Isto Aqui é um Lugar de Respeito: homofobia, emoções e regulação dos espaços públicos

October 2, 2017 | Autor: Lucas Freire | Categoria: Homofobia, Antropologia das emoções
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAS

“ISTO AQUI É UM LUGAR DE RESPEITO”: homofobia, emoções e regulação dos espaços públicos

Lucas de Magalhães Freire

Rio de Janeiro 2013

“ISTO AQUI É UM LUGAR DE RESPEITO”: homofobia, emoções e regulação dos espaços públicos

Lucas de Magalhães Freire

Monografia apresentada à Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais.

Orientadora: Maria Claudia Pereira Coelho Co-orientador: Bruno Dallacort Zilli

Rio de Janeiro 2013

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço aos meus pais, os quais, mesmo sem entenderem bem do que tratam as ciênciais sociais, sempre me apoiaram incondicionalmente. Agradeço também aos meus irmãos mais velhos, que sempre estiveram ao meu lado, ajudando-me com tudo que podem. À professora Maria Claudia, pela orientação atenciosa, observações sempre relevantes e constante incentivo. Ao Bruno Zilli, pela amizade e, principalmente, por me ajudar a transformar pensamentos caóticos em ideias, espero, coerentes. Ao Daniel, por todo carinho, companheirismo e compreensão, como também por todo amparo dado durante o desenvolvimento dessa pesquisa. Arrisco dizer que ele pode ser considerado tão autor deste trabalho quanto eu. Aos meus companheiros de trabalho no Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, especialmente Cristiane Cabral, Fabíola Cordeiro, Josué de Souza e Tathiane Vitorino. O tempo que passei com vocês foi fundamental para meu aprendizado. Aos meus amigos da turma de 2009 do curso de Ciências Sociais da UERJ por estarem presentes durante todos esses anos e por me fazerem enxergar o mundo de outras maneiras. Nunca esquecerei de vocês. À Margareth Gomes, por seus comentários que foram de grande importância para a conclusão de meu estudo. Agradeço àqueles que lutaram um dia para que o tema da homossexualidade pudesse ser discutido hoje nas universidades a partir de outro lugar que não o “banco dos réus”. Agradeço também àqueles que cotidianamente resistem à homofobia que insiste em relegar sujeitos a posições marginais na sociedade. Por último, mas não menos importante, agradeço aos rapazes que se dispuseram a serem entrevistados, e sem os quais este trabalho jamais existiria. Obrigado por compartilharem comigo suas histórias, alegrias e tristezas. Vocês são o início, o meio e o fim deste texto.

RESUMO

O presente trabalho intenta contribuir para o entendimento do modo como o fenômeno da homofobia é capaz de regular os comportamentos nos espaços públicos, condenando a homossexualidade a ser alvo de constantes negociações e avaliações acerca de sua vivência pública; bem como investigar o estigma da homossexualidade masculina e suas consequências para a vida cotidiana dos indivíduos, como por exemplo, a dinâmica de ocultamento/revelação da orientação sexual em lugares de convívio coletivo. A discussão e a análise dos dados pautam-se nas teorias interacionistas simbólicas, do campo da antropologia das emoções e também nos estudos sobre gênero, sexualidade e construção de identidades sexuais.

SUMÁRIO

1. Introdução .............................................................................................................. 06 2. Metodologia ............................................................................................................ 13 2.1 A metodologia de Pesquisa .......................................................................... 13 2.2 O Instrumento de Pesquisa ........................................................................... 14 2.3 O Trabalho de Campo .................................................................................. 16 3. Pressupostos Teóricos ............................................................................................ 18 3.1 O Interacionismo Simbólico e o Estigma ..................................................... 18 3.2 A Antropologia das Emoções ....................................................................... 20 3.3 Os Estudos sobre Medo ................................................................................ 23 3.4 Sexualidade e Gênero ................................................................................... 24 3.5 Homossexualidade: modelos identitários ..................................................... 25 3.6 Homofobia, Sexismo, Heterossexismo e Heteronormatividade .................. 27 4. Descrição do Universo de Pesquisa ...................................................................... 30 5. A Economia Emocional do Armário .................................................................... 38 5.1 Ocultar/revelar: um cálculo de perdas e ganhos .......................................... 38 5.2 A Centralidade do Medo .............................................................................. 44 6. Identidade Homossexual: processos de construção, interação e circulação ..... 48 6.1 A Percepção do Desejo ................................................................................ 49 6.2 A Aceitação do Desejo ................................................................................. 50 6.3 A Prática do Desejo ...................................................................................... 51 6.4 A Comunicação do Desejo............................................................................ 52 6.4.1 Identidade Homossexual e Segregação de Plateia ............................. 53 6.4.2 Homossexualidade e Espaços Públicos .............................................. 55 6.4.3 “Isto aqui é um lugar de respeito”: vivências cotidianas da Homossexualidade masculina ...................................................... 57 6.4.4 Lugares de Respeito: a geografia da sociabilidade homossexual no espaço urbano do Rio de Janeiro .................................................. 58 7. Considerações Finais ............................................................................................. 61 Anexo I – Roteiro de Entrevista ............................................................................... 63 Referências Bibliográficas ........................................................................................ 64

1. INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, muitos pesquisadores têm se preocupado com o estudo da sexualidade. Estudos quantitativos, qualitativos e teóricos sobre expressões sexuais vêm sendo desenvolvidos nas mais diversas áreas do conhecimento, como a antropologia, a psicologia, o direito, a biologia, entre outras. Neste universo, destacam-se aqui as investigações acerca do interesse sexual por pessoas do mesmo sexo. A partir das obras de autores como João Silvério Trevisan (2011), James Green (2000), Regina Facchini (2005), Carlos Figari (2007) e Peter Fry (1982) é possível compor um panorama histórico da vivência da homossexualidade no Brasil. Esses autores são unânimes em mostrar como a homossexualidade foi, e ainda é, considerada um atributo estigmatizante em nosso país1. Durante o século XIX, com o advento das teorias positivistas e da valorização do conhecimento científico, a sexualidade passou a ser objeto de estudos médicos. Neste cenário, as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo passaram a ser designadas por homossexualismo2, e a serem entendidas como um tipo de psicopatologia, um problema de saúde pública que deveria ser combatido (Trevisan, 2011). A partir deste paradigma, houve uma criminalização indireta da homossexualidade no Código Penal de 1830, o qual não mais previa o crime de sodomia, desde que o ato sexual acontecesse entre adultos, com consentimento mútuo e sem incidência pública. Os autores Green e Polito (2006:77-78) destacam que a “criminalização indireta” persistiu no Código Penal de 1890, pois a redação dúbia do delito de “ultraje público ao pudor” era frequentemente utilizada para punir qualquer um que manifestasse comportamentos contrários aos padrões heterossexuais. As primeiras manifestações do movimento LGBT brasileiro, guarda-chuva heterogêneo de distintos grupos e identidade sexuais oprimidas, aconteceram no final dos anos 1970, durante o período de abertura dos últimos anos da Ditadura Militar (Facchini, 2005). Uma de suas primeiras demandas organizadas foi a despatologização dos adeptos do “amor que não ousa dizer seu nome”3, conquistada em 1985 com a 1

Um panorama mais extenso da classificação das relações homossexuais no Brasil pode ser encontrado em Freire (2012). O termo homossexualismo – com o sufixo “–ismo” designando uma patologia – é característico do contexto brasileiro. Na língua inglesa, por exemplo, o termo corrente sempre foi homosexuality. Isto ajuda a compreender o grau da homofobia no país, refletida na categoria médica utilizada para classificar as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. 2

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Expressão utilizada poeticamente por Oscar Wilde para se referir à homossexualidade. Wilde foi um importante escritor inglês que foi condenado por “praticar atos imorais com rapazes” em 1895.

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retirada do homossexualismo do rol de doenças do Instituto Nacional de Previdência Social após uma decisão do Conselho Federal de Medicina4. Tal processo se concretizou em 1999 com a Resolução nº 01/99 do Conselho Federal de Psicologia que proíbe os psicólogos de oferecerem tratamentos para a homossexualidade5. A partir dos anos 1980, com o aparecimento dos primeiros casos do que se tornaria rapidamente a epidemia de Aids, os homossexuais foram alvos de novas perseguições. Nesse contexto, foi divulgada a expressão homofobia para caracterizar a violência e a repressão perpetradas contra homossexuais (Ramos e Carrara, 2006). Atualmente, a homofobia figura como objeto de estudo de muitas pesquisas, que adotam diferentes abordagens, conforme veremos a seguir. Em uma pesquisa quantitativa realizada com os participantes da Parada Gay de Copacabana, no Rio de Janeiro, Carrara, Ramos e Caetano (2003) constataram que 62,5% dos entrevistados6 já haviam sofrido algum tipo de agressão e 56,5% tinham sido alvo de discriminação, ambas motivadas pela orientação sexual. Outro dado relevante para o desenvolvimento do presente estudo que estes autores trazem é a ideia dos “círculos de maior ou menor intimidade ou visibilidade” (Ibidem: 18). Os resultados revelam que dentre os participantes da Parada Gay, a sexualidade figura como uma questão política, de forma que os sujeitos estão dispostos a assumir sua homossexualidade em determinadas esferas sociais de suas vidas. Apenas 7,7% dos entrevistados afirmaram estar completamente “no armário”. Ao observar os dados sobre visibilidade por faixa etária7, verifica-se que os jovens de 14-18 e 19-21 já se assumiram para esses grupos, respectivamente: 51,3% e 69% para os familiares; 25,6% e 45,1% para os colegas de trabalho; 33,3% e 42,3% na escola; 76,9% e 80,3% para os amigos; e 15,4% e 4,2% ainda não haviam se assumido. Os dados sobre discriminação mostram que esta não segue uma distribuição uniforme, atingindo principalmente travestis e transexuais (73,1%), seguidos das homossexuais femininas (61,8%) e dos homossexuais masculinos (61,2%). Em relação aos locais onde sofreram agressões, as respostas apontam que a maior parte (53,1%) 4

Vale destacar que a mesma decisão só ocorreu em nível mundial em 1993, quando a homossexualidade foi retirada do Catálogo Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde. É importante lembrar que atualmente esta resolução vem sendo questionada pela chamada “Frente Parlamentar Evangélica”. É alegado que tal decisão restringe de modo ilegal a atuação dos psicólogos e o direito da pessoa interessada de obter ajuda profissional. 5

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Incluindo nesse escopo gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.

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Na distribuição por idade são agrupados dados de todas as identidades sexuais.

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acontece em locais públicos, em seguida vem a casa (13%), a escola (11,7%), os estabelecimentos comerciais (11,1%), o trabalho (8,6%) e outros locais (2,5%). O mesmo modelo de pesquisa foi repetido por Carrara e Ramos (2005) na Parada Gay de Copacabana-Rio de Janeiro de 2004. Neste novo levantamento, o número absoluto de entrevistados que ainda estavam completamente “no armário” diminui para 3,5%. Em 2004, o número de homossexuais vítimas de agressão teve uma pequena diminuição (de 62,5% para 61,5%), enquanto o número dos que haviam sofrido discriminação aumentou (de 56,5% para 64,8%). Apesar de não ter a distribuição por idade, como na edição anterior, os resultados absolutos desta pesquisa corroboram os levantados anteriormente. Entre os indivíduos auto identificados como gays 8, 81,5% já haviam se assumido para familiares; 94% para amigos/vizinhos/conhecidos; 72% para os colegas de trabalho; 64,3% para os colegas de escola/faculdade; 70,8% para os profissionais de saúde9; 13,7% para outras pessoas; e 3% afirmaram não serem assumidos. Uma novidade da pesquisa de 2004 foi a decomposição dos dados sobre discriminações sofridas pelos LGBTs em sete diferentes situações, cujos resultados encontram-se entre parênteses: ser demitido ou preterido de emprego (11,7%); ser impedido de entrar ou receber tratamento diferenciado em locais de comércio e lazer (18%); ser mal atendido em serviços de saúde (11,1%); ser marginalizado por professores e/ou colegas de escola/faculdade (26,8%); ser excluído ou marginalizado no grupo de amigos/vizinhos (33,5%); ser excluído ou marginalizado do grupo familiar (27%); ser excluído ou marginalizado em ambiente religioso (20,6%). Dando mais consistência aos dados da pesquisa anterior, os locais onde ocorreram as agressões se distribuem da seguinte forma10: locais públicos (58,5%); casa (15,1%); escola/faculdade (10%); estabelecimento comercial (8%); trabalho (4,8%); outros (1,9%); e não se lembra ou não respondeu (1,6%). Os autores chamam atenção que a incidência de agressão em locais públicos é maior

entre

os

homossexuais

masculinos

(64,3%),

o

que

indica

que

a

“homossexualidade masculina é mais exposta a reações homofóbicas por parte de

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O que não inclui a totalidade dos indivíduos do sexo masculino que responderam ao questionário. Estes poderiam ainda se autoidentificar como “homossexual” ou “entendido”. 9

A pergunta sobre ser assumido para profissionais de saúde só foi incorporada na segunda edição da pesquisa. 10

Em números absolutos.

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desconhecidos e em ambientes públicos” (Carrara e Ramos, 2005:92). Ao atentar para as informações sobre discriminações de acordo com a faixa etária, verifica-se que os grupos mais jovens – 15-18 e 19-21 anos – são mais agredidos em casa (22,2% e 16,7%, respectivamente) e na escola/faculdade (18,5% e 16,7%, respectivamente). Recentemente, Gustavo Venturi e Vilma Bokany (2011) foram responsáveis pela pesquisa nacional Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil, cujo objetivo foi investigar situações de preconceito e discriminação sofridas por indivíduos LGBTs. O estudo foi realizado entre 2008 e 2009 e se dividiu em dois distintos universos: um composto pela população brasileira urbana adulta (16 anos ou mais), com um total de 2.014 entrevistas; e outro composto por pessoas que se declararam homossexuais, somando 413 entrevistas. Carrara e Lacerda (2011), ao analisarem os resultados desta pesquisa, apontam que 53% dos respondentes LGBTs afirmam ter sido vítimas de discriminação, principalmente entre os gays (60%) e os mais jovens (67%). Em relação aos locais onde estes se sentem discriminados, 44% dizem ter sido alvo do preconceito em locais de lazer e/ou consumo e 39% dentro do ambiente familiar. Perguntados se conheciam pessoas que haviam sofrido discriminações, 70% dos entrevistados afirmaram conhecer alguém que havia sido tratado com ironia e gozação; 62% sabiam de alguém que foi alvo de grosserias e/ou ofensas; 45% conhecem alguém que foi exposto a situação vexatória ou constrangedora; e 32% têm conhecimento de pessoas que foram ameaçadas ou aterrorizadas. Eles apontam também que a escolaridade tem um impacto significativo sobre a intolerância ou preconceito por orientação sexual e identidade de gênero. As pessoas mais escolarizadas manifestam, sistematicamente, menos rejeição em relação aos indivíduos LGBT. Em relação à vitimização, os dados também apresentam uma modulação pela escolaridade. Os relatos de violência diminuem consideravelmente quando comparados entre pessoas que tinham o ensino fundamental e o ensino médio, ou seja, da passagem da primeira faixa de escolaridade para a segunda. No entanto, essa tendência não se mantém quando comparadas as respostas daqueles que têm o ensino médio com aqueles que possuem o ensino superior. Com uma perspectiva qualitativa, Gomes (2008) buscou compreender como a homofobia regula a manifestação da homossexualidade em espaços públicos através de dez entrevistas em profundidade com jovens homossexuais entre 18 e 26 anos. Como conclusão, o autor apresenta a tese de que em uma sociedade na qual a 9

heterossexualidade é marcadamente valorizada, sendo encarada como única sexualidade normal e possível, ao homossexual são reservados dois caminhos: assumir-se e sofrer as consequências desse processo; ou manter-se “no armário”, ou seja, invisibilizar sua sexualidade. Como alternativa a esses caminhos iniciais, é mencionada uma terceira estratégia de enfrentamento à homofobia adotada por muitos LGBTs: a constituição de espaços específicos para a sociabilidade homossexual. Nos termos de Goffman (1988), trata-se da criação de espaços retirados, em que todos provavelmente compartilhem do mesmo estigma, o qual, portanto, acaba por se tornar uma característica normal. Gomes (2008) ressalta que apesar de nenhum dos entrevistados ter se declarado como vítima direta de violência física motivada pela orientação sexual, a possibilidade de sofrer este tipo de agressão aparece no relato de todos eles. Em última instância, tais declarações revelam o quadro de medo e insegurança em que a homossexualidade pode ou não ser manifestada. Uma vez que se tenha levantado o “estado da arte” das pesquisas sobre homofobia no Brasil, é preciso levar em consideraçãoas críticas tecidas por Prado (2010). O autor chama atenção para nossa falta de conhecimento acerca deste fenômeno: reconhecemos sua existência e seus efeitos, mas temos poucas informações sobre como ele opera; como se enraíza no imaginário social; e como se encadeia a outras formas de inferiorização. Para ele, a homofobia é um fenômeno complexo que “se articula em torno de emoções, condutas, normas e dispositivos ideológicos e institucionais” (Prado, 2010:11). Diante disso, o presente estudo intenta contribuir para a compreensão do funcionamento da homofobia a partir de entrevistas com homens jovens universitários autoidentificados como homossexuais. Os objetivos principais são: investigar a dinâmica de ocultamento/revelação da homossexualidade em espaços públicos por jovens gays; verificar quais emoções são suscitadas nas situações em que a homossexualidade se torna um elemento da interação; e o papel da homofobia na formação de uma identidade sexual. Deste modo, este estudo se insere no campo da antropologia das emoções ao analisar as dinâmicas emocionais presentes nos relatos dos jovens acerca de suas experiências relacionadas à homossexualidade, como por exemplo: o processo de descoberta de uma sexualidade divergente do padrão de normalidade; a assunção da orientação sexual (caso tenha ocorrido) e em quais esferas sociais; os locais eleitos para

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a manifestação da homossexualidade e as razões para tal; os comportamentos valorizados e evitados em diferentes espaços; entre outras. É adotada a “perspectiva contextualista” do estudo antropológico das emoções, conforme proposta por Catharine Lutz e Lila Abu-Lughod (apud Rezende; Coelho, 2010). Esta perspectiva se apoia na noção de discurso de Foucault, de modo que a fala tem com a realidade uma relação de formação, e não de mera referência. Em outras palavras, as emoções só existem em determinado contexto, na interação entre interlocutores, e são sempre referidas a este. É neste sentido que as emoções possuem uma dimensão micropolítica, pois influenciam e são influenciadas pelas relações macrossociais que modelam as relações interpessoais. Assim, as emoções são perpassadas por relações de poder, estruturas hierárquicas, etc. Dado que as emoções se constroem em interação, a perspectiva do interacionismo simbólico, representado aqui principalmente por Erving Goffman, figura como outra chave interpretativa para o fenômeno da homofobia. A corrente interacionista se pauta no estudo microssociológico das relações sociais estabelecidas entre os indivíduos, principalmente nas situações de interação face a face entre os sujeitos, que agem de acordo com símbolos, que são signos que transmitem informações sociais. No livro Estigma, Goffman (1988) procura compreender como indivíduos que possuem atributos que desqualificam suas identidades interagem com a sociedade mais ampla, os chamados normais, dando forma então ao que ele nomeia de contatos mistos. O autor nos traz também os diferentes mecanismos utilizados por pessoas estigmatizadas para lidarem com seu estigma no dia-a-dia da vida cotidiana. No presente trabalho, a homossexualidade é encarada como um estigma que engendra uma dinâmica de ocultamento/revelação da identidade sexual do indivíduo durante os contatos mistos. Através de entrevistas em profundidade, busca-se entender quais as estratégias empregadas pelos jovens homossexuais do sexo masculino para controlar a informação social transmitida nas situações de interação, ou seja, quais as técnicas de encobrimento a que os sujeitos recorrem. Os resultados deste estudo serão apresentados em capítulos, que por sua vez dividem-se em seções. No próximo capítulo serão apresentados os aspectos metodológicos da pesquisa empreendida, dividido em três seções: uma sobre a metodologia adotada, outra detalhando o instrumento de pesquisa utilizado e a terceira descrevendo o desenvolvimento da coleta de dados. O capítulo seguinte trata dos 11

pressupostos teóricos que nortearam a construção do objeto aqui analisado. Neste capítulo são discutidos os estudos interacionistas, de atntropologia das emoções e de gênero e sexualidade, como também a articulação entre estes campos na observação do fenômeno da homofobia. O capítulo posterior é uma descrição do universo pesquisado, ou seja, são elaborados resumos dos perfis dos entrevistados. Os dois últimos capítulos trazem os resultados da pesquisa, sendo o primeiro sobre a “economia emocional do armário” ou o cálculo feito acerca da possível adoção de uma identidade homossexual; e o segundo sobre o processo de construção desta identidade e as negociações implicadas na demonstração pública de uma orientação sexual divergente do padrão dominante.

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2. METODOLOGIA

2.1 A Metodologia de Pesquisa

O presente estudo adota a perspectiva qualitativa para investigação do discurso emocional que cerca o fenômeno da homofobia, de modo que a metodologia privilegiada para a elaboração deste foi a entrevista em profundidade. Os dados aqui analisados são oriundos de um conjunto de nove entrevistas realizadas com jovens estudantes de universidades públicas, residentes na cidade do Rio de Janeiro, sendo cinco de camadas médias e quatro de camadas populares. Foram definidos como recorte para a pesquisa os seguintes critérios: 1) o sexo biológico: todos deveriam ser homens; 2) a identidade sexual: foram entrevistados somente aqueles que se autodefinem como homossexuais11; 3) a faixa etária: todos deveriam ter entre 18 e 24 anos12; 4) a escolaridade: todos deveriam estar cursando ou ter terminado o ensino superior em instituição pública. A homofobia é um fenômeno que se manifesta de diversas formas, desde as mais sutis, como um olhar reprovador, até as mais flagrantes, como a agressão física (Borrillo, 2010). Conforme demonstrado na introdução, as pesquisas quantitativas sobre homofobia mostram que os tipos de discriminação e agressão sofridos por indivíduos LGBT são modulados por marcadores sociais de diferença, como sexo, cor, classe, idade, identidade sexual e de gênero, entre outros. Deste modo, foram eleitos os recortes de sexo, identidade sexual e faixa etária devido à dimensão deste estudo, uma vez que seria impossível dar conta de um fenômeno amplo em uma investigação monográfica. O recorte de escolaridade não foi previsto no início da pesquisa. Conforme os primeiros informantes foram contatados, notou-se que todos eles estavam cursando o ensino superior, muito devido às redes do pesquisador que foram acionadas na busca de possíveis entrevistados. Assim, este critério foi incorporado à investigação como forma de compor um perfil mais homogêneo de entrevistados. A escolha pela perspectiva qualitativa é perpassada pela visão do pesquisador da necessidade de aprofundar as questões levantadas nas pesquisas quantitativas sobre 11

Nesse escopo incluem-se todos os termos utilizados pelos entrevistados para caracterizar a homossexualidade masculina, como gay, bicha e veado. 12

A Organização Mundial de Saúde (1985) define a juventude como período dos 15 aos 24 anos. No entanto, a escolha por indivíduos com 18 anos ou mais é devida ao roteiro incluir perguntas sobre espaços de sociabilidade voltados para o público LGBT, que, geralmente, são restritos a pessoas maiores de idade.

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homofobia. Segundo Becker13 (1999), a coleta de dados sobre pessoas desviantes seria feita, idealmente, “observando-os enquanto estes realizam suas atividades características ou entrevistando-os sobre suas experiências” (Ibidem:153). Uma vez que os sujeitos de pesquisa não formam um grupo coeso, observá-los interagindo em determinados locais apresentou-se como inviável para responder as indagações da pesquisa. Outro fator que influenciou a escolha do método foi a existência de lugares que podem ser caracterizados como específicos para sociabilidade homossexual. Uma etnografia nestes locais possibilitaria a observação de diversas manifestações abertas de homossexualidade. Contudo, tal observação não retrataria fidedignamente as experiências de contatos mistos, uma vez que as relações e comportamentos estabelecidos nestes espaços de convívio desviante por vezes são diferentes daqueles praticados na maioria dos outros espaços e circunstâncias. Ademais, cumpre destacar que nos espaços não entendidos como de sociabilidade gay, as manifestações da orientação e da identidade sexual são parcas ou até mesmo imperceptíveis, de sorte que a coleta de dados seria um processo dispendioso e com muitas dificuldades, o que atrapalharia o desenvolvimento da pesquisa como um todo. Neste sentido, conduzir entrevistas pareceu-me a estratégia mais adequada para a boa condução deste estudo. Para Kvale (1996), as entrevistas são aconselháveis para estudar os significados que as pessoas atribuem ao mundo e às suas experiências. Goldenberg (2000) aponta como uma das vantagens das entrevistas a capacidade de fornecerem dados acerca de assuntos complexos, como as emoções. Segundo a autora, “a entrevista ou o questionário são instrumentos para conseguir respostas que o pesquisador não conseguiria com outros instrumentos” (Ibidem:90).

2.2 O Instrumento de Pesquisa

Por se tratar de uma pesquisa que busca compreender a construção das emoções a partir de situações de interação social, o roteiro de entrevista foi elaborado dando enfoque aos relatos de episódios concretos que compõem a biografia dos sujeitos, de modo a captar as percepções e avaliações dos mesmos. Para orientar a composição das questões a serem abordadas, foram observados os roteiros utilizados em outras investigações de temática assemelhada, em especial a de Gomes (2008). 13

Apesar de escrever com foco em condutas criminalizadas, algumas observações de Becker são úteis ao estudo de comportamentos desviantes de um modo geral.

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Conforme sugerido por Becker (1999), foram formuladas questões a respeito de como os sujeitos vivenciam suas experiências e regulam seu comportamento, e não por que o fazem desta forma. O roteiro de entrevista14 se divide em quatro blocos de perguntas: dados sociodemográficos; assunção da homossexualidade; dinâmica de ocultamento/revelação da homossexualidade em lugares públicos; e percepções sobre homofobia. O primeiro bloco objetiva levantar dados para a constituição do perfil socioeconômico dos entrevistados. São incluídas perguntas sobre idade, cor/raça, escolaridade, ocupação, local de moradia, renda, composição familiar e domiciliar, e religião (de socialização e atual). O segundo bloco se concentra em relatos sobre as situações vivenciadas pelo entrevistado ao assumir-se homossexual, caso isto já tenha ocorrido. Neste bloco encontram-se perguntas sobre como os entrevistados definem sua identidade sexual; o processo de descoberta da homossexualidade; as pessoas que têm conhecimento de sua orientação sexual, as reações destas à notícia e, em caso de não assumidos nas principais esferas sociais de atuação15, as razões elencadas para tal. O terceiro bloco, o mais extenso, reúne questões relativas à dinâmica de ocultamento e revelação da homossexualidade em espaços públicos. Além de narrativas de episódios, fundamentais para a análise interacionista, foram enfocadas também estratégias de manipulação das informações transmitidas quando em locais públicos. Este bloco buscou investigar ainda a opinião dos entrevistados acerca tanto da manifestação da homossexualidade em meio a pessoas desconhecidas, quanto da contrapartida, ou seja, a leitura que os informantes acreditam que as pessoas de grupos externos fazem acerca desta manifestação. O quarto e último bloco trata de percepções sobre o fenômeno da homofobia e seu impacto na vida cotidiana dos entrevistados. Neste bloco, foram solicitadas informações sobre conhecimento ou vivência de casos de discriminação por orientação sexual e como estes afetam a vida do sujeito. Foi pedido também que o entrevistado desse uma definição para o termo homofobia.

14

O roteiro de entrevista completo encontra-se no anexo deste trabalho.

15

Entendem-se aqui por principais esferas sociais de atuação dos jovens os amigos mais próximos, a família e os ambientes de trabalho e estudo.

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2.3 O Trabalho de Campo

O trabalho de campo se estendeu por volta de três meses, de agosto a meados de outubro de 2012, tendo por exceção a primeira entrevista, realizada em junho de 2012 com um roteiro preliminar. As entrevistas tiveram uma duração média de 45 minutos, exceto uma, com duração de uma hora e meia. Os entrevistados foram contatados a partir de redes de sociabilidade do pesquisador. Dentre estes, encontram-se conhecidos, amigos de terceiros e também o parceiro de um amigo próximo. A busca pelos entrevistados não apresentou dificuldades significativas. No geral, os sujeitos não ofereceram resistências em marcar encontros, os quais aconteceram todos de acordo com as preferências dos entrevistados. Os locais de entrevista variaram: quatro delas foram realizadas em salas vazias do campus Maracanã da UERJ; uma em uma sala vazia do campus de Botafogo da UNIRIO; uma na Fundação Casa de Rui Barbosa, em Botafogo; uma em um café de uma livraria no Centro do Rio; e duas foram realizadas nos domicílios dos próprios informantes16. Minha circulação por um “ambiente universitário”17 foi fundamental para o andamento do estudo. A facilidade no desenvolvimento da coleta de dados, assim como a escolha pelos sujeitos da pesquisa podem ser atribuídas ao meu perfil, o qual se assemelha ao dos investigados: jovem de 20 anos e estudante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Sobre trabalhos de campo com temáticas ligadas à sexualidade, Braz (2010) problematiza a percepção dos pesquisados acerca dos pesquisadores e as implicações que isto tem na realização do trabalho de campo. Em sua investigação sobre clubes de sexo para homens, constatou que sua preferência sexual era questionada durante as entrevistas que realizou online. É interessante notar que no âmbito da pesquisa aqui apresentada, minha orientação sexual não foi questionada em nenhum momento, sendo a homossexualidade algo presumido por todos os entrevistados18, inclusive entre aqueles que não me conheciam previamente. Esse fenômeno está previsto na literatura sobre o trabalho de

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Em ambas as situações os outros moradores da residência estavam ausentes.

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Ao utilizar este termo me refiro não somente aos espaços físicos das universidades, mas também às redes de amigos e conhecidos que são estabelecidas entre os estudantes. Isto foi inferido a partir de comentários como “você sabe como é”, utilizados frequentemente pelos entrevistados. 18

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antropólogos/as gays/lésbicas que realizam pesquisas entre homossexuais. Lewin e Leap (1996) ressaltam que uma das primeiras “suspeitas” que este tipo de trabalho pode provocar é sobre a sexualidade do/a pesquisador/a. No entanto, como em todo trabalho de campo, surgiram algumas dificuldades. Uma destas aconteceu enquanto entrevistava Danilo19. Ao contar sobre sua primeira experiência sexual, ocorrida aos oito anos de idade com um parceiro de 19/20 anos, fiquei abalado. Não consegui disfarçar minha inquietação com sua narrativa, o que foi percebido pelo entrevistado, que ficou visivelmente constrangido. Após uma breve pausa, tentamos retomar a entrevista como se nada tivesse acontecido, mas o clima artificial de confiança era notável para ambas as partes. Sobre este tipo de iniciação sexual, a obra de Weeks e Porter (1991) traz uma significativa contribuição. Os autores analisaram entrevistas realizadas com quinze homens homossexuais que viveram no período “Betwen the Acts” (1885-1967), em que todas as formas de homossexualidade masculina eram ilegais na Grã-Bretanha. Nas narrativas destes sujeitos, não é incomum o relato de primeiras experiências sexuais semelhantes. Além das “facilidades” procedentes da minha circulação pelo “ambiente universitário”, surgiu também um revés. O pertencimento às mesmas redes e faixa etária, somando-se às suposições sobre minha sexualidade deu margem a insinuações sexuais, o que ocorreu quando um dos entrevistados se ofereceu para me pagar uma cerveja. Intepretando este gesto como uma “cantada”, me vi obrigado a inventar uma desculpa para poder me retirar. Após a sistematização dos dados e a elaboração de uma descrição dos perfis 20, retornei aos entrevistados a fim de checar informações que por ventura tenham ficado mal esclarecidas. Aproveitei a oportunidade para perguntar se concordavam com o que foi escrito e se achavam que sua privacidade estava assegurada no texto proposto. Os informantes solicitaram algumas pequenas alterações e/ou correções, como omissão da cidade natal, datas de momentos importantes da trajetória, etc., mas no geral aceitaram o que foi escrito.

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Os nomes dos entrevistados foram alterados por uma questão de privacidade.

20

Os perfis dos entrevistados encontram-se no capítulo Descrição do Universo de Pesquisa deste trabalho.

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3. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

Conforme exposto na introdução, o objeto de estudo deste trabalho se articula em torno de três campos do conhecimento das ciências sociais: os estudos sobre interação e desvio; a antropologia das emoções, em especial os estudos sobre o medo; e as investigações acerca da sexualidade, de gênero e, mais especificamente, da homofobia que afeta homens homossexuais. Neste capítulo serão abordados os pressupostos teóricos que nortearam a construção da pesquisa.

3.1 O Interacionismo Simbólico e o Estigma

O Interacionismo Simbólico é uma corrente sociológica desenvolvida na chamada Escola de Chicago a partir dos anos 1960. Esta corrente tem como foco o estudo microssociológico das relações sociais estabelecidas entre os indivíduos, principalmente nas situações de interação. De acordo com os interacionistas, os atores sociais agem baseados em símbolos, os quais são signos que transmitem certas informações. Estas informações são interpretadas pelos outros sujeitos que compõem a interação e definem a situação, de forma a produzir expectativas de ações de ambas as partes (Goffman, 1975). A corrente interacionista é aqui representada marcadamente pelas obras de Erving Goffman. O autor propõe uma perspectiva teatral para a análise das cenas de interação social em que cada um dos atores representa um determinado papel social. Em uma de suas obras, Goffman (1988) trata dos estigmas. Segundo ele, um estigma é um atributo que se contrapõe ao padrão estabelecido pela sociedade. Como marca da corrente interacionista, Goffman afirma também que um estigma é algo contextual, ou seja, só existe em relações sociais em que um padrão de normalidade é definido. Assim, um estigma é um elemento que “contamina” a identidade do indivíduo. Um dos componentes de sua teoria é a noção de identidade social, que engloba características subjetivas, como os adjetivos que qualificam um sujeito; como também elementos estruturais, como por exemplo, a ocupação de alguém. Deste modo, existe uma identidade social virtual, que compreende as expectativas sociais acerca de uma pessoa; e uma identidade social real, que é quem a pessoa realmente é. A estigmatização é produzida a partir da tensão entre estas duas identidades (Ibidem). 18

Para Goffman, a estigmatização faz parte do processo de categorização de “pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias” (Ibidem: 11). Com isso, as categorias servem como base para a organização social, uma vez que existe uma expectativa sobre os tipos de pessoas que serão encontradas em locais específicos. Um dos principais pontos deste ensaio de Goffman é compreender como indivíduos que possuem atributos que desqualificam suas identidades interagem com a sociedade mais ampla, os normais. O autor nomeia essas situações como contatos mistos, e a mera previsão destes encontros é capaz de mobilizar estigmatizados e normais a reorganizarem suas rotinas, de modo a evitar que eles aconteçam. Segundo ele, os estigmatizados costumam passar por três tipos de locais em sua rotina: proibidos, onde pessoas do seu “tipo” não são permitidas e, caso venham a ser descobertos, serão expulsos; públicos, onde há um esforço conjunto em ignorar a existência de um estigma; e retirados, onde o estigma não é relevante, provavelmente por ser compartilhado por todos os presentes ou pelo menos pela grande maioria. Para compreender melhor as situações de contatos mistos, é preciso salientar uma importante distinção entre os indivíduos estigmatizados: alguns deles são desacreditados, cujo estigma é imediatamente perceptível; e outros são desacreditáveis, ou seja, pessoas cujo estigma pode ser escondido (Ibidem: 14). No caso dos desacreditáveis, estes podem realizar a manipulação da informação social transmitida a fim de manter seu estigma em segredo. Goffman define este processo como o encobrimento, que, quando acionado, dá início a uma dinâmica de ocultamento e revelação de informações que reforçam determinados aspectos da identidade social. Segundo este autor, o encobrimento é sempre relativo, pois na medida em que o indivíduo se esconde de determinados grupos, ele é obrigado a se expor para outros (Ibidem: 84-5). Outra importante noção apresentada por Goffman é a de carreira moral, que compreende processos semelhantes de aprendizado que os estigmatizados passam acerca de sua condição e de concepção do eu. Este processo é dividido em etapas: a primeira delas corresponde à incorporação dos valores dos normais; a segunda se refere ao aprendizado da condição de estigmatizado e às consequências de possuir um estigma; a terceira etapa diz respeito ao aprendizado da manipulação da informação (no caso dos desacreditáveis) ou manipulação da tensão (no caso dos desacreditados). O autor argumenta que o aprendizado do encobrimento é um ponto crítico da carreira moral. É 19

possível que depois de aprender a esconder-se, o indivíduo renegue o encobrimento, julgando não mais precisar dele. Nesse ponto, a revelação voluntária é encarada como um reflexo de uma maturidade adquirida (Ibidem:113). No presente trabalho, entende-se que a homossexualidade representa um atributo estigmatizante, ao passo que a heterossexualidade é considerada o padrão de normalidade. Desta forma, as situações de interação entre indivíduos de distintas orientações sexuais correspondem às situações dos contatos mistos. Ainda de acordo com Goffman (Ibidem), os contatos mistos são marcados por sentimentos de angústia e insegurança de ambas as partes, que nunca sabem o que realmente uma pensa sobre a outra. Considerando que a dinâmica de ocultamento e revelação de informações implica também uma dinâmica emocional, será exposto a seguir um breve panorama sobre o estudo das emoções no campo da antropologia.

3.2 A Antropologia das Emoções

O primeiro esforço que precisa ser feito para transformar as emoções em objeto de reflexão das ciências sociais é romper com a visão do senso comum de naturalidade e espontaneidade que cerca os sentimentos na cultura ocidental. Segundo Rezende e Coelho, “os sentimentos são tributários das relações sociais e do contexto cultural em que emergem” (2010:11). É a partir deste ponto que se encadeiam a teoria interacionista e o estudo da antropologia das emoções. Para as autoras, uma parte da literatura de ciências sociais trata as emoções como um elemento da interação. Neste sentido, há um empenho em relativizar a visão presente no imaginário social de que os sentimentos fazem parte da “natureza” do indivíduo. No entanto, alguns autores pensam as emoções como um fenômeno subjetivo, de modo que caberia ao processo de socialização somente regular as expressões dos sentimentos. Em uma importante obra para o estudo das emoções a partir de um olhar antropológico, Mauss (1980) analisa os rituais mortuários de tribos australianas. O título “A Expressão Obrigatória dos Sentimentos” diz bastante sobre o que o autor propõe, pois, segundo ele, a expressão dos sentimentos possui um caráter ritual. Contudo, esse caráter ritual não retira a espontaneidade dos sentimentos, uma vez que eles são assim vividos pelos sujeitos.

20

As autoras Lila Abu-Lughod e Catharine Lutz (apud Rezende; Coelho, 2010) realizaram uma revisão das perspectivas de estudos da antropologia das emoções e apontaram a existência de três vertentes: o essencialismo, que se apóia na psicologia e encara as emoções como algo da essência do indivíduo; o historicismo, que admite uma construção social das emoções de acordo com os diferentes períodos da história; e o relativismo, que define a construção das emoções de acordo com as distintas sociedades contemporâneas. As autoras propõem então um quarto modelo, chamado de contextualismo. Neste modelo, as emoções são encaradas como produtos de um contexto de interação social e sempre se referem a este. Esta proposta está baseada na noção de discurso, segundo os escritos de Foucault, de forma que a fala mantém com a realidade uma relação de formação, e não de mera referência. É neste sentido que as emoções possuem uma dimensão micropolítica, pois influenciam e são influenciadas pelas relações macrossociais que modelam as relações interpessoais.

Em

outras

palavras,

possuem

um

“potencial

para

dramatizar/alterar/reforçar a dimensão macrossocial em que as emoções são suscitadas e vivenciadas” (Rezende; Coelho, 2010:75). Assim, “as emoções surgem perpassadas por relações de poder, estruturas hierárquicas ou igualitárias, concepções de moralidade e demarcações de fronteiras entre grupos sociais” (Ibidem:78). É a partir desta capacidade que o estudo da antropologia das emoções contribui para o entendimento de temas mais amplos das ciências sociais. No caso do estudo aqui apresentado, busca-se entender como a gramática emocional envolvida na dinâmica de ocultamento/revelação da homossexualidade funciona para reforçar/dramatizar o contexto heteronormativo em que as sexualidades são vivenciadas, assim como a forma pela qual as emoções traduzem regulações dos espaços públicos. Ao levar em consideração o contexto de estigmatização que cerca a homossexualidade, Castañeda (2007) argumenta que não é incomum que os homossexuais desenvolvam visões negativas acerca dos desejos sexuais por pessoas do mesmo sexo, e consequentemente, de si mesmos. Isso caracteriza a internalização da homofobia. Autores como Nunan, Jablonski e Féres-Carneiro (2010) definem a homofobia internalizada como “a aceitação pelos indivíduos homossexuais das atitudes negativas veiculadas pela sociedade em relação à homossexualidade” (Ibidem: 256), o que, em última análise, reconhece e dá conformidade ao tratamento desigual conferido às 21

diferentes orientações sexuais. Salienta-se que, muitas vezes, a homofobia internalizada está mais ligada a uma rejeição social antecipada do que com episódios concretos de discriminação, o que demonstra seu potencial modelador de condutas em público. O preconceito sexual internalizado é manifestado em diversas atitudes como o isolamento social, o questionamento sobre seu valor como indivíduo, o ódio por si mesmo; e engendram sentimentos como medo, vergonha, culpa, insegurança, ansiedade, etc. Esses autores apontam como os principais efeitos da homofobia internalizada a dificuldade em assumir a homossexualidade e a resignação frente às discriminações sofridas (Ibidem). Eles apontam que o processo de internalização do preconceito começa na infância, durante a socialização, quando os valores sociais estão sendo aprendidos. Dentre os sintomas da homofobia internalizada destacam-se o sentimento de vergonha e o desejo de manter a homossexualidade oculta. A vergonha engendra uma tentativa de manter o motivo de sua origem encoberto (Ibidem: 257). O encobrimento é um mecanismo de defesa utilizado quando o indivíduo não assume sua orientação sexual para todas as pessoas com as quais convive. Através dele, o sujeito adota uma identidade pública que difere de suas “práticas reais” e interage com as pessoas em função desta. O encobrimento da homossexualidade pode manifestar-se através de diferentes estratégias, técnicas, comportamentos, como levar amigas a eventos familiares, adotar condutas tipicamente associadas à masculinidade, evitar o contato com pessoas que transpareçam a homossexualidade, e até mesmo manter relacionamentos heterossexuais (Ibidem: 259). Sobre este ponto, a obra de Deborah Gould (2001) traz uma inestimável contribuição. A autora estudou como a epidemia de AIDS causou uma mudança na forma de militância do movimento de lésbicas e gays nos Estados Unidos a partir de 1986, com as ações do ACT UP. Em seu texto, ela busca demonstrar como a homossexualidade é marcada por uma ambivalência de aceitação e rejeição da orientação sexual homossexual, o que suscita diferentes emoções contraditórias: simultaneamente, homossexuais tendem a sentir medo da rejeição social, vergonha e culpa por seus desejos homossexuais, orgulho e alegria de ser quem são, e raiva da sociedade opressora. Além da ambivalência sobre si mesmos, os gays apresentam também uma ambivalência de sentimentos em relação à sociedade heterossexista dominante: em alguns momentos tentam igualar-se aos heterossexuais, e em outros buscam se distanciar deles. É importante notar que nos esforços para serem aceitos 22

como iguais pela sociedade acabam permitindo que as práticas homossexuais sejam condenadas em alguma medida (Ibidem:138).

3.3 Os Estudos sobre Medo

Um dos principais sentimentos que serão trabalhados neste estudo é o medo. Em um levantamento sobre o medo na literatura das ciências sociais foram estudadas as obras de Elias (1993), Bauman (2008) e Delumeau (2009). Elias (1993) articula as ideias de vergonha e medo. Para ele, a vergonha nada mais é que o medo da degradação social (Ibidem: 242). O par vergonha/medo não é encarado somente como um conflito entre o indivíduo e as normas sociais, mas também um conflito interno, pois o indivíduo internaliza tais normas e passa a realmente se sentir como inferior. Além da vergonha sobre si mesmo, há também a vergonha por terceiros, chamada de embaraço, o qual caracteriza situações em que alguém ameaça romper ou rompe com certas normas sociais. Na medida em que o processo civilizador pacificou a conduta humana, houve uma diminuição do perigo externo e um aumento do perigo interno, uma vez que não era mais preciso um agente regulador externo. Bauman (2008) argumenta que o medo refere-se ao desconhecido, à incerteza. Dessa forma, o medo da morte se apresenta como o “medo original”, que é compartilhado por todos os seres vivos. O que diferencia o homem do resto dos animais é sua capacidade de sentir um “medo derivado”, que é influenciado pelas expectativas do comportamento em sociedade. O medo derivado é definido como a sensação de ser suscetível, que independe da presença de uma ameaça. Esse sentimento é oriundo de experiências culturais anteriores que são utilizadas para modelar a conduta humana. A suscetibilidade combina dois elementos: a insegurança, que trata da oportunidade de correr algum perigo; e a vulnerabilidade, que é consequência da internalização da falta de confiança nas chances de defesa (Bauman, 2008:9). Os perigos que geram o medo são de três tipos: ameaças ao corpo e às propriedades; ameaças à ordem social que integra a sociedade; ameaças ao lugar do indivíduo no mundo (Ibidem:10). O sentimento do medo é frequentemente dissociado do perigo real, assim como as reações ao medo podem ser dirigidas a outras coisas e/ou pessoas que não representam a verdadeira ameaça. No mundo líquido-moderno as fontes de perigo são intermináveis, todos os dias surgem novas ameaças reais ou imaginadas; o medo se torna ubíquo. Contudo, são 23

desenvolvidas diversas estratégias para lidar com o perigo iminente (Ibidem:11-12). A função da sociedade é de tentar dar tolerabilidade ao medo, uma vez que ele não pode ser evitado. Em suma, o medo é encarado como uma peça fundamental na manutenção da ordem social (Ibidem:13). Delumeau (2009) adota uma visão essencialista/historicista do sentimento de medo ao afirmar que este é universal e compreende um importante papel no desenvolvimento das sociedades ocidentais modernas, pois “não só os indivíduos tomados isoladamente, mas também as coletividades e as próprias civilizações estão comprometidos num diálogo permanente com o medo” (Ibidem:12). Este autor relaciona o medo à ideia de segurança, uma vez que a segurança é um elemento fundamental para a manutenção das relações sociais. Neste sentido, o medo pode ser entendido como uma resposta às situações de perigo que obedecem às lógicas das regras sociais.

3.4 Sexualidade e Gênero

Uma investigação acerca da homossexualidade ou de qualquer temática ligada a esta não pode ser dissociada de uma análise mais ampla sobre sexualidade e gênero. A sexualidade figura como um dos grandes temas das ciências sociais há algumas décadas, tendo como um marco a publicação de The Sexual Life of Savages em 1929, uma etnografia clássica de Malinowski. Heilborn e Brandão (1999) afirmam que a sociologia e a antropologia têm tomado a sexualidade como objeto de estudo de diferentes formas, sendo a primeira responsável por inquéritos sobre o comportamento sexual da população, enquanto a segunda se encarrega de fornecer “descrições detalhadas de valores e práticas de grupos sociais demarcados” (Ibidem:7). As autoras argumentam que o debate sobre a sexualidade concentra-se no enfrentamento entre duas posições distintas: o essencialismo e o construtivismo social. O essencialismo é marcado pela defesa da sexualidade como algo inerente à natureza humana, oscilando entre um mecanismo fisiológico da reprodução humana e uma manifestação de uma pulsão sexual. Por outro lado, o construtivismo social busca relativizar esse “instinto sexual” e argumenta que a sexualidade e o significado das experiências sexuais são atrelados a formações culturais específicas. Loyola (1999) identifica que existem dois tipos de construtivismo social: um deles é chamado de construtivista-autonomista, que é culturalista e confere à 24

sexualidade um estatuto autônomo; e outro seria um construtivismo-relacional, que admite uma autonomia relativa da sexualidade, uma vez que esta é pensada em relação às outras esferas sociais às quais sempre esteve ligada. Heilborn e Brandão (1999) apontam o “gênero como categoria fundante no modo como a experiência sexual é vivenciada pelos sujeitos, na medida em que as trajetórias masculinas e femininas são radicalmente distintas” (p. 11). As autoras atribuem essa diferença não aos respectivos aspectos corporais, mas sim às expectativas de experiências sexuais marcadas pelo gênero na tradição ocidental. De acordo com Foucault (1977), as relações sociais no ocidente moderno se configuram a partir de discursos emitidos pelo indivíduo que produzem verdade sobre si mesmo, e essa verdade se encontra no sexo. Em outras palavras, as práticas sexuais e, em alguma instância, a sexualidade revelam a natureza da pessoa. É neste contexto que o dispositivo da sexualidade é acionado como estratégia discursiva de individualização e a identidade sexual, fundamentada nas categorias de homossexualidade e heterossexualidade, adquire relevância no processo de subjetivação dos sujeitos (Heilborn, 1996:138).

3.5 Homossexualidade: modelos identitários

Em sua pesquisa sobre a relação entre homossexualidade e religiões afrobrasileiras em Belém, Fry (1982) descobriu que o conceito de “homossexualidade” e a categoria “homossexual” não davam conta das representações sobre a sexualidade masculina vigentes naquela localidade. Segundo ele, “o personagem social chamado de ‘bicha’ em Belém nada tem em comum com um outro personagem social chamado ‘homossexual’ ou ‘entendido’ ou gay em áreas das classes médias das grandes metrópoles brasileiras” (Ibidem:88). Deste modo, a construção da sexualidade masculina no Brasil está relacionada a outros marcadores sociais, como classe, idade e localidade; e também varia historicamente. O autor propõe que existem quatro elementos que compõem as identidades sexuais-afetivas das pessoas. São eles: 1) sexo fisiológico (macho ou fêmea); 2) papel de gênero (masculino ou feminino); 3) comportamento sexual (atividade ou passividade); 4)

orientação sexual

(heterossexualidade, homossexualidade ou

bissexualidade). Estes quatro elementos se combinam de diferentes maneiras e formam assim sistemas culturais distintos que dão sentido às identidades sexuais. Neste sentido, 25

os machos (no sentido de sexo fisiológico) da periferia de Belém são divididos em duas categorias: “homens” e “bichas”. Os “homens” são machos, masculinos, ativos e heteroou homossexuais; já as “bichas” são machos, femininos, passivos e homossexuais. A comparação destas distintas identidades revela que a diferença fundamental se encontra nos papéis de gênero e comportamentos sexuais adotados, sendo irrelevante à orientação sexual. Em contraposição a esses dois modelos de identidade sexual, Fry (Ibidem) aponta a categoria do “entendido”, surgida no Brasil por volta de 1960 entre as classes médias do Rio de Janeiro e São Paulo. Neste modelo, os elementos da identidade sexual se conjugam da seguinte forma: machos, masculinos ou femininos, ativos ou passivos, e homossexuais. É possível notar então que o elemento diferenciador se desloca do papel de gênero e do comportamento sexual para a orientação sexual. É importante frisar que esses modelos não são excludentes e, como mencionado por Fry (Ibidem), correspondem a sistemas culturais distintos que operam entre diferentes grupos da sociedade. No atual contexto urbano, podemos verificar a superposição de distintos sistemas de valores e significados que são utilizados para dar sentido às experiências vivenciadas pelo sujeito. Isto posto, é preciso demonstrar a distinção existente entre o Gay e o HSH, ou entre o “ser e o estar” homossexual. O HSH – “Homens que fazem Sexo com Homens” – é um conceito que tem sua difusão nos campos de estudos médicos. Essa categoria é fruto do desenvolvimento das pesquisas médicas sobre a homossexualidade em um contexto pós-epidemia de AIDS e representa o auge do deslocamento da homossexualidade do indivíduo para a relação. Com isso, HSH significa “estar homossexual”, de forma que a sexualidade é tomada como somente mais um âmbito da vida do sujeito. Em contrapartida, o indivíduo gay é aquele que possui a homossexualidade como um norte para seu comportamento, como um estilo de vida. A categoria gay é consequência das atitudes de orgulho e visibilidade pregadas pelo movimento LGBT desde seu surgimento em meados da década de 1970 (Facchini, 2005). Para estas pessoas, a sexualidade não se refere somente ao exercício erótico, mas influencia o modo de ver o mundo e de se relacionar com outros indivíduos. Assim, a sexualidade assume um aspecto identitário, pois, através de constantes testemunhos, o sujeito produz um discurso verdadeiro sobre si mesmo, como mencionado anteriormente a partir da obra de Foucault (1977). 26

Tal distinção terminológica pode ser verificada na cartilha Brasil sem Homofobia do Ministério da Saúde. No texto, homossexuais – no sentido médico do HSH – são “aqueles indivíduos que têm orientação sexual e afetiva por pessoas do mesmo sexo”; e os gays seriam aqueles que “além de se relacionarem afetiva e sexualmente com pessoas do mesmo sexo, têm um estilo de vida de acordo com essa sua preferência, vivendo abertamente sua sexualidade” (Conselho, 2004:30).

3.6 Homofobia, Sexismo, Heterossexismo e Heteronormatividade

Uma vez demonstrado o que está sendo entendido aqui por sexualidade, gênero e identidade sexual, é possível passar à discussão do fenômeno da homofobia. Quando se fala em homofobia, principalmente na mídia, as agressões físicas sofridas pela população LGBT por conta de sua orientação sexual são a expressão privilegiada deste fenômeno. Contudo, episódios como estes são somente a forma mais flagrante que a homofobia pode adotar. Manifestações sutis, como um olhar reprovador, também são comuns e, muitas vezes, imperceptíveis. Teoricamente, a homofobia pode ser definida em poucas palavras: trata-se de ações discriminatórias perpetradas contra homossexuais, como mostrado por Borrillo (2010). No entanto, o entendimento do conceito vai muito além: constitui-se em uma violência que pode assumir dois sentidos: o físico, o qual atinge diretamente a integridade do corpo do indivíduo, podendo chegar ao homicídio nos piores casos; e o não físico, o qual se configura como uma espécie de violência simbólica, composta por xingamentos, tratamento diferenciado, impedimento de participação em instituições, etc., que atinge cotidianamente milhares de homossexuais. Desta forma, o termo homofobia, como extensamente divulgado na mídia, dá conta de duas dimensões: uma psicológica, de caráter afetivo, manifestada individualmente através da rejeição dos homossexuais; e outra cognitiva, na qual se repudia a homossexualidade como fenômeno social (Ibidem:22). Segundo o autor, algumas formas sutis de homofobia parecem tolerar as relações homossexuais, mas relegam a elas uma posição marginal, o que corresponde à hierarquização da sexualidade. Assim, a homossexualidade é aceita, desde que mantida na vida privada dos sujeitos. No Brasil, o termo homofobia é empregado para designar o preconceito e a aversão às homossexualidades para fins tanto políticos como analíticos, conforme 27

demonstrado por Prado (2010). De acordo com o já demonstrado na introdução, o autor chama atenção para nossa falta de conhecimento acerca deste fenômeno. Para ele, a homofobia é um fenômeno complexo que “se articula em torno de emoções, condutas, normas e dispositivos ideológicos e institucionais” (Ibidem:11, os grifos são meus). Conforme exposto na introdução deste trabalho, as pesquisas sobre homofobia revelam que este é um fenômeno que possui diversas facetas, presente, de diferentes formas, em esferas individuais e institucionais. Todas elas apontam para a imbricação da discriminação homofóbica com outros marcadores sociais de diferença como gênero, identidade sexual, idade, classe e raça/cor. Especificamente, Ramos e Carrara (2006) verificam que a violência letal atinge de forma mais agravada indivíduos cuja homossexualidade é mais evidente e entre aqueles que conjugam diversos estigmas, principalmente travestis. O preconceito de cunho homofóbico tem suas origens no sexismo, marcadamente presente na sociedade brasileira. Os papéis de gênero se confundem aqui com papéis sexuais. Por isso, é tão difícil pensar em “homens femininos” ou em “mulheres masculinizadas” que possuam uma orientação sexual heterossexual. Em outras palavras, no Brasil há uma demarcação das características masculinas e femininas que são baseadas na suposta diferenciação biológica entre os sexos. Assim sendo, os homossexuais são acusados de romper com esse paradigma, uma vez que a homossexualidade é capaz de fazer com que homens assumam uma postura passiva, que é destinada às mulheres; e que mulheres assumam uma postura ativa, reservada aos homens (Fry e MacRae, 1985). De acordo com Borrillo (2010) a divisão binária de gêneros e o desejo heterossexual são dispositivos de reprodução da ordem social, não somente da reprodução biológica da espécie humana. Daí a visão da homofobia como uma “guardiã das fronteiras tanto sexuais (hétero/homo), como de gênero (masculino/feminino)” (Ibidem:16). De modo semelhante, Welzer-Lang (2001) afirma que a homofobia atinge pessoas que representam papéis sociossexuais que desarticulam os pares binários de sexo e gênero, principalmente em sociedades marcadas por uma forte dominação masculina. Segundo este autor, a homofobia nada mais é que uma manifestação do sexismo. O termo homofobia, inobstante estar sedimentado e ser largamente utilizado tanto pelos leigos quanto por aqueles que estudam o tema, sofre críticas. Neste sentido, segundo Nunan (2003), o termo corrente pode transmitir a falsa ideia de que o 28

preconceito contra homossexuais pode ser mais bem compreendido como uma forma de psicopatologia, um tipo de fobia individualizada, como um medo ou aversão irracional. Em sentido oposto, o termo heterossexismo, mais aparentado ao machismo e ao racismo, descreveria um sistema ideológico, sociocultural e institucional no qual a homossexualidade é apresentada como inferior à heterossexualidade, dando prevalência ao aspecto coletivo do preconceito, em detrimento das ações individuais. Outra crítica relevante é aquela apresentada por Junqueira (2007). Para o autor, a homofobia é um conceito cujo uso é bem difundido. No entanto, existem diferentes instâncias que o põem em prática, de modo a dificultar um entendimento comum do fenômeno. Ele acredita também que a homofobia é um conceito polissêmico, ou seja, é construído a partir do diálogo explícito ou implícito entre diversos atores sociais. Segundo Junqueira (Ibidem), o debate acerca da homofobia acontece em termos médicos: enquanto alguns ainda pensam a homossexualidade como uma patologia, os defensores dos direitos LGBT afirmam que é a homofobia que é uma doença que precisa ser combatida. O autor vê esse enfoque no discurso médico como problemático, pois é preciso pensar o contexto histórico, social e cultural no qual estes conhecimentos são produzidos. Ele entende que a homofobia busca legitimar uma combinação única de sexogênero-sexualidade centrada na heterossexualidade. Contudo, é difícil perceber a homofobia como relacionada às questões de gênero, o que é ilustrado pela frequente referência da homofobia como agressões sofridas por homossexuais masculinos. Diante disso, multiplicam-se os termos como lesbofobia e transfobia para se referir às violências específicas sofridas por indivíduos que possuem uma determinada identidade sexual. Uma alternativa possível seria a substituição do termo homofobia por heteronormatividade, que seria um mecanismo regulador e produtor da subjetividade e das relações sociais que institui a heterossexualidade como única expressão sexual aprovada e reconhecida. Entretanto, apesar da noção de heteronormatividade oferecer possibilidades de análises mais ricas e de ações mais centradas no enfrentamento da discriminação por orientação sexual, a troca de termos seria improdutiva, levando em consideração o atual quadro político (Junqueira, 2007).

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4. DESCRIÇÃO DO UNIVERSO DE PESQUISA

Renan tem 18 anos, é branco, de classe média. Atualmente não professa nenhuma religião, mas foi criado no catolicismo. Ele está no 2º período do curso de Direito e reside na casa da família de um amigo em um bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro; tendo nascido e passado sua infância e adolescência em outra cidade do Estado do Rio de Janeiro. Além de sua mãe, ele identifica como outros familiares importantes seus avós maternos, que sempre estiveram presentes em sua criação. Em alguns finais de semana vai a para casa de sua mãe em sua cidade natal, com quem sempre morou. Seus pais se separaram há muito tempo, de modo que ele não sabe precisar quantos anos tinha. Ele conta que começou a perceber desejos sexuais por pessoas do mesmo sexo com 15/16 anos ou um pouco antes, apontando como significativa a atenção que dava aos homens quando assistia a filmes pornográficos. Em seus relatos, destaca-se o fato de que mesmo após ter tido experiências sexuais com pessoas do mesmo sexo, não conseguia aceitar este desejo, pois recusava se encaixar em um estereótipo gay, o que identificava como única opção. Suas primeiras experiências sexuais aconteceram aos 11/12 anos com um amigo. No momento da entrevista, Renan disse não ter mais problemas com sua sexualidade, pois entendeu que “não é preciso deixar de ser homem para ser homossexual”. Ele conta ser assumido somente para seus amigos mais próximos e que estes reagiram com surpresa, pois segundo o informante, ele “não dá muita pinta”. Ele cita que gostaria de ser assumido para seus familiares, mas tem medo da reação dos mesmos caso contasse. Com relação aos espaços públicos, Renan comenta que vive seu relacionamento do modo “mais escondido que dá”; para ele, manifestar sua orientação sexual em público implica uma perda de respeito. Por fim, ele comenta que tem tido menos bloqueio em demonstrar sua sexualidade por estar vivendo longe de seu núcleo familiar. Vinicius é um estudante do 3º período de Letras de classe popular. Ele tem 18 anos, é estagiário e se identifica como pardo/latino, pois é filho de imigrantes latinos. Ele mora em uma região do Centro do Rio. Lá moram ele, seus pais, uma imigrante latina com um filho pequeno, e outros dois rapazes. Seu pai não tem religião e sua mãe é frequentadora do Salão das Testemunhas de Jeová; já ele diz não possuir religião e foi batizado na igreja de sua mãe. Seu irmão mais velho trabalha e mora com parentes fora do Rio de Janeiro. Vinicius conta que nunca aprendeu as “brincadeiras de menino”, como futebol e bolinha de gude; e que sempre foi muito quieto e reservado na escola, o 30

que fazia com que todos caçoassem dele. Aos 13/14 anos notou um interesse sexual por um amigo. Esse desejo produziu um conflito acerca de sua identidade de gênero que ele traduziu por “será que eu sou a mulher de outro homem?”. Sua primeira experiência sexual com alguém do mesmo sexo ocorreu aos 14/15 anos, com um parceiro de 19/20 anos que ele havia conhecido através de um bate-papo na internet. O encontro foi no apartamento do parceiro. Após essa primeira experiência, ele formula a seguinte resposta a sua indagação inicial: “eu sou um homem que gosta de outros homens”. Tais representações funcionam para afirmar sua declaração de que exerce um comportamento sexual ativo, ou seja, que prefere penetrar seus parceiros sexuais a ser penetrado. Em relação à visibilidade de sua orientação sexual, Vinicius diz que somente seu namorado, uma amiga da faculdade e alguns conhecidos da internet sabem sobre ele; ele diz que gostaria que seus pais soubessem, mas tem medo das possíveis reações deles, pois ambos reprovam a homossexualidade. Para ele, a homossexualidade não precisa ser demonstrada nos espaços públicos, principalmente quando há crianças por perto, de modo que seu relacionamento é vivido preferivelmente em ambientes privados ou de pouca circulação. Manter sua identidade sexual afastada dos lugares públicos é encarado como uma forma de respeitar o espaço alheio. Um ponto importante da entrevista de Vinicius é que ele considera o fato de não ser assumido como algo que o faz vivenciar uma dupla identidade, uma vez que ele se apresenta de diferentes maneiras a depender do ambiente. Bernardo tem 23 anos, é negro e de classe popular. Embora já trabalhe como professor de Biologia, ainda não concluiu o bacharelado em Biologia. Ele reside com sua mãe e seu padrasto em um apartamento na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Seus pais se separaram quando ele tinha três anos e sua mãe é casada há 7/8 anos com o padrasto. Bernardo tem ainda dois irmãos mais novos, ambos filhos de seu pai com outras mulheres. O informante conta que teve uma formação católica, mas que atualmente ele apenas “acredita em deus”. Ele diz que sente atração por pessoas do mesmo sexo desde criança. Desde os 13 anos ele tem experiências sexuais (beijos e carícias) com outros rapazes e aos 17 anos teve sua primeira transa com um homem. Nessa mesma época ele contou para sua mãe, que ficou triste e o pressionou a procurar terapia com um psicólogo. Seu pai também reagiu negativamente. Bernardo diz que fez terapia durante dois anos para tentar desenvolver seu “lado heterossexual”; para ele, somente seria possível ter certeza de ser gay depois de fazer sexo com mulheres. No decorrer da terapia, ele continuou tendo experiências sexuais com homens, mas contava 31

aos amigos que estava “saindo com mulheres”. Com 19 anos, Bernardo conta que começou a “se aceitar”. Neste período, ele largou a terapia e aos poucos foi se assumindo para seus amigos. Atualmente, ele diz que sua mãe não tem mais problemas com sua sexualidade, mas que seu pai não gosta que o assunto seja comentado, principalmente durante as reuniões de família. Com relação aos seus amigos, o informante relata que a maioria reagiu bem e disse que já desconfiava; somente um amigo heterossexual se afastou. O único ambiente que ele diz não ser assumido é o profissional. No que se refere à manifestação da homossexualidade nos espaços públicos, o entrevistado diz que as pessoas sentem nojo ao verem dois homens se beijando; ele diz que as lésbicas são mais aceitas por conta de um fetiche masculino heterossexual. Diante deste quadro, ele evita se expor “demais”, criticando os que se comportam desta forma. Bernardo menciona também que viveu episódios de homofobia com uma pessoa que se relacionava: segundo o informante, a relação acontecia às escondidas e quando eles estavam no meio de conhecidos, o parceiro o destratava. Danilo tem 19 anos, cursa Economia, é negro e de classe popular. Atualmente é estagiário e utiliza seu salário para complementar a renda de seu domicílio. Ele reside com sua mãe em um apartamento na região do Centro do Rio. Ele foi criado nos preceitos católicos, mas hoje em dia afirma ser ateu. Seus pais nunca foram casados e ele nunca foi muito próximo ao pai, que “só realizava suas funções jurídicas”, como pagar pensão. Danilo diz que sua atração por pessoas do mesmo sexo sempre existiu; segundo ele, a primeira vez que ele sentiu um desejo sexual foi por outro homem. Deste modo, ele relata que “nunca duvidou de sua homossexualidade”, assim como as outras pessoas do seu círculo, que sempre questionaram sua orientação sexual. Danilo conta que sua mãe sempre trabalhou muito e que ele ficou durante algum tempo em uma casa que funcionava como um tipo de creche, contexto no qual teve sua primeira experiência sexual: ele tinha oito anos e o parceiro, filho da mulher que cuidava das crianças,tinha 19/20 anos. O entrevistado revela que nunca negou sua homossexualidade para nenhum de seus amigos e que assumiu abertamente para sua mãe aos 15 anos. Sua mãe não reagiu bem, pois ela vê a homossexualidade como uma opção e que ainda não aceita sua orientação sexual, por achar que é “algo perigoso”. Danilo vive sua identidade sexual de forma aberta, afirmando, ainda, que fica surpreso quando as pessoas não notam que ele é gay. Ele despreza claramente o “clichê do gay discreto” e se opõe às tentativas de “moralização da homossexualidade”, dando como exemplo a luta pelo casamento gay, que ele vê como uma forma de incorporação de valores moralistas. Com relação à 32

manifestação da homossexualidade nos espaços públicos, Danilo acha que as pessoas não aceitam e geralmente reagem mal, uma vez que o preconceito é por vezes demonstrado de forma inconsciente. Ele faz uma distinção clara entre as zonas sul e norte do Rio de Janeiro, indicando que a zona sul é “mais liberal”. Um ponto que merece destaque na entrevista de Danilo é sua narrativa sobre a “indústria do medo”: segundo ele, o medo é construído, faz parte de uma violência virtual que é utilizada para fins políticos. Ele diz que tenta evitar sentir medo, mas estar inserido nesse contexto faz com que o medo seja sentido “naturalmente”. Hugo tem 21 anos e é um estudante de Engenharia, branco, de classe média. Ele estudou em colégio católico na Zona Sul do Rio de Janeiro, o que implicou em formação religiosa, mas atualmente se considera ateu/agnóstico. Ele nasceu em São Paulo e mudou-se para o Rio quando criança, tendo seu pai permanecido em São Paulo. Ele mora em um apartamento na Zona Sul do Rio com sua mãe e sua irmã mais nova. Sua mãe concluiu o ensino médio e seu pai é graduado em ciências contábeis; sua irmã tem 15 anos e está cursando o ensino médio. O entrevistado diz que não consegue identificar como foi o processo de formação de sua orientação sexual, apontando como única lembrança significativa o momento em que um amigo contou para ele que tinha “ficado” com outro rapaz. Na época ele tinha 17 anos e sentiu vontade de “imitar” o amigo. Ele conta que começou a se relacionar com homens e que aos poucos “chegou à conclusão de que é gay”. Sua primeira experiência sexual ocorreu aos 18 anos, com um parceiro ocasional. Hugo se descreve como uma pessoa muito reservada; diz que somente os amigos mais próximos sabem sobre sua orientação sexual e, no âmbito familiar, somente uma tia; com relação aos seus pais, ele diz que não costuma conversar sobre assuntos pessoais. Ele conta que as reações à notícia foram positivas e que algumas pessoas ficaram surpresas, pois não tinham essa expectativa. Especificamente sobre as manifestações da homossexualidade nos espaços públicos, Hugo acredita que as pessoas reagem mal de uma forma geral; ele diz que o problemático não é a homossexualidade em si, desde que seja vivida em ambientes privados. Deste modo, ele classifica os espaços públicos como “inadequados para vivenciar sua sexualidade”, pois ele tem medo do modo como as pessoas podem reagir. Ele faz uma clara distinção entre “ambientes gays” e “ambientes heterossexuais”, de modo que seus relacionamentos afetivo-sexuais são expressos somente nos ditos “ambientes gays” ou em lugares onde sua exposição é menor, como cinemas e motéis. Hugo vê essa segregação como algo natural e positivo, uma vez que seus freqüentadores possuem interesses distintos. Ele 33

diz também que nos “lugares heterossexuais” ele se sente “mais preso”, com menos liberdade de agir, e que prefere ficar calado para “não dar pinta”. Quando questionado sobre como se sente em relação a isso, ele diz que não pensa no assunto, que já se acostumou a fazer essa distinção e a manter o controle do seu comportamento de acordo com o ambiente em que se encontra. Erick é um estudante de Ciências Sociais de classe popular. Ele tem 22 anos e se considera preto/negro. Ele mora sozinho em uma casa na Zona Norte do Rio de Janeiro e seus tios e primos moram na casa de cima. Contudo, ele passa a maior parte do tempo na faculdade ou na casa do seu namorado, em um bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Sua mãe mora fora do Brasil desde que ele tinha 15 anos; ele não tem muito contato com seu pai. Erick relata que sente atração por pessoas do mesmo sexo desde criança e que não consegue identificar o momento de tomada de consciência da homossexualidade, dando destaque ao momento em que revelou sua orientação sexual: ele tinha 15/16 anos e tinha mudado de colégio. No novo colégio tinha muitos meninos gays, o que tornou “tudo mais fácil”. Um dia seu tio ouviu uma conversa, mas não falou nada, logo depois sua tia perguntou “quantos por cento”, sem especificar do que se tratava a pergunta, ao passo que Erick respondeu “80%”. Ele diz que depois disso nunca mais tocaram no assunto. Em seguida ele ligou para sua mãe, que protestou e disse que seria o fim da família dela, mas depois se desculpou. O informante diz que assumir-se nunca foi uma questão para ele, pois sua orientação sexual sempre foi muito evidente por conta do seu jeito de se vestir, de falar, etc. e também porque ele convive em círculos em que a homossexualidade não representa nenhum problema ou conflito. Isso se torna problemático quando ele precisa fazer trabalho de campo, pois afeta a qualidade das informações que vai obter. Erick diz que as pessoas ainda se surpreendem com a manifestação da homossexualidade nos espaços públicos, mas acredita que é necessário se manifestar para que esta mentalidade mude. Contudo, ele não manifesta sua orientação sexual da mesma forma em todos os locais, dando como exemplo o seu bairro de residência; lá ele diz ter medo de como as pessoas podem reagir. Jean tem 22 anos, é branco, de classe média e estudante de Medicina. Ele reside em um apartamento em um bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro junto com seu irmão e outro rapaz. Seus pais moram em uma cidade serrana do Estado do Rio de Janeiro desde 2008. Jean comenta que os pais são espíritas-kardecistas e que ele frequentava as sessões quando pequeno, mas atualmente não segue nenhuma religião. O informante conta que seus primeiros desejos sexuais, aos 12/13 anos, foram direcionados para 34

pessoas do mesmo sexo. Nessa época, ele achava que o que sentia era anormal. No período de 14 a 17 anos, Jean teve experiências sexuais com o filho de um amigo de sua família. Ele relata que durante este interim até o réveillon de 2010 ele mantinha relacionamentos com mulheres e se sentia culpado por seus desejos homossexuais. No referido final de ano, ele viajou com amigos da faculdade e conheceu um casal de jovens gays que viviam seu relacionamento abertamente e isso fez com que “tudo mudasse”. Neste mesmo evento ele “ficou” com um rapaz e se assumiu para suas amigas. Após esse episódio, Jean continuou se relacionando com homens e conheceu seu atual parceiro, em um relacionamento que já dura um ano e meio. Ao assumir “algo mais sério”, ele decidiu que deveria contar aos seus familiares. Primeiramente ele revelou para seu irmão, que a princípio não disse nada, por não saber como reagir, conforme relatado por Jean. Quando completou seis meses de namoro, Jean foi a casa de seus pais contar sobre seu namoro. Atualmente, Jean diz que não tem mais problemas com sua orientação sexual e que seus familiares aceitam bem; ele se considera assumido para todas as pessoas com quem convive diariamente, mas que seus parentes distantes não sabem. O entrevistado diz que as pessoas não reagem bem à manifestação da homossexualidade nos espaços públicos, mas que isso tem mudado; ele estabelece também uma distinção entre a zona sul e o restante da cidade. Jean diz que evita se expor muito, principalmente porque seu namorado não gosta muito. Ele relata que a mãe de seu namorado dizia para o filho que não queria conhecê-lo e o namorado temia a reação de seu irmão, que reagiu bem. Ele menciona também que evita se expor nos “lugares perigosos” porque acredita que a homossexualidade masculina ainda está atrelada à feminilidade e à fragilidade, de forma que ele sente medo de ser alvo de possíveis violências. Batista cursa Ciência Política, tem 21 anos, pardo, de classe média. Ele mora na Zona Oeste do Rio de Janeiro, com seus pais e sua irmã mais velha, mas durante a semana fica no apartamento de uma tia em um bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, por ser mais perto da faculdade. Ele não tem nenhuma religião, assim como sua família. Seus pais são professores. Sua irmã é estudante universitária. Ele relata que sempre sentiu desejos por pessoas do mesmo sexo e que aos 12 anos se interessava mais pelos homens ao procurar pornografia. Ele diz que passou anos se questionando até “aceitar quem realmente é”, por volta dos 16 anos, apesar de dizer que nunca estará tranquilo quanto a sua orientação sexual. Sua primeira experiência sexual ocorreu aos 18 anos com um parceiro que ele conheceu pela internet. Batista diz que definir orientação 35

sexual é complicado, que ele prefere não se classificar. Ele diz que as pessoas tendem a estereotipar os gays como “bicha louca”, uma figura que ele diz detestar. Ele relata que contou sobre sua orientação sexual somente para amigos mais próximos, mas que as pessoas da sua faculdade descobriram através de uma menina que o viu com outro rapaz; após esse episódio, ele deixou de esconder sua relação para seus colegas de curso. O informante diz não falar sobre sua orientação sexual com seus pais por medo de eles não o aceitarem, uma vez que um de seus primos é assumido e rechaçado pelos seus próprios pais. No âmbito familiar, sabem sobre a orientação sexual de Batista somente este primo gay, que a descobriu através de amigos em comum; e um outro, que investigou as conversas que o informante mantinha com seu namorado pela internet. Contudo, Batista acredita que sua mãe saiba, pois “ela vive mandando indiretas” para ele. Ele afirma que as pessoas reagem mal à manifestação da homossexualidade, devido à quebra de expectativa que ela representa; afirma também que é preciso que os homossexuais vivam publicamente sua sexualidade, mas que ele não faz isso por medo de “levar porrada na rua” e porque seu namorado não gosta de se expor nos ambientes públicos. Neste sentido, Batista diz existir “lugares gays”, como bares, boates, etc., todos voltados para alguma forma de consumo. Assim como outros entrevistados, ele diz que é mais fácil ser gay na Zona Sul do Rio, porque lá “as pessoas são mais escolarizadas, têm mais cultura”. Em contraponto, ele diz que a população das Zonas Norte e Oeste é mais homofóbica, devido à maior presença das igrejas evangélicas nestas regiões da cidade, o “baixo nível de escolaridade” e a “dificuldade de acesso a cultura”. Maurício é um estudante de Filosofia de 22 anos, de classe média, que se considera amarelo. Ele nasceu em São Paulo e sua família mudou-se para o Rio quando ele ainda era criança. Atualmente mora junto com seus pais em um apartamento em um bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Sua mãe é dona de casa; seu pai é vendedor; seu irmão mais novo tem 19 anos e estuda fora do Rio de Janeiro. Maurício conta que sua relação com seus pais sempre foi conflituosa, pois sempre se baseou na cobrança, de modo que ele relata ter apanhado bastante quando era criança. Conta também que seu pai é muito machista e autoritário, enquanto sua mãe é submissa às vontades do marido. Maurício diz que prefere se relacionar com homens, mas é avesso à ideia de definir sua orientação sexual. O informante conta que sempre sentiu uma “simpatia maior” por pessoas que ele identifica como andrógenas. Ele diz que com 14/15 anos começou a prestar mais atenção aos garotos. Aos 16 anos ele teve sua primeira experiência sexual 36

com um parceiro de 17 anos que ele havia conhecido pela internet através de um amigo em comum. Sobre este episódio, diz que teve medo de relacionar-se sexualmente, pois não tinha certeza sobre seu desejo sexual. Sua “aceitação plena” aconteceu aos 17 anos, quando ele começou a contar para seus amigos. O entrevistado diz que não nega sua orientação sexual quando perguntado, mas que isso é um assunto que ele procura não comentar porque “não deve satisfações a ninguém”. Dentre as pessoas que sabem sobre sua sexualidade estão seus amigos mais próximos e colegas de faculdade, que reagiram bem e deram apoio a ele. Ele diz não contar para os seus pais por conta da insegurança que sente quanto à reação deles, principalmente porque ainda depende financeiramente deles. Um episódio que ele relata como desencorajador foi quando disse a sua mãe que iria cursar filosofia, que protestou dizendo “você já é maluco e ateu, só falta você virar maconheiro e falar que é viado”. Contudo, afirma que se ele namorasse ou mantivesse um relacionamento estável com alguém, contaria aos pais, por uma questão de respeito ao parceiro. Nos espaços públicos, Maurício diz que evita “chamar muita atenção” e que se preocupa com seus amigos que se manifestam mais abertamente. Segundo ele, existem “lugares mais tranquilos” para vivenciar a homossexualidade, como a Rua Farme de Amoedo, em Ipanema, zona sul da cidade. Para ele, existem muitas formas de se expressar a homossexualidade e que é preciso medi-las, pois algumas delas “extrapolam os limites e agridem aos outros”.

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5. A ECONOMIA EMOCIONAL DO ARMÁRIO

Conforme demonstrado em outros pontos do texto, o presente estudo tem por viés analítico o denominado campo da antropologia das emoções. Neste capítulo, será contemplada a gramática emocional que atravessa o processo da construção de uma identidade homossexual e sua conexão com o contexto heteronormativo da sociedade brasileira. Com base nas entrevistas realizadas, o processo de aceitação de uma identidade sexual heterodiscordante é perpassado por uma tensão, que tem como contraponto a ideia de alívio; e pela centralidade do medo, cujo o contrário seria a segurança. Assim, entende-se estas noções como os pares opostos que orientarão as análises.

5.1 Ocultar/revelar: um cálculo de perdas e ganhos

A dinâmica de ocultamento/revelação da homossexualidade pode ser traduzida por uma avaliação das perdas e dos ganhos que a vida “fora do armário” pode acarretar. É a partir disto que podemos pensar em uma economia emocional do armário. Segundo Trevisan

A cada vez que alguém sente o apelo da diferença em seu desejo, provavelmente terá de vencer séculos de repressão, para chegar ao epicentro do seu eu. (...) Não seria absurdo imaginar que as inúmeras, reiteradas e violentas proibições à sexualidade desviante talvez tenham engastado no desejo homossexual um pânico arquetípico, quase no nível da pulsão. (2011:163).

A tensão é oriunda das suspeitas de reações negativas por parte dos familiares, amigos, colegas de trabalho e de faculdade. De acordo com alguns dos informantes, revelar-se homossexual pode trazer uma série de perdas, em diversos aspectos de suas vidas, como por exemplo, no âmbito familiar:

[Ent.]: Existem lugares onde você se sente menos confortável para demonstrar sua orientação sexual? [Inf.]: Eu acho que lugares com a minha família, eu nunca nem tenho oportunidade de mostrar a sexualidade [...], ambiente de trabalho assim, 38

perto de pessoas com quem você luta para conquistar um respeito. Professores e pessoas que você quer que te respeitem e você sabe que o homossexual não é tão respeitado quanto as outras pessoas, então você quer se preservar [...]. Por não ter garantia que eu vou ter o mesmo respeito, que eu vá ser tratado igual, do mesmo jeito que eu seria tratado se as pessoas presumirem que eu sou heterossexual. (Entrevistado 1) [Inf.]: Não sei, não é o tipo de coisa que eu falo pra todo mundo. Pros meus pais eu nunca contei porque nunca precisou, sempre foi muito cômoda a relação, então dá um pouco de medo de contar. [Ent.]: Entendi. Mas você tem medo de que? [Inf.]: Não sei, de mudar um pouco a relação que eu tenho com eles. A aceitação eu sei que vai acontecer, mas não sei se vai mudar, se eu vou deixar de ser o filhinho amado. (Entrevistado 5) [Inf.]: Pros meus pais, um pouco de medo [de contar sobre a orientação sexual]. Meus pais sempre foram tranquilos com tudo, sempre, então eu não tinha muito medo. Mas ao mesmo tempo eu tinha medo, porque assim, eu sou sustentado. Eu demorei muito tempo pensando até chegar a ter certeza que eles não vão fazer isso [parar de sustenta-lo]. Mas sempre tinha a oportunidade deles falarem “tá bom, eu não vou te sustentar”, e eu “ah, eu vou ter que largar a faculdade e conseguir um emprego”. Então é uma coisa que dá medo, óbvio, porque eu sou sustentado. [...] se eles já tivessem interferido na minha vida antes, eu não iria falar, enquanto eles me sustentassem, eu não iria conseguir falar. (Entrevistado 7)

Há também relatos de um possível prejuízo às carreiras profissionais:

[Inf.]: O cara vai te olhar com olhos diferentes se você for gay. Normalmente, nos cargos de alta gestão, é muito raro ter um gay. Sei lá, eu acho que é, pelo menos eu não conheço nenhum. Eu acho que no meio profissional, principalmente na profissão que eu escolhi [...], um ambiente de trabalho altamente conservador, eu acho que vai ser um desafio interessante. Mas acho que nesse meio, [ser homossexual] é um contra. (Entrevistado 4) [Inf.]: [...] Eu não vou ser mais ou menos amigos dele falando que eu sou homossexual, mas é uma coisa que eu não queria que caísse em mãos erradas. Digamos, de eu falar para alguém que eu confio e ela falar pra outra pessoa. Eu não quero que ninguém saiba de mim e que eu possa ser prejudicado algum dia. Talvez para conseguir algum emprego, não sei. No meu trabalho ninguém sabe de mim. (Entrevistado 2)

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Além das possíveis reações negativas, outros elementos são levados em consideração no “cálculo dos riscos” que a revelação da homossexualidade põe em jogo, como por exemplo, a liberdade. Um dos entrevistados relata que seus pais não sabem sobre sua orientação sexual e nem sobre seu relacionamento. Assim, quando o parceiro dorme em sua casa, eles podem dormir no mesmo quarto, enquanto o namorado de sua irmã é obrigado a dormir em seu quarto, separado da namorada, ou a irmã do informante tem de dormir no quarto dos pais. Também sobre liberdade, as narrativas de outros entrevistados trazem informações relevantes:

[Inf.]: Eu tenho certeza, ao menos se eu estiver errado, vai ser um choque até pra mim, que eles não iriam aceitar, que muita coisa iria ser cortada. Digamos, eu não saio muito, quando eu saio eles sempre perguntam para onde eu vou.[...] Eu tenho certeza que eles não aceitariam, agora se isso vai ser muito repressivo ou aquele repressivo implícito, que todo mundo sabe mas ninguém quer falar, eu não sei. [...] Por isso é que eu não quero falar, eu tenho certeza que se não for um [dos pais], vai ser o outro. (Entrevistado 2) [Inf.]: [...] isso é o que mina minha liberdade [não comunicar sua sexualidade para todas as pessoas], eu não me sinto livre, não me sinto eu às vezes. (Entrevistado 1) Outra consequência mencionada é a mudança de tratamento após a revelação da homossexualidade. Um dos entrevistados relatou que após contar para seus amigos, aqueles que eram homens heterossexuais se afastaram. Segundo a perspectiva interacionista de Goffman (1988), alguns estigmas têm uma tendência à difusão, ou seja, possuem a capacidade de “contaminar” a identidade daqueles que mantêm relações com indivíduos estigmatizados. Desta forma, “tais relações tendem a ser evitadas ou a terminar, caso já existam” (Ibidem:40). O autor nos diz também que existe uma inclinação a atribuir uma série de imperfeições a partir do atributo estigmatizante original (Ibidem:15). Neste caso, o estereótipo homossexual agrega diversas características, como uma performance de gênero feminina, promiscuidade, utilização de determinado estilo de roupa, entre outras, conforme vemos em alguns relatos:

[Inf.]: Algumas pessoas eu tive problemas por elas terem descoberto que eu era homossexual e depois começaram a me tratar de um jeito que não era eu. Tentaram me comportar (sic.) como aquele gay bem afeminado e eu não 40

sou muito assim. [...] já cheguei a ter problema de às vezes acharem que só porque eu sou gay que eu estava dando em cima de algum homem que namorava ou que tinha até outro namorado.[...] Eu acho o estereótipo gay de ser chato, gente, é muito chato. Eu acho uma bobeira tão grande e as pessoas ficam assim: “ah, o homem se assumiu homossexual”, beleza. Aí as pessoas acham a mesma coisa: ele tem que gritar, falar “para bee”, usar uma calça colada, cavada, uma camisa mostrando o peito, rebolar a bunda, enfim, falar um monte de coisas. (Entrevistado 3) [Inf.]: Meu pai fala quando vê na TV “olha lá a bicha louca”. Ele chama todos os homossexuais, gays, de bicha louca.[...] e tem aquela imagem que gay só vai pra boate pra bater cabelo, pra não sei o que, só vai pra fazer promiscuidade na rua. Eu não queria que eles tivessem essa imagem de mim, o que vai ser automático. É o que eles veem na TV, é o que todo mundo fala. (Entrevistado 2) Como já apontado, “sair do armário” implica uma avaliação das consequências, negativas e positivas, que tal atitude pode acarretar. Acima foram descritas as repercussões entendidas como negativas, produtoras da tensão; agora, serão tratados os reflexos positivos, produtores do alívio ou que dão fim ao desconforto. Para alguns dos entrevistados, viver publicamente sua sexualidade está relacionado ao ser verdadeiro consigo mesmo e com os outros. Conforme já exposto, Foucault (1977) demonstra a produção da verdade sobre o sujeito a partir dos discursos que este emite, em especial o discurso sobre as práticas sexuais. Especificamente, um dos rapazes relata que o processo de contar sobre sua orientação sexual aos seus amigos foi alegre:

[Inf.]: Eu tinha amiga que quando eu contei pra ela, morrendo de medo, foi uma recepção calorosa e a gente só conversava besteira. Foi uma pessoa que sempre me impulsionou. [...] Eu descobri esse apoio, assim, das pessoas. [...] E foi o ápice de eu “eu acho que eu não tenho tantos problemas de gostar de garotos e que as pessoas saibam disso” e tal. (Entrevistado 9). Outros relatos relevantes fazem menção às reações dos familiares mais próximos no momento e o desenrolar posterior:

[Inf.]: Eu já estava namorando, aí coloquei uma foto minha com meu namorado no plano de fundo do computador. Aí, por acaso, levei meu computador para o quarto do meu irmão, aí ele olhou pra foto e disse “é 41

sério que você tem uma foto com o seu amigo no plano de fundo?”, porque no dia anterior eu tinha trazido meu namorado pra casa, então ele [o irmão] tinha conhecido como meu amigo, sei lá, eu não falei nada. Aí eu tive que falar “é, então, ele não é bem meu amigo, ele é meu namorado”. Aí meu irmão ficou quieto, parou de jogar, pra mim passou uns três segundos. Ele olhou pra mim, olhou pra foto e falou “ele parece legal”, e voltou a jogar. Ele tratou super bem, pra mim foi muito bom. (Entrevistado 7) [Inf.]: Por exemplo, no lado familiar, minha mãe sabe e hoje em dia ela é minha amiga, até vê novela comigo e a gente falar que o ator da novela das 8 é bonito juntos. A minha mãe é minha amiga, pra falar de homem, ela fala dos problemas dela, eu falo dos meus, a gente tá sempre se dando bem. (Entrevistado 3)

Chama atenção a narrativa de um dos entrevistados. Segundo ele, o fato de ser gay é benéfico, pois permite que ele enxergue o mundo a partir de uma perspectiva mais crítica. Em suas palavras:

[Inf]: Cara, eu me sinto uma pessoa muito mais realizada do que se eu não fosse gay. Porque a partir do momento que eu sou gay, eu sinto muito mais abertura para estudar outros assuntos, assim, mais contrahegemônicos do que um hetero teria abertura para estudar. [...] Eu me senti muito mais aberto para isso e muito crítico e consciente de algumas coisas de nossa sociedade no geral do que se fosse uma pessoa bitolada. (Entrevistado 4) Uma outra maneira de pensar o cálculo dos ganhos e perdas a que sair do armário pode levar é através do estabelecimento de uma relação de compensação. Dois dos entrevistados acionam outros aspectos de suas identidades que são mais valorizados como uma forma de compensar o “defeito” da homossexualidade. Segue as passagens onde esta ideia é mencionada:

[Inf.]: [...] Eu aceitei muito fácil porque a minha vida é uma coisa uma tranquila quanto em relação a isso. O caminho que eu escolhi, vou fazer medicina, vou ser médico, todo o clima... é super aceito, qualquer coisa. (Entrevistado 7) [Inf.]: Eu me porto como homossexual de uma certa forma: um menino que vai a faculdade; que tenta dar o seu melhor; que não sabe se vai passar no mestrado, apesar de fazer tudo pra isso; e sou homossexual. (Entrevistado 9)

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De um modo geral, o alívio parece surgir quando a sexualidade deixa de ser uma questão conflituosa, seja com terceiros ou consigo mesmo. É importante ressaltar que esta é uma categoria analítica, formulada posteriormente, e que não foi expressamente mencionada pelos entrevistados (exceto um). Contudo, o fato de não ser diretamente citado não significa que este não existe. De acordo com Goffman (2011), conforto e alvoroço são elementos opostos na interação: quanto mais alvoroçado, menos confortável o indivíduo estará, e vice-versa. As situações de conforto não implicam uma reflexão, o que faz com que elas “passem despercebidas”. De maneira semelhante, tensão e alívio formam também elementos opostos, e, assim como o conforto, o alívio se torna uma situação não pensada. Há ainda dois pontos que precisam ser considerados acerca da dinâmica de ocultamento/revelação da homossexualidade, os quais não se referem ao cálculo de ganhos e perdas. O primeiro deles é que essa dinâmica não ocorre com todos os sujeitos; e o segundo é que ela pode ser interminável. Para dois entrevistados, a revelação de uma orientação sexual heterodiscordante nunca foi um “dilema”. Assim, a dinâmica descrita acima não se aplicaria aos seus casos. Ambos consideram sua orientação sexual como algo evidente, devido a uma “exposição visual”, ao modo como se comportam, por falarem abertamente sobre o assunto e por estarem em ambientes em que a homossexualidade não é uma questão. Seguem suas narrativas:

[Inf.]: Meus amigos, a maioria deles é gay, homossexual, e não tem problema nenhum. Eu nunca tive muito problema com isso [contar ou não contar sobre a homossexualidade]. [...] Na verdade, eu fico impressionado quando as pessoas não percebem que eu sou gay. (Entrevistado 4) [Ent.]: Todas as pessoas do seu círculo sabem sobre sua orientação sexual? [Inf.]: Sabem, todo mundo sabe. [...] O fato de eu não achar que eu preciso revelar isso cotidianamente, se é um fato que tem que ser tomado como rotineiro, ordinário, não precisa de revelação, no sentido de eu não precisar apresentar.[...] É porque essa coisa do assumido/não-assumido não é um dilema. Eu acho que eu só posso viver isso como um dilema quando eu estou lidando com pessoas desconhecidas, com as quais eu não convivo, ou que não são amigos dos meus amigos, que não fazem parte do meu círculo social.[...] Nunca é um problema, eu nunca estou nos lugares onde isso é dilema, por isso que eu fico muito protegido. (Entrevistado 6)

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A heteronormatividade que cerca as vivências da sexualidade faz com que a heterossexualidade seja encarada como a expressão sexual normal. Com isso, existe uma presunção de heterossexualidade difundida no senso comum. É neste contexto que a homossexualidade é análoga a uma situação de alvoroço ou tensão; em outras palavras, é uma quebra da expectativa que precisa ser pensada. Conforme demonstrado por Sedgwick (2007), cada novo encontro implica um novo armário, novos cálculos e avaliações e, principalmente, uma nova revelação da orientação sexual. É neste sentido que tal dinâmica pode ser infinita. A fala de um dos entrevistados reflete bem esse ponto:

[Inf.]: Aí eu fui escolhendo as pessoas e contando. Depois fui contando para mais pessoas. [...] Mas cada vez que eu ia contar era como se eu tivesse vivendo tudo de novo. Era essa mesma história que eu estou contando pra você: por que, como eu cheguei, assim, assado. (Entrevistado 9)

5.2 A Centralidade do Medo

Há um outro par de emoções que nos ajuda a compreender a gramática emocional que se articula à dinâmica trabalhada no tópico anterior: medo-segurança. Da mesma forma que tensão e alívio são opostos, medo e segurança também o são. A ausência de medo é entendida como a sensação de estar seguro, e vice-versa. O termo medo apareceu nas narrativas de todos os entrevistados, enquanto o termo segurança apareceu somente em algumas. Fala-se em centralidade do medo porque este parece ser o eixo a partir do qual gravitam outros estados emocionais, como respeito, vergonha, culpa, raiva e coragem. Conforme demonstrado nos pressupostos teóricos que nortearam esta pesquisa, há uma articulação entre as ideias de medo e segurança (Delumeau, 2009); entre medo e incerteza (Bauman, 2008); e entre medo e vergonha (Elias, 1993). É deste modo que o sentimento de medo é utilizado para dar sentido às diversas situações relacioandas à vivência da sexualidade e da identidade sexual homossexual. Assim, para alguns entrevistados, o medo é sentido frente à possibilidade de descoberta da homossexualidade por terceiros, principalmente pelos familiares; para outros, o medo está relacionado à ocorrência de episódios de violência física ou discriminação por 44

conta da orientação sexual; há também quem sinta medo de que as relações mudem, após a revelação da sexualidade. As narrativas revelam o caráter dramático da experiência da homossexualidade em um cenário heteronormativo:

[Inf.]: essa coisa toda de família, tudo que tem a ver com o núcleo familiar, eu não consigo. É uma questão de medo, de falta de coragem e medo mesmo. Não é a mesma coisa ou é a mesma coisa? Eu não tenho essa iniciativa, essa segurança para falar. Não segurança quanto à minha sexualidade, mas a não conseguir lidar com as consequências. [...] É isso, eu não tenho o que fazer. Eu não tenho por que fugir, nem do que fugir. Não dá pra você fugir de você mesmo. Então é isso, é doloroso você ser a decepção. Só que não tem como ser outra coisa senão você. Se você é a decepção, fazer o que? (Entrevistado 1) [Inf.]: Por medo, não deixa de ser um medo [não falar sobre sua sexualidade com todas as pessoas]. Por medo e preconceito. Primeiro porque as pessoas ficam te marcando muito, te botam como ponto de referência: “ah, tá vindo o viado”, é sempre assim. Por isso que eu prefiro não falar muito. [...] [Ent.]: Você manifesta sua sexualidade em lugares públicos? [Inf.]: Não, eu já manifestei, mas é difícil. [...] Medo de homofobia. É fato, o medo de homofobia. Eu evito de beijar na boca, evito por medo, essa é a verdade, não vou desmentir não. (Entrevistado 3) [Inf.]: Talvez eu nunca tenha assumido em casa por causa desse tipo de coisa [discriminação contra homossexuais], por medo disso. Ou na faculdade também, medo dessa represália. (Entrevistado 5) [Inf.]: Essa regulação [da manifestação da homossexualidade nos espaços públicos] acontece muito mais, por exemplo, no bairro onde eu moro. Esse tipo de regulação acontece muito mais lá, não no sentido de “ah, eu não vou fazer isso, eu não vou falar aquilo”, mas, eu não vou dar um beijo na boca. Mas não porque eu tenha medo do julgamento moral, o julgamento moral você lida com; eu tenho medo é de violência, alguém pode me tacar uma pedra. (Entrevistado 6). É necessário salientar que os entrevistados tendem a defender que é preciso manifestar publicamente a homossexualidade para que “mentalidade preconceituosa das pessoas seja mudada”. No entanto, muitos deles dizem que não o fazem em razão do medo de sofrer algum tipo de retaliação. Seguem alguns trechos das falas dos informantes:

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[Ent.]: O que você acha da demonstração da homossexualidade em público? [Inf.]: Eu acho que tem que ser assim, tem que fazer. Se não fizer, as pessoas nunca vão tratar como fato cotidiano, Se a gente não faz, não vira cotidiano. Tem que fazer, tem que ter demonstração. Se não tem demonstração, é porque implica em tornar velado. Não, tem que ter demonstração. [Ent.]: Entendi. E você manifesta sua homosexualidade da mesma forma em todos os ambientes? [Inf.]: Não, claro que não. (Entrevistado 6) [Inf.]: Eu acho normal, acho saudável [manifestar a homossexualidade nos espaços públicos]. [...] Então é uma coisa que, apesar de eu achar que eu não vou me reprimir por causa disso, eu acho que a gente tem que ser egoísta sim, mas também eu não sou egoísta o suficiente para “foda-se o mundo”, eu tenho meus limites. [Ent.]: E você manifesta sua homossexualidade da mesma forma em todos os espaços? [Inf.]: Não, acho que não. (Entrevistado 7) O medo também aparece quando um dos entrevistados conta um episódio em que ele demonstrou publicamente sua orientação sexual ao dar um beijo em um rapaz que havia conhecido em uma festa na noite anterior. Neste caso, a superação do medo não está relacionada ao aumento da segurança, mas foi mencionada como uma sensação de alívio. Em suas palavras:

[Inf.]: [...] Outro dia eu estava saindo de uma balada com um cara que eu fiquei, dia 07 de setembro [feriado da Independência do Brasil]. Teve parada militar na Presidente Vargas e eu estava na Rio Branco, tinha uma tropa de de militares passando. Eu estava com meus amigos e passei de mão dada com esse garoto, se beijando também. E assim, aquilo foi o auge da ousadia pra mim. Porque eu fiquei com medo, sei lá, principalmente [por ser] o exército, uma instituição super conservadora e tal. É claro que a gente escutou vários comentários voltados pra gente, mas eu me senti até aliviado naquele momento, foi bom. (Entrevistado 4) Os relatos de episódios de discriminação sofridos pelos entrevistados são, em parte, marcados pelo sentimento de raiva gerados. Sugere-se então que é a raiva que engendra as respostas dadas pelos alvos da discriminação. Como demonstram estes trechos:

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[Inf.]: Uma vez quando eu fui para um parque lá no centro. Eu até falei para o cara se demitir. Um guarda municipal ali desse parque estava ali por perto. Tinha vários bancos, só que todos estavam ocupados. O único que estava desocupado, eu fui lá sentar com meu namorado pra gente conversar, a gente estava lendo um livro e tal. E aí, no que a gente se olhou, a gente sentiu vontade de se beijar. A gente se beijou, uma coisa normal, ninguém levantando do banco, subindo no colo um do outro, nada disso. Mas é que o guarda veio até a gente falar “olha, eu não sei nada da vida de vocês, mas tem criança aqui, vamos se controlar”. Eu respondi: “se fosse um casal de heterossexuais, estaria numa boa?”. O cara falou: “tem criança aqui”. (Entrevistado 2) [Inf.]: Tinha umas crianças que passaram na rua e começaram a falar “bicha, olha a bicha!”. Aí gritaram bicha inúmeras vezes e cuspiram. Eu fico sempre sem ação, eu congelo. E o fulano [namorado] não, ele reage imediatamente. Então a gente começou a brigar, esse cuspe dessa criança foi maldito, a gente brigou tanto por causa desse cuspe. Mas porque ele reagia e eu não tinha reagido. Ele achava que eu deveria ter reagido ao cuspe, se não as pessoas vão continuar fazendo isso e não sei o que. [...]. [Ent.]: E ele reagiu como? [Inf.]: Ele começou a gritar e brigar com as crianças enquanto eu ainda estava pensando “o que está acontecendo aqui? Essa criança realmente cuspiu em mim? Isso ainda acontece?”. (Entrevistado 6)

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6. INDENTIDADE HOMOSSEXUAL: processos de contrução, interação e circulação

Em conformidade com a proposta original desta pesquisa, investigou-se as percepções e experiências dos sujeitos acerca das manifestações da homossexualidade21 nos espaços públicos. Neste capítulo será dada continuidade à análise do material empírico colhido durante o trabalho de campo. A partir das narrativas dos entrevistados, verifica-se que os percursos que compõem as trajetórias de construção de identidades sociossexuais de homens homossexuais compreendem quatro processos: percepção, aceitação, prática e comunicação. Inicialmente, é preciso esclarecer o que está contemplado em cada uma destas categorias. A percepção remete ao processo de tomada de consciência dos desejos sexuais orientados para pessoas do mesmo sexo. A aceitação faz menção ao processo ao longo do qual o indivíduo compreende seus desejos e reduz a tensão que perpassa o processo de descoberta de uma sexualidade desviante. A prática diz respeito à concretização dos desejos sexuais homo-orientados. Desta forma, entende-se como práticas homoeróticas as interações com parceiros do mesmo sexo. A comunicação é encarada como a emissão de informações acerca da orientação sexual, no sentido atribuído por Goffman (1988). A elaboração destas categorias se apoia na já discutida noção de carreira moral de Goffman (Ibidem), na qual os estigmatizados passam por processos de aprendizado sobre sua condição no mundo dos normais. Apesar da concepção de trajetória pressupor que existem certos momentos que são sequenciais22, as narrativas dos entrevistados revelam que não existe um modelo ideal de encadeamento, visto que estes se superpõem e formam diferentes “combinações”. É preciso mencionar também que estes processos não possuem fronteiras bem delimitadas. A escolha pelo termo processo é deliberada: uma vez que estas categorias são utilizadas para dar conta de um conjunto de experiências que são vivenciadas como Entende-se por “manifestação da homossexualidade” qualquer atitude que possa ser interpretada como reveladora da orientação sexual, como beijos, abraços, caminhar de mãos dadas ou, como mencionado por um dos entrevistados, uma “exposição visual” que se refere principalmente ao rompimento das fronteiras de gênero no vestir, falar, andar, etc. 21

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Como exemplo, temos as pesquisas quantitativas sobre entrada na sexualidade que elegem as “primeiras vezes” de determinadas experiências como marcos para operacionalizar os dados (Aquino, Araújo e Almeida, 2006:104).

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quebra de expectativas e que por isso fazem com que os sujeitos as avaliem com maior atenção, faz sentido considerá-las como processos de formação da identidade sexual. Os tópicos seguintes abordarão de maneira sucinta os dados sobre percepção, aceitação e prática. Destaca-se que o processo de comunicação receberá maiores considerações neste trabalho, uma vez que ele é o ponto central da pesquisa desenvolvida. Para fins de organização e compreensão do texto, eles serão abordados como se seguissem uma ordem, fazendo-se as considerações necessárias sobre as superposições dos mesmos.

6.1 A Percepção do desejo

Em um primeiro momento, é comum pensar que a percepção do desejo sexual orientado para alguém do mesmo sexo é o processo que inicia a construção de uma identidade homossexual. Entretanto, é preciso relativizar esta premissa, pois é possível que a percepção do desejo ocorra quando este já estiver sendo praticado. Não é incomum também que os meninos que apresentem atributos do gênero feminino desde a infância sejam chamados por seus pares de “bicha” ou “viado” antes mesmo que eles elaborem seu interesse sexual. Chama atenção nos relatos dos entrevistados o papel da internet e da pornografia na percepção da sexualidade. Com relação à pornografia, os informantes falam sobre o direcionamento do olhar como as primeiras manifestações de um desejo sexual. Como exemplo, segue a narrativa:

[Inf.]: Eu acho que é aquela coisa de quando você um filme pornô e acaba prestando mais atenção nele do que nela, aí você vê que tem alguma coisa errada. Ou sei lá, eu lembro de revista de nudez feminina que eu prestava mais atenção no anúncio com o ator famoso. (Entrevistado 1) Dos nove entrevistados, três deles tiveram sua primeira relação sexual com parceiros que haviam conhecido através da internet. De acordo com aquilo que foi dito durante as entrevistas, a internet exerce uma dupla função: ela pode ser utilizada tanto como fonte de material erótico quanto para buscar parceiros sexuais e/ou outras pessoas que compartilham do mesmo interesse, como demonstram os trechos a seguir:

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[Inf.]: [...] Eu entrei num site da internet de bate-papo e aí eu marquei. Até então eu nunca tinha beijado uma garota, eu nunca tinha feito nada. Então eu fui marcar com um rapaz pra ver. [Eu pensava]: “bom, já que eu não tenho namorada, deve ser por que eu não gosto, por que eu não sou capaz de me relacionar com mulheres, então provavelmente eu serei capaz, por eliminação, de me relacionar com homens”. (Entrevistado 2) [Inf.]: Tiveram outros fatores que começaram a aumentar um pouco minha rede. Teve aquela época do orkut, MSN também. Eu não tiro a importância desses veículos que fazem a pessoa se esconder, mas de certa maneira elas se soltam por esses veículos. (Entrevistado 9) Pode-se indicar também uma conexão entre percepção e prática nas primeiras experiências sexuais relatadas pelos sujeitos. De um modo geral, estas experiências foram descritas como “brincadeiras entre meninos” que acontecem antes da percepção do desejo se consolidar, conforme mostra este relato:

[Inf.]: Começou a cair a ficha de eu ser gay aos 16 anos, [...] mas antes disso, aos 13 anos, eu tive experiência com beijo, tive experiência com certas carícias. Não cheguei a penetração enfim não, mas brincadeirinhas vamos dizer “meio sensuais”. Mas eu fui me sentir gay aos 16 [anos] mesmo. (Entrevistado 3)

6.2 A Aceitação do desejo

Em primeiro lugar, faz-se necessário frisar que este aspecto não será tratado aqui a partir de um ponto de vista psicológico. Deste modo, parte-se do princípio de que o processo de aceitação do desejo homossexual faz referência à negociação que o indivíduo faz consigo mesmo e com os outros em relação à sua própria sexualidade. Dos nove entrevistados, seis deles comentam que a aceitação da homossexualidade não foi imediata, mas sim que foi um processo mais ou menos dramático, a depender da trajetória de cada um. De forma semelhante as avaliações sobre sair do armário ou não, a aceitação também é perpassada por uma tensão23. A tensão está conectada ao quanto o processo é

O par tensão-alívio que orienta a análise do cálculo de ganhos e perdas que “sair do armário” traz é trabalhado mais detidamente no capítulo A Economia Emocional do Armário. 23

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problematizado pelo indivíduo. Algumas narrativas refletem as dificuldades de estabelecer uma identidade homossexual em um contexto heteronormativo:

[Inf.]: Me aceitar... foi bem recentemente. Até metade do ano passado, até junho de 2011 mais ou menos, que eu comecei a me aceitar. Falar com outros colegas e eles me zuarem “coé viado” e eu não sentir vontade de querer dar um soco na cara deles. Por que antes eu sentia, eu não me aceitava. (Entrevistado 2) [Inf.]: Eu perdi minha virgindade com homem aos 17 anos, mas mesmo assim, eu não me aceitei gay não. Eu achava que era fase, achava que eu nunca tinha ficado com mulher então eu podia estar enganado ou, não sei, não me encaixa mesmo. Então eu tive a necessidade de ficar com mulher, de qualquer jeito. (Entrevistado 3) Este último trecho ilustra bem o argumento inicial de que estes processos não são lineares. Como pode ser percebido, a prática, por vezes, antecede a aceitação da orientação sexual. Tal situação se repete de forma semelhante nas narrativas dos seis entrevistados que passaram por um processo de aceitação “dramático”24. Há de se contemplar também aqueles que não identificam claramente um processo de aceitação em suas biografias, o que reforça a relativização inicial destes processos. Dos três entrevistados que não problematizam o processo de aceitação, dois deles dizem que “sempre foram gays”; enquanto o outro diz que viveu um processo “natural” de conscientização da orientação sexual.

6.3 A Prática do desejo

Entende-se por prática as experiências sexuais que envolvem uma interação entre parceiros. Os dados aqui apresentados são, em sua grande maioria, referentes às primeiras experiências sexuais vivenciadas pelos informantes, uma vez que o roteiro de perguntas deu mais atenção a este aspecto. Os processos de aceitação “dramáticos” são aqueles vivenciados com uma relativa carga de tensão emocional. Tais processos são sinuosos e contam com momentos de maior e menor conformação com uma identidade homossexual. Como exemplo, temos a trajetória de um dos entrevistados, que após contar para sua mãe sobre sua orientação sexual foi coagido a submeter-se a “tratamento psicológico”. O informante diz que durante o “tratamento” ele oscilava entre acreditar que era “gay de verdade” e que “podia mudar a orientação”. Após algum tempo ele interrompeu o acompanhamento psicológico e decidiu assumir uma identidade homossexual. 24

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Conforme explicitado anteriormente na seção “Homossexualidade: modelos identitários”, a prática nem sempre é um elemento fundamental para a constituição de uma identidade homossexual. Entre os entrevistados que dizem que “sempre foram gays”, a construção de uma identidade homossexual não dependeu das relações sexuais, sendo estas uma “constatação” posterior. Isso fica claro quando observamos este trecho:

[Inf.]: Eu lembro que desde pequeno. Uma vez eu cheguei pra minha mãe e falei, totalmente inocente: “mãe, eu queria tanto ser mulher” [...]. Eu sempre soube que eu era gay e sempre achei os homens muito mais bonitos que as mulheres, corporalmente. Também comentava isso de forma inocente com os amigos da minha mãe, com meus vizinhos. Então acho que não teve dúvida pra ninguém de que eu era gay [...]. Sempre me identifiquei mais com o corpo masculino que com o corpo feminino. (Entrevistado 4) Se mesmo com a ausência de experiências sexuais homossexuais é possível afirmar uma identidade homossexual, o contrário também é verdadeiro. Em outras palavras, como já demonstrado no tópico acima, há entre os entrevistados alguns que mantinham relações sexuais com pessoas do mesmo sexo, mas não se identificavam como homossexuais. Entretanto, não seria inteiramente legítimo comparar os dados de Fry (1982) com os achados nesta pesquisa. O contexto das “bichas” e dos “homens” da periferia de Belém não é o mesmo dos “gays” e “homossexuais” universitários da cidade do Rio de Janeiro. Para os primeiros, ter relações sexuais com outros homens não é sinônimo de homossexualidade, a não ser que este tenha um comportamento sexual passivo (aquele que é penetrado); já para os outros, ter experiências sexuais com outros rapazes, independentemente do comportamento sexual, e não se identificar como homossexual é descrito como uma negação da orientação sexual. Isto deixa ainda mais clara a conexão entre a aceitação e a prática na construção da identidade homossexual. Segue um trecho que ilustra este aspecto:

[Inf.]: Eu acho que hoje eu não tenho problema com a minha sexualidade, eu tenho problema com o problema que os outros têm com a minha sexualidade. [...] Mas é porque a gente tem muita negação, não se aceita. O aceitar-se mesmo já é um processo, pra entender o que é, aceitar. (Entrevistado 1)

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6.4 A Comunicação do desejo O vocábulo “comunicação” não dá conta de todas as possíveis situações que atravessam os percursos dos indivíduos. No entanto, a preferência por este termo, em detrimento ao “assunção”, se deve ao fato de nem sempre o sujeito “assumir” ou mesmo “revelar” sua sexualidade deliberadamente. Situações de “comunicação indireta” podem ocorrer quando o indivíduo é visto exercendo sua sexualidade por alguém de sua rede, ou quando este comete uma gafe (Goffman, 1980) que é interpretada pelo outro como um indicativo de homossexualidade. Deste modo, comunicar a orientação sexual é, de certa forma, empregado aqui como sinônimo de adotar uma identidade homossexual. As formas de comunicação da homossexualidade descritas pelos entrevistados são variadas: alguns falam sobre uma “exposição visual” ou “dar pinta”, relacionadas a uma questão de gênero; outros argumentam que a sexualidade é um traço da vida privada e que, portanto, não precisa ser exposta. De uma maneira ampla, a comunicação da homossexualidade será o objeto de análise dos próximos tópicos, que trarão discussões sobre a vivência da homossexualidade nos espaços públicos a partir da perspectiva interacionista de Goffman (1975, 1980 e 1988).

6.4.1 Identidade Homossexual e Segregação de Plateia

De início, é preciso destacar que nem todos os entrevistados revelam sua orientação sexual para todas as pessoas do seu círculo. Com base nas entrevistas, divide-se as pessoas com quem eles interagem cotidianamente em quatro grupos25: familiares, amigos, colegas de faculdade e colegas de trabalho. De acordo com o que já foi demonstrado na introdução, existem “círculos de maior ou menor intimidade ou visibilidade” (Carrara, Ramos e Caetano, 2003) no que diz respeito à revelação da homossexualidade. Nos dados aqui apresentados, somente um dos entrevistados afirma ser assumido para todos esses grupos; um deles diz que ainda não revelou sua orientação sexual no ambiente profissional por ter se inserido 25

Neste caso, as interações com pessoas desconhecidas não são agrupadas desta forma.

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recentemente, mas que no estágio anterior todos sabiam sobre sua sexualidade, assim como seus amigos, colegas de faculdade e parentes mais próximos. Por se tratar de jovens universitários na faixa dos 18 aos 24 anos, a maioria (seis deles) reside com seus pais e, mesmo aqueles que residem com outras pessoas, ainda dependem financeiramente dos familiares. Assim, a família aparece como um dos grupos mais problemáticos diante do qual adotar uma identidade homossexual. Dos nove sujeitos entrevistados, cinco deles não contaram aos pais sobre sua orientação sexual26. Em segundo lugar aparecem os colegas de trabalho/estágio como um grupo com o qual não se fala sobre sexualidade. Nota-se que nem todos os informantes estavam inseridos no mercado de trabalho no momento da entrevista, mas alguns deles disseram que a orientação sexual não será um assunto mencionado neste tipo de ambiente. Dois entrevistados citam também o círculo de colegas de faculdade como pessoas para as quais não revelam sua orientação sexual. Esta estratificação em grupos de “maior ou menor visibilidade ou intimidade” dialoga com o conceito de Goffman (1975 e 2011) de segregação de plateia ou segregação de auditório27. De acordo com o autor, um indivíduo pode representar diversos papéis no seu cotidiano; muitas vezes esses papéis são contraditórios e não podem ser acionados ao mesmo tempo. Deste modo, o sujeito precisar separar os grupos para garantir que interpretará o papel adequado para cada um deles e assim assegurar a continuidade e manutenção destes papéis (Goffman, 1975:52). Pode-se pensar também esta separação de grupos em termos dos conceitos de linha e face. Segundo Goffman (1980) a linha é um padrão de comportamento adotado pelo indivíduo em uma interação social. Este padrão de comportamento inclui diversos elementos que compõem o indivíduo, como roupas, gestos, linguagem, etc. A face é a imagem que a pessoa projeta a partir da adoção de uma determinada linha. Logo, a face é sempre situacional, ou seja, depende da situação de interação. Estar em face é então a combinação entre a linha adotada, a imagem que se faz de si e a interpretação do outro. Quando há um equilíbrio na interação, há a sensação de conforto. O desconforto tem como fonte uma ameaça à face, que pode ser devida a uma gafe, um insulto ou um

26

Os motivos alegados para a saída ou não do armário são contemplados no capítulo A Economia Emocional do Armário. 27

Os conceitos segregação de plateia e segregação de auditório são unívocos. Contudo, em cada uma das obras citadas o conceito foi traduzido para o português de uma forma.

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descaso (Ibidem); ou quando dois “eus” do indivíduo são confrontados em uma mesma situação de interação, rompendo com a segregação de auditório (Goffman, 2011). A partir dos relatos de alguns informantes, infere-se que uma das consequências da segregação de plateia é a desagregação da identidade, o que é descrito como um problema. Algumas narrativas assinalam que os sujeitos vivem uma dupla identidade: uma heterossexual, quase sempre presumida; e outra homossexual, revelada. Estas identidades são adjetivadas como falsa, no caso da primeira, e verdadeira, no caso da última. Entre estas duas identidades existe uma tensão, como já discutido no capítulo anterior. Um relato exemplifica esta questão:

[Inf.]: Eu acho que eu vivo duas identidades [...]. Eu sou uma pessoa diferente em cada local. Com meu namorado eu posso ser carinhoso ao máximo, com meus pais também, só que nunca falando aquelas coisas, por exemplo, falando algumas gírias de bicha. “Eu sou rica”, eu não posso falar isso na frente deles. (Entrevistado 2)

6.4.2 Homossexualidade e Espaços Públicos

A segregação de plateia implica uma segregação de espaços onde a identidade sexual pode ser demonstrada. Da mesma forma que a orientação sexual não é revelada para todos os grupos de pessoas com que se costuma interagir cotidianamente, a expressão da homossexualidade também obedece a uma lógica de distinção de locais. Nesta seção, serão contrastadas as opiniões e as práticas da manifestação da homossexualidade nos espaços públicos a fim de demonstrar a conexão entre o fenômeno da homofobia, os estudos sobre interação e sobre antropologia das emoções. Entre os entrevistados, há um consenso de que a demonstração pública da homossexualidade é vista como problemática pelos “grupos externos”. De um modo geral, todos dizem que as pessoas não reagem bem quando defrontadas com indivíduos que vivem sua homossexualidade publicamente. As reações mencionadas são sempre emocionais e variam entre o choque, o nojo e a raiva. Para alguns, o incômodo gerado pela homossexualidade nos espaços públicos está relacionado aos papéis de gênero estabelecidos; contudo, esta “explicação” pode ser reelaborada em uma mais ampla que

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pode ser descrita como uma “quebra de expectativa”. Seguem alguns relatos que exemplificam este ponto:

[Inf.]: Mal, péssimo, óbvio [falando sobre as reações das pessoas à manifestação da homossexualidade em público]. Mas isso é normal cara, pensa bem... Normal não, é compreensível. Você não está acostumado a ver um tipo de cena, tipo ver dois caras se beijando. Até eu faço tipo “caraca” [o informante faz uma expressão de surpresa]. Assusta, você não espera. É tipo expectativas de possibilidades de coisas que aconteçam, como eu estar andando no chão e do nada eu começo a andar pela parede. Você vai ficar assustado. É uma coisa que você não espera, quebra da expectativa, entendeu? É por isso, mesmo que a pessoa não tenha preconceitos, vai assustar. (Entrevistado 8) [Inf]: Se for uma lésbica ou um gay que esteja invertendo muito o padrão que o senso comum está acostumado a ver: mulher feminina, de roupa feminina, delicada, frágil; homem másculo, marrento, fortinho. Se não for esse padrão, elas [as pessoas] vão ter um choque. O choque vai ser maior se for muito extravagante [...]. No momento em que a mulher é vista como mais masculina e homem é visto como mais feminino, isso causa um grande choque nas pessoas. (Entrevistado 2) [Inf.]: Eu acho que depende muito do lugar. Se é um lugar mais careta, mais tradicional a reação vai ser, talvez, de um pouco de choque, porque não está acostumado a ver. As pessoas não se incomodam, algumas não se incomodam com a homossexualidade em si, desde que seja aquela coisa entre quatro paredes e tal. Aí elas ficam um pouco assustadas quando veem outras pessoas que lidam bem com a sexualidade [...]. A sociedade espera que o homossexual é aquele que se priva, que ele se esconda, sei lá. Que ele só ande, que só frequente lugares tipicamente simpatizantes. (Entrevistado 1) Quando perguntados sobre o que acham da demonstração pública da orientação sexual, as opiniões dos entrevistados se dividiram entre aqueles que veem isso de forma positiva e aqueles que veem de forma negativa. As opiniões oscilam entre achar que a homossexualidade deve ser mantida no âmbito privado e defender que a orientação sexual deve ser vivida publicamente para que a mentalidade da população mude. Entre estes dois pontos extremos, há quem ache “normal”, quem ache “saudável” e há também quem diz não ter opinião formada sobre o assunto28.

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Para mais detalhes sobre este tópico, consultar o capítulo A Economia Emocional do Armário deste trabalho.

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6.4.3 “Isto aqui é um lugar de respeito”: vivências cotidianas da homossexualidade masculina

Existe um outro consenso que pode ser apreendido a partir das entrevistas: que todos não manifestam sua sexualidade da mesma forma em todos os lugares, especialmente nos locais públicos. Até mesmo aqueles que defendem a demonstração pública da orientação sexual como um projeto político praticam algum tipo de regulação do comportamento quando se encontram em ambientes em que são anônimos. Estes dados reforçam a ideia levantada no capítulo anterior de que a adoção de uma identidade homossexual é sempre negociada, pois depende do cálculo de perdas e ganhos que daí podem advir. Neste ponto, a categoria respeito adquire centralidade na regulação das interações. O respeito pode ser empregado com três significados distintos, a depender do posicionamento do sujeito com relação à identidade homossexual. Assim, pode-se ter o respeito aos outros, o respeito dos outros e o respeito a si mesmo (ou se dar ao respeito). O respeito aos outros surge nas falas daqueles que acham que a homossexualidade não deve ser demonstrada nos espaços públicos. O sentido aqui é o de respeitar a ideia de que a homossexualidade deve ser mantida no âmbito privado. Em última instância, a perspectiva do respeito aos outros reforça a heteronormatividade que marca a vivência da sexualidade no Brasil. Não raro, este discurso foi relacionado à presença de crianças nestes espaços. Segundo os entrevistados, eles, e também os pais/familiares de crianças, se sentem incomodados quando estas presenciam episódios de demonstração pública de homossexualidade29. O respeito aos outros aparece também na figura dos próprios pais/familiares. Dois entrevistados citam claramente que têm medo de serem motivo de vergonha para suas famílias e que por isso preferem restringir a exposição da sua sexualidade aos “locais apropriados”30.

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De acordo com os entrevistados, a manifestação da sexualidade em público é sempre problemática, sobretudo aos homossexuais. Enquanto as manifestações heterossexuais só são reprimidas quando “passam dos limites”, as sutis demonstrações de afeto como beijos rápidos, abraços e caminhar de mãos dadas não são tolerados quando entre pessoas do mesmo sexo. Os “locais apropriados” são aqueles que se destinam quase que exclusivamente à sociabilidade homossexual. 30

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Uma visão próxima a esta do respeito aos outros é a do respeito a si mesmo. Respeitar a si mesmo é, como sugere um dos entrevistados, “não dar motivo para ser alvo de fofocas”. O respeito a si mesmo obedece à mesma lógica de reforço da heteronormatividade do respeito aos outros, ao impor uma regulação do comportamento nos espaços públicos, com uma diferença no objeto de respeito. Divergente das duas primeiras, a perspectiva do respeito dos outros representa uma oposição ao heteronormativismo e a busca por aprovação da vivência pública da identidade homossexual. O respeito dos outros aparece nas falas daqueles que defendem a manifestação pública da homossexualidade com finalidade política. Contudo, como já discutido no capítulo anterior, o possível não respeito dos outros é alegado como uma das perdas acarretadas pela revelação da orientação sexual. Estas perspectivas não são estanques e excludentes; muitas vezes, elas apareceram em diferentes momentos de um mesmo entrevistado. Esta variação concorda com a ambivalência de sentimentos em relação ao padrão heteronormativo proposta por Gould (2001). Os diferentes sentidos atribuídos ao respeito desvelam a dinâmica de identificação-desidentificação vivida pelos homossexuais em relação à sociedade heteronormativa. Por fim, a expressão “isto aqui é um lugar de respeito”, que dá nome não só à presente seção, mas também ao trabalho, é também portadora de uma ambivalência. Esta expressão aparece no relato de um dos entrevistados como uma forma de cercear a demonstração de afeto entre ele e seu parceiro em uma determinada situação. Por outro lado, a expressão “lugar de respeito” pode ser utilizada para descrever um local onde todos são respeitados, independentemente da orientação sexual ou outras características. É neste aspceto que o próximo subtópico se deterá.

6.4.4 Lugares de respeito: a geografia da sociabilidade homossexual no espaço urbano do Rio de Janeiro

Conforme discutido no capítulo téorico a partir da obra de Goffman (1988), os indivíduos estigmatizados costumam frequentar três tipos de locais em suas rotinas: retirados, proibidos e públicos. A partir das entrevistas, pode-se formular uma divisão entre espaços apropriados, que equivalem aos locais retirados; e não-apropriados, correspondendo aos locais proibidos. O espaço público é então uma zona onde a 58

expressão da homossexualidade é negociada, alternando-se entre apropriado e nãoapropriado a partir das avaliações de cada um dos sujeitos. Os lugares apropriados são aqueles voltados para a sociabilidade homossexual, como bares e boates, ou espaços privados, como casas de amigos. Em suma, os lugares apropriados são aqueles onde o respeito à identidade sexual é garantido. Os locais nãoapropriados variam mais nas falas dos entrevistados, mas, de um modo geral, caracterizam lugares onde a identidade sexual não deve ser revelada, como um ambiente profissional, a casa da família, a sala de aula, entre outros. Chama a atenção o posicionamento de um dos entrevistados com relação a esta divisão dos espaços. Em sua visão, a segregação não é algo ruim, pois heteros e homossexuais são pessoas com interesses e gostos distintos. Em suas palavras:

[Inf.]: É porque é uma segregação, sei lá. Eu diria meio que... não é necessária, mas é uma segregação natural. São pessoas heterossexuais e homossexuais que tem interesses diferentes. Não só de interesses sexuais diferentes, mas interesses musicais, de moda, de tudo. Pegando um estereótipo, são pessoas bem diferentes. Então é natural que tenha essa segregação de boate gay e boate hetero, coisas do tipo. Não acho ruim não. (Entrevistado 5) Há outra divisão além dos locais apropriados e não-apropriados: aquela feita entre lugares tradicionais e modernos (ou liberais). Estas categorias são empregadas para classificar, principalmente, os espaços públicos e também se referem a locais onde a manifestação da homossexualidade é mais ou menos tolerada. A divisão entre locais tradicionais e modernos corresponde, em certa medida, a uma já conhecida oposição entre a Zona Sul e a Zona Norte/subúrbio da cidade do Rio de Janeiro. Tais distinções ficam claras nas seguintes passagens:

[Inf.]: Mas aí eu já estava com outra cabeça, com esse menino que eu namorei. Por mim, a gente andava de mão dada. Tudo bem, no Leblon, que é um lugar gay friendly, lá você não vai apanhar. (Entrevistado 7) [Ent.]: Como é que você acha que as pessoas reagem à manifestação da homossexualidade nos espaços públicos? [Inf.]: Infelizmente, muito mal. Assim, eu acho que mais pra Zona Norte, não tanto pra Zona Sul, ainda é mais rechaçado, preconceituoso e tal [se referindo à Zona Norte]. Eu realmente não sei muito da realidade da Zona Norte, mas eu imagino que seja. É muito pejorativo ainda, eu acho que há sérios riscos também, há uma periculosidade. Depende, tem ambientes que 59

são gays, que foram ocupados por gays e é normal. Ipanema por exemplo, ninguém é louco de ver alguém de mão dada e ter uma alguma reação contrária. O cara ali vai ser linchado. Depende muito do ambiente. Eu acho que infelizmente pra Zona Norte ainda é mais pejorativo. (Entrevistado 4) [Inf.]: Zona Sul é muito mais livre. Se você for no subúrbio... subúrbio eu tô dizendo Zona Oeste e as outras, tirando a Zona Sul e um pouco do Centro, a parte do Centro que é mais Zona Sul. Claro, é muito mais livre, muito mais aberto [...]. Quem é mais instruído, é mais liberal. E normalmente, no subúrbio isso é meio defasado. Até de cultura mesmo, cultura não chega ao subúrbio. Cultura na Zona Oeste? Como? Pra quê? Você tem igreja evangélica, você não precisa de cultura. Aliás, tem muito isso, igreja evangélica, principalmente nas Zonas Norte e Oeste. É muito forte, tipo, muito forte mesmo. Eles pregam totalmente a homofobia, dos pés à cabeça, e abertamente. Achando que estão certos. (Entrevistado 8) [Inf]: [...] Eu tinha bebido bastante, era carnaval, então já viu. O garoto era muito bonito e eu não estava com medo de homofobia, tinha bebido, não estava com medo de nada. Eu fiquei com ele e lembro das pessoas até gritarem “isso aqui não é Ipanema não hein!”. (Entrevistado 3) Em seu texto sobre a articulação entre gênero, sexualidade e subjetividade, Heilborn (1999) salienta que a distinção Zona Norte/Zona Sul faz sentido quando se fala sobre as fronteiras morais erigidas sobre estes espaços. Já Carneiro (2009) enfatiza o papel da mídia na produção desta oposição. Segundo a autora, os meios de comunicação de massa possuem um importante papel na difusão de que a “Zona Norte e a Zona Sul possuiriam

valores,

modos

de

vida,

sociabilidades

claramente

distintas

e

incomparáveis” (Ibidem:193). Assim, a cidade do Rio de Janeiro estaria dividida em dois universos distintos que demarcam fronteiras simbólicas por razões sociais, econômicas e morais. Deste modo, entre alguns entrevistados, a Zona Sul é compreendida como uma área mais moderna, onde é possível viver publicamente uma identidade homossexual; enquanto a Zona Norte/subúrbio é vista como um espaço mais tradicional, conservador, onde os desvios são menos tolerados.

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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa aqui apresentada teve por objetivo analisar como o fenômeno da homofobia regula as manifestações da homossexualidade nos espaços públicos. Os sujeitos de pesquisa foram homens jovens entre 18 e 24 anos, universitários, de classes média e popular, residentes da cidade do Rio de Janeiro. Na introdução foram expostos um breve histórico do tratamento conferido à homossexualidade no Brasil e dados quantitativos e qualitativos de pesquisas sobre homofobia. Com isso, pretendi demonstrar o atual estado das investigações sobre esta temática e justificar, de certa forma, a proposição do presente estudo. No segundo capítulo foi detalhada a metodologia adotada na coleta de dados, que consistiu na realização de entrevistas em profundidade. Este capítulo encontra-se organizado em três seções: a primeira explicando os aspectos metodológicos, a segunda sobre o instrumento de pesquisa empregado e a última descrevendo o desenvolvimento do trabalho de campo. No terceiro capítulo foi dada atenção aos pressupostos teóricos que orientaram não só a construção do objeto, mas também as análises empreendidas posteriormente. Nesta parte do texto foi apontado como a observação do fenômeno da homofobia articulou-se aqui com outras áreas de estudos sociológicos e antropológicos: a corrente do interacionismo simbólico, os estudos de antropologia das emoções e as investigações sobre gênero e sexualidade. O quarto capítulo foi composto de resumos das trajetórias dos sujeitos entrevistados, o perfil de cada um e também os principais pontos abordados em suas narrativas. Tal capítulo é fundamental para dar ao leitor uma ideia do universo pesquisado. No quinto e no sexto capítulos foram apresentadas as análises e os resultados da pesquisa. O primeiro deles tratou da “economia emocional do armário” e do par tensãoalívio no qual se apoiou a análise. Em outras palavras, foi abordado o cálculo de ganhos e perdas emocionais que a adoção de uma identidade homossexual pode trazer. Neste capítulo foi discutida também a “centralidade do medo” no par medo-segurança, em torno do qual gravitam outros sentimentos como respeito, vergonha, culpa, raiva e coragem. No capítulo seguinte foram discutidos os processos de construção da identidade homossexual – percepção, aceitação, prática e comunicação – com ênfase no último. Foram examinadas também as percepções e negociações dos sujeitos acerca 61

das vivências da homossexualidade nos espaços públicos, principalmente em relação aos “lugares de respeito”, na dupla acepção desta expressão, ou seja, nos lugares onde se deve respeito aos outros e onde se tem o respeito dos outros. É preciso destacar que os resultados aqui apresentados não esgotam, de forma alguma, as possíveis análises dos dados coletados. Por questões de ordem prática, os dados do quarto bloco de perguntas – percepções sobre homofobia – não foram discutidos detidamente neste trabalho, principalmente os discursos sobre o que é entendido como homofobia. Chamo atenção também para o fato de três dos processos de construção da identidade homossexual – percepção, aceitação e prática – não terem sido trabalhados com maiores detalhes aqui. O objetivo de investigar a regulação do comportamento nos espaços públicos fez com que a dimensão da comunicação fosse privilegiada. Contudo, notar a existência destes processos abre caminhos para novas pesquisas futuras sobre o tema. Por fim, é importante salientar que os dados aqui expostos ajudam a problematizar certas ideias amplamente difundidas, especialmente no tocante ao modelo do indivíduo gay de camadas médias urbanas. A diversidade de posicionamentos possíveis frente à escolha de uma vivência pública ou não de uma identidade homossexual contrasta com os ideais de orgulho e visibilidade que foram, e ainda são, amplamente divulgados pelo movimento homossexual brasileiro (Facchini, 2005). Neste sentido, o modelo do homossexual que vive abertamente sua sexualidade e é assumido em todos os seus círculos sociais é valorizado e entendido como necessário para as conquistas políticas do movimento. Entretanto, podemos verificar ao longo do texto que aquelas não são as únicas noções acionadas na construção de uma identidade homossexual e nem este o modelo univocamente adotado; existem lógicas diferentes que orientam a significação das relações entre pessoas do mesmo sexo e com isso produzem outras identidades, a exemplo do que foi demonstrado por Fry (1982).

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ANEXO I – Roteiro de Entrevista Bloco 1 – Perfil Sociodemográfico 

Idade; escolaridade; ocupação (nível de autonomia); local de moradia; composição familiar e residencial; renda do domicílio; escolaridade dos familiares; religião (atual e de criação).

Bloco2 – Assumir-se homossexual 1.

Como você define sua orientação sexual?

2.

Quando você descobriu sua orientação sexual? Como foi esse processo?

3.

Todas as pessoas do seu círculo sabem sobre sua orientação sexual? Por quê?

4.

Quais foram as reações das pessoas ao saberem sobre sua sexualidade?

Bloco 3 – Dinâmica do ocultamento/revelação 5.

Como você acha que as pessoas reagem à homossexualidade em lugares públicos?

6.

O que você acha sobre a demonstração da homossexualidade em público?

7.

Você manifesta sua homossexualidade da mesma forma em todos os locais públicos? Em que lugares se sente menos confortável? Por quê?

8.

Que tipos de comportamentos você costuma evitar nestes locais? Quais comportamentos você adota em vez desses? Como você se sente em relação a isso?

9.

Você alguma vez já se comportou de uma forma que procura evitar (cometeu uma gafe)? Como foi essa situação? Como você e as pessoas lidaram com isso?

10. Você vivencia seus relacionamentos abertamente (publicamente)? Em que medida? 11. Não ser assumido para todas as pessoas representa algum problema para você? Bloco 4 – Percepções sobre homofobia 12. Você conhece alguém ou sabe de algum caso de vítima de agressão ou preconceito por ser, parecer e/ou estar junto de homossexuais? 13. Esses casos afetam o seu comportamento? Como? Por quê? 14. O que você entende por homofobia?

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