá, encharcada na friagem e na lama, sem resolver nada e, pior que tudo, sem saber de nada. Eu falei de comida, mas tudo tem um nome só: "Procurai antes o Reino de Deus e Sua Justiça", está escrito na Bíblia. Pois nosso país assinou a Carta dos Direitos Humanos, não assinou? Nós somos um país rico, cujo tamanho abarca Europa inteira e ainda sobra terra pra leilão. Não é assim? Então, pelo amor de Deus, o que que eu posso fazer pra ter sossego, pra recuperar umas coisas que desenvolvimento nenhum nunca mais vai me dar? Olha, antigamente, quando chovia encarreirado igual tá chovendo agora, eu gostava de pedir a mãe pra fazer mingau de fubá. A gente bebia e enfiava debaixo das colchas pra escutar chuva e ser feliz. Enchente era bom porque o Edgar do Zé Romão subia na canoa com o pai dele e vinha navegar quase na nossa porta, pra fazer bonito. Era cobra que aparecia, era gente do centro, descendo pra apreciar. Hoje, não. Tá chovendo eu não tenho gosto de aproveitar, fico é pensando: ô minha nossa senhora, tem gente com os treco tudo molhado, sem uma coisa quente pra forrar o estômago. A situação, entre outras coisas piores, tá estragando com minha vocação de sambista, fazendo tudo pra me tirar o rebolado, o que é me matar da pior das mortes. Tou com medo de apanhar tristeza, encardir de melancolia. Sei que sofrimento neste mundo é fazenda de todos. Mas tendo Justiça, meu Deus, ao menos miséria some, ao menos ninguém vai ter susto de ser preso à toa, de apanhar sem poder dizer essa boca é minha, explicar, de pé feito vim homem, se tem culpa ou não. Culpa eu tenho demais. E medo. Perdi pai, perdi mãe, fiquei grande com muitos filhos nas costas. Tem hora, minha vontade é chorar de bezerro desmamado meu fundo desvalimento. Tenho que fazer isso escondido, porque os meninos, quando sofrem o medozinho lá deles, é atrás de mim que correm, pensando que eu sou forte, só porque sou grande. Eu não posso ir pro convento, gente com filhos não pode. Tapar os ouvidos não quero, que é covardia. De morrer eu não gosto. Francamente eu não sei o que fazer, eu não sei mesmo. Se eu fosse o governo ou o chefe dos bispos 26

do Brasil, baixava um decreto pra funcionar desde o mais perdido Cruzeiro de roça até a Catedral mais chique, desde as prefeituras mais mixas até o palácio dos ministros. Que se estudasse até descobrir o que Deus quis dizer exatamente, quando inspirou o Profeta a escrever no Livro Sagrado esta oração mais linda que se reza em vésperas do Natal: "Derramai ó céus das alturas o vosso orvalho e as nuvens façam chover o Justo". Porque Ele veio e virá sempre à palha e ao cocho para ser compassivo. Mas nós o que estamos fazendo pra ajudar? (2006, p. 7779) Que ninguém ignore as dores da docência. A entrada numa sala de professores permitiria perceber discursos cansados, de gente que desgastou a sua existência e não tem mais força corporal para seguir lutando com o mesmo vigor. Todavia, não perderam a esperança. Há aqueles que, sem compromisso algum com as crianças, mas com a sua carreira, com os seus proventos, discursam sobre a inviabilidade financeira da docência, a irresponsabilidade dos outros atores educacionais (gestores, família etc), sobre a ausência de compromisso dos discentes com os importantes e indispensáveis conteúdos que eles bravamente ensinariam. Estes, provavelmente, são os que amam a si mesmos, mas não têm ternura pelas crianças; ocupam-se com as suas vidas, mas não conseguem cultivar a dimensão ética e política do viver e/ou fingem não existir nenhuma inevitável implicação ética e política do seu fazer que, neste caso, pouco ou nada colabora para o ser mais, para as mudanças possíveis. Se superados os tantos problemas que listam como impedimento da sua prática não estou seguro que se comprometerão mais com as crianças, que sua afeição por ela se ampliará. Os que agem sem esperança6 não compreendem o que aqui propomos ou disso desdenham. Aqueles, entretanto, que não conseguem ignorar o seu compromisso com as crianças, com a vida se colocam nestas duas empreitadas da docência: colaborar para que as crianças sejam capazes de forjar a si mesmas e, ao mesmo tempo, resistir o que a isto quer impedir, ao menos nos limites da experiência educativa. A prosa da poeta, nesta reflexão, serve de lembrança: o envolvimento com a política é tarefa de todos nós o que, sem dúvida alguma, inclui o fazer docente, o que com veemência defendeu Paulo Freire. É preciso que a docência também se constitua em lugar de resposta à pergunta da poeta: o que estamos fazendo para ajudar?

Jean-Paul Sartre no texto “O existencialismo é um humanismo”, tratando da liberdade humana, da construção de si, posto que não haveria uma essência humana, a responsabilidade que disto decorre com a nossa existência e da humanidade toda, de entender a vida como um projeto, afirma: “não é preciso ter esperança para empreender” (p.10). O filósofo indica que a condição de liberdade do ser humano e a inevitável tarefa de se fazer, nos põe a caminhar, mesmo sem ter certeza de que o nosso projeto chegará a bom termo. Caminhamos porque somos livres, porque está em nossas mãos inventar a nossa existência. Deste modo, como afirma o filósofo, nos engajamos num partido político ou, no contexto da nossa reflexão, nos envolvemos com uma experiência educativa, com uma prática docente porque é de nossa responsabilidade construirmo-nos, bem como, colaborar para a construção da humanidade toda. O filósofo dirá que a sua postura não é pessimista, mas otimista, posto que, livres os homens e mulheres poderão sempre começar outros projetos de ser gente. Ao fazer referência a esta ideia queremos indicar que mesmo quando já não temos mais segurança de que a nossa demanda não será alcançada, a nossa liberdade e responsabilidade humanas, deveriam nos manter firmes da tarefa de forjar-nos a nós mesmos. O docente pode perder as forças, mas deve se lembrar que segue livre e, por isto mesmo, artífice da humanidade. É neste sentido que aqui falamos em esperança: a ineficiência da nossa luta, dos nossos projetos não mudam a possibilidade de que possamos nos envolver com novos projetos, outras lidas. Cf. SARTRE, J-P. O existencialismo é um humanismo. Trad. Rita Correa Guedes. Paris: Les Éditions Nagel, 1970. 6

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Para atender a este chamamento o corpo docente não pode criar o perverso deslocamento entre docência e política, entre educação e ética, o que torna urgente manter-se sensível ao mundo, aos outros e reconhecer nas dores da docência, as dores dos que estão sem trabalho, dos que passam fome, posto que todas são impedimento ao direito de viver, de alegremente viver. A luta em defesa da prática docente é um dos instrumentos de uma orquestra que brada em benefício da vida. Invocar o corpo docente quer evitar que as suas dores se transformem em descaso pela vida, até mesmo em vingança perigosa contra o que o massacrou no exercício da docência, posto que tal gesto não conseguirá mais do que ampliar o desrespeito a vida, uma vez que implicará em abandonar o compromisso com as crianças, de auxiliar na tarefa de pai e de mãe, que Adélia Prado anuncia assim: “Eu só quero dizer que se a gente se esforçar pra ser pai e mãe com decência parar de pensar na gente, pra se incomodar mais com estes que nós pusemos no mundo, eles vão dar conta de sofrer sem perder a esperança.” (PRADO, 2006, p. 39) A terceira invocação ao corpo docente está, exatamente, na capacidade de celebrar a esperança, como um dos elementos de manutenção do compromisso com a vida. Mesmo quando o corpo já não possui as mesmas condições, a esperança deve ser mantida para que as gerações de novos docentes não sejam contaminadas com aquele discurso que deseja o fracasso da escola pública – ou que ela seja um fracasso para a maioria que lá passa -, e, assim, publica o seu desinteresse pela dignidade de viver de muitos meninos e meninas. A manutenção da esperança, ou como diz Paulo Freire, da alegria de viver em nada se assemelha a uma vida ingênua, mas de um esforço para não esquecer a importância da prática docente na tarefa de colaborar para construir a humanidade (1996, p.160). Aqui, à parecença do que se disse acima, cultivar a alegria de viver é a possibilidade de enfrentar os projetos educacionais, políticos e éticos feitos para alguns. Adélia Prado, na parte inicial da prosa 3, do livro já mencionado, parece sugerir como a ideologia vigente - que denominamos de capitalismo, que é mais que um sistema econômico, é um modo de viver, por todos os lados defendido, inclusive dentro da escola – vai nos cercando a ponto de vivermos sem alegria, dado que somos impedidos de viver as coisas simples, por sermos envolvidos pela tristeza e dor de convivermos com a desigualdade, a pobreza. Embora a prosa assuma uma direção que possa indicar certo conformismo fica evidente o desgosto de “comer sem alegria”, dada a falta de um governo bom e justo, da falta de liberdade pra fazer conta no armazém, da falta de amor que resulta em discriminação etc. (2006, p.13 – 15) É preciso seguir a marcha, fardar-se da poesia, da capacidade de criar mundos, de dar novos rumo ao seu viver. Outro elemento a dar destaque, implicado no que se disse acima, é a ausência do corpo na vivência educativa. Com isto se quer indicar a quantidade de ações que são pensadas, construídas, vividas em detrimento do corpo, muitas vezes para o sofrimento do corpo de discentes e docentes. Prazos, quantidades, ordem, disciplina, hierarquia e tantos outros elementos que servem mais ao funcionamento da escola e da prática docente do que à tarefa de esculpir a humanidade com as crianças. Desde a organização do espaço escolar, o posicionamento das carteiras, a qualidade da merenda, o tempo do intervalo, a quantidade de disciplinas, de atividades, de avaliações mais colaboram para impingir ao corpo um sofrimento, dores, semelhantes ao do fluxo da exploração do trabalho nas empresas, nas fábricas, do que um elogio ao corpo que se envolve com a tarefa de ensinar e aprender, como resposta a este chamamento da criança que quer ser mais, que desejaria se ocupar daquilo que pode colaborar para ampliar a vida, a sua própria e do próprio docente.

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Eis aqui, então, o quarto chamamento ao corpo docente que consiste em deslocar-se na direção de si mesmo e pensar o seu trabalho e a sua convocação desde o corpo: o seu e o das crianças. Trata-se de se colocar num lugar inexplorado (a ideia não é nova, a sua vivência é que segue inexplorada), que submete processos, conteúdos, avaliações ao corpo, que mantem sob vigilante foco os impedimentos ao “ser mais” para que sejam prontamente evitados. Trata-se de convidar a pensar a partir de si e na companhia das crianças, do lugar objetivo onde realizamos a tarefa de ensinar e aprender para que o ensino das letras, dos números, dos animais, da sociedade, das teorias não seja um ocultamento da vida, mas ferramenta para apreciála, desvendá-la e transformá-la em uma experiência de dignidade para todos. A invocação do corpo docente implica num deslocamento que, como diz Adélia Prado, tem a ousadia de se colocar no início, no princípio, na própria experiência onde vamos desenhando os modos de viver. Na prosa 15 do livro “Solte os Cachorros” remete ao relato da criação do ser humano, no livro do Gênesis, em particular ao gesto de dar a Adão a tarefa de dar nome. A poeta se inscreve entre aqueles que reconhecem o espanto, a admiração7 como elementos indispensáveis para a epistemologia, para a poesia, para a ciência, para a existência. A sua reflexão exige que não percamos a sensibilidade, sob pena de que massacraremos as crianças, de cultivarmos o seu medo, posto que não estamos dispostos a acompanha-la na degustação do seu espanto, da sua alegria quando o mundo, inicialmente misterioso, vai se transformando em descoberta, conhecimento etc. (2006, p. 47 - 48) Trata-se daquele retorno às vivências ou às coisas mesmas como diz a fenomenologia, ou ao cotidiano, como defende Adélia Prado em suas obras, e perceber que a docência se inscreve num sentido de viver que não está plenamente dado, que convida à reinvenção e, sobretudo, à sensibilidade de ajudar as crianças a apropriarem-se do mundo ao mesmo tempo que apropriam-se de si mesmas na convivência com os outros corpos. É preciso que o docente perceba que o seu corpo é desejado, no sentido de que a ele as crianças estendem os seus dedos num esforço de, nesta relação, constituir e/ou tornar próprio um sentido de viver. Merleau-Ponty, ao tratar da linguagem defende que na criança, mas não apenas, ela representa um esforço de construção de sentido que, por sua vez só é possível na presença do outro. Trata-se de um gesto que visa um outro corpo, a relação com o outro. Antes da linguagem ser uma estrutura formal, um exercício intelectual ela é um gesto do corpo que visa compreender o mundo na relação com outros corpos. Diz o filósofo: Engajo-me com meu corpo entre as coisas, elas coexistem comigo enquanto sujeito encarnado, e essa vida nas coisas não tem nada de comum com a construção dos objetos científicos. Da mesma maneira, não compreendo os gestos do outro por um ato de interpretação intelectual, a comunicação entre as consciências não está fundada no sentido comum de suas experiências, mesmo porque ela o funda: é preciso reconhecer como irredutível o movimento pelo qual me empresto ao espetáculo, me junto a ele em um tipo de reconhecimento cego que precede a definição e a elaboração intelectual do sentido. Gerações uma após a outra “compreendem” e realizam gestos sexuais, por exemplo o gesto da carícia, antes que o filósofo defina sua significação intelectual, que é a de encerrar em sim mesmo o corpo passivo, mantê-lo no sono do prazer, interromper o movimento 7

Sobre a admiração cf. PIEPER, Josef. Que é Filosofar? São Paulo: Loyola, 2007.

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contínuo pelo qual ele se projeta nas coisas e para os outros. É por meu corpo que compreendo o outro, assim, como é por meu corpo que percebo “coisas”. (1999, p. 252-253) Eis aqui mais um motivo para invocar o corpo do docente: é por meio do corpo, diz o filósofo, que compreendemos o outro, e nós diríamos, o mundo, a nós mesmos. A experiência educativa se funda no encontro de corpos que se envolvem na tarefa de fazer-se. Cuidar de si, do seu corpo, do corpo na tarefa docente, como já indicamos anteriormente, é zelar pela possibilidade de seguir “sendo”, mas, igualmente de seguir parte deste espetáculo corporal que, antes mesmo de qualquer procedimento intelectual, já se abre ao outro para dizer algo sobre o mundo e a vida. Invocar o corpo do docente, como elemento (se assim se pode dizer) de uma experiência educativa, quer recolocar no centro da prosa que a educação se inscreve neste esforço corporal e comunitário de constituir uma certa experiência de humanidade que sempre poderá ter o seu sentido ampliado. Trata-se de entender, com radicalidade, que a experiência de ensinar e aprender, implica que não ignoremos a nossa vivência do mundo, com os outros. Implica em saber que, a despeito dos usos e finalidades dadas à educação, a sua tarefa de colaborar com a construção dos modos de ser das crianças é o que dá a ela sentido e, ao mesmo, que a convida à possibilidade corporal de ampliar o sentido. Trata-se de pensar uma educação desde o corpo, para o corpo, com o corpo. O quinto e último chamamento, de algum modo já indicado acima, é que a invocação do corpo docente é um desafio à experiência de amar. Amor que é expressão de um compromisso com a vida, com o outro e consigo mesmo. Paulo Freire chama isto de querer bem aos educandos e a prática educativa. Trata-se de reconhecer a inevitável e, talvez, inegociável relação entre educação e afetividade, de entender a afetividade, enquanto abertura para o outro, como lugar de construção de conhecimento que se dá na simultaneidade da construção da nossa humanidade. Sem este querer bem, sem este compromisso uma pedagogia libertadora, tal como a concebia Paulo Freire, não chega a se constituir.8 Adélia Prado, como que descrevendo certa falta de sentido no fazer docente, o reencontra, justamente, no compromisso com as crianças, quando afirma que dá aulas pelo Reino de Deus (2006, p.33). Trata-se, portanto, de entender a docência como a necessidade mútua que temos, da regência da docência como um ato de reconhecimento de que não há sentido no viver se não juntos, e que o amor, o respeito, a liberdade, a autonomia é o que nos mantem parceiros na construção de um certo jeito de viver. É o que justifica o desejo do outro, da presença do outro, do toque do outro, pra gente brincar, diríamos, aprender e ensinar. Esta necessidade, ou melhor, esta condição dos homens e mulheres, está posta no poema “Orfandade” (2012, p.12), do livro Bagagem de Adélia Prado. Meu Deus, me dá cinco anos. Me dá um pé de fedegoso com formiga preta, me dá um Natal e sua véspera, o ressoar das pessoas no quartinho. 8

Cf. SANTOS, Sergio Oliveira dos; DOURADO, Wesley Adriano Marins. Corpo, afeto e educação. Disponível em: http://hottopos.com/notand40/113-124WesleySergio.pdf. Acesso: fevereiro de 2016.

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Me dá a negrinha Fia pra eu brincar, me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe. Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável, me dá a mão, me cura de ser grande, ó meu Deus, meu pai, meu pai. A docência, de algum modo, é este pedido: dá-me a mão, deixe-me ajudar-te a caminhar enquanto me anima a seguir caminhando. Uma experiência docente que não ignora o corpo reconhece o amor como uma celebração cotidiana, como a reafirmação diária da importância de viver com, para que a docência não seja a tristeza da orfandade. Postura amorosa que alimenta e sacia os desejos do corpo de conforto, de tranquilidade, de carinho e que nos faz desejar ter um mundo, construir um mundo para sermos. É o que lemos na poesia “Azul sobre amarelo, maravilha e roxo” (p. 21), do mesmo livro acima indicado. Desejo, como quem sente fome ou sede, um caminho de areia margeado de boninas, onde só cabem a bicicleta e seu dono. Desejo, com uma funda saudade de homem ficado órfão pequenino, um regaço e o acalanto, a amorosa tenaz de uns dedos para um forte carinho em minha nuca. Brotam os matinhos depois da chuva, brotam os desejos do corpo. Na alma, o querer de um mundo tão pequeno como o que tem nas mãos o Menino Jesus de Praga.

Corpo invocado – à guisa de conclusão Invocamos o corpo docente em nome do docente, de uma experiência educativa encarnada, movida pelo sentido que brota das relações corporais, em nome de um compromisso com a vida e a construção do ser humano para a libertação e a paz. Não há ingenuidade aqui, nem de ignorar as muitas interdições ao corpo docente, à sua criatividade, ao seu gosto pela liberdade, pela autonomia, mas também, não somos ingênuos de acreditar que teremos uma outra experiência educativa se o corpo do docente não estiver sensível ao fato de que, no fim das contas, e no início do conto, estão os corpos que se educam para serem, para continuarem a ser, para serem de outros modos, para sermos todos corpos invocados.

Referências

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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. MARIAS, J. Ilusión – maestros y discípulos. Convenit Internacional, Cemoroc – Feusp/ IJI- Univ. do Porto, p. 67-68, setembro-dezembro de 2015. Disponível em: http://hottopos.com/convenit19/67-68Marias.pdf . Acesso em 02/03/2016. MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. PRADO, Adélia. Bagagem. São Paulo/Rio de Janeiro: Record, 2012. _____________. Solte os Cachorros. São Paulo/Rio de Janeiro: Record, 2006.

Recebido para publicação em 02-03-16; aceito em 03-04-16

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