Isto não é uma adega (é um templo)

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Isto não é uma adega (é um templo) Pedro Treno Aluno de dissertação

Esta é a história de um homem marcado por uma imagem de infância.1 Assim começa “La Jetée”, filme pré-futurista, pioneiro de uma ficção científica, tão frenética quanto intimista, apocalipse desafiado pela relação impossível entre um homem e uma mulher, mulher essa que está presente na dita imagem perdida na memória do primeiro. A noção de passado representada por essa relação que presumivelmente nunca existiu vai sendo distorcida à medida que a figura masculina avança em direcção a várias fases do futuro, acabando por recusar a eventual permanência num mundo seguro, pacífico, onde os problemas são inexistentes, para poder voltar à sua imagem enigmática, onde nada é certo mas o impulso de ficar é altamente desejável. Insurgindo neste hipotético regresso ao passado, numa aproximação à regressão, pode-se entender a arquitectura - numa determinada percepção espacial - de outra forma, fazendo uso das memórias e dos vestígios que o tempo foi deixando, possivelmente à espera que alguém lhes pegue de novo, para que não seja em vão a sua passagem por este mundo. Qual é a dimensão temporal da memória? E como se desdobra a mesma memória na arquitectura? Sendo perguntas que podem ser tão complexas como triviais, não se pode chegar perto de uma resposta ou ensaio ultra-rigoroso sobre tal neste artigo, correndo talvez o risco de se perder na timeline (La Jetée dixit), à procura de metáforas e analogias que nem sempre são consequentes. Contudo, é tangível afirmar que a percepção do arquitecto em relação à memória vai mudando frequentemente ao longo dos séculos, década após década, revolução após revolução, com ou sem vanguardas. 68

A interiorização da arquitectura dentro de um território muitas das vezes pressupõe um olhar benevolente e optimista em relação ao significado e à importância de determinadas obras dentro da cultura onde estão inseridas. É por isto que, quando se entra em Paris, eis a Torre Eiffel que passou de escultura aberrante odiada por metade da cidade (incluindo artistas e arquitectos) a ícone amado por habitantes e turistas. Quando se fala em ícones, associa-se automaticamente o turismo e a carga simbólica presente nos ditos edifícios. Mas os acontecimentos que aí tomaram lugar, registados e adaptados pela literatura, pela arte, pela historiografia e por toda uma cultura popular desenvolvida no século XX, são frequentemente reduzidos a meia dúzia de factos e dificilmente sobrevivem da melhor forma, tornandose associados a histórias e não a memórias. A arquitectura enquanto ruína (e depois enquanto monumento) é a prova física de um passado, onde a história está presente por intermédio da percepção que, aliada ao conhecimento, origina assim uma experiência muito mais profunda de significado que acontece entre visitante e lugar. Pegando nesta lógica de visita e de contemplação em jeito de uma homenagem instituída, tenta-se compreender o fascínio dentro da noção recente de memória e da sua expressão construída. É então pertinente procurar o pensamento por detrás desta consciência através de alguns exemplos do século passado e de alguns registos de perdão e lembrança assentes na moral contemporânea - a piedade colectiva que tarda sempre a chegar sendo que, na maioria dos casos, é instaurada depois de uma catástrofe ou episódio traumático. Depois, para não cair no esquecimento, as estratégias são várias.

‘(...) porque todas as coisas estão constantemente a cair no esquecimento a cada vida que se extingue, o quanto o mundo como que se esvazia por a história de incontáveis lugares e objectos, em si incapazes de memória, nunca ser ouvida, nunca ser mostrada ou transmitida.’ 2 Em 1926, Mies van der Rohe desenha o memorial para os militantes defuntos Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht, fundadores do grupo Spartakusbund (que originou depois o Partido Comunista Alemão) destinado a travar a permanência da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Construído no Cemitério Central Friedrichsfelde em Berlim, era um grande bloco rectangular de betão armado com revestimento de tijolo em toda a volta - tijolos esses que foram fabricados a partir de vestígios sólidos de balas provenientes de edifícios danificados ou destruídos durante as revoltas do Spartakusbund.3 Tendo sido demolido em 1933 pelo partido Nazi que havia ascendido recentemente ao poder, o simbolismo implícito no edifício acabou por ser derrubado pelo mesmo poder contra qual o grupo havia lutado. A Casa de Tijolo (1923), projecto não construído, é um dos exemplos mais explícitos da exploração formal e tectónica do arquitecto nesta altura, experimentando conceitos provenientes da pintura De Stijl aliados à construção em assemblagem. As paredes de tijolo são então o suporte para desenvolver a complexidade entre cheios e vazios, entre espaços assimétricos e divisões. Esta ideia de vários planos com paredes fixas teria sido explorada anteriormente pelo arquitecto Hendrick Berlage ‘Antes que ninguna otra cosa, la pared debe mostrarse desnuda en toda su sentida belleza.’ 4 E assim, as paredes rígidas do memorial são já uma confirmação das experiências de Mies que culminam mais tarde no projecto que será tido como um

exemplo máximo de clareza entre espaço e forma, o Pavilhão de Barcelona (1929). Porém, não se pode associar apenas argumentos de ordem técnica a este objecto quando existem razões que a própria arquitectura desconhece. Mies, numa entrevista feita em 1926 pelo comentador comunista Eduard Fuchs, explica o porquê de ter utilizado a parede de tijolo enquanto solução digna para o projecto: ‘As most of these people [Rosa Luxemburg, Karl Liebknecht, other fallen heroes of the revolution] were shot in front of a brick wall, a brick wall would be what I would build as a monument.’ 5 Aqui, a arquitectura cumpriu o papel de homenagear uma dupla de revolucionários através de um memorial que eleva a relevância política destes a partir da sua escala e magnitude, associado-se também ao simbolismo de resistência implícito na mensagem deixada pelos mártires. É também curioso observar que, três décadas mais tarde, na mesma cidade de Berlim, a ideia de muro a partir de um plano único de tijolo acabaria por se expandir para proporções grotescas, originando assim o muro que separou a cidade em duas partes, desde 1961 até 1989, quando foi deitado abaixo.

“La Jetée”, realizado por Chris Marker (1963) Winfried Georg Sebald. Austerlitz. Lisboa : Teorema, 2004, p.24 3 Ross Wolfe. Mies’ Memorial to Rosa Luxemburg and Karl Liebknecht (1926). Blogue “The Charnel House” (http:// rosswolfe.wordpress.com/) 4 Allan Greenberg, Ricardo Guasch Ceballos, Txatxo Sabater. Espacio fluido versus espacio sistemático: Lutyens,Wright, Loos, Mies, Le Corbusier. Sant Cugat: Escola Tècnica Superior d’Arquitectura del Vallès: UPC, 1995, p.56 5 Ross Wolfe. Ibidem

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Pág. 69 Mies van der Rohe - Memorial para Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht (foto e alçados) 69

Mas continuando pelo rasto de destruição deixado pelo partido Nazi em Berlim, vamos ter de forma inevitável ao acontecimento de terror que mais mortos originou no século XX, a 2ª Guerra Mundial. Depois do seu término em 1945, os países atingidos foram sendo reconstruídos, retomando o seu funcionamento e condições de vida pouco a pouco. A Alemanha, devido à intervenção directa do Nacional-Socialismo que proporcionou todo o tipo de métodos para aniquilar os habitantes judeus em território nacional (assim era o plano denominado por “solução final”), viveu a sua “hora zero” (Stunde Null), tendo os julgamentos de Nuremberga (194546) marcado um começo nos acertos de conta relativamente aos crimes contra a humanidade. ‘(...) a memória e o dom de lembrar, dos quais provém todo o desejo de imperecibilidade, necessitam de coisas que os façam recordar, para que eles próprios não venham a perecer (...)’ 6 Em Berlim, desde os anos 1970 até hoje, foram erguidos cerca de quarenta e cinco memoriais e museus. Dois exemplos que foram extensamente discutidos são o Museu Judaico, projecto de Daniel Libeskind concluído em 1999 e aberto em 2001, e o Memorial aos Judeus Mortos da Europa, obra de Peter Eisenman terminada em 2004 (sendo que o processo de planeamento e competição começou dez anos antes). O Museu Judaico apresenta um conjunto complexo que pretende esmagar o visitante a partir da escala e das várias componentes formais provenientes da desconstrução característica no processo de Libeskind. Sendo uma extensão de uma préexistência, apresenta-se como um labirinto interior 70

onde os percursos que começam no escuro do piso enterrado se estendem em longas escadarias e corredores, cada um com um final que só se revela a partir da luz que se apresenta de várias formas. Visto de fora, ao corpo principal que apresenta toda esta cenografia feita de betão e aço, associam-se duas peças que representam uma espécie de díptico atmosférico: a Torre do Holocausto, com uma altura de 24 metros e uma espécie de fresta no topo do canto mais apertado, e o Jardim do Exílio com vários pilares cuja única estrutura que pretendem suportar é a vegetação plantada no topo de cada um. No Memorial aos Judeus Mortos da Europa, Peter Eisenman aplica um processo de decomposição7 num cemitério abstracto onde se pretende que a forma e materialização sejam condutores de uma presença e não tanto de um simbolismo. Poderão tecer-se analogias com o Jardim do Exílio, dada a utilização de uma métrica para desenhar o espaço mas Eisenman leva o “jogo de tabuleiro” para uma perspectiva tridimensional onde a altura de cada uma das 2711 peças de betão é alternada bem como o próprio chão que unifica o espaço. Ambos os projectos são exemplo do peso do Holocausto e ambos representam um determinado caos e monumentalidade que pretende, de certa forma, engrandecer a memória ou gritar a plenos pulmões que nada do que aconteceu será esquecido. Hannah Arendt. A condição humana. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2001, p.210 7 Peter Eisenman. The Futility of Objects: Decomposition and Processes of Differentiation. Harvard: Harvard Architecture Review nº 3, Winter 1984, p.64-82 6

Pág. 70 (esquerda e direita) Daniel Libeskind - Museu Judaico de Berlim (1999) Peter Eisenman - Memorial aos Judeus Mortos da Europa (2004)

‘(...) it is not enough to say that memory is expected to reflect accurately the collective or individual past, because this merely begs the question: why do we need an accurate representation of the past to begin with? How accurate should it be? For what purpose?’ 8

exageros simplistas. Neste, os sobreviventes de alguns campos de concentração na Polónia são convidados a falar e a percorrer os vários locais onde estiveram durante os anos de guerra. Muitos deles aceitam, outros ficam-se pelo testemunho.

Pode-se então questionar se a arquitectura legitima a memória da forma mais acertada e se o gesto necessário para uma homenagem é o da construção. Porque este tipo de museus e memoriais são, em muitos dos casos, uma forma de redenção imposta por autoridades e comissões organizadas que falam em nome de um grande número de pessoas, caindo em exageros sobre o que fazer e como fazer. O enobrecimento da memória pode ser perverso e a arquitectura pode, de certa forma, possibilitar esse desvio.

Citando um dos intervenientes nos primeiros minutos do filme, aquando de uma visita aos restos de um dos campos: ‘Ninguém o pode descrever. Ninguém pode recriar o que aconteceu aqui. Nem mesmo eu, aqui e agora’, traduzindo assim

Como antítese deste tipo de construções, poderá sobrar uma alternativa ou inevitabilidade: a visita ou revisita da origem. Um confronto que poderá extrapolar qualquer noção clínica ou esterilizada

uma resignação inevitável face ao passado. A arquitectura ficou portanto onde sempre esteve. Para estes sobreviventes, muito provavelmente não é necessário um museu ou um memorial. Nem para ficcionar o que foi vivido, nem para engrandecer tal tragédia e muito menos para sustentar a memória à força.

da memória enquanto construção actual. Terminando então no pós-holocausto, o percurso por campos de concentração ou vestígios destes traz em si um grau de violência, murro no estômago e vergonha alheia que este passado recente obriga a reter, enfrentando-se fantasmas que se criaram a partir dos vários media que registaram e assimilaram estes eventos da história recente (maioritariamente a partir da televisão, cinema, artes plásticas e literatura). É por isso que no filme “Shoah”9 (termo hebreu para “holocausto”), não há caos nem

Gil Eyal. Identity and Trauma: Two Forms of the Will to Memory. Bloomington: History & Memory, Volume 16. Number 1, Spring/Summer 2004, p.5 9“ Shoah”, realizado por Claude Lanzmann (1985)

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Pág. 71 Fotogramas do filme “Shoah”

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post scriptum

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Esta é a história de um homem marcado por uma imagem de infância. A memória da infância, materializada pela primeira vez. A percepção consciente de um edifício que sempre esteve à nossa frente. O tempo que passa e que se apresenta cristalizado qual bloco de mármore. Quando a construção era necessária, feita pela experiência, adaptando-se ao programa pretendido. E como nada se constrói por acaso, a precisão é aplicada no edifício de forma instintiva, com o saber à mão de semear, pronto a executar. Sem mariquices, sem tempo para conversas.

entre pipas, ânforas, uma mesa central que se apropria enquanto escritório improvisado e uma casa-de-banho (naturalmente, não há “instalações sanitárias” aqui). A possível nostalgia poderá vir de um desencanto com algumas das características da arquitectura e do que esta representa. Talvez por intermédio da sobrevalorização daquilo que um arquitecto pode fazer, o poder que se detém e o querer mudar o mundo quando este não quer ser mudado.

A adega do meu avô - igual a tantas outras mas única para a minha existência, evidentemente - é a memória de infância que julgava perdida e que reencontrei por intermédio do pensamento acrítico da arquitectura.

Não se trata de uma recusa mas de uma apropriação que poderá ser vital para uma qualquer realidade onde nos encontramos. E em que essa mesma realidade poderá agarrar as várias noções de familiaridade e encontrar uma razão para valorizar a memória, de modo a auxiliar um qualquer processo e atitude projectual.

Uma adega alinhada entre a garagem e as vinhas. Caverna onde a luz jorra de forma delicada pelo telhado, incidindo directamente na maquinaria que esmaga as uvas. O espaço quer-se frontal, onde tudo aparentemente ocupa o seu lugar. Mas depois uma parede engana, parece criar uma cenografia

De quando se está à procura de respostas e mais tarde se descobre que estas estiveram sempre à nossa frente. Na hora decisiva, conhecimento confunde-se sempre com intuição, da mesma maneira que passado se confunde com futuro. As estrelas estarão sempre desalinhadas.

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