“Irracionalidade”: A mobilização dos valores, da moral e dos afetos nas campanhas anti-pirataria

May 24, 2017 | Autor: Elisa Klüger | Categoria: Economic Sociology, Piracy, Social action
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“Irracionalidade”: A mobilização dos valores, da moral e dos afetos nas campanhas anti-pirataria Elisa Klüger1

GPOPAI

USP

Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação Universidade de São Paulo [email protected]

2010

Escola de Artes, Ciências e Humanidades

Coordenadores da pesquisa: Gisele Craveiro Jorge Machado Pablo Ortellado Pesquisadores: Alcimar Silva de Queiroz Amanda Rossi Ana Paula Bianconcini Anjos Arakin Queiroz Monteiro Bráulio Santos Rabelo de Araújo Cíntia Medina de Souza Cristiana Gonzalez Eduardo B. Barbosa Elisa Klüger Everton Zanella Alvarenga Felipe B. Sentelhas Jamila Rodrigues Venturini

K649

José Paulo Guedes Pinto Leonardo Ribeiro da Cruz Marcelo Tavares de Santana Márcio F. Araujo Jr. Maria Caramez Carlotto Oleno Spagolla Volpi Netto Raquel Gammardella Rizzi Apoio: Fundação Ford

Projeto gráfico e diagramação: Canal 6 Projetos Editoriais www.canal6.com.br

Klüger, Elisa. “Irracionalidade”: a mobilização dos valores, da moral e dos afetos nas campanhas anti-pirataria / Elisa Klüger. - - São Paulo: Universidade de São Paulo. Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso a Informação; Bauru, SP: Canal 6, 2010. 37p.; 21cm. (Cadernos GPOPAI; v.4). ISBN 978-85-7917-100-0 1. Direito autoral. 2. Produto pirata – comércio. I.Título. CDD – 346.0482

Este texto está sobre licença Creative Commons - Attribution-Noncommercial 2.5 Generic http://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.5/

Sumário

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Resumo

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Apresentação

10 Introdução 11 Lutas entre os grupos de interesse 14 Da “racionalidade” do consumidor 17 Da “irracionalidade” do consumidor 19 1) Instituições e Coerção 22 2) Valores, Moral e Afetos 22 As Campanhas Anti-Pirataria 27 Conclusão 28 Bibliografia 29 Anexos - Transcrições

“Irracionalidade”: A mobilização dos valores, da moral e dos afetos nas campanhas anti-pirataria

Resumo1 Esse trabalho pretende fazer uso das contribuições teóricas da Sociologia Econômica para tentar desvendar quais os motivos “irracionais” que fazem com que, no consumo de bens culturais, alguns agentes econômicos não optem pela aquisição de artigos piratas, mesmo quando eles estão naquele que seria o ponto ótimo em termos de custos e benefícios para o consumidor. Para tanto analisarse-á as campanhas anti-pirataria, procurando detectar quais as estratégias retóricas que elas mobilizam para convencer as pessoas a não consumirem produtos piratas. E, dado que as campanhas existem porque a pirataria fere os interesses econômicos daqueles que as financiam, a questão da pirataria e dos discursos sobre ela proferidos, deve ser também enfocada como parte de disputa entre grupos de interesse, tipo de análise para o qual a Sociologia Econômica também oferece contribuições.

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Trabalho entregue em dezembro de 2009 para a disciplina de Sociologia Econômica do Bacharelado Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. Graduanda em Relações Internacionais na Universidade de São Paulo e pesquisadora do GPOPAI/USP. GPOPAI USP

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As pessoas de Cornerville têm uma atitude bastante diferente quando se trata de roubo e assassinato. Elas traçam uma clara linha divisória entre as atividades ilegais respeitáveis e as não respeitáveis. O jogo é respeitável. Ele tem um papel importante na vida das pessoas de Corneville. (WHYTE, 2005: 156) While there may be some truth to claims that ‘piracy’ has increased significantly, and that this may be attributed to the aforementioned nexus social, economic and technological changes, this does not tell the whole story. Instead we need also to examine with a critical eye the social processes by which ‘piracy’ is itself being constituted (and reconstituted) as a legal (and moral) violation, and to consider how quantifications of the ‘piracy problem are themselves the outcome of a range of contingent (and interest-bound) processes and interferences. (YAR, 2005: 684)

Apresentação2 A cópia não autorizada, e mais do que ela, a distribuição e venda de material copiado, são algumas das práticas que infringem os direitos do autor (copyright) e que recebem correntemente o nome de pirataria. Mais do que nomear, o uso do termo pirataria para designar tais práticas as qualifica negativamente ao resgatar a imagem associada ao sentido original de pirataria; 1 ato de piratear 2 crime de violência apropriação ou depredação cometido no mar por pessoas particulares contra embarcações, passageiros e carga 3 ato de se apossar pela força dos bens de outrem; rapina, roubo. (HOUAISS; SALLES, 2001: 2223)

e qualifica também os praticantes de tais infrações como piratas com todo o peso simbólico que essa personagem carrega: o pirata é aquele que faz as pessoas

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Esse trabalho seria impossível sem toda a experiência de pesquisa e coleta de material que o Grupo de Pesquisa de Políticas Públicas de Acesso à Informação GPOPAI/USP proporcionou. GPOPAI USP

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andarem na prancha, o líder do navio que porta a bandeira de caveira, o comandante impiedoso com seus subordinados, etc. Pode-se perceber então, que mais do percebida objetivamente, e tão-somente como uma ação econômica que transgride a lei, a prática da cópia já é anunciada como um crime pelo próprio vocábulo escolhido para designá-la, dada sua associação com a imagem “do vilão dos mares” e com os crimes por ele cometidos. Ao estabelecer tal vinculo simbólico mobilizam-se valores enraizados nos indivíduos que criam disposições a priori “irracionais”3 para que eles rejeitem e reajam contra tal prática. Em um momento em que, nem tais imagens nem a própria proibição jurídica da cópia e a conseqüente coerção exercida pelo estado, impedem a população de copiar material audiovisual livremente, os grandes beneficiários da proteção da propriedade autoral buscam em seus discursos e propagandas, talvez como um último suspiro, mobilizar representações daquilo que é o mais repudiado possível em cada sociedade – imagens ainda mais fortes do que a dos crimes do navegantes inescrupulosos – e vinculá-las à pirataria. Se a pirataria já era ela mesma anunciada como um crime desde o próprio termo que a designa, nos atuais discursos, mais do que uma infração por si só danosa, ela passa, dentre outras coisas, a ser apresentada como uma ameaça à ordem da sociedade; aos valores da família; um crime que financia outros crimes mais graves. Estabelecidas tais conexões no plano simbólico entre a ação econômica e um conjunto de valores e normas – que orientam a conduta social dos indivíduos e que definem o que é certo e errado em cada sociedade, o que é moral e o que é amoral – a opção por determinado meio de aquisição de bens culturais passará a levar em conta não somente utilidade e preço em situação de escassez; mas também as conseqüências sociais do ato de consumo: a infração legal e moral e a reação seja das instituições seja dos outros agentes contra tal ato4; e mais do que isso, levar-se-á em consideração o significado da ação para o próprio indivíduo em face de suas crenças e convicções e dos sentimentos que no indivíduo 3 4

Sempre que “racional” e “irracional” aparecerem entre aspas pretender-se-á designar racional ou irracional do ponto de vista da Economia Ortodoxa. A ação de consumo de bens culturais é assim, por princípio uma ação social no sentido weberiano de orientada quanto ao sentido pelo comportamento passado, presente ou esperado como futuro de outros. GPOPAI USP

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despertam as imagens que são vinculadas ao ato de piratear por aqueles que pretendem coibir tal prática. A ação econômica nesse caso não pode ser prevista, e menos ainda compreendida, se, para além do incentivos de origem puramente econômica para a ação (fundamentalmente preços), não forem considerados outros tantos fatores que incidem sobre o processo de tomada de decisão dos agentes. A Sociologia Econômica “denuncia as “dificuldades e os limites das abordagens econômicas convencionais para explicar de modo satisfatório os fenômenos de que tratam.” (STEINER, 2006: ix) uma vez na Economia (ao menos na ortodoxa) a racionalidade é um dado; e que o agente econômico (o homo oeconomicus) é um agente abstrato, não socializado, que busca sempre o ganho e a maximização de utilidade ao alocar seus recursos escassos em uma cesta de bens de sua preferência. A ação econômica aqui em questão, o consumo de produtos piratas, certamente tem como um dos seus determinantes a escassez de recursos, mas não pode ser entendida em sua complexidade sem que para além do caráter estritamente econômico de tal ação, sejam considerados outros tantos determinantes do comportamento, muitos dos quais de origem social. Se a Sociologia Econômica pode dar alguma contribuição à compreensão da problemática em questão, essa começa por enraizar socialmente a ação (embeddedness)5. É preciso entender quais são os “aspectos sociais que levam os incentivos a ser arranjados da maneira que são, e dotados do valor e do significado que têm, em última análise para os atores” (GRANOVETTER, 2006: 12). Outra contribuição que pode dar a Sociologia Econômica ao estudo do tema é situar a pirataria mais do que dentro da vida social, dentro de um campo de lutas: Campo de acção socialmente construído em que agentes dotados de recursos diferentes se confrontam para aceder à troca e conservar ou transformar a relação de força em vigor. (...) dependem nos seus fins e na sua eficácia da sua posição no campo de forças, isto é, da estrutura de distribuição do capital simbólico em todas as suas formas. (BOURDIEU, 2006: 247)

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Termo que Granovetter resgata da obra de Polanyi em seu texto “manifesto” do campo da Sociologia Econômica. Ver: “Ação Econômica e Estrutura Social: o Problema da Imersão”, 2007. GPOPAI USP

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A forma como a pirataria é encarada – como um crime hediondo ou como uma ação normal, o peso de executar tal ação, a coerção legal, a condenação moral, ou a aceitação geral – depende do ponto de equilíbrio em que estão a cada momento as forças que tencionam o campo (por maior liberdade ou maiores restrições para aquisição e uso de bens culturais). Esse trabalho pretende fazer uso das contribuições teóricas da Sociologia Econômica para procurar desvendar quais os motivos “irracionais” que fazem com que os agentes econômicos não optem por aquele que seria o ponto ótimo em termos de custos e benefícios – que em muitos casos seria o consumo de produtos piratas – quando se trata da escolha do meio de adquirir bens culturais. Para tanto, procurar-se-á delinear quais são as forças em disputa na contenda dos direitos autorais, procurando destacar como a estratégia daqueles que defendem o enrijecimento das normas de copyright e o endurecimento das políticas de combate e repressão, muitas vezes passa por mobilizar os valores e as emoções dos indivíduos, como no caso das propagandas anti-piratarias6 que serão objeto desta investigação. Ainda que existam vários bens culturais que possam ser pirateados, esse trabalho concentrará sua análise na pirataria de música e de filmes, em primeiro lugar porque elas foram as mais disseminadas com o surgimento do compartilhamento na internet, em segundo lugar, porque são os bens que têm o maior potencial público consumidor (são mais disseminados entre a população das várias classes e regiões do país em comparação com livros e softwares por exemplo), mas, sobretudo, porque músicas e filmes são os bens mais pirateados, ou seja baixados e comercializados ilegalmente, e portanto aqueles para os quais as campanhas anti-pirataria estão principalmente voltados.

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A inspiração para trabalhar com as propagandas anti-pirataria veio da palestra “Policiando Propriedade Intelectual: o discurso quase religioso da pirataria” proferida pelo professor Alex Dent,da George Washington University, no dia 15 de julho de 2009 na EACH/USP. GPOPAI USP

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Introdução Foram assim, algumas mudanças de padrões tecnológicos que deram substrato material à transformação das práticas econômicas e sociais no consumo de bens culturais. Mas as raízes das próprias transformações tecnológicas estão presas à transformações sociais, políticas e dos interesses econômicos. O “mito de fundação” da rede remete a iniciativa tanto ao setor militar dado o caráter estratégico do desenvolvimento de tecnologias de informação; quanto à cultura universitária efervescente do final dos anos 60 início dos 70.7 A escolha por eles feita de desconcentração da rede e de permissão para que cada um dos usuários pudesse agregar à ela o que quisesse e trocar por meio dela arquivos fechados em pacotes que não podiam ser controlados desde o exterior, (que era uma escolha estratégica, política, acadêmica, e não uma opção pela liberdade dos usuários) permitiu, após a abertura do uso do dispositivo para civis, uma expansão dos usos sociais da rede, um dos quais a troca livre de bens culturais, definitivamente uma conseqüência senão indesejada, não premeditada8. As novas possibilidades técnicas impactam a forma como tradicionalmente tais bens eram produzidos e consumidos: abrem novas possibilidades de acesso aos bens e à própria cultura para pessoas que antes não tinham meios para tanto. Isso, mais do que ampliar a circulação de bens culturais, mudou as características dos grupos que podiam desfrutar de tais bens; e ao mesmo tempo, deslocou aqueles que do lado da oferta não conseguiram se adaptar para resistir a avalanche que desabou sobre suas empresas e sobre o modo tradicional de produção, distribuição e venda de conteúdo cultural em geral. Pode-se entender a disputa entorno da regulação das práticas de acesso à bens culturais como uma disputa entre esses dois grupos, o primeiro, uma grande massa dispersa de beneficiários para os quais a pirataria abriu um novo universo de possibilidade de lazer e enriquecimento cultural, que não estava ao alcance de sua renda; e o segundo, dos prejudicados, um grupo mais coeso, principalmente composto por gravadoras e produtoras, especialmente

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Ver a história do surgimento da internet em, Castells A era da informação: economia, sociedade e cultura, 1999 Para conseqüências indesejadas/imprevistas ver: Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. GPOPAI USP

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aquelas que fazem parte dos grandes conglomerados internacionais do entretenimento9, que viram sua fonte de renda, a venda,10 ameaçada pela massa amorfa e dispersa de violadores dos seus direitos de propriedade autoral.11

Lutas entre os grupos de interesse12 Os grupos disputantes têm interesses sociais conflitantes e têm incentivos diferentes para engajarem-se diretamente em tal conflito. Como dito acima o grupo dos principais ofertantes de conteúdo cultural é mais coeso13 – eles pos9 10

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Para a análise sobre os conglomerados do entretenimento ver Behamou, Economia da Cultura, 2007. Segundo as estatísticas fornecidas pelas associações de produtores: parte dos detentores dos direitos autorais têm grandes quedas na parcela de seus lucros devida à ampla circulação dos bens copiados. Mas não se pode imputar a crise de parte da indústria do entretenimento (especialmente de discos) à generalização da pirataria. Apenas uma parcela da população que consumia produtos originais deixa de o fazer, grande parte dos consumidores de produtos piratas são antes pessoas que a esses bens não tinham acesso, que sequer eram consumidores potenciais de CDs e DVDs dado o alto custo dos autênticos, e que, portanto, não deixariam de consumir as mídias originais prejudicando à indústria. Ver análise de Liebowitz, 2003 para hipóteses sobre outros fatores que poderiam afetado a indústria do disco. E entre os dois grupos consumidores e ofertantes existem outros tantos. Destaco o dos produtores de conteúdo cultural e o dos trabalhadores (não-artistas) que não serão diretamente analisados dada a complexidade e o grau em que os efeitos sobre ele são contraditórios. Por exemplo: os artistas que sofrem dois efeitos diferentes: ao mesmo tempo que deixam de ter a garantia dos royalts da venda de suas obras; passam a ter, em primeiro lugar, uma maior liberdade em relação a seus intermediários, pois podem produzir e distribuir conteúdo autonomamente, o que diversifica o tipo de conteúdo disponível uma vez que se desfaz a barreira de entrada representada pelo crivo dos possuidores dos meios de produção que determinavam o que seria ou não produzido, de acordo com a viabilidade comercial da obra, e porque não, o gosto pessoal dos intermediários; e, em segundo lugar, sua obra ganha mais visibilidade, número de apreciadores e, potencialmente maior reconhecimento e atinge a muitos mais espectadores, o que por sua vez alavanca outras formas por meio das tais artistas incrementam suas rendas, como shows e comerciais que representam parcelas cada vez maiores da renda dos artistas (isso é mais complexo quando se pensa que o artista visível é só um dos muitos envolvidos na cadeia cultural, outros participantes que não só são remunerados via contrato fixo com as produtoras e gravadoras, mas que também recebiam uma parcela dos direitos autorais, como compositores e diretores podem ter uma maior parcela de danos, mas isso não necessariamente os arruína, pois é impossível para os artistas produzir sem eles, é possível nesse caso que ocorra um acordo sobre novas formas de remuneração de tais elos da cadeia). Os trabalhadores, por sua vez, sofrem com à reorganização do trabalho de produção e distribuição de mídias. Três são os principais efeitos aparentes sobre o trabalho: 1) deslocam-se trabalhadores do mercado formal de trabalho nas gravadoras, produtoras, lojas e locadoras, para mercados informais e ilegais, os mercados piratas (em número, porque não são os mesmos trabalhadores, dada a diferença de qualificação para um e outro nicho exigidas, são diferentes parcelas da população que em um e outro caso encontram emprego). 2) alguns empregos desaparecem devido ao compartilhamento direto de conteúdo cultural entre os usuários na rede 3) novos empregos e novos nichos surgem por exemplo ligados às formas de distribuição oficial de conteúdo digital na rede. Uma análise à luz da teoria da ação coletiva de Mancur Oslon, em The Logic of Collective Action. As industrias e conglomerados do entretenimento e para além deles os países nos quais eles estão radicados (que recebem os royalts da comercialização dos produtos de seu país vendidos em outros países). Isso ajuda a compreender porque a disputa da legislação de propriedade intelectual é feita também – e quanto aos resultados, principalmente GPOPAI USP

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suem associações14 que os reúnem e que defendem seus interesses junto aos governos, produzem estatísticas e procuram avaliar os efeitos danosos da pirataria sobre suas atividades econômicas, incentivam e subsidiam15 a repressão à pirataria, fazem campanhas contra o consumo de material pirata, etc. – e além da coesão que facilita a ação política organizada, o volume dos seus interesses econômicos em jogo nessa disputa representa uma grande parcela dos ganhos de sua principal atividade econômica o que os incentiva a participar ativamente das disputas que envolvem direitos autorais. O grupo do beneficiários da pirataria, por sua vez, é grande, disperso, e não organizado. Eles são muitos, mas o benefício econômico que para cada um deles, individualmente, representa a pirataria não constitui mais que uma ínfima parcela de suas atividades econômicas, que além de pequena, na maioria dos casos, é supérflua em relação às necessidades primárias, e não está ligada à principal atividade econômica do agente16. O que faz com que a ação política tenda a ser mais dispendiosa (em termos de tempo e dinheiro) que o ganho auferido individualmente. Disso resulta que em geral os engajados na causa do livre compartilhamento de cultura são principalmente movimentos sociais, ONGs, artistas, acadêmicos, e não a massa dos beneficiados pela pirataria; e que o dinheiro que circula para a defesa da cultura livre não é sequer a milésima parte daquele que os defensores do copyright empregam em suas atividades de lobby, propaganda, produção de dados, etc.

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– internacionalmente, e porque algumas negociações bilaterais envolvem o cumprimento da legislação de direitos autorais como condição para comércio. Ver por exemplo o relatório 301 que lista aqueles que serão punidos pelos EUA com sanções comerciais devido aos comportamentos desviantes no que tange à proteção da propriedade intelectual. Segundo Yan, “The global dispersion of Western (especially American) cultural ideologies, values, aspirations and lifestyles has created grater appetite for media representations that embody those values” (YAR, 2005: 681) e isso faz com que os bens culturais americanos sejam demandados em toda parte do globo e copiados em toda parte do globo, os EUA visam garantir então os royalts dessa grande massa de conteúdo audiovisual americano reproduzido em todo mundo aplicando medidas como as sanções prescritas no caso do relatório 301. Como a RIAA, ou no Brasil a APCM. Chegam até mesmo a empreender diretamente ações para complementar a atuação da polícia (acompanhamento da mesma nas operações, fornecimento equipamentos, registro e repasse de denúncias, contabilidade do material apreendido e veiculação de informações sobre as apreensões, exigência da retirada de sites do ar e da a quebra de sigilo das informações sobre o usuários que acreditam estar infringindo normas de copyright). A principal exceção aqui seriam os próprios vendedores de material pirata, mas esses teriam constrangimentos para a participação nas disputas de direito autoral, não só por sua condição sócio-econômica (não tem dinheiro para lobby e nem tempo para despender em tal atividade), mas também por que não são consumidores de material pirata, mas pessoas que fazem da veiculação comercial do produtos aos quais outrem tem direito sua principal atividade econômica, o que os coloca em outra categoria de infração mais grave, e sujeita a maiores penalidade o que constrange a participação pública. GPOPAI USP

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Segundo Granovetter, “é comum na história humana que grupos com interesses conflitantes apresentem diferentes conjuntos de padrões relativos a qual o comportamento consideram apropriado, e que rotulem comportamentos favoráveis aos grupos adversários de ilegítimos” (GRANOVETTER, 2006: 32) no caso do conflito de interesses em jogo nas disputas de direitos autorais, a disputa ideológica e a deslegitimação do comportamento do outro são elementos centrais para entender o fator “irracionalidade” nas opções quanto ao meio de aquisição de bens culturais. Uma forma de seguir a pista dada por Granovetter sobre a estigmatização dos comportamento dos adversários como uma das ocorrências típicas dos conflitos de interesse, é analisar os discursos nos quais se expressa o repúdio ao comportamento do oponente, e a tentativa de por meio deles dissuadir outras pessoas de adotarem as mesmas práticas. Como mencionado uma das estratégias dos defensores dos direitos autorais é o empreendimento de grandes campanhas “educativas” sobre pirataria, que, em sua maioria, mais do que campanhas informativas sobre a ilegalidade ou sobre os prejuízos econômicos materiais do consumo de bens piratas, operam como campanhas moralizadoras dada a gama de simbolismos que mobilizam para fazer com que as pessoas associem a pirataria aos mais consensualmente repudiados comportamentos sociais, convocando os valores para deslegitimar o comportamento de seus oponentes e evitar que outras pessoas os sigam. Ou como descreve Yar tais campanhas são: “discursive strategies for attempting to construct a political and public consensus about the immorality of piracy.” (YAR, 2008: 608) Pode-se pensar que caso tais campanhas consigam desviar os consumidores daquela que seria a melhor escolha do ponto de vista da racionalidade econômica (quanto custa para ver um bom filme ou escutar uma música com qualidade adequada), elas estariam atuando como uma forma de, por meio da evocação dos maiores consensos da sociedade no que tange às esferas de valores e da moral, embaçar a racionalidade instrumental17.

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Racionalidade instrumental: adaptação racional dos meios aos fins. “Age de maneira racional em relação a um fim quem orienta sua atividade tendo em vista os fins almejados, os meios a serem empregados e as conseqüências subseqüentes, e finalmente, compara os diferentes fins possíveis entre si” (WEBER, 1921: 23 in STEINER, 2006: 24) GPOPAI USP

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Da “racionalidade” do consumidor Supondo que os consumidores fossem perfeitamente egoístas e “racionais”, suas preferências fossem dadas e estáveis e os agentes sempre procurasse obter o melhor bem-estar possível, ou seja, maximizar os ganhos procurando obter a maior utilidade ao menor preço possível, premissas das quais partem os modelos da economia ortodoxa. E considerando que esses consumidores tivessem perfeita informação sobre os produtos, sobre a qualidade e os preços dos mesmos, o que fariam tais homo oeconomicus quando confrontados com as opções de consumir bens culturais piratas ou originais? O consumidor pode optar por adquirir seus bens culturais de formas legal, comprando o original; ou ilegal, comprando produtos piratas. As vias legais são a compra em lojas e na internet nos sites pagos. Esses vendedores são autorizados pelos detentores dos direitos autorais a vender os produtos e uma parcela do lucro obtido por aquilo que vendem é revertida tanto para os intermediários: produtora, gravadora, quanto para aqueles que concebem os bens artisticamente: os criadores, atores, compositores, músicos, desenhistas, roteiristas e outros envolvidos no processo de criação. As formas ilegais se concentram em dois grandes grupos: compartilhamento de produtos via internet e venda em mercados informais/ilegais18 “de rua”, formas essas que não remuneram os direitos de propriedade intelectual de nenhum dos envolvidos na cadeia de produção dos filmes e discos. Para avaliar a racionalidade da escolha por um ou outro meio de aquisição é preciso comparar o preço pago para adquirir os bens originais e o custo de aquisição de bens piratas. Para tanto faz-se necessário distinguir as duas formas de aquisição de músicas e filmes piratas. Dentre as formas ilegais, existem diferenças substanciais no que tange à acessibilidade e custo de obter os vídeos e músicas por meio de download ou por meio da compra de CDs piratas de vendedores ambulantes. No primeiro modo, em geral, o acesso aos bens é, em geral, gratuito mas existe uma barreira de 18

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“Se o intercambio de bens produzidos ilicitamente (originários da pirataria ou de um processo produtivo realizado à margem da regulação) é um traço comum à economia formal e à economia ilícita, apenas nesta ultima existe uma multiplicidade de “mercados específicos” cujos bens são ilegais em todo ciclo – da produção ao consumo, como o de drogas. E é também essa economia que é dinamizada por redes sociais abertamente criminosas” (JÚNIOR, 2009: 62) GPOPAI USP

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entrada no compartilhamento que é a posse não só de computador, mas também de internet, de preferência de banda larga (principalmente no caso do compartilhamento de filmes que são arquivos muito mais pesados que as músicas). Em geral portanto tal forma de aquisição é praticada principalmente por aqueles que tem capital suficiente para adquirir tanto computadores quanto internet rápida; no segundo caso, a compra de produtos piratas de vendedores ambulantes19, não tem um custo inicial e o usuário paga por unidade adquirida. Na primeira forma de aquisição de mídias piratas, via download, o consumidor tem um alto custo de entrada e depois paga regularmente o acesso a rede podendo a partir dela ter acesso ilimitado ao consumo. Digamos que o custo inicial seja o custo de aquisição de um computador, que deve ser somado ao mensal de acesso à banda larga, e, caso o consumidor deseje tem um produto exatamente equivalente ao vendido pelos ambulantes ou pelas lojas, deve-se também arcar com os custo de aquisição da mídia virgem, de impressão da capa e de aquisição da embalagem. Como o computador e a rede tem muitas outras utilidades além de dar acesso à uma ampla gama de filmes e discos, muitas vezes os consumidores arcam com os custos grandes: compra do computador e acesso à banda larga, por outros motivos e então passam a usar essa ferramenta para, além do propósito inicial, baixar conteúdo de entretenimento gratuitamente. Mas para aqueles que não adquiririam o computador e a rede por outros motivos ou para aqueles para quem o custo de tais equipamentos é proibitivo, a aquisição de CDs e DVDs piratas parece ser uma boa alternativa. O custo do cd pirata costuma a ser muito baixo e chega a ser mesmo dezenas de vezes mais barato do que um original.20 O que permite inserir no mercado de consumo cul-

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Seria quase como a prestação de um serviço que os usuários da banda larga poderiam cobrar para fazer para aqueles que não tem acesso à rede: que é o de comprar a mídia gravar as musicas ou o filme baixado da internet fazer uma capa e acrescentar as informações que acompanhariam o original como descrição das faixas do disco, ou informações sobre o filme como sinopse.

Em visita exploratória ao mercado de ambulantes do centro da cidade de São Paulo avaliamos ser o valor médio, quase cartelizado, das mídias piratas da região: cd simples 1 real (quase não ofertado), discografias completas 5 reais, 1 filme 5 reais, 3 filmes por 10 reais. Os CDs originais em geral variam de 20 a mais de 100 reais, sendo que são CDs simples e não discografias. O preço dos discos varia muito dependendo do nicho, um CD pop custa em média na época de seu lançamento algo próximo de 30 reais, um CD de Jazz ou música clássica custa muitas vezes mais de 100 reais. (consultados no site da livraria cultura) sendo que os DVDs são ainda mais caros que os CDs. GPOPAI USP

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tural pessoas que dele estavam totalmente excluídas devido aos altos custos de aquisição de tais bens. Segundo Yar: The search for profits has led copyright industries to price their goods at levels beyond the practical reach of large portions of their target markets, thereby creating an incentive for consumers to turn to cheaper ‘pirate’ copies. As Choi (1999:2) notes, there is a close correlation between per capita GPD and piracy levels, with the highest piracy rates to be found in those countries with the lowest incomes, and vice versa. (YAR, 2005: 681)

Comparando os custos das 3 formas de acesso mencionadas: o acesso gratuito por meio de um equipamento já adquirido por outros motivos, o acesso barato às mídias piratas vendidas pelos ambulantes21 e o custo dos bens originais, e considerando que um consumidor racional marginalista e utilitarista procura satisfazer as necessidades com a maior qualidade possível ao menor preço possível – uma vez que o consumidor deve alocar os seus recursos escassos da maneira mais eficiente possível em uma cesta de bens, e, que ele está disposto a pagar até um valor limite por cada um desses bens. Quanto menos ele paga por um dos 21

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Poder-se-ia pensar a principio que os mesmos bens não estão igualmente disponíveis nos 3 mercados, e isso é um fato. A disponibilidade na internet depende da vontade dos usuários de compartilharem um ou outro arquivo, mas na internet pode-se ter acesso a coisas que a muito tempo já não estão indisponíveis para aquisição em lojas. As lojas são empreendimentos comerciais, e, portanto, oferecem o que vende, não necessariamente só aquilo que vende muito, mas é preciso que o produto tenha alguma circulação. Poder-se-ia pensar que mais ainda a oferta é restrita no caso dos vendedores ambulantes, mas, em primeiro lugar, o custo de um ambulante ofertar uma grande gama de mídias é menor, pois não tem que firmar contratos, ele repõe seus estoques conforme demanda, é preciso tão somente ter o filme ou disco no portfólio e o consumidor pode encomendar o que quiser, em segundo lugar, é interessante notar que existem ambulantes especializados em segmentos específicos, o que facilita o acesso ao bem procurado, e garante a disponibilidade de produtos pirateados que não se imaginaria a principio estarem disponíveis dada a alta especificidade e pequeno número de interessados. Existem até mesmo ambulantes que vendem mídias para aqueles que não se imaginaria ser o público alvo, dadas as características sócio-econômicas, dos produtos piratas. Existem, por exemplo, camelôs especializados em filmes “cults” na augusta; camelôs que só vendem sertanejo no largo da batata; ou rock próximo a galeria do rock. Esse arranjo evidencia que há uma diferença da oferta que varia no espaço e que corresponde à forma como grupos com formações, disposições e preferências distintas se apropriam de partes diferentes do espaço da cidade. O que tem relação com o local de habitação, a formação escolar, as preferências culturais e os ambientes freqüentados por grupos com diferentes preferências culturais; e também correspondência com determinadas faixas de renda, escolaridade, idade e que influenciam tanto a preferência, quanto a opção por uma ou outra forma de acesso aos bens culturais. (Vide por exemplo a correlação feita por Eric Hobsbawm na História Social do Jazz entre idade, renda e preferências culturais, por meio da qual mostra como transformações na idade com a qual se obtinha dinheiro para comprar discos e o barateamento do material no qual as músicas eram gravadas permitiu que a mudança do gosto (especialmente dos jovens que passaram a ter poder aquisitivo) ecoasse na produção e comercialização de discos, ou Liebowitz que mostra as correspondências entre idade e escolha por diferentes formas de aquisição). GPOPAI USP

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bens que pretende adquirir, e, portanto, quanto mais ele se afasta do valor que estava disposto a pagar, maior o excedente do consumidor, e, maior a quantidade de outros bens que ele pode adquirir com o dinheiro poupado naquela compra aumentando a sua satisfação e maximizando utilidade – e dado que a qualidade dos produtos piratas é cada vez mais próxima a dos produtos originais22 , deixar de consumir bens culturais piratas seria uma escolha do ponto de vista estritamente econômico um ato “irracional”. O que explica então que muitas pessoas deixem de consumir artigos piratas? Não é possível compreender a racionalidade por trás dessa ação que para a economia ortodoxa parece “irracional”, sem considerar que 1) a economia que toma como ponto de partida a racionalidade dos agentes como algo dado e estável desconsidera “o meio social, histórico, no qual esse comportamento se desenrola” (STEINER, 2006: 10) e 2) que existe antes uma pluralidade de racionalidades (como por exemplo a presente na tipologia de Weber) que somente uma racionalidade instrumental, como a descrita pela economia ortodoxa. Para melhor compreender a escolha da forma de aquisição de bens culturais, é preciso pensar então, o que fazem efetivamente os agente e quais os motivos das suas escolhas, e não somente o que eles fariam se fossem perfeitamente “racionais”.

Da “irracionalidade” do consumidor A contribuição que a Sociologia Econômica pode dar ao estudo das opções de consumo provém sobretudo do espaço que ela oferece para consideração de outras racionalidades que não a instrumental. O que aumenta a capacidade de enxergar as escolhas dos atores como uma tomada de decisão mais complexa que a simples busca de maximização de utilidade; como uma tomada de decisão que leva em conta fatores de várias ordens e várias origens, impulsos contraditórios, que como vetores exercem pressões sobre os agentes para que eles caminhem, muitas vezes, em sentidos opostos.

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“Development of technologies for efficiently manufacturing cheap, high-quality digital copies of audio-visual media content (…) when the ‘pirate’ product is largely indistinguishable in quality and appearance from its authorized counterpart, the price-conscious consumer has an extra incentive to opt for the cheaper product.” (YAR, 2005: 683). GPOPAI USP

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Se observada tão-somente a canônica tipologia da ação social de Weber já é possível ver que a Sociologia considera formas e motivações da ação outras que não a “racional” da economia. Em primeiro lugar, nessa tipologia sequer existe racionalidade em toda ação social, podendo a ação social ter motivações tradicionais (com origem no costume e hábito) ou afetivas (determinadas por afetos e estados sentimentais); em segundo lugar, mesmo ações racionais podem ser de mais de um tipo, racional com relação à fins (ou fins e meios, ação instrumental que é aquela considerada pela Economia) ou racional com relação a valores (na qual o agente se deixa conduzir por convicções e mandatos)23. É esse tipo ultimo de ação racional no qual melhor se enquadra a o comportamento racional que vai contra o interesse econômico no caso da pirataria. As campanhas anti-pirataria procuram mobilizar os valores dos agentes e também seus afetos24 para fazer com que as pessoas comportarem-se contra aquilo que seria lógico economicamente. Seria preciso, portanto, pensar quais são os fatores não estritamente econômicos que poderiam influenciar a opção por uma ou outra forma de adquirir entretenimento audiovisual. Para isso poder-se-ia seguir a pista de que está na introdução do livro de Steiner feita por Ana Cristina Martes, Maria Rita Durand e Ricardo Abramovay que menciona que “a Economia fala, no singular, do mercado supondo uma situação em que ele funciona sem nenhum entrave ou constrangimento, moral, religioso ou legal.” (STEINER, 2006: xi) são para esses outros constrangimentos que devemos olhar para aprofundar a compreensão sobre as motivações da ação. Dentre as infinitas possíveis hipóteses que podem ser levantas dentro do nó formado por todas as outras coisas que não a economia, por todos os fatores não econômicos que podem nesse caso ser economicamente relevantes: valores, moral, afetos, norma e coerção institucional etc. selecionou-se duas que no caso do consumo de produtos piratas parecem ter alto poder explicativo. 23

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“Age de uma maneira puramente racional em relação a valores quem age sem levar em conta as conseqüências previsíveis de seus atos, tão dominado está este indivíduo por sua crença em algo que lhe parece ordenado pelo dever, pela dignidade, pela beleza, por diretivas religiosas, pela piedade ou pela grandeza de uma ‘causa’ de qualquer natureza” (WEBER, 1921:23 STEINER, 2006: 24) A ação afetiva e a ação racional com relação a valores distinguem-se pelo grau de consciência dos alvos da ação, e pela orientação conseqüentemente planejada com referencia aos alvos. Elas compartilham o fato de que o sentido da ação não está no resultado que as transcende, mas sim na própria ação em sua peculiaridade. GPOPAI USP

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1) Instituições e coerção. 2) Valores, moral e afetos.

1) Instituições e Coerção Mais do que possível é razoável pensar que as pessoas deixam de consumir produtos piratas porque é proibido, por medo da coerção que as instituições podem sobre elas exercer caso desviem das normas, e, até mesmo por medo da coerção não institucional que podem exercer os outros membros da sociedade quando alguém pratica uma ação repudiada. Swedberg25 destaca que:

As ações econômicas orientam-se simultaneamente para um agente e para uma ordem jurídica (...) “Em sua escolha de procedimentos econômicos” diz Weber, “o agente orienta-se naturalmente [não apenas para um outro agente econômico, mas,] além disso para as regras convencionais e jurídicas que reconhece como válidas, isto é, aquelas cuja violação, de sua parte, ele sabe que provocaria uma determinada reação em outras pessoas (SWEDBERG, 2005: 161)

Mas, não é somente a existência nominal de uma norma que influencia o comportamento, os agentes também consideram se essa norma tem validade empírica, ou seja, se ela é de fato aplicada e se os infratores são devidamente 25

Swebderg quando apresenta as relações entre Economia e Direito na obra de Weber levanta 6 pontos que parecem ser quase um guia para a discussão de questões como a aqui apresentada e que certamente servem de referência para inúmeras análises semelhantes: “1) Weber observa que a lei tende a proteger os interesses econômicos, uma vez que grupos sociais importantes costumam ter interesses materiais importantes. 2) No entanto, a lei não defende somente os interesses econômicos, defende também muitos outros interesses, como honra, autoridade religiosa, e segurança pessoal. 3) as relações econômicas da sociedade também podem passar por uma transformação radical, diz Weber, sem que haja nenhuma mudança correspondente no sistema jurídico. 4) mas, assim como seria um erro ver as leis como um produto exclusivo das forças econômicas, para Weber, o oposto, ou seja que a economia é o produto da legislação feita pelo estado, também é um erro. 5) também está claro que a proteção legal de fenômenos econômicos importantes pode ser dada por outros organismos que não o Estado. 6) por fim, diz Weber, um fenômeno econômico pode receber uma nova interpretação ou classificação sem que isso tenha qualquer conseqüência prática para a economia.” (SWEDBERG, 2005 :164) GPOPAI USP

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penalizados. Aquilo que é considerado crime a cada momento e em cada sociedade não é algo universal, mas varia ao longo do tempo de acordo com a vida da social tal qual ela se encontra a cada momento. De acordo com Granovetter, as normas “são sancionadas, reproduzidas e/ou modificadas no curso da atividade social diária de cada grupo. Em parte, as normas podem ser reflexo das mudanças na realidade prática.” (GRANOVETTER, 2006: 31) Como dito as regras mudam, mas a velocidade com a qual elas mudam no sistema jurídico não acompanha necessariamente a velocidade com a qual se desfaz o consenso sobre a validade social da existência de tal norma. Segundo Durkheim existe uma dissicronia entre a erosão das regras antigas que é muito acelerado e um lento processo de construção de regras. Durante essa lacuna vivencia-se um período de anomia, de ausência de regras. Não seria descabido pensar que a legislação que regulava a propriedade sobre bens imateriais, e especificamente as leis de direito autoral, encontram-se em estado de anomia provocado pelas grandes mudanças tecnológicas e pelas transformações que essas suscitaram ao viabilizar a disseminação quase generalizada das formas “piratas” de aquisição de bens culturais. Tais mudanças não só criaram um abismo entre aquilo que é permitido e aquilo que é efetivamente feito, mas também tornou socialmente aceito26 algo que todavia é proibido. O descolamento das normas oficiais da vida social poderia explicar porque é tamanho o montante daqueles que hoje infringem as leis de direito autoral, e, conseqüentemente, porque são as autoridades incapazes de reprimir todos os piratas. Se piratear não é algo “mal visto” e não é algo com eficiência coagido27, uma vez que é muito difícil conter um desvio praticado pela maioria (e talvez seja mesmo ilógico fazê-lo se pensada a sociedade e o governo como formas de

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Em geral essa ação não é interpretada pela maior parte dos outros membros da sociedade como um grave delito, ou mesmo sequer percebida como um delito, mesmo quando as pessoas sabem que é ilegal. “The identification of conduct with crime depends crucially upon a wider consensus that the behavior in question constitutes a breach of acceptable social norms, that it partakes of some moral wrongdoing or injury that offends against a society and its members. This socio-moral underpinning of crime was well known to thinkers such as Durkheim, who noted that crime ‘consists of an act that offends certain very strong collective sentiments’ (2003: 66), and that the efficacy of legal prohibition is sustained by this feeling of offence.” (YAR, 2008, 606) Mesmo que pareça ser uma tendências em muitos países o endurecimento da repressão a tal tipo de comportamento, principalmente por meio da quebra de certos direitos de privacidade dos usuários da rede que permitam mapear o comportamento dos usuários, o que para proteger os direitos dos detentores de propriedade intelectual acaba-se por ferir os direitos de privacidade de toda a população. GPOPAI USP

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garantir o bem público segundo aquilo que para a maioria seria benéfico28). E mesmo que se tentasse ativamente reprimir tal comportamento, cada vez que um site de compartilhamento é tirado do ar ou um camelô preso, tantos outros brotam instantaneamente. Tamanha persistência de um comportamento fora da lei mostra que essa prática têm enraizamento social, ela têm uma função social, o que deveria em princípio mostrar a inadequação da lei, e não a do comportamento da totalidade da sociedade. Mas, se a lei resiste como está, ainda que contra os interesses da grande maioria silenciosa da sociedade, isso deve ser explicado olhando para os interesses daqueles que defendem que a lei continue como está. A norma esta em disputa, lutam por defini-la grupos com interesses diferentes, forças opostas que não são somente numericamente diferentes, (caso em que, teoricamente, venceria aquela que fosse benéfica para maioria), mas também possuem armas diferentes, recursos e capitais diferentes dos quais fazem uso para tentar “conservar ou transformar a relação de força em vigor”. (BOURDIEU, 2006: 247) Como dito anteriormente essa é uma luta principalmente entre os muitos e dispersos que se beneficiam do consumo pirata, de um lado, e os conglomerados do entretenimento – e seus países sede – e parte dos criadores de outro. E, como mencionado, uma das estratégias do grupo que luta em defesa dos direitos autorais é tentar agir diretamente sobre os usuários por meio de campanhas de “conscientização”, uma vez que diagnosticam que “the copyright violations arises from the reality of widespread public indifference.” (YAR, 2008: 609) Mas essas campanhas não destacam o caráter ilegal do consumo pirata, afinal saber que é proibido não parece ser suficiente para dissuadir tal comportamento. Se é mais útil e economicamente racional consumir produtos piratas; se por hora ao menos a repressão a tal comportamento não é eficiente29; e se esse não é um comportamento “mal visto” pela maioria da sociedade, que estratégias poderiam adotar essas campanhas para desestimular a pirataria?

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E mesmo quando não é benéfico para todos, o que raramente ocorre, seria possível criar políticas públicas que tentassem minimizar os danos dos afetados negativamente, que proporcionalmente são poucos. É preciso distinguir a repressão aos vendedores ambulantes da repressão do consumidor direto. É possível pensar que existe uma grande diferença na forma como são reprimidos os intermediários “ambulantes”e os consumidores, pois os dois crimes são encaixados em categorias diferentes, o primeiro enquadrado com mais gravidade que o segundo e reprimido com mais constância e violência. GPOPAI USP

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2) Valores, Moral e Afetos Onde a ordem jurídica esta falhando a moral busca assegurar a ordem. Parece ser essa a aposta das campanhas anti-pirataria, qualificar a violação dos direitos autorais daquilo que Granovetter classifica como uma “violação moral”. Se a pirataria em não provoca a ira da sociedade, o que as campanhas em sua maioria fazem é tentar vincular a pirataria à crimes consensualmente tidos como de alta gravidade; com os principais “males” que aterrorizam uma determinada sociedade; com condutas moralmente condenáveis, como a negligência dos pais em relação à educação dos filhos; e outras associações que procuram mobilizar os valores e os afetos de modo que a conduta, se não a mais economicamente acertada, seja interpretada como a mais moralmente correta. É nesse sentido que Alex Dent caracteriza o discurso anti-pirataria como um “discurso quase religioso” que separa a boa e má conduta. Essa estratégia usa das armas da publicidade: manipulação dos símbolos e das representações da sociedade e associação dos mesmos com os “produtos” para qualificá-los como desejáveis ou indesejáveis. Assim sendo, a resposta para o não consumo pirata talvez deva ser procurada antes na cultura que na economia. Para verificar essa hipótese olhar-se-á para as campanhas anti-pirataria procurando descobrir qual é a principal forma de apelo que fazem ao usuário, se, e como, elas mobilizam o lado “irracional” das pessoas, as paixões e medos, o ódio, os valores familiares e religiosos para convencê-las não piratear.

As Campanhas Anti-Pirataria 5 foram os “tipos” de campanhas que puderam ser identificados no material coletado30: 1) Campanhas que discutem a qualidade do produto e tentam alegar que o produto original é melhor. São campanhas que buscam ainda evocar a “raciona30

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O material coletado é composto por uma amostra de 20 vídeos de campanhas anti-piratarias – coletadas no Youtube, procedentes de diversos países, e financiados por variadas organizações de combate a pirataria – que estão gravados no CD que acompanha o trabalho, e que encontram-se em sua maioria transcritos no anexo. GPOPAI USP

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lidade” do consumidor, senão na escolha por preço, na escolha por qualidade. Mas os dois principais exemplos de campanhas que se inserem nessa categoria terminam com a frase: “combater a pirataria é um dever cívico”, que é antes uma afirmação com respaldo legal e moral do que um apelo para a qualidade do produto. Quando se trata de filmes pirateados até o Wall-e [um robô vindo de outro planeta] sabe distinguir” ou “Filmes piratas em DVD. O som é horrível, a imagem é péssima e desfocada, e invés de uma excelente refeição vão acabar por comer lixo. E ninguém com bom gosto come lixo. [ratinho cozinheiro] (campanhas Disney números 9 e 13 no anexo).

Nas outras campanhas que falam sobre qualidade o tema aparece sempre acompanhadas de algum dos outros argumentos: Se você quer assistir um filme sem qualidade e ainda colaborar com o crime organizado aperte o play. (Campanha número 1 do anexo)

Uma outra forma de abordar a questão da qualidade é a dos efeitos do material pirata sobre o equipamento do usuário. Segundo relato do professor Alex Dent, por exemplo, já em 1999 a veja argumentava com que uso de cd ilegal danificava aparelho do usuário. 2) Campanhas que associam a pirataria àquilo que o imaginário local31 concebe como o maior inimigo da sociedade (o que varia em cada cultura, em cada país,em cada época, não é, portanto, algo objetivamente dado). Por exemplo, no caso dos EUA e do Reino Unido32, a pirataria foi acusada de ser forma de financiamento de organizações terroristas; no Brasil a associação mais comum é da 31

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A história de cada país é determinante para compreender a relação entre os indivíduos e a pirataria. Existem países nos quais a noção de copyright não tem enraizamento social algum é uma imposição que vem de fora – até por isso os países interessados financiam as campanhas de combate a pirataria, e essas, por sua vez, procuram associar a pirataria ao que cada sociedade já repudia, tentando criar um vinculo lógico entre os dois de modo que a pirataria que era algo indiferente a essas sociedade deixe de ser e passe a ser associada diretamente com seus piores medos e portanto temida e combatida. Yar menciona que coisas como “IRA has financed its paramilitary activities through film piracy”, “Al-Qaida has been financing itself through engaging in commercial counterfeiting”, são discursos recorrentes. GPOPAI USP

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pirataria com o crime organizado e o tráfico de drogas. De acordo com Yar, “it has now become commonplace to find in the discourse of copyright industries, trade bodies, governments and criminal justice agencies the claim that media ‘piracy’ is links with ‘organized crime’ and ‘terrorism’” (YAR, 2005: 688) Como dito, no Brasil a associação mais comum é entre pirataria e crime organizado33 e isso aparece com grande ênfase nas propagandas coletadas: Ao colocar o filme para rodar: um agradecimento pela sua especial colaboração ao comprar este DVD pirata./ Aparece a imagem de uma favela e os encapuzados dizem: Muito obrigado por ter ajudado nois a comprar os armamento aê certo mano./ Ae tia valeu, é nois hein tia./ Uma salva de tiro para a tia aê!!!/ Voz: comprar DVD pirata é patrocinar o crime. Filme em DVD só original. (campanha número 5 do anexo) DVD pirata pai? Você não vê que você está ajudando o crime? Amanhã vai vender droga na minha escola por causa desse DVD. (...) Voz: O dinheiro que circula na pirataria é o mesmo que circula no crime organizado.”(campanha número 6 do anexo) “Vendedor: vou fazer uma promoção boa pra chefia agora/ Cê vai levar três e vai me pagar só dois / Comprador: só que eu acho que eu to sem troco / Vendedor: não eu troco pro senhor / Eu posso dar o troco em bala? Joga um monte de balas de revolver na mão do comprador. / Voz: O dinheiro que circula na pirataria é o mesmo que circula no crime organizado. (campanha número 8 do anexo) Pirataria/ Violência / Tráfico / Crime / Tiro! (campanha número 11 do anexo)

3) Campanhas que associam o crime a outras modalidades de crimes mais “graves” segundo a lei vigente: mudança do tipo de crime de ofensa, danos, dívida etc. (direito restitutivo) para o caráter de conduta criminosa, como roubo

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“Os organismos internacionais, comumente, definem o crime organizado como sendo aquele tipo de atividade criminosa desenvolvida por mais de dias pessoas e encimada pelo objetivo de conseguir dinheiro e poder” (JÚNIOR, 2009: 55), mas segundo o autor “a própria definição do que seja crime organizado está envolta em um intricado embate político e ideológico.” (JÚNIOR, 2009: 55) GPOPAI USP

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e assassinato, (direito punitivo)34 que além de prever sanções maiores é moralmente estigmatizado: To label a practice as ‘criminal’ carries with a symbolic weight and charge, equating it with socially sanctioned perceptions of moral violation and wrongdoing (Lacey, 2002: 268) the recasting of ‘piracy’ in a language of criminal violation amounts therefore to its ‘moralization’, an attempt to create a normative consensus that it offends against the agreed standards of decent and acceptable behaviour. This has been necessary precisely because copyright violations have been rendered socially acceptable by their ubiquity and the widespread perception that they are not genuinely ‘harmful’ in the manner of ‘real crimes’ (such as theft of personal property, homicide, rape, assault and so on). (YAR, 2005: 687)

Como é possível observar na propaganda abaixo: Você não roubaria uma bolsa/ Você não roubaria um carro/ Você não roubaria um bebê/ Você não atiraria em um policial/ E depois roubaria o capacete dele/ Você não usaria o capacete dele como banheiro/ E depois enviaria o capacete à viúva do policial/ E depois roubaria de novo/ Baixar filmes é roubar/ Se você fizer isso vai encarar as conseqüências/ (pessoa que estava fazendo download é morta) (campanha número 4 do anexo)

4) Campanhas que procuram mostrar que a pirataria ameaça os valores e a educação familiar: o pai que pirateia dá um mau exemplo a seus filhos, esses passarão a acreditar que também podem infringir livremente a lei.

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Durkheim em a Divisão Social do Trabalho apresenta o direito de tipo punitivo como típico das sociedades tradicionais, de solidariedade mecânica, nas quais a pena tinha por objetivo castigar aquele que ofendia a consciência coletiva; e o direito restitutivo como típico das sociedades orgânicas, na qual entram em conflito fundamentalmente os indivíduos e não os sentimentos da sociedade. A partir dessas duas noções é possível perceber o caráter tradicional de tal exigência do tratamento da pirataria como um crime que deve ser punido e não que preveja uma sanção monetária. GPOPAI USP

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Mãe: Vejam comprei esse filme pirata foi quase de graça!/ Avó: Filha, comprar um filme pirata é a mesma coisa que roubar, não é?/ Mãe: não mãe, eu não o roubei, eu o comprei, além disso a imagem é excelente/ Filho: até mais!/ Mãe: onde você vai?/ Filho: me encontrar com meus amigos./ Mãe: você tem que estudar para a prova de amanhã. Filho: não preciso. Mãe: como não precisa? Você tem que estudar!/ Filho: eu consegui a prova. Mãe: “Conseguiu a prova”? Você a roubou?/ Filho: não a roubei, eu a comprei./ Mãe fica desolada/ Filha: como você fez com o filme!/ Voz: os filmes piratas são muito ruins, mas você como pai é pior ainda. O que você está ensinando a seus filhos? (campanha número 2 do anexo)

5) campanhas que fazem uso de discurso religioso e afirmam que a pirataria não só é crime, ela também é pecado. Se em muitas religiões protestantes, o trabalho é um dever e a forma de realizar no mundo a vocação por deus dada35 . E se a remuneração é um justo produto do trabalho. Usufruir dos frutos da criação alheia sem pagar por eles é agir contra os ordenamentos de deus, é pecar. Quando alguém por qualquer motivo que seja faz uma simples cópia desse VHS ou recebem uma cópia feita por outra pessoa está roubando o nosso ministério e pecando contra deus./ Jeremias 22.13/ Ai daquele que edifica sua casa com iniqüidade e seus aposentos com injustiça, que se serve do trabalho de seu próximo sem remunerá-lo. E não lhe dá o salário./ Segundo a lei dos homens isso é pirataria. E constitui crime, previsto na lei, no 9610 de 19 de fevereiro de 1998 do código civil e no artigo 184 parágrafos primeiro e segundo do código penal brasileiro. Sujeito o infrator a penas de 1 a 4 anos de detenção./ E segundo a lei de deus isso é pecado e o senhor dos exércitos diz que trará juízo sobre quem praticar tais atos. (campanha número 12 do anexo)

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Ver a Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Max Weber. GPOPAI USP

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Conclusão Olhar a pirataria pela ótica da Sociologia Econômica torna visível como são muitos os determinantes que pesam sobre uma escolha de consumo que a teoria econômica ortodoxa não considera, uma vez que seus estudos tomam a racionalidade como premissa e fazem uma análise da estática e socialmente desenraizada das preferências. O caso aqui apresentado torna evidente como estão entrelaçadas as escolhas “racionais” e “irracionais” dos agentes, como sobre eles incidem muitas influências contraditórias (valores, interesse econômico, sentimentos etc.) em disputa, e como grupos de interesse também interferem nas escolhas dos agentes ao empregar suas forças e capitais com intuito de conduzi-los para o caminho que lhes favorece. “Os grupos que conseguem impor um discurso hegemônico e que molda a compreensão das pessoas ganham uma vantagem poderosa.” (GRANOVETTER, 2006: 32) para tanto, as forças em disputa fazem uso dos mais variados recursos discursivos e das representações mais consensuais para deslegitimar o comportamento do outro, convencer a sociedade e as autoridades da gravidade das ações por eles praticadas, e assim, angariar apoio para a sua causa e garantir que as instituições lhes sejam coniventes e suportem juridicamente seus pontos de vista. ‘Moral pedagogy’ of criminalization cannot be seen apart from the workings of power, the struggle for hegemony. (YAR, 2008, 606) A intenção das propagandas anti-pirataria parece ser justamente essa, ela é um instrumento de “pedagogia moral” que convoca a racionalidade axiológica a se colocar à frente da racionalidade instrumental. O que faz com que um comportamento que em princípio poderia ser visto como uma escolha econômica por preço e qualidade, seja influenciado também por fatores “irracionais”, e que, portanto, deva também ter analisados seus determinantes sociais, tarefa para a qual a Sociologia Econômica contribui amplamente.

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SWEDBERG, Richard. “Sociologia Econômica: Hoje e Amanhã”. Tempo Social, 16(2), 2004, pp. 7-34. SWEDBER, Richard. Max Weber e a Idéia de Sociologia Econômica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. WEBER, Max. A “Objetividade” do Conhecimento nas Ciências Sociais. São Paulo: Ática, 2006. WEBER, Max. “Ação Social e Relação Social”. In: FORACCHI, Marialice Menecarini and MARTINS, José de Souza. Sociologia e Sociedade: leituras de introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: LCT – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1997. WHYTE, William Foote. Sociedade de Esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. YAR, Majid. “Pedagogy and capitalist property relations in the classroom The rhetorics and myths of anti-piracy campaigns: criminalization, moral”. New Media Society, 2008, Vol. 10(4): 605–623. YAR, Majid. “The global ‘epidemic’ of movie ‘piracy’: crime-wave or social construction?” in Media, Culture & Society, 2005, vol. 27(5): 677-696.

Anexos - Transcrições 1) Com DVD Pirata não tem Mágica http://www.youtube.com/watch?v=dvs6mGCuBy0&feature= player_embedded Pai: Coloca o DVD para rodar. Mãe: Amor impossível, esse filme acabou de entrar em cartaz. Filha: Mas pai, isso é ilegal. Mágico que aparece no DVD: Se você quer assistir um filme sem qualidade e ainda colaborar com o crime organizado aperte o play. Com produto pirata não tem mágica. Voz: Não faça de sua vida um show de pirataria. Fncp.org.br. GPOPAI USP

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“Irracionalidade”: A mobilização dos valores, da moral e dos afetos nas campanhas anti-pirataria

2) Pirataria é Crime http://www.youtube.com/watch?v=cNcbtaln6jc Você não roubaria uma bolsa Você não roubaria um carro Você não roubaria um bebê Você não atiraria em um policial E depois roubaria o capacete dele Você não usaria o capacete dele como banheiro E depois enviaria o capacete à viúva do policial E depois roubaria de novo Baixar filmes é roubar Se você fizer isso vai encarar as conseqüências (pessoa que estava fazendo download é morta)

3) Campanha em Espanhol 1 http://www.youtube.com/watch?v=uiNhU9pJ3eA&feature=related Filha: O papai disse que não está ruim que o filme é assim mesmo Mas nós sabemos que é pirata. Filho menor: Concorda com a cabeça. Filha: Ele diz que nem está em cartaz no cinema. E que são muito baratos. Filho menor: Mas tem muitas falhas. Filha: Óbvio é pirata. Nossos pais acham que nós não entendemos. Filho menor: Que ingênuos. Temos um papai pirata. Voz: Os filmes piratas são muito ruins, mas você como pai é pior ainda. O que você está ensinando a seus filhos?

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4) Campanha em Espanhol 2 http://www.youtube.com/watch?v=uiNhU9pJ3eA&feature=related Filha: Oi mãe. Mãe: Oi. Mãe: Como foi o seu dia? Filha: Bom. Avó: Está cansada não? Mãe: Ai sim. Vejam comprei esse filme pirata foi quase de graça! Avó: Filha, comprar um filme pirata é a mesma coisa que roubar, não é? Mãe: Não mãe, eu não o roubei, eu o comprei. Além disso a imagem é excelente Filho: Até mais! Mãe: Onde você vai? Filho: Me encontrar com meus amigos. Mãe: Você tem que estudar para a prova de amanhã Filho: Não preciso Mãe: Como não precisa? Você tem que estudar! Filho: Eu consegui a prova Mãe: “Conseguiu a prova”? Você a roubou? Filho: Não a roubei, eu a comprei Mãe fica desolada Filha: Como você fez com o filme! Voz: Os filmes piratas são muito ruins, mas você como pai é pior ainda. O que você está ensinando a seus filhos?

5) Campanha Anti-Pirataria 1 http://www.youtube.com/watch?v=Xu7uRMrvsuY&feature=related Mãe: Oi filha tudo bem? Olha o filme que eu comprei pra gente assistir junto. Filha: Oba, legal! Coloca o filme no aparelho

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Filme: Um agradecimento pela sua especial colaboração ao comprar este DVD pirata. Aparece a imagem de uma favela e os encapuzados dizem: Muito obrigado por ter ajudado nois a comprar os armamento aê certo mano. Aê tia valeu, é nois hein tia. Uma salva de tiro para a tia aêeeee!!! Voz: Comprar DVD pirata é patrocinar o crime. Filme em DVD só original.

6) Campanha Anti-Pirataria 2 http://www.youtube.com/watch?v=udWd3YXqzRk&feature=related Pai: Depois do jantar a gente vai parar todo mundo para assistir um filme. Um DVD. Eu comprei um DVD pirata paguei baratinho. Papai é esperto né! Filha: DVD pirata pai? Você não vê que você está ajudando o crime? Amanha vai vender droga na minha escola por causa desse DVD. Tan tan Mãe filha e filho deixam o pai jantando sozinho Voz: O dinheiro que circula na pirataria é o mesmo que circula no crime organizado. DVD pirata é crime. Filme em DVD só original.

7) Campanha CANCINE http://www.youtube.com/watch?v=NBn2mfKD3gw&feature=related Pai: Cheguei! Filho: Olá papai. Pai: Oi, como vai meu campeão? Filho: Bem. Mãe: Olá meu amor. Pai: Olha o que o inteligente do seu pai comprou pra você. Filme pirata, que ainda não chegou aos cinemas. Filho: Que legal papai. Quer saber uma coisa eu também sou muito inteligente. 32

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Pai: Ah você é? Filho: Sou. Pai: E por quê? Vejamos me conta. Filho: É que eu tirei nota 10, super pirata! Pai: Como super pirata? Filho: É que copiei a prova do Luis um amigo meu. Olha dez! Pai: Como assim copiei a prova do Luis? Filho: Qual é tirei 10 pirata, como o seu filme aqui. Mãe furiosa Voz: Os filmes piratas tem imagem ruim, mas a sua como pai fica ainda pior. O que você está ensinando a seus filhos?

8) Troco em Bala http://www.youtube.com/watch?v=mqGH57zRPWI&feature=related Vendedor: DVD DVD show, filme, desenho. Ô chefia fica a vontade Comprador: esse aqui não é aquele DVD que estraga o aparelho não Vendedor: Opa, esse ai é coisa boa meu. Comprador: Tem alguma promoção aqui. Vendedor: Vou fazer uma promoção boa pra chefia agora. Cê vai levar três e vai me pagar só dois. Comprador: Só que eu acho que eu to sem troco. Vendedor: Não, eu troco pro senhor. Eu posso dar o troco em bala? Joga um monte de balas de revolver na mão do comprador. Voz: O dinheiro que circula na pirataria é o mesmo que circula no crime organizado. DVD pirata é crime. Filme em DVD só original.

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9) DISNEY Wall-E – Robô (português de Portugal) http://www.youtube.com/watch?v=eqHdzvuKd3U&feature=player_embedded Narrador: Este é Wall-e. Ele anda a limpar o nosso planeta há 700 anos. E as vezes não consegue distinguir o que é o lixo e o que não é. Mas quando se trata de filmes pirateados até o Wall-e sabe distinguir. Wall-E: Ahannnnn! Narrador: A diferença salta a vista. Não veja lixo! Viva o cinema como algo de outro mundo. Voz: Combater a pirataria é um dever cívico

10) Artista da Pirataria http://video.yahoo.com/watch/1859927/6100017 Gravo cd e gravo DVD Pra mostrar a minha arte pra você Mas a minha arte é roubada todo dia Você me faz artista da pirataria Você não compra o meu original Prefere a copia que custa um real Você me ouve e me vê no cd ou DVD Mas o pirata é quem recebe de você Você diz que adora o meu trabalho Que pra fazer eu dei um duro do “caralho” Diz que a minha arte faz você feliz Mas você não compra a arte que eu fiz

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11) 20 Segundos - Pirataria http://www.youtube.com/watch?v=wV7KE0NRLbk&feature=player_embedded Pirataria Violência Tráfico Crime Tiro!

12) Pirataria é Crime e é Pecado http://www.youtube.com/watch?v=aOkbY55Q9RM Amado irmão e cristo. Queremos compartilhar com você um estudo acerca de um assunto que tem se tornado um forte argumento do inimigo contra a vida de muitos irmãos que sem conhecimento acabam permitindo brechas no reino do espírito por onde recebem ataques e investidas. Quando alguém produz um trabalho musical, significa que um grande trabalho foi realizado, que diversas pessoas se dedicaram arduamente, muitas vezes até altas horas da madrugada, em que poderiam estar dormindo em suas casas com sua família e seus filhos. Ao invés disso se dispuseram a trabalhar em prol de um projeto do coração de deus significa que muitos intercederam, oraram e jejuaram para que deus derramasse nesse trabalho nesse trabalho da sua unção a fim de que as pessoas quando ouvissem as músicas pudessem ser visitadas pela doce presença do espírito santo. Mateus 10.10 Digno é o trabalhador do seu salário. Quando alguém por qualquer motivo que seja faz uma simples cópia desse VHS ou recebem uma cópia feita por outra pessoa está roubando o nosso ministério e pecando contra deus.

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Jeremias 22.13 Ai daquele que edifica sua casa com iniqüidade e seus aposentos com injustiça, que se serve do trabalho de seu próximo sem remunerá-lo. E não lhe dá o salário. Segundo a lei dos homens isso é pirataria. E constitui crime, previsto na lei, no 9610 de 19 de fevereiro de 1998 do código civil e no artigo 184 parágrafos primeiro e segundo do código penal brasileiro. Sujeito o infrator a penas de 1 a 4 anos de detenção. E segundo a lei de deus isso é pecado e o senhor dos exércitos diz que trará juízo sobre quem praticar tais atos. Malaquias 3.5 E chegar-me-ei a vós para juízo; e serei uma testemunha veloz contra os que defraudaram o trabalhador em seu salário diz o senhor dos exércitos. Essas palavras são para trazer o entendimento sobre algo que se tornou muito comum hoje em dia e por isso muitos não tem preocupação em fazê-lo, mas devemos entender que é muito sério. Fazer cópias de VHS, CDs, softwares, CDs de jogos, DVDs etc., sem a licença do proprietário é crime e pecado e o salário do pecador é a morte. Remova de sua vida essa ilegalidade e torne-se uma testemunha de deus livre e inculpável.

13) Ratatouille Disney – O ratinho cozinheiro (português de Portugal) http://www.youtube.com/watch?v=4QAyJWjtgAs Sabem para mim um bom filme é como uma boa refeição. Tem que ter um aspecto maravilhoso e um som fantástico. Para se poder apreciar todo o sabor. Este sou eu sou um rato, já sei o que estão a pensar, o que o rato percebe de boa comida ou neste caso de bons filmes. Bom se forem como eu só vão querer o melhor. Ah! finalmente o açafrão italiano hein.

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Afinal é tão fácil encontrar bons filmes. Mas filmes piratas em DVD. O som é horrível, a imagem é péssima é desfocada, e invés de uma excelente refeição vão acabar por comer lixo. E ninguém com bom gosto come lixo. AH! Não, não, não! Cospe imediatamente isso! Não apóiem os DVDs piratas, porque contentarem-se com segundas escolhas quando podem ter o original. Agora vais provar com calma! Um! Voz: Combater a pirataria é um dever cívico.

14) O Barato Custa Caro http://www.youtube.com/watch?v=GYbcuKcqU_g&feature=player_embedded O barato custa caro Você gasta pouco Mas pode pagar com a vida Pirataria é crime

Sobre o livro

Formato 14x21 cm

Tipologia Frutiger Lt Std (texto) Meta Plus (títulos) Papel Off-set 75g/m2 (miolo) Cartão triplex 250g/m2 (capa) Projeto Gráfico e Capa Canal 6 Projetos Editoriais www.canal6.com.br

Diagramação Marcelo Canal Woelke

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