Irmandade da Gloriosa Virgem e Mártir Santa Cecília dos Professores da Arte da Música da Corte de Lisboa (1603-1834)

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Irmandade da Gloriosa Virgem e Mártir Santa Cecília dos Professores da Arte da Música da Corte de Lisboa (1603-1834)

Ana Paula Tudela (Investigadora Independente) Responsável pelos Arquivos Históricos da Irmandade de Santa Cecília e do Montepio Filarmónico. Foi investigadora no domínio do Conhecimento de História da Arte, com Miguel Figueira de Faria, entre 1997 e 2004 e no Centro de Estudos de História Empresarial, da Universidade Autónoma de Lisboa (CEHE/IIPUAL) entre 2001 e 2008. Tem-se dedicado a estudar os construtores de instrumentos musicais no âmbito da micro-história com incidência, até ao momento presente, nos cravistas de manufactura e nos organeiros. [email protected]

Resumo: Num momento de reflexão sobre a sustentabilidade dos sistemas de protecção social, entender o caminho percorrido neste domínio tornou-se essencial. As irmandades de corporações profissionais foram o laboratório ensaístico de uma segurança social especializada na realidade do trabalho, de cuja experiência resultou o principal sedimento utilizado no actual modelo geral do Estado. O objectivo desta comunicação é apresentar um dos casos mais emblemáticos em Portugal, a Irmandade de Santa Cecília, da corporação dos músicos e o respectivo Arquivo Histórico. O caminho escolhido foi apresentar a irmandade, dar a conhecer a respectiva actuação no domínio da protecção social dos seus membros e elencar as séries do seu acervo documental, que se encontra aberto a quem o queira estudar. Palavras-chave: Irmandade de Santa Cecília, Corporação dos Músicos, Arquivo histórico.

Abstract: In a moment of reflection on the sustainability of social protection systems, understand the path covered in this field has become essential. The brotherhoods of professional corporations were the essayistic laboratory of a social security specializes in working reality, whose experience resulted in the main sediment used in the current general model of the state. The purpose of this communication is to present one of the most emblematic cases in Portugal, the Brotherhood of St. Cecilia, the corporation of musicians and its Historical Archive. The path chosen was to present the fellowship, to make known their action in the field of social protection of its members and list the series of its document collection, which is open to those who want to study. Keywords: Brotherhood of St. Cecilia, Guild of Musicians, Historical Archive.

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A recente descoberta do compromisso de Santa Cecília, da cidade de Évora1 trouxe para a ordem do dia o estudo do funcionamento local da corporação profissional dos músicos. A organização da Residência Cisterciense 2014 achou por bem inserir o tema nas suas comunicações e, enquanto responsável do arquivo histórico da Irmandade de Santa Cecília de Lisboa, a principal do reino, inspiradora dos modelos locais, fui convidada a apresentar o seu fundo documental e o percurso da irmandade, em traços gerais. Apresentar o seu percurso é tornar visível a sua acção no espaço e no tempo em que geriu a vida profissional da classe que representou e os contextos que partilhou. A civilização em que se inseriu e o paradigma que a define são os mesmos a que pertenceram as comunidades de São Bento de Cástris. Entender, pois, o funcionamento de uma é fornecer pistas e caminho para entender o funcionamento da outra. Mais importante ainda é estabelecer a ligação entre esse mundo que ficou para trás e aquele em que vivemos. As nossas instituições são herdeiras e, na maior parte dos casos, consequências directas dele. Para resolver os problemas dos nossos dias e enfrentar os desafios das sociedades modernas, o entendimento do caminho percorrido e da evolução da sociedade a que pertencemos é uma das armas mais preciosas de que podemos dispor. Parece ter ficado esquecida ou inconscientemente ignorada a especificidade das irmandades das corporações profissionais, no contexto das irmandades estritamente devocionais2. Os primórdios do Sistema de Segurança Social são comummente atribuídos à Santa Casa da Misericórdia3, fundada em 1498 pela Rainha D. Leonor. Isto poderá ser verdade se pensarmos em iniciativas tomadas por figuras de estado, destinadas à população carenciada. Não podemos no entanto esquecer que os mesteres da cidade de Lisboa no séc. XIV já tinham uma forte organização 4, que esta passava, 1

Analisado nesta conferência por Vanda de SÁ, no artigo Irmandade de Santa Cecília - Implementação local na segunda metade do século XVIII: Lisboa, Évora e Porto. 2

Embora todas as irmandades tenham o dever de prestar devoção a um padroeiro e de praticar a caridade, decidi designá-las deste modo como meio de fazer a destrinça entre aquelas que no contexto devocional, praticam a caridade com os seus irmãos devotos e aquelas que sendo devotas a um padroeiro se dedicam à organização de uma determinada classe profissional e à assistência dos membros dessa mesma classe. 3

Cf. SEGURANÇA SOCIAL. Evolução do sistema de Segurança Social (actualizado em 14/3/2012). http://www4.seg-social.pt/evolucao-do-sistema-de-seguranca-social. (Consultado em Set/2014). 4

Veja-se a capacidade cívica de participação que os mesteres tiveram na Crise de 1383-85. Cf. CAETANO, Marcelo, A Antiga Organização dos Mesteres da Cidade de Lisboa in LANGHANS, Franz-Paul de Almeida, As Corporações dos Ofícios Mecânicos – Subsídios para a Sua História, Vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1943, pp. LIX-LXIII (Prefácio).

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não só pelo controlo profissional, mas também pela prestação de assistência aos seus membros. O grande Hospital Real de Todos os Santos foi formado com os equipamentos dos pequenos hospitais existentes, à época, em Lisboa sendo que um número considerável deles eram precisamente os hospitais das diversas corporações dos ofícios. Portanto, para entendermos o todo não podemos deixar de fora as iniciativas de caracter assistencial destinadas ao mundo do trabalho, ou seja, a acção das irmandades dos ofícios. Embora partindo de um paradigma mental comum, estas terão sido as que desenvolveram as soluções pragmáticas para as situações de fragilidade que ocorrem aos profissionais ao longo da sua vida. Umas não excluem as outras, antes pelo contrário, dão a imagem do todo da sociedade. Provavelmente, uma parte significativa das regras ainda hoje presentes nos estatutos da Segurança Social são sobreviventes dos compromissos das irmandades das corporações profissionais. Sabemos que uma parte substancial já tinha transitado para os montepios de classe, no séc. XIX, cujo modelo inicial assentou nas bases das irmandades suas antecessoras. A análise comparativa dos compromissos das diversas profissões com os compromissos das irmandades exclusivamente devocionais e com o corpo de regras da actual Segurança Social poderá trazer luz sobre esta questão.

1. Fundação da Irmandade de Santa Cecília de Lisboa A constituição de uma irmandade de músicos em Lisboa, sob a protecção de Santa Cecília, terá sido legitimada em 1603. Não temos dúvidas que os trabalhos para a erigir terão começado antes, mas para essa fase ainda não localizámos notícia alguma. Quanto ao primeiro compromisso, que seria datado de 1603, ter-se-á perdido com o terramoto e ainda não foi encontrada nenhuma cópia. Todavia, temos algumas referências importantes, embora indirectas. Vejamos as três provas seguintes.

1.a. Prova A: O Tostão da Santa - traslados de 1755 e de 1803 O primeiro traslado do Alvará de 1702, que estipula o bem conhecido Tostão da Santa, é de Março ou Maio 1755, antes do Grande Terramoto. Sobreviveu e está

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guardado na Torre do Tombo5. Foi feito um segundo traslado a partir deste, em 1803, que guardamos no cartório da irmandade6. Na primeira parte do documento, o tabelião refere que lhe foi apresentado o compromisso e descreve-o com pormenor: «Joze Manoel Barboza Tabalião publico de Notas (…) certefico que a mim me foy aprezentado hum livro emcardernado em pasta forrada de Velludo emcarnado com suas Tarjas, e Chapas de prata, e huma Estampa da Senhora Sancta Cezillia, em fronte Espicio outra no meyo com o Titulo Seguinte (…) Compromisso da Irmandade da glorioza Virgem Santa Cezilia ordemnado pelos devotos Irmaõs Muzicos desta Cidade de Lisboa em a Igreja do Spirito Santo da Pedreira no anno de mil e seis centos e trez (…)7»

1.b. Prova B: Em 1618 - Arte do Cantochão, de Pedro Talésio Outra fonte indirecta para esta questão é a “Arte do Canto Chão”8 de Pedro Talésio (? - 1629)9, que a tradição assumiu como fundador da irmandade. No Proémio, o autor revela-nos que foi parte para a instituição da Confraria de Santa Cecília dos músicos de Lisboa. Com este documento ficamos na posse de diversos elementos: que em 1618 a Irmandade de Santa Cecília já existia, que um dos seus principais fundadores foi, de facto, Pedro Talésio, que também se apresenta como o primeiro que no reino de Portugal “ordenasse missas e musica de coros”10. A palavra “ordenasse” talvez deva ser entendida aqui como “organizasse”, “melhorasse”, desse ordem ao que existia. Ou seja, Pedro Talésio terá sido um agente da Contra Reforma. “Ordenar” missas e música de coros e promover a instituição de uma confraria de músicos vai ao encontro do plano de Roma. 5

1.º Traslado: 22 de [Março/Maio] de 1755 - Tabelião: José Manoel Barbosa. Cf. ANTT – 7.º Cartório Notarial de Lisboa, Livro 541, 02/05/1755. 6

2.º Traslado: 29 de Outubro de 1803 - Tabelião: Joaquim Manoel Gomes de Carvalho. Cf. AHISC – CX. G02, Macete 2. 7

Ibidem. Sublinhado da autora.

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TALÉSIO, Pedro. Arte de canto chão com huma breve instrucção, pera os sacerdotes, diaconos, subdiaconos, & moços de coro, conforme ao uso romano - Composta & ordenada por o mestre Pedro Thalesio...., Coimbra, Impressão de Diogo Gomez de Loureyro, 1618. 9

Pedro Talésio foi mestre de capela do Hospital Real de Todos os Santos, até c. de 1610, mestre da catedral da Guarda entre 1610 e 1612 e lente da Cadeira de Música em Coimbra entre 1613 e 1629. Cf. MONTEIRO, Maria do Amparo Carvas - Da música na Universidade de Coimbra: 1537-2002. Coimbra, 2002. 10

TALÉSIO,

Arte do Cantochão…, Proémio.

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1.c. Proca C: Em 1625 Felipe III confirma o compromisso dos músicos Embora o reinado de Felipe III tenha tido início em 1621, os músicos só têm a confirmação real do seu compromisso em 1625. Talvez seja um reflexo da descentralização da capital do reino português: «O provedor off.es he irmãos da irmandade de Santa Cecília cita na hirmida do Espírito Santo da pedreira desta cidade Lx.ª Eu el Rei faço saber aos que este alvará virem que [avendo receb.º] anno em vieram pedir por sua petição o provedor officiaes he irmãos da irmandade de santa Çecilia çita na hirmida do espírito santo da pedreira desta cidade de Lxª e d.as as causas que alegão e informação que [se ouve] pelo doctor m.el Alvarez de carvalho procurador da minha coroa ei por bem e me praz de lhe confirmar como depois por ele confirmo o compromisso da dita irmandade que offereceu que vai escrito em vinte em tres meas folhas deste L.º (…)11». Comprova-se assim a existência anterior a 1625 de um compromisso que está a ser apresentado ao novo monarca para confirmação. Recapitulando: 

TRASLADO DO TOSTÃO DA SANTA, DE 1702 (Descrição do 1.º Compromisso e refere data e local de funcionamento).



PROÉMIO DA ARTE DO CANTOCHÃO (Notícia de um dos fundadores e fonte mais antiga).



CONFIRMAÇÃO DE FILIPE III, EM 1625 (Confirma a existência do compromisso e refere o local de funcionamento).

Está ainda por provar se os músicos anteriormente à sua organização em torno de Santa Cecília estariam associados doutro modo. Na sua maioria, directamente dependentes das capelas reais e da igreja, não é totalmente estranho que não se agremiassem como os mesteres, embora isso esteja por confirmar. Mas certamente fariam parte de irmandades devocionais e de diversas ao mesmo tempo, tal como

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ANTT – Chancelaria de Felipe III, Privilégios, Livro 4, fl. 46v. (20/02/1625).

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continuou a acontecer depois de terem formado a Irmandade de Santa Cecília. Uma coisa é a pertença profissional outra é a pertença ao núcleos de vizinhança e de devoção.

2. Contexto do Surgimento das Irmandades dos Músicos: A Reforma Tridentina e o Papel dos Papas Antes de continuar, talvez deva fazer aqui um parêntese para situar a criação da irmandade de Santa Cecília de Lisboa no contexto do mundo católico. As directrizes saídas do Concílio de Trento (1545-1563) originaram a colocação em marcha de um plano Contra-Reformista, através do qual a Igreja Católica se pudesse renovar com dignidade. Para isso foi necessário proceder a reformas burocráticas, urbanísticas, do conhecimento em geral, mas, sobretudo, artísticas. As artes, entendidas como veículos importantes de comunicação e transmissão doutrinal, são largamente contempladas na contra-reforma. A música em particular, como a mais importante, pela sua intensidade, universalidade, um poderoso veículo na propagação da fé. Para isso era preciso disciplinar, regrar, vincular à norma, em suma, agregar os músicos enquanto classe profissional. Terá sido Filipe Nery, oratoriano, o percursor em Roma na instituição de uma congregação de músicos com estas características. A especificidade da congregação do Oratório (mista: laica, religiosa e secular) foi propícia à criação de uma instituição essencialmente laica, como é uma irmandade profissional, que, ao contrário das devocionais tem como preocupação primeira a vigilância e a gestão profissional da classe que a constitui. Os papados de Gregório XIII (1572-1585) e Sisto V (1585-1590) tiveram uma contribuição decisiva para o arranque das confrarias de músicos, laicas. Gregório XIII, com os músicos de Filipe Nery e o resultado do trabalho do músico Palestrina pôs em marcha a afirmação de um novo conceito de dignidade cristã. O seu sucessor, Sisto V, continuou com o plano anterior e oficializou-o através da Bula “Rationi Congruit” de 1/5/158512.

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Resumo da tradução que a autora fez de GIAZOTTO, Remo. Quatro Secoli distoria Dell’Accademia Nazionali di Santa Cecilia, (Primo Volume), Verona, A.N. di Santa Cecilia, 1970. O autor refere que este documento foi dado a conhecer em 1919 pelo jesuíta Angelo de Santi, transcrito e interpretado por ele com a ajuda de Raffaele Casimiri.

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Resumindo: Os objetivos da criação de uma irmandade de músicos, no contexto da Contra Reforma foram: Disciplina, profissionalização, afirmação de um novo conceito de dignidade cristã e de uma nova forma de caridade.

3. Contexto Português Sendo Portugal um reino cuja génese está intrinsecamente ligada à Santa Sé, as orientações saídas do Concílio de Trento tiveram grande influência na sociedade portuguesa. Os mesteres, embora organizados desde os primórdios da nacionalidade, nesta altura foram alvo de uma revisão das suas regras nas questões da disciplina e profissionalização dos artesãos. Foi a reforma dos regimentos dos oficiais mecânicos, em 1572, pelo licenciado Duarte Nunes de Leão13. As “Belas Artes”, sob o patrocínio régio e eclesiástico, irão ainda demorar c. de 30 anos para se organizarem em Confrarias ou Irmandades. A Pintura, que congregava na sua irmandade arquitetos, escultores, iluminadores e desenhadores constituiu-se em Confraria em 1602 sob a proteção de S. Lucas, um ano antes da Música. A grande diferença entre as duas é que a Irmandade de S. Lucas se desintegrará após o terramoto, tendo falhado nas diversas tentativas para se reerguer, dando-se por extinta em 1793. Já a Irmandade de Santa Cecília de Lisboa sobreviveu ao terramoto e à própria Revolução Liberal, em 1834, através da metamorfose levada a cabo pelos músicos, que lhe anexaram o Montepio Filarmónico e a Associação Musica 24 de Junho. Deste modo prolongaram o modelo integrado de controlo da classe profissional por mais cerca de 45 anos.

4. Objectivos pragmáticos de uma irmandade profissional nos finais do séc. XVIII: Como referi atrás, temos que escrutinar o conjunto das regras estatutárias das “irmandades corporativas” e compará-las com as das “irmandades devocionais”, uma vez que as preocupações centradas na gestão profissional dos seus irmãos deram origem a deliberações específicas, distintas das irmandades apenas devotadas à caridade.

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Embora tenham na sua base a iniciativa do Estado, com D. Manuel a querer controlar o poder dos oficiais mecânicos, o paradigma da reforma insere-se nos mesmos princípios: Regular, disciplinar, etc.

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A título de curiosidade deixo aqui enunciados os objectivos da Irmandade de S. Lucas (Pintores, arquitectos, escultores, desenhadores e artes correlativas)14 que, embora as especialidades que gere partilhem com os mesteres o exercício da actividade no espaço oficinal, tem em comum com a Irmandade de Santa Cecília o facto de pertencer às Belas Artes: 

Conciliar os deveres do católico com as obrigações do artista



O interesse com a boa-fé



As vantagens da corporação com as do público

O tom destes objectivos é já o tom do Homem dos finais do século XVIII, com um pé no laicismo. A novidade consiste em colocar por escrito, de uma forma clara, as preocupações deste tipo de agremiações.

5. A função assistencial: deveres do Enfermeiro O Enfermeiro tem a seu cargo a parte assistencial da irmandade. Devia ser escolhido entre as pessoas de bom coração e compreensivo com os irmãos pobres e que advertisse a Mesa para que se não gastasse muito do cofre da Irmandade em coisas menos precisas, para que existisse o suficiente para acudir aos irmãos necessitados15. As obrigações e competências do Enfermeiro estão definidas no Cap. XI do Compromisso de 1749 e eram as seguintes: 

Visitar todos os doentes.



Confirmando que estão doentes e que necessitam, dar-lhe de imediato uma esmola que não exceda os 1$600 reis.



Visitar o doente duas vezes por mês durante a doença, podendo de cada vez dar 1$600 reis.

O Compromisso de 1766 junta às obrigações anteriores, as seguintes:

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GARCÊS, Teixeira Francisco Augusto. A Irmandade de S. São Lucas: estudo do seu arquivo, Lisboa, Imprensa Beleza, 1931, p. 16. Proposta de reforma apresentada pelo pintor Cirilo Volkmar Machado, em 1791. 15

. Cf. BNP – Compromisso da Irmandade da Gloriosa Virgem e Mártir Santa Cecília (...), 1749, Cap. XI, p. s/n.º (COD 9002)

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Se o doente for pobre e necessitado perguntar-lhe que médico e que cirurgião elege para o assistir e a botica para onde quer que se enviem as receitas.



O enfermeiro fará tudo à custa da Irmandade, com zelo e carinho fraternal, deixando-lhe logo 1$200 reis de esmola.



Pode repetir outra vez a esmola no decurso da doença.



Se vir que o enfermo precisa de maior socorro, deve informar a Mesa e poderá dar-lhe de uma só vez 3$200 reis.

A definição de irmãos pobres era a seguinte: 

Os que pela idade decrépita, ou por outro qualquer motivo se achem impossibilitados para o exercício da profissão.



Os que por falta de préstimo ou por terem família numerosa se achem sem meios proporcionados para viverem com a decência que pede o seu estado.

Agora vejamos a definição dos que não se podem julgar pobres: 

Os que têm ordenados ou partidos certos. Mas se se encontrarem em situação difícil, a Mesa decidirá como lhes acudir. Poderá emprestar-lhe uma quantia sobre o ordenado ou socorre-los com esmola proporcional à sua necessidade.

É notória a evolução e a tentativa de melhorar a resposta às necessidades dos associados entre os dois compromissos. Embora a esmola seja o termo usado para o subsídio atribuído é necessário colocar as palavras na época e no mental que lhe está associado. Esta esmola dada a profissionais que descontam dos seus ganhos para o cofre da irmandade explica-se mais por meio da filosofia subjacente à distribuição das ajudas do que pelo significado ipsis verbis da palavra.

6. Geografia da Capela e Casa do Despacho

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Vejamos agora por onde foi morando a Irmandade de Santa Cecília ao longo dos tempos. Na montagem abaixo16, as figuras assinalam os templos onde teve a sua Capela e a Casa do Despacho e as respectivas balizas temporais de permanência em cada um deles:

A primeira mudança, em 1688, do Convento do Espírito Santo da Pedreira (hoje nos caboucos do Centro Comercial Chiado) para a Igreja de Santa Justa é uma estimativa que tem sido veiculada pela tradição e que poderá estar relacionada com a atribuição daquele edifício aos Oratorianos. A segunda mudança, da Igreja de S. Justa (até 1755 situada junto à Rua dos Fanqueiros, perto da Praça da Figueira), para a Igreja de S. Roque, foi ocasionada pelas consequências do Grande Terramoto. 16

Montagem da autora. Fontes das imagens: 1.ª e 2.ª - Georgio Braunio AGRIPPINATE. Urbium praecipiarum mundi theatrum quintum; sl., s.n., c.1572, 3.ª, 4.ª e 5.ª - Luís Gonzaga PEREIRA; Monumentos sacros de Lisboa em 1833, Lisboa, Of. Gráf. da Biblioteca Nacional, 1927.

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A terceira mudança, para a Igreja de S. Isabel não está comprovada. Existe no arquivo o contrato assinado com a irmandade do Santíssimo deste templo mas ainda não foram encontradas referências na documentação a reuniões ou realização da festa da padroeira. A quarta e última mudança, para a Basílica dos Mártires, está comprovada com o contrato que atesta a participação da irmandade com 600$000 reis na reconstrução do templo17, com escritura da tomada de posse em 178918 e presença até à actualidade.

7. À Volta da Mesa das Conferências

Só para dar uma ideia da sofisticação e complexidade organizacional destas associações de classe, junto aqui o desenho da mesa das conferências19, onde se faziam as assembleias gerais e se tomavam decisões sobre todos os assuntos a resolver. Das eleições anuais feitas a 22 de Outubro, um mês antes da Festa da Santa, saía a composição da mesa para o ano seguinte. O Compromisso estabelece onde se há-de sentar, na mesa das conferências, cada um dos 22 elementos eleitos que a compõem20, sendo também comtemplados os 4 lugares dos Presidentes21 (Cantores, Instrumentistas, Patriarcal, Sé)22.

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A anterior Igreja dos Mártires situava-se no actual Largo da Biblioteca, às Belas Artes, virada para a Calçada de São Francisco. Ficou completamente destruída com o terramoto. 18

Há provas no arquivo que atestam a realização de reuniões interinas, em anos anteriores a esta data, na Casa do Despacho da Irmandade do Santíssimo e também algumas festas. 19

Desenho da autora.

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Existe apenas uma diferença entre os dois compromissos na composição da mesa: os mordomos passam de 12 para 20. Cf. BNP – Compromisso da Irmandade da Gloriosa Virgem e Mártir Santa Cecília (...), 1749, Cap. VI, p. s/n.º (COD 9002); ANTT – Compromisso da Irmandade da gloriosa virgem e martyr Sta. Cecilia sita na igreja de S. Roque desta cidade (....). - Lisboa: na Officina de Miguel Rodrigues..., 1766, Cap. VII, p. 8 (PT/TT/SP 2983//8). 21

As presidências na irmandade de Santa Cecília representavam os grupos principais de músicos: Os Cantores, os Instrumentistas, a escola da Sé e a Patriarcal. A partir de 1781 surge a Presidência da Capela da Ajuda que em 1792 se junta no mesmo local com a Patriarcal e a partir de 1796 se funde com esta. Em 1799 surgiu a presidência dos Fidalgos e Honorários. 22

São ainda eleitos 8 Definidores, pessoas de reconhecida capacidade e discernimento, uma espécie de conselheiros. Não têm assento na mesa mas votam e são chamados quando a Mesa acha que precisa da sua opinião em assuntos importantes. (Compromisso de 1766, p. 13).

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Sempre, claro, sob observação da padroeira, que possui um nicho na sala, para “assistir” às reuniões

(Fig. 1) 12

ISC/MF - Imagem de Santa Cecília, na Sala do Despacho da Irmandade. Autor/a desconhecido/a, s.l., s.d.; imagem barroca, em terracota, estofada a ouro com policromia.

8. Catálogo provisório

E para finalizar a apresentação, junto aqui o catálogo provisório do arquivo histórico. Encontra-se ainda a ser trabalhado mas constitui já um auxiliar de pesquisa para quem deseje consultar o seu fundo documental.

F

ARQUIVO HISTÓRICO DA IRMANDADE DE SANTA CECÍLIA (LISBOA)

S 01 S 02 S 03 S 04 S 05 S 06 S 07 S 08 S 09 S 10 S 11 S 12 S 13 S 14 S 15 S 16 S 17 S 18 S 19 S 20 S 21 S 22 S 23 S 24 S 25 S 26 S 27 S 28

Compromissos Ms. (1766, 1838, 1843) Compromissos Imp. (1838-1904) Compromissos em cópia ou faximilie (1749-1766) Estatutos Regimentos Internos Regulamentos Internos Livros de Conferências (1801-1841) Livros de Actas da Mesa Administrativa (1839-1959) Livros de Actas da Junta (1841-1892) Livros de Termos (1766-1851) Livros de Eleições (1775-1822) Confirmações Reais (Alvarás, Decretos, Portarias, Provisões, etc.) (1831-1843) Confirmações Eclesiásticas (Bulas, Breves, Certificados) (1743-1789) Processos de Habilitação Livros dos Assentos dos Irmãos Músicos (1756- ) Livros dos Assentos dos Irmãos Honorários (1849-1859) Cartas Patente dos Músicos (1756-1880) Cartas Patente dos Directores (1768-1831) Cartas Patente dos Honorários Livros dos Directores das Funções (1766-1832) Manifestos das Funções (1770-1833) Livros dos Manifestos das Funções (1818-1819) Livros dos Músicos das Festas (1839-1880) Expediente Recebido (1760-1908) Relatórios Para a Assembleia Geral (1840-1860) Livros Mistos (1759-1982) Livros da Arrecadação do Recebedor Geral (Receita) (1804-1875) Livros dos Procuradores (1755-1861) Ss Livros da Receita (1755-1842) Ss Livros da Despesa (1812-1834) 13

S 29 S 30 S 31 S 32 S 33 S 34 S 35 S 36 S 37 S 38

S 39 S 40 S 41 S 42 S 43 S 44 S 45 S 46

Ss Livros da Conta (1823-1861) Livros da Despesa e Receita (Enfermeiro, Procuradores e misto) (1725-1786) Recibos e Avisos dos Procuradores (Mesa e Irmandade) e do Enfermeiro (17631879) Livros do COFRE: da Receita do Tesoureiro (1756-1861) Livros "Diário" (1845-1855) Livros do Resumo da Despesa e da Receita (1825-1945) Livros do Caixa (1842-1953) Livros de Actas da Recepção Mensal (até 1832, 1851-1861) Livros de Socorros e Pensões (Conta Individual) (1839-1842) Livrinhos dos Anuais do Tostão da Santa (1767-1833) Livrinhos dos Anuais das Presidências (1763-1864) Ss Instrumentistas (1765-1834) Ss Patriarcal (1763-1832) Ss Ajuda (Capela Real) (1781-1795) Ss Cantores (1776-1832) Ss Sé (1774-1822) Ss Fidalgos/Honorários (1799-1864) Recibos dos Anuais (1904-1939) Livros de Manifesto dos Doentes (1759-1791) Livros de Registo das Jóias e Cotas dos Honorários (1845) Livros das Dívidas de Prof. e Hon. (1832-1838) Livros de Inventário (1786-1931) Índices (1825-18--) Plantas e Alçados (1843) Vinhetas e etiquetas

Fig. 2: Logótipo actual da Irmandade de Santa Cecília.

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