\"Itabira é apenas uma fotografia na parede, mas como dói!\" - Estudo das imagens urbanas percebidas da cidade de Itabira, Minas Gerais, Brasil

Share Embed


Descrição do Produto

Dedico esse livro aos meus pais, Lucas e Marilene, meus pilares nesse mundo.

Os homens nasceram em um mundo que contém muitas coisas naturais e artificiais, vivas e mortas, transitórias e sempiternas. E o que há de comum entre elas é que aparecem e, portanto são próprias para serem vistas, ouvidas, tocadas e cheiradas, para serem percebidas por criaturas sensíveis dotadas de órgãos sensoriais apropriados. Nada poderia aparecer (a palavra aparência não faria sentido) se não existissem receptores de aparências, criaturas vivas capazes de conhecer, reconhecer e reagir (em imaginação ou desejo, aprovação ou reprovação, culpa ou prazer) não apenas ao que está aí, mas ao que para elas aparece e que é destinado à sua percepção. Neste mundo em que chegamos e aparecemos vindos de lugar nenhum e do qual desaparecemos em lugar nenhum, Ser e Aparência coincidem. A matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável depende, em seu ser, isto é, em sua qualidade de aparecer, da presença de criaturas vivas. Nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador. Em outras palavras, nada do que é, à medida em que aparece, existe no singular. Tudo o que é é próprio para ser percebido por alguém. Não o homem, mas os homens é que habitam este planeta. A pluralidade é a lei da Terra. (Heidegger, 1972)

APRESENTAÇÃO Este livro é resultado dos estudos realizados no programa de mestrado em Geografia e Tratamento da Informação Espacial da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/Minas), sob orientação do Professor Doutor Oswaldo Bueno Amorim Filho. Privilegiamos como tema de estudo as representações e as “imagens urbanas” numa tentativa de ultrapassar a investigação geográfica ligada estritamente a aspectos visuais das paisagens, para que se alcancem os seus significados e os seus valores por meio de instrumentos que possibilitem a captura da percepção dos que habitam o espaço da cidade. Embora a paisagem seja um dado da realidade, a forma como ela é percebida e significada é não só singular, como também criadora de sentido. Captar as imagens percebidas pela população é desse modo, uma forma de apreender a realidade vivida pelos indivíduos e pela coletividade, pois essas imagens constituemse em fontes privilegiadas de informações sobre a cidade. No presente estudo, a análise dessas imagens objetiva a compreensão do movimento constitutivo das práticas sociais ou de parte delas, sobretudo, no que se refere à captação da dinâmica de investimentos e interesses envolvidos na produção do espaço da cidade. Adotamos a perspectiva geral da geografia humanista-cultural para estudar as imagens urbanas e duas fontes de conhecimento foram tomadas como ponto de partida: a fenomenologia e a percepção ambiental. Estas duas fontes, ou concepções, trazem implícitas a ideia do sujeito inserido no ambiente, enquanto corpo e totalidade, dotado de cognição e inteligência. Além disso, permitem descrever, compreender e interpretar os significados das experiências humanas no mundo e se concentrar em questões de investigação, por exemplo, como um indivíduo ou uma coletividade se comporta em uma situação particular. A pormenorização da aplicação e do tratamento fenomenológicos – uma das principais bases filosóficas da geografia humanista – evidencia, primeiramente, nossa profunda admiração pelo “andar incoativo” desse modo de pensar, pois, assim,

inacabado, é o nosso mundo, esse onde estamos inegavelmente inseridos, antes de qualquer racionalização possível. Em segundo lugar, exprime uma necessidade pessoal de aprofundamento e imersão em conceitos que são tão caros à geografia humanista, tais como experiência, mundo vivido, valor, entre tantos outros. Ademais, a geografia por ser uma ciência “plural” tanto no pensamento quanto na prática, abarca uma quase infinidade de temas e enormes conjuntos de olhares sobre esses temas. Por isso, acreditamos que a Geografia é uma atividade intelectual extraordinária e de imenso alcance porque nos “[...] permite ver e sentir; descrever, representar e explicar, desmembrar e integrar; admirar e amar a natureza e a sociedade...” (AMORIM FILHO, 2007, p. 31). É justamente a busca por compreensões mais plurais que promove a interseção da geografia com outros campos do saber, tais como a biologia, a sociologia, a filosofia, a literatura e as artes. No entanto, esse trabalho não é simples para o geógrafo, nem para os outros profissionais, pois, sob esse ponto de vista, reconhecese que a incompletude tácita das formas de pensar “compartimentadas” traz imensos prejuízos ao desenvolvimento das pesquisas de viés humanista (TUAN, 1982). Como observa Ítalo Calvino (1996) no prefácio de sua alegoria O visconde partido ao meio, o pesquisador contemporâneo está em eterna dívida, em sua irremediável incompletude, pois toda pesquisa tem um quê de arte, um quê de imaginação e necessita, inevitavelmente, trafegar por campos do conhecimento onde, na maioria das vezes, a ciência tradicional não trafega. Esperamos que a presente publicação contribua com o desafio de ultrapassar os limites impostos pelo saber compartimentado e para pensar o mundo de maneira holística. Além disso, é preciso ter a consciência de que a incerteza é o que nos move na busca do sentido e do significado das coisas, e é o que possibilita a aventura do saber, do conhecer, enfim, do pensar.

Fernanda Braga Delft, Dezembro de 2014.

1

A FENOMENOLOGIA COMO APORTE TEÓRICO METODOLÓGICO PARA A GEOGRAFIA HUMANISTA

E

O atributo essencial do mundo é o fato dele ser percebido por todos nós. (ARENDT, 1997)

O interesse pelo estudo do urbano e das cidades, em geografia humanistacultural, se dá com a revitalização deste campo, a partir das décadas de 1960 e 1970, momento no qual passou-se a considerar as formas de apreensão da cidade e de sua percepção pelos indivíduos.1 Uma das críticas empreendidas à abordagem humanista da geografia se relacionou, como veremos, à sua suposta “ingenuidade” no tratamento da realidade, e que poderia revelar um olhar impregnado de um cientificismo acrítico derivado, em grande medida, do racionalismo positivista. No entanto, a perspectiva humanista mostra justamente o contrário desta afirmação, visto que considera que a experiência individual carrega significados do particular, do vivido e do cotidiano, cheios de simbolismos das mais variadas fontes. Destes significados, potencialmente, emanam percepções individuais e coletivas, tidas como expressões da constituição dos espaços das cidades e, com efeito, das imagens e representações pelas quais essas são captadas e traduzidas.2 Por conseguinte, tem-se que os espaços das cidades se produzem por meio de processos complexos (sociais, políticos e econômicos) que não suprimem as experiências individuais e, ainda, que esses processos criam diferentes paisagens e territórios com características peculiares. Pode-se considerar, também, que, em uma escala maior, esses processos se refletem na construção dos lugares, criando espaços de vivência. Em virtude disso, 1

É necessário que se ressalte, no entanto, que os estudos da temática urbana, em outras correntes da geografia nascem, praticamente, em concomitância com o fenômeno urbano em sua fase mais dinâmica, ou seja, a partir do final do século XIX. 2 Yi Fu Tuan (1980; 1983) acredita que a cidade é a paisagem cultural por primazia, pois apresenta-se como um ambiente artificial, um ecossistema construído, com grande densidade populacional e intensa divisão social do trabalho sendo, por excelência, locus da produção, do consumo e da reprodução da vida.

7

esses espaços de vivência refletem a tensão entre os modos ou práticas impostos, de certa forma, pelas escalas globais (em alguma medida, homogeneizadoras) e as tradições culturais, hábitos e costumes, profundamente arraigados em sua constituição.

Disso

decorrem

as

possibilidades

de

se

gerarem

infinitas

(re)significações pela imbricação e substituição de características e elementos que os compõem e os marcam. Dinâmica e concomitantemente, essas relações se dão de forma mais evidente nas cidades e envolvem, obviamente, as pessoas residentes e produzem arranjos espaciais específicos que se manifestam ou se corporificam na paisagem de forma visível, ou não visível, e produzem imagens de cidade carregadas de simbolismos, significados subjetivos, imaginação e memórias que têm potencialidades para serem apropriadas por seus moradores e agentes intervenientes. Para Ferrara, O ambiente urbano decorre dos impactos produzidos por aquelas relações que, conquanto eficientes para a explicação do fenômeno urbano, não são auto-evidentes, ou seja, não podem ser apreendidas senão pelas marcas e sinais que deixam impressas no cotidiano dos lugares, ou nos hábitos, nas crenças, valores e ações de uma coletividade. (FERRARA, 1999, p. 63-64).

Desse modo, determinados grupos sociais em interação com as paisagens e lugares urbanos podem criar “modelos de cidades” (SÁNCHES, 2003), que estão em constante construção/desconstrução, em todo o mundo, e prontos a serem utilizados de acordo com determinados interesses de promoção e inserção em roteiros comerciais, turísticos, industriais, entre outros. Assim, por considerar que a apropriação dessas imagens urbanas se dá, em boa parte, por determinados interesses que se projetam sobre o espaço da cidade e pela inserção dos indivíduos nos seus espaços vividos e apropriados na cidade – onde se dão as relações mais imediatas do cotidiano –, o estudo das imagens urbanas, ainda que derivem, em grande medida, dos estudos de paisagem e de lugar, tem, atualmente, renovado o fôlego destes últimos, principalmente, após a inclusão das contribuições da fenomenologia no contexto dos estudos de geografia humanistacultural. 8

1.1 A evolução do pensamento geográfico e o contexto para o desenvolvimento da geografia humanista A utilização do conceito de cultura é marcada por inúmeras controvérsias. Isso se deve, em grande medida, às aproximações com o conceito de civilização convenientemente promovidas por análises originalmente propostas, a partir do século XIX, em distintos campos de conhecimento, sobre a nascente sociedade capitalista.

Dessas

aproximações

se

desprendem

algumas

confusões

não

negligenciáveis, que se devem ao fato de que todo o aparato material e, portanto, cultural, construído por uma sociedade era visto como a garantia para que esta fosse considerada civilizada e, comprovadamente, de acordo com determinados parâmetros fortemente carregados de preconceitos, superior. Nesses termos, a imagem de civilização era profundamente solidária aos ideais de progresso e de evolução, que, nela, constituiriam aqueles ingredientes fundadores da própria modernidade (GOMES, 1999). Para os geógrafos, essa ideia de cultura era também muito presente. Por isso, pode-se afirmar que, em seu aspecto tradicional, os estudos culturais em geografia humana, nascidos no século XIX, privilegiavam o tratamento da adaptação das sociedades ao meio físico e das técnicas elaborados pelos homens para dominar o espaço. Derivados dessa ideia de cultura foram desenvolvidos, inicialmente, na geografia alemã, os estudos de Carl Ritter. Posteriormente, trilhando os caminhos abertos por Ritter, Friedrich Ratzel desenvolveu, em 1882, a sua “Antropogeografia”, propondo a análise dos fundamentos culturais da diversidade dos homens e das civilizações, com uma abordagem ora etnográfica, ora política em sua interpretação geográfica. Ratzel (1844-1904) cunhou uma das mais interessantes teorias da geografia desse período, que bebia nas fontes, à época, em evidência: o darwinismo, o hegelianismo e o colonialismo.3 3

Ratzel tinha interesses nacionalistas, ligados ao partido alemão, desenvolvendo uma visão muito própria do papel do Estado. Ele pensava o mundo e a história como a realização de um plano no qual a grandeza das sociedades só poderia se exprimir pela grandeza do Estado, subentendendo-se aí, principalmente, o Estado

9

Para Ratzel, as sociedades também passariam pelo processo de “seleção natural”, como na teoria darwinista, e seriam “classificadas” de acordo com seu grau de evolução.4 Não se deve perder de vista, no entanto, o fato de que ele foi um homem de seu tempo. Como observa Martins (2004, p. 2), “Em linhas gerais, a obra de Ratzel é uma tentativa de superar uma geografia puramente descritiva e de avançar na formulação de grandes construções explicativas, onde o ‘sentido de espaço’ (Raumsinn) ocupa lugar primordial.” 5 Ao final do século XIX, contribuições advindas de outros campos de estudos concorreram com aquelas propostas, inicialmente, por Ratzel. Não obstante o fato de que as teorias mais utilizadas em geografia ainda relacionavam a cultura com elementos fortemente influenciados por aspectos físico-ambientais, verifica-se, nesta época, o seu questionamento, tanto na geografia quanto por outras disciplinas, sobretudo, pela antropologia. Por sua vez, Alfred Hettner, a partir de 1910, aponta que a geografia é uma ciência que investiga tanto as dimensões da vida espiritual como da vida natural, reunidas na chamada “corologia”, o que permite a esse autor posicionar a cultura como dimensão formadora do espaço e, além disso, considerar que a geografia poderia ser tanto uma geografia da materialidade como da significância (SAHR, 2007). germânico do final do século XIX. (LOPRENO; PASTEUR; TORRICELLI, 1994). Atualmente, apesar de algumas de suas ideias serem consideradas preconceituosas, Ratzel é reconhecido, por muitos, como um dos fundadores da moderna geografia humana, sendo um dos responsáveis pela inclusão de aspectos culturais nos estudos geográficos e também pelo estabelecimento da geografia política como disciplina. 4 A colonização, segundo essa teoria, seria o momento de entrada em contato de dois povos, quando um seria suprimido pelo outro, graças à sua menor vitalidade. Ou seja, para desenvolver-se, a Alemanha teria que vencer os povos culturalmente “inferiores” ou “povos naturais” da África, por exemplo. O império alemão colonizou os atuais Camarões, Namíbia e Tanzânia, pois os ingleses, os franceses e os portugueses já haviam colonizado a maior parte dos territórios africanos. Ratzel cunhou o conceito de espaço vital, que se refere ao território ocupado por um dado povo e à noção de movimento de expansão; ou seja, quanto mais dinâmica fosse uma nação mais ela teria que se expandir territorialmente – graças à sua crescente necessidade de extração de matérias-primas e de alimentos. A ligação entre o Estado e o solo era, para Ratzel, a coisa mais importante para uma sociedade. O espaço seria o suporte para o seu desenvolvimento, portanto, vital para a sua sobrevivência. (Cf.: LOPRENO; PASTEUR; TORRICELLI, 1994). 5 Martins (2004, p.1) observa ainda: “A abrangente produção ratzeliana deixa transparecer a integração de fatos da modernidade e do rápido desenvolvimento da sociedade no contexto da Alemanha que se unificava. Reflexões sobre o Estado, a história, as raças humanas, o ensino da geografia e a descrição de paisagens perpassam a obra do geógrafo, que se preocupava em auferir uma identidade comum à nação em formação. No Brasil, é o Ratzel determinista que se destacou na produção historiográfica da geografia, resultado da leitura da obra ratzeliana através da literatura francesa, sobretudo da obra de Lucien Febvre – La Terre et L’Évolution Humaine (1922) – que estigmatizou a pecha de determinista para Ratzel [...] termo cunhado pelo próprio Febvre.”

10

Entre os geógrafos franceses, onde mais se desenvolveu uma geografia humana “regional”, o que interessava era, principalmente, definir o gênero de vida das populações. Nesse sentido, é importante ressaltar os estudos de Élisée Reclus, pois o espírito de sua obra é efetivamente o da “geografia humana”, tornada grandiosa justamente pela “[...] eleição do humano como fio condutor da reflexão dos geógrafos (humanismo possibilista) e a valorização suprema das conexões entre elementos complexos (físicos e humanos) da realidade como fator explicativo das divisões e das entidades regionais.” (AMORIM FILHO, 1988, p. 22). Desse modo, Reclus, como humanista e como anarquista que era, inaugura, sem alarde, uma tendência possibilista e coloca-se como um de seus precursores, criando alternativas ao determinismo. No tocante à antropologia, Roque de Barros Laraia (2006) observa que o determinismo geográfico e o determinismo biológico também foram refutados, demonstrando que existe uma limitação destas influências sobre o desenvolvimento das sociedades, bem como, a possibilidade de existência de uma grande diversidade cultural localizada em um mesmo tipo de ambiente. Complementarmente, é importante ressaltar que a geografia cultural não era tratada como um segmento específico ou uma corrente epistemológica autônoma, mas como parte integrante da geografia humana. Entre os geógrafos franceses, responsáveis pelo desenvolvimento de uma corrente da geografia cultural, Vidal de La Blache cunhou o conceito de gênero de vida, que exprime uma síntese descritiva das técnicas, dos utensílios, dos modos de fazer, dos hábitos e costumes e dos modos de habitar das populações em suas relações com a paisagem, privilegiando a temática rural em seus estudos, postura que permaneceu influente ainda por algumas décadas. Segundo Paul Claval (2007, p. 35), para Vidal de La Blache, a cultura é “[...] aquilo que se interpõe entre o homem e o meio e humaniza as paisagens. Mas é também uma estrutura geralmente estável de comportamentos que interessa descrever e explicar.” Essa concepção permite a inclusão da estrutura comportamental dos grupos no entendimento da cultura e marca a constituição da geografia cultural como um ramo 11

derivado da geografia humana, por sua visão peculiar e suas preocupações específicas. Em 1925, o conceito de paisagem cultural foi introduzido, nos Estados Unidos, por Carl Sauer, por meio de seu texto “A morfologia das paisagens”. Membro da Escola de Berkeley, Sauer também vê a cultura como conjunto de instrumentos que permitem ao homem agir sobre o mundo exterior, se sobrepondo a ele. Como observa Claval (2007), a geografia deve a Sauer o destaque ao impacto das culturas sobre o componente vivo – vegetal e animal – das paisagens, além de apresentar de forma perspicaz, já nos anos 1930, uma preocupação com os impactos provocados pela sociedade industrial, embora hesitasse em questionar a lógica dos comportamentos humanos na construção do espaço, mesmo não acreditando que as transformações sociais e ambientais se dão de forma inocente.6 Nos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial, outros geógrafos tais como Max Sorre e Pierre George – ainda que pertençam a gerações distintas de geógrafos – apontaram para algumas limitações da geografia humana, de viés cultural e propuseram a análise do papel das instituições como parte dos instrumentos que asseguram a coesão social. Isso se dá, contudo, sem que o foco nos estudos rurais perdesse sua proeminência. Ainda segundo Claval, para Sorre, George e outros autores, a “mecanização e a modernização introduzem um arsenal de máquinas e de tipos de construções tão padronizados que o objeto de estudo é esvaziado de interesse.” (CLAVAL, 2007, p. 48). Isto porque os impactos da modernidade na constituição do espaço tornam a realidade muito mais complexa. Logo, a relevância em se realizar sínteses descritivas do gênero de vida das sociedades, que ainda não haviam sido atingidas pela industrialização, tem seu sentido minimizado.7

6

7

Sauer e toda a escola de Berkeley sofreram inúmeras críticas, principalmente, no que se relaciona à concepção de cultura como entidade “superorgânica” que paira acima da construção social. Ainda assim, sustentava-se a possibilidade da aplicação dos métodos concernentes ao gênero de vida naqueles países onde a paisagem rural ainda não havia sido modificada, o que constitui um forte indício de que estes autores não superaram o conceito de cultura até então utilizado pela geografia. Vale também observar que essa geografia passou a concorrer diretamente com a etnografia, embora com uma abordagem diferente, mas acabou por perder lugar e prestígio no campo de estudos culturais.

12

Entre os anos de 1940 e 1970, tentando dar conta da complexidade manifesta nos contextos urbanos, ganham força dentro da geografia, estudos baseados em outras correntes epistemológico-metodológicas, como a teorético-quantitativa e a autodenominada “crítica” radical marxista – sendo estas enlevadas pelo teor pretensamente científico e objetivo dos paradigmas que propunham e consideradas, aparentemente, mais adequadas aos estudos de geografia física e de constituição socioespacial (AMORIM FILHO, 2007a). Ocorre, porém, que, neste contexto, uma terceira corrente epistemológicometodológica se abre como possibilidade de estudo relacionada à geografia cultural, convencionalmente reconhecida como abordagem humanística ou humanista. Essa corrente propunha o estudo das significações, valores, percepções e mais tarde, representações, acreditando, pois, que para cada indivíduo e para cada grupo humano existe uma visão do mundo que se expressa por intermédio das suas atitudes e de seus valores para com o ambiente. Dessa forma, as pessoas organizam o seu espaço e nele se relacionam. Tem-se, então, que a geografia humanista surgiu, inicialmente, como um contraponto ao positivismo clássico e à sua pretensa objetividade e neutralidade científicas, propondo a retomada da “humanização” da ciência e outra compreensão da relação entre sujeito e objeto, homem e mundo, além de valorizar a experiência, o comportamento e as maneiras de sentir das pessoas em relação aos seus lugares, territórios e paisagens.8 8

Em seus primeiros desenvolvimentos, a geografia humanista se alinhou à geografia radical, mas a partir da tomada de consciência das diferenças filosóficas inerentes às duas abordagens – marxismo como base filosófica da corrente radical e a fenomenologia como a base filosófica da geografia humanista – houve uma cisão entre elas. Segundo Amorim Filho (1987), as principais críticas por parte da geografia radical em relação à geografia humanista passaram a se referir à sua tendência e adesão ao psicologismo, à apresentação de explicações para obscurecer as condições reais da sociedade, que não dependem do indivíduo, à negação de soluções de caráter mais global e, sobretudo, ao reforço do status quo das classes dominantes. Por sua vez, as críticas da geografia humanista em relação à geografia radical se davam em torno, principalmente, da anulação dos indivíduos, do reducionismo por meio de mecanismos próprios às estruturas econômicas e da desconsideração do espaço como fator social, o que poderia levar muitos radicais a realizar “heresias teóricas”. Mais que isso, ainda segundo Amorim Filho (2007a), a geografia radical/crítica alcançou dimensões totalitárias, podendo ser consideradas como “tiranias paradigmáticas” em determinadas fases do seu desenvolvimento, mas que não resistiram à explicitação de valores subjacentes à modernidade, pois não se transmutaram em “dogmas” e tiveram obrigatoriamente, para sua própria sobrevivência, que se renovar.

13

Nesse contexto, ocorre, então, uma aproximação, quase inevitável, ao pensamento fenomenológico, que despontava como um modo diferente de se entender a ciência e de se encarar a existência humana no mundo. Pode-se afirmar, em síntese, que a geografia humanista alcança uma diferente compreensão do mundo graças à inclusão de elementos tais como sentimentos, ideias, relações subjetivas e intersubjetivas que se realizam nos espaços, levando-se em consideração as percepções e representações que se constroem acerca deles. Da inclusão das dimensões não-materiais propostas pela análise humanista, no universo da geografia, resulta o enriquecimento da corrente cultural. Some-se a isso o fato de que, a partir da década de 1970, ocorre a renovação das abordagens culturais graças à ampliação dos grupos de pesquisa e ao trabalho de reflexão epistemológica empreendido pelas ciências sociais e pela geografia, iniciados nas décadas anteriores.9 Essa aproximação significou, como nota Margarida Corrêa (2000), uma verdadeira “revolução epistemológica”, que pode ser entendida como uma lufada de ar fresco, uma profunda revitalização na geografia do período e que se estende até os dias atuais. Começa-se a falar então em “Nova geografia cultural”. Ainda para Corrêa, [...] a geografia cultural revitalizada aprofundou suas investigações no sentido de compreender a cultura como matéria-prima, mediante a qual os indivíduos e os grupos definem-se e consolidam laços de solidariedade e identidade, mas também torna manifestos os conflitos e rivalidades. (CORRÊA, 2000, p. 51).

Diante da influência do viés humanista, o próprio conceito de cultura na geografia é, de certo modo, resignificado e o indivíduo passa a ter um papel mais central nas análises, incluindo, além do inventário das técnicas, os valores e as relações expressos pelas representações individuais e coletivas. Como observa Paul Claval (2007), a cultura só existe por meio dos indivíduos aos quais é transmitida, e que, por sua vez, a utilizam, a enriquecem, a transformam e a difundem. Assim, a cultura não seria constituída por meio de atitudes e de gestos que se repetiriam 9

Destacam-se, nesse contexto, as contribuições de Clifford Geertz. (Cf:. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989).

14

indefinidamente, sem serem questionados. Deste modo, cada cultura caracteriza-se por um sistema original de representações e de construções intelectuais e isto não ocorre sem influência sobre a afetividade e sobre a atividade humana, dado que estas se retroalimentam. Nesse sentido, é possível concluir que cada indivíduo recebe de seu entorno um sistema hierarquizado de preferências e de valores que, de certo modo, orienta suas atitudes e suas escolhas. Por conseguinte, o bem e o mal, o bonito e o feio, o permitido e o proibido, o sábio e o tolo seriam variáveis relativas que obedecem a preceitos culturais. No entanto, a cultura não condena à reprodução indefinida de enunciados já estabelecidos, de atitudes recebidas, pois o essencial do que os homens recebem como herança tem como função primeira permitir-lhes subsistir num meio dinâmico e mutável e não desempenha o mesmo papel nos diversos momentos da vida. A cultura “funciona” por meio das pessoas e estas estão mais ou menos conscientes desse fato. Não é somente o indivíduo, mas tudo aquilo pelo qual a sociedade o condiciona e vai além dele, pois situa os indivíduos no seio de uma cultura, dando, com isso, um sentido à sua relação com o mundo (BERQUE, 2004b). Por intermédio da cultura são criados os referenciais para que se compreenda o mundo e, nele, a inserção individual. Mas esta construção é complexa e dinâmica, uma vez que, no interior de cada sociedade, os referenciais culturais são lidos e recriados por diferentes grupos, bem como, por todo o tempo, as sociedades estão em contato, também complexo e dinâmico, com outras sociedades. De modo sintético Claval define a cultura como [...] a soma dos comportamentos, dos saberes, das técnicas, dos conhecimentos e dos valores acumulados pelos indivíduos durante suas vidas e, em uma outra escala, pelo conjunto dos grupos de que fazem parte. A cultura é herança transmitida de uma geração a outra. Ela tem suas raízes num passado longínquo, que mergulha no território onde seus mortos são enterrados e onde seus deuses se manifestaram. Não é, portanto, um conjunto fechado e imutável de técnicas e de comportamentos. Os contatos entre povos de diferentes culturas são algumas vezes conflitantes, mas constituem uma fonte de enriquecimento mútuo. A cultura transforma-se, também, sob o efeito das iniciativas ou das inovações que florescem no seu seio. (CLAVAL, 2007, p. 63). 15

Mais ainda, a cultura se liga ao indivíduo no plano de sua existência, pois “Ela permite sua inserção no tecido social. Dá uma significação à sua existência e à dos seres que o circundam e formam a sociedade da qual se sente membro.” (CLAVAL, 2007, p. 89). Ressalte-se também que a Geografia Cultural refere-se aos grupos e à sociedade, buscando na noção de cultura o sentido, a partir do qual, os indivíduos definem-se, criam uma memória coletiva e dão conta de sua existência, mediante construções compartilhadas e expressas temporalmente e espacialmente. Isto porque as pessoas são herdeiras do meio cultural em que foram socializadas, são expressão de um longo processo acumulativo, que reflete os desenvolvimentos de todas as gerações predecessoras, tomados de formas diferentes por cada indivíduo e por eles reinventados, recriados, atualizados, no contexto em que eles vivem. A cultura, entendida como sistema de valores ou como conjunto de referências específicas de um grupo social, é a principal fonte para a compreensão de comportamentos e hábitos relacionados às práticas espaciais. É por meio da cultura na qual se está inserido que se criam referenciais objetivos e simbólicos para compreender o ser no mundo e o próprio mundo. Nesse sentido, o imaginário e as representações são entendidos como elementos constitutivos das interrelações sociais, manifestando-se por meio de um sistema de ideias-imagens, que consistem na representação do real. Por isso, é necessário salientar que, ao lado das lógicas econômicas, políticas e sociais presentes na vida cotidiana existem outras que se ligam às particularidades dos sistemas de representação, de símbolos e de signos que integram as pessoas ao mundo e que se comunicam entre si. Dessa maneira, a percepção e a representação – assim como todos os modos de relação do indivíduo com o mundo, como a imaginação e a experiência – têm um papel importante para a compreensão do arranjo cultural de determinado espaço. Longe de encerrar a discussão sobre o conceito de cultura, salienta-se, uma vez mais, com Claval, que 16

[...] o enfoque cultural se recusa a considerar a natureza, a sociedade, a cultura, o espaço como realidades prontas, dados que se imporiam aos homens como do exterior. Julga que o mundo é mais complexo. Para mostrá-lo, parte dos indivíduos e se debruça nas suas experiências. (CLAVAL, 2002, p. 37).

Diante do exposto, pode-se considerar que os estudos culturais foram uma “porta” para que a geografia humanista se desenvolvesse. Por isso, compreende-se que o objetivo da geografia humanista, como parte integrante da manifestação da geografia cultural, é compreender a existência humana, de forma integral, apontando como chaves para essa compreensão a experiência, os sentimentos, o imaginário e as representações individuais e coletivas, do ponto de vista do vivido e do contexto cultural onde se insere. Em síntese, se afirma que a dimensão experiencial coloca-se como base da abordagem humanista e, em consonância com Cosgrove (2004b), que a cultura ocupa uma centralidade nessa abordagem devido ao seu objetivo mais amplo: compreender o mundo vivido de grupos humanos.

1.2 A fenomenologia como aporte teórico e epistemológico da Geografia Humanista-Cultural Para que se inicie a compreensão do pensar fenomenológico em relação à geografia humanista, é necessário considerar, pelo menos, três premissas essenciais. A primeira delas é que o Ser, o Ente e a Aparência coincidem. Ente é tudo o que é, o manifesto; e o ser é o que faz com que um ente seja ele mesmo e, não, outro ente qualquer.10 O ser manifesta-se ou apresenta-se no ente, mas não no ente apreendido

10

A metafísica, diferentemente da fenomenologia, considera a aparência como algo enganoso ou ilegítimo “atrás” da qual o ser sempre se esconde e, portanto, não se deve dele se ocupar. Para a metafísica, do ser, “[...] o pensamento não se encarrega porque é [ele] inaparente, intangível, impermanente, portanto, não patenciável. Com isto, caímos no que Descartes mesmo diz nas Meditações, que o que cabe ao Cogito é a busca da certeza sobre o ente e não seu ser. [...] Portanto, sobre o descarte que Descartes realiza do ser como tarefa para o pensar, nossa civilização ocidental conquistou a chance de seu desenvolvimento técnico, cientifico, industrial, comercial, ideológico. Todo modo de produção material/econômica do mundo apóia-se numa noção de ser e, portanto, de todas as noções dela derivadas, como as questões do tempo, do espaço do homem, do mundo, da história.” (CRITELLI, 1996, p. 35). A postura metafísica busca a verdade, a certeza, e tem orientado todo o pensamento ocidental, sobre o qual todo o conhecimento técnico e científico se erige além da compreensão do ser, por meio das questões ontológicas mais fundamentais, mas também do senso comum, que se desdobram da compreensão do ser, como as

17

como coisa em si, e, sim, no ente visto enquanto presença no mundo. Assim, o ser pode ser perquirido, manifesto e expresso no horizonte existencial, isto é, o ser expressa sua existência no mundo e, a partir daí, torna-se fenômeno. Contudo, o fato de “aparecer” ou de ser “descoberto” no mundo não muda a sua essência. Por exemplo, [...] O fato da descoberta de que a água é composta por hidrogênio e oxigênio não muda a materialidade nem aparência da água. O mesmo argumento podemos ampliar para todos os fenômenos possíveis, concretos e imaginários. (CRITELLI,1996, p. 41).

Para a fenomenologia, a essência das coisas está encarnada nas coisas mesmas e não oculta atrás de uma misteriosa aparência que engana os desavisados. Desse modo, o ser manifesta sua essência na aparência. Segundo Marcondes, [...] todo ente está presente no ser. Os entes são bimórficos, caracterizam-se pelo mostrar-se, pelo aparecer, pela manifestação, mas também pelo dissimular, pelo desaparecer, sendo ausentes, errantes. Os entes estão, portanto, sempre no ser (verdade) e no não-ser (não-verdade), a dissimulação, a ausência. (MARCONDES, 2005, p. 266).

Em síntese, Para a fenomenologia, por não haver uma dicotomia prévia entre ser e ente, o ser não está por trás das aparências, mas nelas mesmas. O ente carrega em si seu ser, seu aparecer e desaparecer, seu estar à luz e estar no escuro. O ser não está na sombra do que está à luz, mas está no ente. Portanto, está naquilo que se mostra. Assim a aparência, para a fenomenologia, é legítima. (CRITELLI, 1996, p. 29)

O ser torna-se patente através do aparecer e é impermanente, é sempre um “vira-ser”, e sua essência permanece. Esse preceito parece se aplicar a quaisquer objetos, ações ou sentimentos, que, tendo sido criados, construídos, sentidos ou imaginados manifestam sua essência quando aparecem no mundo enquanto fenômenos. Assim, como nota Critelli,

concepções de tempo e de espaço; segundo Critelli (1996), a partir delas são fundados desde aspectos políticos e religiosos das sociedades, até a elaboração de técnicas de cultivo.

18

[...] uma cadeira, uma lâmpada, uma saudade, uma lembrança, uma emoção... só podem ser se se manifestarem. O ser é esta manifestação. O ser é diferente do que seja uma idéia, porque o ser é mais um poder que os entes têm de se manifestarem. [...] para que as coisas sejam, elas dependem de manifestação. Não se pode falar das coisas se elas não se manifestarem, ainda que esta manifestação seja expressão da fantasia, da loucura, da imaginação. (CRITELLI, 1996, p. 42).

A partir daí, chega-se à segunda premissa, que se refere ao lugar de acontecimento/manifestação do ser. Este lugar é o próprio mundo, por isso, diz-se que a fenomenologia considera “o ser-no-mundo” ou os “modos-de-se-ser-nomundo”. Dessa maneira, tem-se que o “horizonte de explicitação” do ser é a própria existência humana, entendida como coexistência em seus modos de ser no mundo: “[...] o ser se faz aparente no ser-no-mundo; é aí que ele se expõe em sua plenitude, e é aí mesmo que ele desaparece.” (CRITELLI, 1996, p. 40). Chega-se, então, à terceira premissa, absolutamente fundamental para as ciências humanas: o aparecer das coisas está condicionado a que elas apareçam para alguém, individual ou coletivamente. Nesse sentido, o recurso a um autor eminente confrontado por Critelli (1996) – Martin Heidegger – se mostra bastante esclarecedor. Martin Heidegger (1889-1976) – inicialmente discípulo de Husserl e, posteriormente, um dos grandes pensadores autônomos da fenomenologia – considera que aparecer no mundo [...] significa sempre aparecer para outros e este aparecer varia de acordo com o ponto de vista e com a perspectiva dos espectadores. Em outras palavras, tudo o que aparece adquire, em virtude de sua fenomenalidade, uma espécie de disfarce que pode de fato, embora não necessariamente, ocultar ou desfigurar. Parecer corresponde à circunstância de que toda aparência, independente de sua identidade, é percebida por uma pluralidade de espectadores. (HIDEGGER, 1966 apud CRITELLI, 1996, p. 40).

Hannah Arendt (1906-1975), por sua vez, assevera que “O atributo essencial do mundo é o fato dele ser percebido por todos nós.” (ARENDT, 1981 apud CRITELLI, 1996, p. 42). Tais considerações permitem a Critelli afirmar que 19

O que aparece não apenas mostra, mas oculta e/ou desfigura. Essa possibilidade de ocultar e desfigurar, que o ente que se mostra tem, denota seu aspecto fenomênico. [...] o mostrar-se é fenomênico porque ao mesmo tempo que algo se mostra está, também, ocultando algo de si mesmo. Esta ambigüidade do manifestar não indica que algo do ente não foi visto, mas que o ocultamento pertence ao mostrar-se da própria coisa. (CRITELLI, 1996, p. 40-41).

Complementarmente, a fenomenologia certifica, após os desenvolvimentos iniciais de Husserl e Heidegger, chegando a Merleau-Ponty, que a consciência é intencional e o que existe no mundo passa a existir para o sujeito, inclusive sentimentos e emoções, a partir da percepção (e também sensação – ainda que esta seja igualmente considerada percepção) da existência destas coisas. Nesse sentido, perceber algo é também conceber algo. Além disso, a fenomenologia admite que diferentes pontos de vista sejam produtos de diferentes percepções do mundo e que essas percepções são construções realizadas a partir do que é apresentado a cada indivíduo durante toda a sua vida. Não obstante a inevitável simplificação da complexa teoria fenomenológica, as três premissas apresentadas inicialmente, ainda que se desdobrem em conceitos e métodos, consolidam, minimamente, algo capaz de nos auxiliar na compreensão do como e do por que o pensar fenomenológico se colocou, a partir de Husserl, ao final do século XIX e início do século XX, como um contraponto ao modo científico de se entender o mundo e, além disso, as razões pelas quais, a partir dos anos 1960, a geografia humanista se apropriou de alguns dos desenvolvimentos propostos pela fenomenologia. Note-se que, a partir daí, o que foi anteriormente dito sobre a cultura ganha outra dimensão. Senão vejamos: o indivíduo se insere no mundo, aparece para os outros indivíduos na manifestação do seu ser, assim como todas as coisas que existem – que, decerto, envolvem todos os fatos de cultura. Essas coisas são por ele apropriadas ou não – mas existem no mundo, independentemente de sua apreensão. A compreensão desse mundo, para cada indivíduo, resulta das operações que este realiza por meio da percepção. Por isso, a cultura não “condiciona” os indivíduos a

20

um eterno reproduzir, mas possibilita atos contínuos de criação e recriação, reforçando o que fora dito por Claval (2007). Essa compreensão alargada do mundo e da realidade, proposta pela fenomenologia, parte de uma insatisfação com o modo de se fazer ciência ou de se buscar conhecimento, tal como se propunha, quase exclusivamente, até meados do século XIX. Em parte, esse descontentamento se deu pelo modo como os estudos da realidade ou do mundo se desenvolviam e, em parte, pelas antinomias que aí haviam se implantado, tais como sujeito-objeto, homem-mundo. Nesse contexto, a fenomenologia apareceu como uma forma de pensamento que se opunha ao modo “científico” de entender o mundo, significando uma mudança expressiva na busca do conhecimento. Sobre a perspectiva científica a que a fenomenologia é refratária é suficiente dizer que, sobretudo a partir de Descartes, o conceito de sujeito e de objeto, como entes separados, se reafirmou e o ser dos entes continuou como algo misterioso. Descartes “empodera” o homem no sentido de afirmar que o mundo existe a partir da consciência que o homem tem deste mundo – de forma extensiva à ideia de Deus, de tempo etc. Neste sentido, como salienta Critelli, Aquilo que se quer saber de algo depende, portanto e sempre, de uma prévia noção do que é e como é, ou seja, do ser daquilo que se está buscando compreender e que se tem por questão mais imediata. O que está sendo buscado à frente, e de que se tem um saber prévio que vem de trás, é que vai definir o próprio buscado. Assim, se pela orientação epistemológica da metafísica iremos atrás da substância, pela fenomenologia iremos atrás desse movimento de vir-a-ser do existir. Esse é um marco diferencial básico entre metafísica e fenomenologia. (CRITELLI, 1996, p. 30).

Diversos autores entendem que, graças a essas formulações, a ciência estava em crise neste período, mas não no que concerne à sua validade, rigor e fecundidade, mas com relação à significação global da prática científica (Cf.: CAPALBO, 1987; CRITELLI 1996; MOREIRA, 2002; DARTIGUES, 2003, MARCONDES, 2005). De forma geral, no domínio das ciências, particularmente na matemática, na física e na psicologia, houve um afastamento cada vez maior dos dados da intuição e 21

procurou-se construir sistemas formais que permitiriam conhecer empiricamente e eliminar todo o subjetivismo. Não se trata de renunciar à objetividade da ciência, mas de restabelecer o mundo da ciência ao mundo da vida. Dartigues (2003) afirma que Husserl critica a objetividade quando a construção ideal é tomada tal como o mundo verdadeiro, realmente existente. E evidencia que, neste contexto, [...] cumpre atacar menos a ciência que a filosofia que lhe é subjacente. Pois, desde Platão, é uma tendência geral de a filosofia tradicional buscar sob as aparências, sob o mundo da experiência cotidiana, mundo da opinião ou doxa, uma realidade oculta acessível apenas ao pensamento. De onde a tentação de considerar a verdade científica, no sentido rigoroso da física matemática, como a realidade substancial em face da qual os modos de apreensão subjetivos parecem ilusórios. (DARTIGUES, 2003, p. 77).

Embora a fenomenologia remonte a Kant e a Hegel, os seus significados contemporâneos são atribuídos à filosofia de Edmund Husserl (1859-1939). Considerado unanimemente como o precursor moderno deste modo de entender o mundo, ele fundou e aprimorou boa parte dos conceitos relativos à fenomenologia durante toda a sua vida.11 Em suas últimas obras, Husserl introduziu a ideia de Lebenswelt – mundo da vida ou mundo vivido –, “tentando dar conta da realidade social e da relação entre a subjetividade e o mundo, inclusive as ‘outras consciências’ e a questão da intersubjetividade” (MARCONDES, 2005, p. 258), buscando a superação da dicotomia existente entre o racionalismo e o empirismo, o sujeito e o objeto, a consciência e o mundo, tendo como lema fundamental: “retornar às coisas mesmas”.

Esse último é proposto como uma terceira via além do discurso

especulativo da metafísica e do raciocínio lógico das ciências positivas (DARTIGUES, 2003). É nesse sentido que a fenomenologia volta-se ao mundo da

11

Segundo Moreira (2002) Husserl, apesar de ter publicado poucos livros (oito ou nove, no total) deixou milhares de notas de aulas e manuscritos. Alguns deles foram publicados post mortem.

22

vida, ao existir no mundo – e de onde derivarão, mais tarde, outras “fenomenologias”.12 Desse modo, seria possível restabelecer a ligação da ciência com o mundo da vida, isto é, com o mundo cotidiano, neste em que transitamos, em que agimos, em que fazemos planos, em que sentimos.13 Segundo Husserl, Essa mudança de apreciação não concerne ao caráter científico das ciências, mas ao que as ciências, ao que a ciência tomada absolutamente significou e pode significar para a existência humana. A maneira exclusiva pela qual a concepção do mundo do homem moderno na segunda metade do século XIX foi determinada pelas ciências positivas e falseada pela ‘prosperity’ que a elas se devia significava o abandono cheio de indiferença dos problemas que são decisivos para um humanismo autêntico. As ciências dos fatos puros e simples produzem homens que só vêem puros e simples fatos. [...] Na angústia de nossa vida... essa ciência nada significa para nós. Ela exclui por princípio justamente os problemas que são os mais pungentes para os homens de nossa desventurada época, expostos sem defesa aos transtornos que colocam em questão seu destino: os problemas do sentido ou do não sentido de toda essa existência humana... O que tem a ciência a dizer sobre a Razão e a Des-Razão, sobre nós homens enquanto sujeitos dessa liberdade? (HUSSERL, 1949 apud DARTIGUES, 2003, p. 73).14 Jean-Paul-Sartre (1905-1980), “herdeiro da modernidade” tem um papel fundamental para a fenomenologia, pois reelabora e insere questões relativas ao existencialismo. Sartre afirma que o homem se define por sua autoconsciência e que o ideal desta é atingir a plena identidade consigo mesma. Afirma ainda, que a existência humana precede a essência, o homem, portanto, não teria uma essência predeterminada, mas ele se faz em sua existência e, por isso, só o que resta ao homem é assumir a sua condição, a sua liberdade. “Nós somos o que fazemos com o que fazem de nós” é um dos lemas centrais do pensamento de Sartre. Mais tarde, em sua obra há uma tentativa de conciliação do existencialismo com o marxismo, uma vez que a questão da inserção do homem na realidade social e da alienação da consciência são temas comuns a essas duas correntes. Sartre passa a se questionar sobre a possibilidade de um método que combinasse o existencialismo e o marxismo e que permitisse uma análise complementar entre o indivíduo e a sociedade (MARCONDES, 2005, p. 259-260, passim). Dartigues (2003) considera que, após as primeiras obras de Husserl, a questão “o que é fenomenologia?” podia receber múltiplas respostas sem, no entanto, se separar da inspiração inicial, que estaria ligada a um sentimento da crise cultural do final do século XIX. Segundo este autor, a fenomenologia se tornou um “rio de múltiplos braços que se cruzam sem se reunir e sem desembocar no mesmo estuário.” (Dartigues, 2003, p.5). 13 A ligação da ciência ao mundo da vida pode ser desnudada ao menos de duas maneiras na fenomenologia. A primeira se refere à que todo tipo de experiência é anterior a toda formulação em conceitos e em juízos. A segunda maneira é compreender que o próprio cientista está imerso neste mundo, não só trata deste mundo, ele só tem acesso aos aparelhos e aos seus resultados através de uma apreensão perceptiva que é a do comum dos homens. Com efeito, a ciência não começa quando ela se sedimenta em seus resultados, mas nas operações que a constituem, logo, com a atividade intelectual do cientista. 14 Não se pode, no entanto, desconsiderar que a principal motivação a que Husserl se ligava era auxiliar as ciências eidéticas a aperfeiçoar sua operacionalização e determinar as condições a priori de possibilidade da filosofia como ciência rigorosa (Cf.: CAPALBO, 1987; MOREIRA, 2002; DARTIGUES, 2003). Se, segundo Chauí (2005), o mérito inicial de Husserl foi reunir os dois principais significados da palavra fenômeno, tais como aparecem em Kant e em Hegel, o que o conduziu ao questionamento do modo científico de entender o mundo foi o dilema entre o inatismo e o empirismo, a partir das discussões sobre 12

23

Para Dartigues (2003, p. 18), “[...] as essências não têm existência alguma fora do ato de consciência que as visa e do modo sob o qual ela os apreende na intuição.” Por isso, a fenomenologia não é contemplação das “essências eternas”. É, sim, a análise do dinamismo do espírito que dá sentido aos objetos do mundo e, também por isso, o princípio da intencionalidade pode ser sintetizado como a consciência que é sempre consciência de alguma coisa. Para Critelli, considerando-se a intencionalidade da consciência, Tudo o que se mostra está sob a contingência efetiva do encobrimento. A realização de algo não depende apenas da presença da coisa (seja sentimento, pessoa, idéia, fantasia, elemento da natureza, artefato...), mas do olhar, do lugar iluminado e iluminante em que a coisa ganha a possibilidade de mostrar-se. Este olhar por sua própria condição não é ininterrupto, ou seja, um olhar que nunca pára de ver. Há um acontecimento em que a coisa e o olhar se entretecem e, então, manifestam-se mutuamente. O olhar tornase olhar desde a possibilidade de manifestação da coisa, assim como a coisa torna-se presente pela possibilidade do olhar que a vê. O olhar só é olhar quando vê alguma coisa e a coisa só é uma coisa quando é vista por um olhar. Ambos ganham existência em seu mútuo acontecer. Cada um se manifesta segundo o que e como é pela manifestação conjunta do outro. (CRITELLI, 1996, p. 105-106, grifos originais).

De modo complementar, o reconhecimento da relatividade da perspectiva, empreendida pela fenomenologia é, simultaneamente, o reconhecimento da relatividade da verdade. Assim, A fenomenologia fala do limite de uma perspectiva epistêmica sem fazer sua equivalência à noção tradicional de erro, nem formular uma condenação. A interpretação fenomenológica não expressa senão o que, sob seu ponto de os fundamentos da lógica e da matemática. Pode-se afirmar que, de Kant, Husserl conservou em sua fenomenologia a afirmação de que não conhecemos uma realidade em si, mas a realidade tal como aparece ao ser estruturada e organizada, como condição de possibilidade, pela razão. De Hegel, Husserl conservou a afirmação de que uma fenomenologia é a descrição do que aparece à consciência e a descrição do aparecer da consciência para si mesma. É a partir de Husserl e de seus seguidores, que o real passa a ser interpretado como fenômeno. E, diferentemente da metafísica, o fenômeno está em si mesmo, não por detrás de uma cortina mística, envolta em mistérios que só aos iniciados seria permitido penetrar. De modo complementar, importa considerar que a exploração do campo da consciência e dos seus modos de relação com o objeto – inspirado na psicologia de Franz Brentano –, delimita o que se tornará, mais tarde, o campo de análise da fenomenologia de Husserl. As principais contribuições de Franz Brentano para a fenomenologia consistem, em dois aspectos: distinguir os fatos psíquicos, que comportam uma intencionalidade – a visada de um objeto –, dos fatos físicos e, em seguida, a afirmação de que esses fenômenos podem ser percebidos e que o modo de percepção original que deles tem-se constitui o seu conhecimento fundamental. A propósito das considerações de Brentano, veja-se: DARTIGUES, 2003.

24

vista, não é mais que o óbvio, no caso: um ponto de vista é apenas um ponto de vista; uma perspectiva relativa é apenas uma perspectiva entre outras. E é como uma perspectiva relativa e provisória que a fenomenologia mesma se autocompreende. No entanto, o que pode parecer óbvio para o pensar fenomenológico certamente não o é para a concepção geral, sobretudo se rememorarmos a problemática histórica da estruturação e desenvolvimento do pensamento ocidental. Parece que, ao longo e depois de dois mil e quatrocentos anos em que a questão do conhecimento se instaurou para nossa civilização, permanecemos ainda na discussão a respeito dos critérios pelos quais uma perspectiva pode ser considerada verdadeira. Mantemo-nos, assim, na incessante retomada do original embate entre a verdade e a opinião, mais peculiarmente expresso desde a modernidade, por exemplo, pela distinção entre saber científico e senso comum. (CRITELLI, 1996, p. 12)

A fenomenologia configura-se, dessa forma, como um entendimento das limitações de um certo modo de pensar e, portanto, de existir, cuja necessidade sentida e à qual responde é a de uma superação deste mesmo limite. Logo, enquanto caminho epistemológico, a fenomenologia não é nem mesmo uma oposição à metafísica; ela apenas é a busca de tornar acessível ao pensar aquilo que, por meio da metafísica, se manteve em ocultamento. Por isso, do ponto de vista fenomenológico, [...] a relatividade da perspectiva do saber e da verdade do ser abre-se como ponto inseguro, mas próprio do existir (ser). Contrariamente, a tentativa empreendida para a superação desta insegurança é o que instaura o modo do pensar (metafísico) ocidental. (CRITELLI, 1996, p. 13).

A fenomenologia aceita a relatividade da verdade e afirma que, a partir de sua aceitação, o conhecimento é possível.15 Com efeito, Para a metafísica, o conhecimento é resultado de uma superação da insegurança do existir. Para a fenomenologia, é exatamente a aceitação dessa insegurança que permite o conhecimento. [...] Desta maneira, a relatividade não é vista pela fenomenologia como um problema a ser superado, mas como uma condição que os entes têm de se manifestarem: no horizonte do tempo e não do intelecto, e em seu incessante movimento de mostrar-se e ocultar-se. A relatividade diz respeito à provisoriedade das 15

Dartigues (2003) considera que a presença do objeto “em si” que se mostra à consciência é o ponto de surgimento da verdade. Essa experiência vivida coloca o objeto e a consciência na presença um do outro sem que se possa mais recuar a essa presença. Desse modo, a consciência é sempre “para fora” de si mesma, em direção ao mundo. Ela está, em virtude de sua intencionalidade, junto às coisas do mundo.

25

condições em que tudo o que é vem a ser e permanece sendo. [...] Viver como homens é jamais alcançar qualquer fixidez. (CRITELLI, 1996, p. 1516, grifos originais).

Heidegger realiza um desdobramento do pensar fenomenológico e considera que a questão do sentido do ser é uma questão crucial não só da fenomenologia, mas de toda a constituição das ciências. Esse sentido se estabelece como um dos deslocamentos em relação à fenomenologia de Husserl, sendo essa uma das razões pelas quais se pode qualificar de existencial a fenomenologia empreendida por ele, mas talvez, mais que isso, de ontológica, pois compreende uma profunda e verdadeira liberdade humana de existir (Cf.: CRITELLI, 1996). Segundo Marcondes (2005), para Heidegger, o homem é o único ente que busca o ser. Para ele, o “[...] Dasein [o ser-aí] deve substituir ‘sujeito’, ou ‘eu’, devido ao sentido que estes termos adquiriram na filosofia da consciência e da subjetividade do período moderno.” (MARCONDES, 2005, p. 267). De forma complementar, Heidegger considera que o tempo tem um lugar central na sua análise, pois a essência do ser-aí ou ser-no-mundo reside em sua existência temporal no mundo.16 Ainda como nota Marcondes (2005), em seus textos dos anos 1950, Heidegger analisa a sociedade industrial contemporânea, em que predominam a ciência e a técnica, questionando os valores e os pressupostos da modernidade, como o progresso visto em um sentido técnico e científico. Segundo essa perspectiva, a “ciência e sua aplicação técnica seriam incapazes de pensar o ser, de pensá-lo fora da problemática do conhecimento e da consideração instrumental e operacional da realidade típicos do mundo técnico.” (MARCONDES, 2005, p. 267). Esses desenvolvimentos derivariam da questão do “esquecimento do ser” na cultura ocidental. E, como dito anteriormente, todo o conhecimento técnico e científico se erige por meio das questões ontológicas mais fundamentais, que se desdobram da compreensão do ser, como as concepções de tempo e espaço. 16

Posteriormente, Heidegger alcançará o conceito de “cuidado” (Sorge), que se refere ao caráter de existência no qual se articulam as três dimensões do ser-aí ou ser-no-mundo (Dasein): sentimento de situar-se, compreensão e decaimento, captados em sua unidade. Veja-se, a esse respeito, DARTIGUES (2003).

26

Para Heidegger, toda a confusão do modo metafísico de entender o mundo se funda sobre a ideia de verdade identificada com a visão “correta” das coisas, como se existisse um só modo correto de ver e, esse, fosse o único verdadeiro. Diante disso, pode-se concluir, como faz Critelli (1996), adotando a compreensão alcançada por Heidegger, que a possibilidade do conhecimento, na fenomenologia, se instaura sobre a angústia. Esta angústia derivaria da consciência de que não existe certeza absoluta e de que o tempo é o da duração da pessoa e, esta última, resulta das escolhas realizadas durante o seu tempo vivido em um mundo que lhe é inospitaleiro.17 A isso Dartigues (2003, p. 134) acrescenta que a “[...] angústia é o recurso pelo qual a existência pode se compreender a si própria, o revelador de seu sentido e, com isso, também o do sentido do Ser.” Desse modo, como observa Marcondes (2005), Heidegger rompe com a tradição moderna da filosofia e instaura um pensar fenomenológico mais livre – descomprometido com a rigorosidade científica –, que concebe o homem como dono de seu destino. A fenomenologia heideggeriana considera que o “problema do ser” seria mais adequadamente colocado como o “problema de ser”, ou seja, existencial, o que permitiria encontrar o ser na trama existencial do ser-no-mundo, na sua trama de significações que se tece no jogo do mundo (CRITELLI, 1996). Essa compreensão tem o sentido do livre arbítrio motivado pela angústia do saber e do existir no mundo. Para Heidegger, a ontológica inospitabilidade do mundo e a ontológica liberdade humana são elementos coestruturais do existir e são regentes de toda forma do homem conhecer o mundo e, portanto, da questão do conhecimento e do método. Os homens não se dirigem direta e simplesmente às coisas em sua mera presença, mas mediados por uma trama de significados em que as coisas vão podendo aparecer (CRITELLI, 1996). De maneira complementar, quando as coisas mudam é porque mudaram nossas ideias a seu respeito, a serventia que tinham para nós, nosso interesse por elas, bem como nossos modos de nos referirmos a nós mesmos e uns aos outros. 17

A noção de “dwelling” desenvolvida por Heidegger se refere à “sentir-se em casa”, viver harmoniosamente, tanto social, ecológica, quanto espiritualmente. (Veja-se: MELLO, 2005)

27

É nesse sentido que Dartigues (2003) considera que esse processo na fenomenologia se refere à percepção. Segundo este autor, [...] essa experiência é a da percepção sensível, percepção do mundo no qual vivemos e dos objetos individuais que ele contém, sobre o ‘fundamento’ da qual se constituem conceitos e juízos. As próprias categorias lógicas e matemáticas como relação, número, pluralidade, todo e parte, etc. derivam da idéia de ‘alguma coisa em geral’, que remete por sua vez à percepção da coisa singular despojada de suas determinações singulares e específicas. (DARTIGUES, 2003, p. 79).

Deste modo, a fenomenologia não trata da questão cognitiva senão sob o prisma existencial, ou melhor, subordina a possibilidade do conhecimento às possibilidades existenciais, posto que o pensar se estabelece sobre o ser, evidenciando-o (Cf.: CRITELLI, 1996). No que se refere à percepção, Maurice Merleau-Ponty foi quem mais acrescentou à atual fenomenologia. Ele desenvolveu uma análise do sujeito no mundo, elegendo o Lebenswelt como o ponto de partida de sua filosofia, reconhecendo-o como a contribuição mais importante da filosofia husserliana, considerando o sujeito como corpo e a consciência como encarnada nesse corpo. A este “corpo-sujeito” irão unir-se, em um movimento dinâmico, muitos outros elementos, tais como a ação, a afeição e a percepção de um mundo anterior a qualquer tipo de racionalização. Com esta concepção do corpo-sujeito, MerleauPonty recusa e, além disso, ultrapassa o rígido dualismo cartesiano, da res cogitans e res extensa, que ele julgava ainda presente em Husserl (MARCONDES, 2005).18 O mundo da percepção se desvela como a fonte de todas as significações, de todos os sentidos e base para todos os pensamentos. O sentido, neste caso, surgiria de nossa relação com o mundo e com os outros. “Desse ponto de vista, a consciência é vista como engajada (ou comprometida) no mundo, o que pode ser comprovado pelo estudo da percepção e do comportamento, além do espaço vivido.” (AMORIM FILHO, 1999a, p. 75, grifos originais). 18

Descartes propôs que o homem era separado em espírito (res cogitans) e corpo (res extensa). O primeiro seria o domínio do pensamento, da mente e o segundo seria a extensão do mundo, da materialidade. (MARCONDES, 2005)

28

“Retornar às coisas mesmas”, lema da fenomenologia de Husserl, seria, para Merleau-Ponty, a desaprovação da ciência, mas também um voltar-se ao mundo anterior ao entendimento, à reflexão, voltar-se ao mundo vivido sobre o qual o universo da ciência é construído. “Retornar às coisas mesmas” difere, neste caso, do voltar-se ao objeto da ciência, e do voltar-se para o interior da consciência, a um subjetivismo. Desse modo, [...] Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual é a expressão segunda. A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma determinação ou uma explicação dele. [...] Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem – primeiramente nós aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho. (MERLEAU-PONTY, 1999, Prefácio, p. 3-4).

Segundo Moreira (2004), a percepção, para Merleau-Ponty, é o campo de revelação do mundo – campo de experiência – não é um ato psíquico. A percepção é o campo onde se fundem sujeito e objeto. Para Merleau-Ponty, um mal-entendido de Husserl foi pensar que para ver o mundo, e captá-lo como paradoxo, é preciso romper nossa familiaridade com ele, reduzindo-o, colocando-o entre parênteses. Esta familiaridade nunca poderá ser totalmente rompida e é por isso que se deve sempre partir do princípio de que “o maior ensinamento da redução é a impossibilidade da redução completa” (Merleau-Ponty, 1999, Prefácio, p. 10).19 Ou seja, a prática da 19

A redução fenomenológica se refere ao deslocamento da consciência natural, imediata, colocando-a entre parênteses. “Esta redução se faz em níveis diversos, na medida em que aquilo que é colocado entre parênteses, em suspensão, pela Epoche, é de maneira diversa. Temos assim a redução eidética que nos permite distinguir fatos e essências. Eu coloco entre parênteses o fato, deixando surgir a ideia, o sentido. O eidos do fato, a sua essência, a sua significação, se revela em situação. Para compreender a facticidade a consciência necessita dos conceitos, das essências, que devem, entretanto, trazer-nos todas as suas relações com o vivido. Por isto não se pode pensar que pela redução eidética eu reduzo o mundo a uma idéia. Ao contrário, ela deve deixar transparecer o mundo tal qual ele é. Pela redução transcendental ou fenomenológica o mundo é visto como correlato da consciência. Não se deve compreender transcendental

29

redução fenomenológica será sempre uma tentativa, nunca inteiramente realizada, exatamente pela mundaneidade intrínseca ao homem. Merleau-Ponty (1999, Prefácio, p. 18) considera que a “aquisição mais importante da fenomenologia foi, sem dúvida, ter unido o extremo subjetivismo e o extremo objetivismo em sua noção do mundo ou da racionalidade.” A noção de realidade tal como foi retomada por este pensador – associada à relatividade da percepção individual – se tornou, inegavelmente, uma das principais contribuições da fenomenologia para o pensamento contemporâneo. Disto decorre a observação de que o mundo fenomenológico, [...] é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha. [...] O mundo fenomenológico não é a explicitação de um ser prévio, mas a fundação do ser; a filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia, mas, assim com a arte, é a realização de uma verdade. (MERLEAU-PONTY, 1999, Prefácio, p. 18-19).

Com efeito, esta perspectiva possibilita que se penetre no contexto do mundo vivido, sem eliminar a familiaridade com ele construída a partir das experiências e da percepção. É importante ressaltar ainda que muitas coisas só se tornam passíveis de conhecimento por meio das ideias e da imaginação (por exemplo, o sistema de circulação sanguínea, do indivíduo, em funcionamento). Por isso, como afirma Merleau-Ponty (2006, p. 331), “Existem entidades que sempre permanecerão para mim, sob alguns de seus aspectos, significados puros, e nunca se oferecerão mais do que a uma percepção lacunar.” Pertencerão desse modo, ao “teatro do imaginário”, no sentido kantiano, que faz com que o mundo seja imanente ao sujeito. Para Husserl, transcendental significa a possibilidade de entrever o mundo na sua transparência, significa conhecer o sujeito como situado ao nível da intencionalidade noética e de seus correlatos noemáticos. Ela se inicia pela colocação entre parênteses na crença de um mundo em si, de um mundo pré-existente ao meu nascimento e sobrevivente após a minha morte. Esta redução deve incluir também os enunciados científicos que pressupõem a certeza do mundo. Pela redução fenomenológica nós iremos considerar o mundo como correlato de nossa consciência, e tentar explicitar as estruturas dessa correlação noético-noemática.” (CAPALBO, 1987, p. 16-17). De modo sintético, Dartigues (2003, p. 20) afirma que a redução fenomenológica é “[...] coloração [sic] entre parênteses da realidade tal como a concebe o senso comum, isto é, como existindo em si, independentemente de todo o ato de consciência.”

30

para utilizar a feliz expressão de Merleau-Ponty. Assim, como salienta Dartigues (2003), a imaginação dá à consciência o poder de negar e de conhecer o mundo . Diante

dos

desenvolvimentos

expostos

acima,

torna-se

comezinho

compreender porque a fenomenologia foi adotada como uma das principais bases filosóficas e epistemológicas da geografia humanista. Sua influência pode ser observada na compreensão do espaço como “[...] um conjunto contínuo dinâmico, no qual o experimentador vive, desloca-se e busca um significado. É um horizonte vivido ao longo do qual as coisas e as pessoas são percebidas e valorizadas.” (SILVEIRA; UEDA, 1995, p. 50-51). Para a fenomenologia, o espaço é um ente único e, com esse enfoque, singularidade e pluralidade são dimensões correlativas que a ele pertencem, porque este carrega em si, a um só tempo, o “exatamente igual” a todos os outros espaços, pois pertencente a um só mundo, e o “totalmente diferente”, pois resulta de histórias diferentes e peculiares acumuladas ao longo do tempo. Também na abordagem, observa-se que a sua influência consiste em descrever os fenômenos – reais e imaginários –, valorizando a observação destituída de mediações, isto é, aquilo que se dá imediatamente, o objeto revelado em si. A partir desse conceito de descrição dos fenômenos, foi possível a criação de abordagens que possibilitam que se penetre no contexto do mundo vivido, a partir do qual a experiência é construída e percebida como, por exemplo, os mapeamentos mentais.20 Além disso, uma das principais contribuições da fenomenologia, sobretudo a merleaupontyana – a percepção do mundo e do ser no mundo –, à geografia humanista se refere à relatividade das perspectivas derivadas da percepção.21 É a 20

21

Neste sentido, não se pode desconsiderar a contribuição de escolas ligadas à psicologia e ao comportamento humano, tais como a behaviorista e a piagetiana. Para Bailly (2001, p. 174), “Mobilizada por enriquecer as possibilidades de explicação geográfica, a problemática comportamental procurou evitar a sobredeterminação das variáveis econômicas, para dar importância à decisão humana em toda a sua subjetividade. São agregadas à análise geográfica as dimensões sociais e psicológicas.” (tradução nossa; grifos originais). Não podemos desconsiderar como Niel (2009), que desvela uma interessante crítica no tocante à fenomenologia contemporânea, que esta está passando por uma saturação da informação, ou seja, os marcos bibliográficos são imensos, mas sua repetição à exaustão e os tímidos desenvolvimentos posteriores aos textos considerados clássicos, ou fontes, são algumas das razões pelas quais a fenomenologia tem sofrido divisões e subdivisões (fenomenologia – husserliana, fenomenologia – hermeneuta, fenomenologia – levinasiana etc.) e se estendendo ao nível das microespecializações

31

partir da percepção que se constroem imagens mentais associadas também ao conhecimento

e

à

bagagem

cultural

(experiências,

valores,

informações,

conhecimento formal, entre outros), que moldam o olhar dos indivíduos ao longo de sua existência (OLIVEIRA, 1999). Destaque-se que Não posso identificar pura e simplesmente o que percebo e a própria coisa. A cor vermelha do objeto que eu olho é e sempre permanecerá conhecida apenas por mim mesmo. Não tenho nenhum meio de saber se a impressão colorida que ele dá a outros é idêntica à minha. Nossas confrontações intersubjetivas só se referem à estrutura inteligível do mundo percebido: posso ter certeza de que um outro espectador emprega a mesma palavra que eu para designar a cor desse objeto, e a mesma palavra, por outro lado, para qualificar uma série de outros objetos que eu também chamo de objetos vermelhos. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 326-327)

Note-se que, se os conceitos relativos ao espaço vivido e à percepção desse espaço já são hoje bem aceitos também por “outras geografias”, a apropriação desses e de outros conceitos significou para a abordagem humanista, como dito anteriormente, uma “revolução epistemológica” (CORRÊA, 2000), que teve rebatimentos em todas as categorias trabalhadas pela geografia – de espaço geográfico a lugar, passando por região e paisagem. Anne Buttimer (1982) acredita que a vertente humanista – não por acaso, e principalmente com o aporte fenomenológico, mas também com subsídios da (fenomenologia – husserliana-especialista – em – intersubjetividade, fenomenologia – husserliana – especialista – em –temporalidade ou historicidade etc.) dentro das mais diferentes disciplinas, como é o caso da geografia. Para esse autor, embora o apego aos textos não se restrinja, exclusivamente, à fenomenologia, acaba por inibir a criatividade e o olhar verdadeiramente fenomenológico dos autores que insistem em não ousar utilizando-se dos textos “canonizados”. Não que as interpretações dos textos clássicos sejam dispensáveis ou estejam esgotadas, mas não são, de certo modo, apropriadas e aplicadas de forma independente ou livre pelos pesquisadores. É como se houvessem limites imaginários por onde não conseguimos passar. Interessante ressaltar também a diferença fundamental empreendida por Niel (2009) entre pensar o pensamento de... e pensar a partir do pensamento de... . O primeiro se referiria a poder pensar a partir das rupturas, das aberturas, a partir dos aportes positivos de um pensador, donde se realizaria a eventual expansão e aprofundamento de certas problemáticas e, o segundo, se referiria a interpretação e citação de um pensador e um mero comentário subseqüente. “Cuando el texto se torna algo absoluto, es la cosa misma lo que se retira, y la no-responsividad de contestar a su llamado a su invitación, se transforma en la no-responsabilidad de no de-escribir en nombre propio, del ampararse en la autoridad del texto.” (Niel, 2009, p. 330). Para ele, uma coisa é render-se ante a evidência de reconhecer nexos inevitáveis com respeito às tradições filosóficas, outra é ancorar-se nelas como se não houvessem outros mares a serem navegados e transformá-los em nossa única referência. Para que os pensadores se tornem verdadeiras referências não é necessário repeti-los ad eternum, é preciso alcançá-los e ir além deles. Por outro lado, Niel encontra o valor do texto, colocando-o num lugar onde é possível exprimir as ideias e tornar públicos novos olhares e pensamentos e onde o “fenomenologizar” encontra sua dimensão intersubjetiva.

32

microgeografia comportamental e a semiologia – é dotada de uma tarefa revolucionária também por ser uma opção em relação à ciência dita objetiva, mas acrescenta que ainda que o espaço descrito somente por meio de suas formas geométricas seja uma abordagem limitada ao entendimento da experiência humana, as abordagens humanista e científica “[...] não são inevitavelmente opostas; necessitamos encontrar seus papéis apropriados na exploração da experiência humana.” (BUTTIMER, 1982, p. 190). Complementarmente, observa Mello (2005) que o viés humanista da geografia é transgressor por excelência, pois adota uma postura incomum no âmbito do saber acadêmico, quando valoriza o homem, seu cotidiano e suas experiências. Pode-se afirmar que as maiores contribuições empreendidas pela interseção da geografia humanista com a fenomenologia, a partir da década de 1960, no mundo anglo-saxão vieram dos trabalhos realizados, principalmente, por Yi-Fu Tuan, Anne Buttimer, Edward Relph, Mercer e Powell, David Lowenthal, entre outros (AMORIM FILHO, 1999a).22 De modo complementar, Marandola Júnior (2005), em consonância com as contribuições de Holzer, sustenta que esses primeiros geógrafos, essencialmente humanistas, adotaram a abordagem fenomenológica, mas de forma implícita na argumentação, sem adotá-lo stricto sensu, sendo essa uma característica comum a vários daqueles trabalhos, ou à maioria deles. Esta postura parece, no geral, manter-se até hoje, mesmo com tentativas mais numerosas e explícitas de uso das abordagens fenomenológicas. No Brasil, vários grupos, de diferentes universidades, desenvolvem, atualmente, estudos de geografia humanista e, na maior parte das vezes, com interface na geografia cultural – como exemplo, tem-se o grupo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, coordenado por Zeny Rosendahl e Roberto Lobato Corrêa; o grupo da Universidade Federal do Paraná, em Londrina, coordenado por Yoshiya Nagakawara; o de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista, coordenado 22

Destaca-se, entre essas, a produção teórica de Yi-Fu Tuan, que contribuiu, sobretudo, para a popularização de alguns dos conceitos e categorias, de inspiração fenomenológica, por ele formulados, tais como os de “topofilia” – definido como elo afetivo entre a pessoa e o lugar –, paisagem valorizada, lugar e espaço simbólico, o que permite uma maior sistematização e clareza na análise do complexo processo da experiência do homem com o ambiente.

33

por Lívia de Oliveira; e, de maneira especial, três núcleos muito dinâmicos: Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, com Salete Kozel e Sylvio Fausto Gil; da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, com Maria Geralda de Almeida; e o da Universidade Estadual de Campinas, com Eduardo Marandola Júnior. Além disso, vários outros grupos estão em formação, a exemplo o da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com o professor Oswaldo Bueno Amorim Filho. Desse modo, acredita-se, com Amorim Filho, que, Por tudo isso, a presença de abordagens humanistas/culturais na Geografia não se torna desejável e necessária apenas pela riqueza em pluralidade que elas representam, mas, sobretudo, pela humanização e beleza que elas trazem às atividades geográficas. (AMORIM FILHO, 2007a, p. 16).

No que se refere ao “ir além” das fronteiras entre as disciplinas e ao enriquecimento da plural ciência geográfica como um todo, as abordagens humanistas da geografia guardam em si uma contemporaneidade. Um caminho de uma geografia “relevante” para a humanidade, prenha de significados e movimentos que, pelas palavras de Anne Buttimer, podem “inspirar os praticantes da Geografia física, econômica, cultural ou social, e deveria deixar de investir muita energia na afirmação do seu direito de ser um ramo especial do campo do conhecimento.” (BUTTIMER, 1990 apud MELLO, 2005, p. 39).

1.3 As percepções das imagens urbanas No contexto do desenvolvimento da geografia humanista-cultural, sob influência da fenomenologia, os estudos de percepção urbana passaram a abarcar uma variada gama de temas e, embora as categorias “paisagem” e “lugar” tenham sido privilegiadas em boa parte das análises – talvez por possibilitarem uma ligação mais direta e mais facilmente identificável com os significados do espaço vivido e do cotidiano –, as pesquisas que se voltam para a imagem urbana também têm merecido considerável atenção por parte dos geógrafos.

34

Ao se considerar que as possibilidades de interpretação da expressão “imagem urbana” são variadas e que estas são decorrentes de olhares ligados a diferentes orientações teórico-metodológicas, pode-se argumentar que a dificuldade em delimitar o seu conceito, principalmente na geografia, se dá pelo fato de que há, ainda, uma dificuldade em reconhecer as diferenças e distinções em relação ao conceito clássico de paisagem.23 Acredita-se, de modo complementar a essa ideia, que os estudos relativos à imagem urbana derivem, em grande parte, de estudos da paisagem urbana, sobretudo aqueles realizados pelos arquitetos e urbanistas, mas também por semiologistas, comunicadores e cientistas sociais. Deste modo, pode-se afirmar que a imagem urbana apresenta diferentes dimensões que foram sendo acrescentadas ao longo dos desenvolvimentos da disciplina geográfica e de acordo com as matrizes epistemológicas e informações metodológicas subjacentes e, por isso, é também um conceito considerado plural. O conceito de imagem urbana remete a, pelo menos, duas linhas, que são também complementares: a imagem mental, que parte da percepção, das representações e da cognição, próprias dos seres humanos, e a imagem que compõe o imaginário coletivo, orientada, muitas vezes, pelas mídias e pelas decisões políticas e econômicas tomadas em instâncias que, embora os considere, vão além dos indivíduos. Neste sentido, ainda que sua análise seja mais voltada para a geografia comportamental, Kohlsdorf (1996) salienta que existem diversas formas de apreensão da realidade, dentre elas, as sensações, as percepções, as intuições, a formação da imagem mental e a formação da noção de espaço.

23

O conceito clássico de paisagem se refere a um espaço de terreno que se alcança com um só lance de vista. Esse conceito deriva fortemente das interpretações da geografia alemã do século XVIII e XIX. Contudo, tal definição não se estabelece unanimemente. Por exemplo, o francês Eric Dardel, já na década de 1940, afirmava que a paisagem sempre pressupunha a presença humana, mesmo em forma de ausência. Para ele, a paisagem era a “[...] inserção do homem no mundo [...] a manifestação de seu ser para com os outros, base de seu ser social.” (Dardel, 1990, p.41). A propósito do que fora dito, para Holzer (1999), o conceito clássico de paisagem se referia a uma forma europeia de apreciação do mundo, por meio do qual os europeus se representariam a si mesmos e aos outros. Freitas (2007), por sua vez, observa que o conceito de paisagem foi “resgatado” pelo viés humanista da geografia e ganhou novo fôlego no sentido de aprofundar a “geografia das paisagens”, ao menos em três direções: na reflexão conceitual explícita, na reflexão epistemológica e na reflexão metodológica. Essa autora acrescenta que a importância da inclusão dos estudos de paisagem sob a perspectiva humanista se estabelece por inaugurar o emprego desta categoria de modo conceitualmente refletido na geografia.

35

Os estudos sobre a percepção urbana se iniciaram, segundo Gould e White (1992) citados por Freitas (2007), a partir do interesse em analisar como as pessoas percebiam as áreas onde viviam e como se orientavam na cidade. No entanto, as discussões relativas à percepção da imagem da cidade só parecem ter sido inseridas na geografia, por meio das contribuições do arquiteto e urbanista Kevin Lynch, na década de 1960. Freitas (2007) afirma que os estudos de percepção urbana podiam ser agrupados em três tipos, estreitamente relacionados com a escala considerada: [...] ao nível da proximidade visível, os estudos valorizavam os detalhes imediatos percebidos, especialmente através de deslocamentos selecionados; ao nível intermediário, os estudos abordavam a cidade ou partes da mesma como uma estrutura de espaços já explorados e que auxiliavam na orientação individual, através da construção de imagens mentais; e ao nível regional ou nacional, os estudos lidavam com as imagens coletivas associadas a variados grupos sócio-espaciais, muitas vezes geradas por outras informações não provenientes da experiência vivida, dando origem às imagens estereotipadas. (FREITAS, 2007, p.128).

As imagens, de forma geral, têm o poder de colocar em relação toda uma sociedade, pois seus elementos são captados, ainda que de forma diferenciada, por todos ou pela maioria, possibilitando, dessa maneira, a leitura dos diversos processos espaciais consolidados ou em formação nos diferentes lugares e territórios compreendidos na cidade ou em outros espaços. As imagens, neste sentido, não são somente um substrato, um meio, pois elas se expandem em significações e incorporam os sentidos estabelecidos nas relações profundas da existência do homem com o seu espaço vivido. Obviamente, essa apreensão não se dá para todos do mesmo modo. De forma específica, o processo de construção ou representação da imagem urbana é sempre mediado por um processo de apropriação cultural desta imagem. Assim, a imagem não é uma realidade em si mesma, separada do olhar de quem a contempla; ela é, em grande parte, uma medida do espaço geográfico subjetivado. Na construção das imagens urbanas, é possível que se faça referência, primeiramente, a aspectos físicos de um determinado lugar, mas, constantemente, 36

observa-se a utilização das emoções e aspectos subliminares para esta construção, pois, assim, torna-se mais fácil a sua assimilação. Disso conclui-se que, na apreciação destas imagens urbanas, estão implícitos aspectos subjetivos de caráter cultural, perceptivos e emocionais. Logo, a imagem urbana é também uma construção mental que se elabora a partir do que se experiencia em relação ao espaço e essa percepção é um aspecto fundamental tanto para o conhecimento do espaço quanto para a sua valorização. A opção pelo estudo das imagens urbanas, tendo como base epistemológica a geografia humanista-cultural, admite que as cidades sejam dotadas de características próprias e que, embora seja possível hierarquizá-las, ordená-las e sistematizá-las é também necessário respeitar as suas singularidades, como espaços formados por traços não tangíveis, representacionais, que são socialmente construídos e recriados de forma dinâmica. Uma das formas de se estudar estas imagens é por meio da apreensão das percepções que os indivíduos têm sobre a cidade em que se inserem, pois se torna possível captar os sentimentos que eles nutrem, bem como os diferentes pontos de vista percebidos. Quando se afirma que o espaço construído não é somente uma produção material acredita-se que, por si mesmo, o espaço, assim representado, não é suficiente para explicar o contexto urbano, pois a produção da materialidade está inserida na produção de sentidos e significados e vice-versa. Desta maneira, os espaços urbanos guardam as referências culturais da sociedade que os originaram e, por isso, não podem ser concebidos senão no quadro de signos de que se fazem portadores e do sentido do qual eles são investidos (CLAVAL, 1999). A cultura, sendo uma das estruturas sociais responsáveis pela produção da imagem urbana, faz com que esta seja prolífera em elementos que são significados e compartilhados entre os indivíduos, nos seus grupos e entre grupos, oferecendo, assim, a possibilidade de leitura, a partir dessas referências intersubjetivas e, muitas vezes, ensejando a busca por consenso acerca desta imagem. De forma macro-analítica, a estrutura espacial das cidades é organizada por intermédio das práticas que põem em movimento as funções urbanas – o comércio, os 37

serviços, as indústrias, o transporte, os entrepostos, os equipamentos voltados para o turismo, entre outros. Com diferentes usos, os espaços têm expressão nas tendências de cada época, contribuindo, dessa forma, para a constituição de significados e de valores simbólicos distintos. Acontece, contudo, que as atividades urbanas se modificam intensamente ao longo do tempo e, com elas, as imagens que os agentes sociais criam, propositadamente ou não, para as cidades. Consequentemente, os significados potencialmente apreendidos pelos indivíduos em interface com suas memórias e sua dimensão simbólica também são alterados. Essas atividades vão sendo substituídas ou abandonadas, mediante a introdução e a incorporação de outros elementos e características na vida cotidiana das cidades e contribuem para a criação de diferentes espacialidades e territorialidades, que se refletem nas paisagens objetivas e subjetivas. Mais que isso, as imagens que as representam são, concomitantemente, produzidas, percebidas, significadas para, em seguida, serem resignificadas, reapropriadas e reproduzidas pelos indivíduos e, sobretudo, pelos diferentes agentes/sujeitos que nas cidades convivem ou que por ela têm algum interesse. Em síntese, as funções urbanas vão se modificando ao longo dos anos e as imagens urbanas a eles associadas também se modificam. Neste sentido, Paulo César da Costa Gomes afirma que, [...] as práticas espaciais só podem ser reconhecidas dentro do contexto na qual elas se produzem e sua compreensão depende da capacidade que temos em relacioná-las a um conjunto específico no qual estas práticas possuem sentido e coerência. Este conjunto específico é uma totalidade singular, uma síntese original. Neste caso, vista como sistema de valores ou como conjunto de referências específico de um grupo social, a cultura é a principal fonte para a compreensão de comportamentos e hábitos espaciais, da organização espacial das coisas e das divisões simbólicas do espaço. (GOMES, 1999, p. 120-121).

Por isso, cada contexto urbano se torna único e transmite, em certo sentido, informações a respeito da sua constituição dinâmica. A partir daí, são criadas e recriadas imagens ou representações das ações tradicionais e das atividades contemporâneas, que são comunicadas por meio da sua reprodução e apropriadas 38

pelos indivíduos, grupos ou por toda uma sociedade, tendo em vista os usos e os hábitos que, consequentemente, a informam e a caracterizam em cada época. Cabe dizer, no que concerne à produção do espaço, que os grupos sociais mais “proeminentes”, em determinado período de tempo, orientam, em grande medida, a alocação de recursos em atendimento a seus próprios valores e interesses e acabam por influenciar a produção da paisagem e, como consequência, das representações e das imagens urbanas percebidas.24 Assim, o poder dos grupos culturais dominantes [...] é mantido e reproduzido, até um ponto consideravelmente importante, por sua capacidade de projetar e comunicar, por quaisquer meios disponíveis e através de todos os outros níveis e divisões sociais, uma imagem do mundo consoante com sua própria experiência e ter essa imagem aceita como reflexo verdadeiro da realidade de cada um. (COSGROVE, 2004b, p. 111).

Assim sendo, as representações do mundo são influenciadas, em grande medida, pelos interesses dos grupos que as forjam e, por isso, as lutas simbólicas pela imposição de representações têm tanta importância quanto as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais os grupos impõem, ou tentam impor, a sua concepção do mundo e os seus valores. Segundo Fernanda Sánchez, a luta simbólica se dá por intermédio de embates políticos e sucede-se [...] pela imposição, mediada sempre por conflito e tentativa de construção de hegemonia, de uma leitura frente às muitas outras que estão em permanente disputa neste campo. Esta luta simbólica para impor determinada visão de mundo parece tratar-se de um dos processos políticos relevantes na compreensão daqueles mobilizados para a reconstrução de lugares, em relação dialética com os processos materiais de modernização urbana. (SÁNCHEZ, 2003, p. 113).

Mais que isso, observa a autora que as “[...] lutas simbólicas não são mera expressão das relações de poder, elas atuam sobre o campo das práticas, elas reelaboram as práticas.” (SÁNCHEZ, 2003, p. 114). A partir dessa afirmação, 24

Para Sharon Zukin (2000a), “Certamente, a construção social de qualquer paisagem urbana combina poder político e econômico com legitimação cultural; isso varia de cidade para cidade e através das sociedades nacionais.” (ZUKIN, 2000a, p. 86). Neste sentido, a construção de representações ou imagens urbanas percebidas se apresenta como uma estratégia para a criação de consensos em nome de uma suposta identificação.

39

considera-se relevante ressaltar que a imagem vai exprimir, não só visualmente, mas também estruturalmente, as mudanças ocorridas no espaço. Na vida social, as lutas simbólicas acabam por construir imagens que são “lidas”, “interpretadas” e “sintetizadas”, tornando-se representações do real, que, como referências para a ação espacial, se dão a partir de uma dada posição social e se orientam para determinados fins. Assim, “[...] a construção de imagens opera necessariamente com sínteses, seletivas e parciais, que dão relevância a alguns aspectos e omitem outros, respondendo ao universo especial de interesses dos sujeitos que as constroem e aos objetivos que se pretende atingir.” (SÁNCHEZ, 2003, p. 117). Isto não significa dizer que são somente as imagens ou representações que produzem os sentidos da cidade, mas que essas são criadas por meio das ideologias inscritas nos discursos e nas práticas espaciais, pois, carregadas de intencionalidade, visam a produção de efeitos na realidade social, tornando-se, portanto, referenciais para as práticas espaciais de indivíduos ou grupos.25 É necessário, no entanto, que se faça uma distinção entre, pelo menos, dois níveis de representação. Um deles, como já dito, opera de acordo com determinados interesses e visa a produção e/ou a imposição de referenciais para a ação. Esses referenciais, ao serem lidos por indivíduos e grupos, constituem outra forma de representação que, a partir da percepção, das experiências e das motivações individuais e coletivas, vão produzir uma imagem a respeito da realidade e se apropriar, ou não, dela. No primeiro nível, as representações são criadas por agentes ou grupos sociais públicos ou privados (prefeituras, empresas, personalidades públicas, mobilizadores, grupos proeminentes, famílias tradicionais etc.), que se orientam por determinados interesses. Como exemplo da produção deste tipo de representação, pode-se citar os planejamentos urbanos, projetos de requalificação/reabilitação/ revitalização de lugares, territórios e paisagens e as práticas de intervenção urbanística, de construção de monumentos, de reprodução de certas datas comemorativas, entre outros que 25

Para Kozel (2007, p. 120), “A representação não substitui o objeto, mas seleciona determinados detalhes do objeto e se fazem a partir de uma concepção ou escala de valores que o emissor da representação tem do objeto representado.”

40

simbolizam determinados ideais de sociedade e de cidade.26 Esse nível se articula mais claramente a uma movimentação global, voltada ao mercado, com a pretensão de um maior ordenamento, planejamento e controle do espaço. O habitar, neste sentido, é afetado, assim como o uso dos espaços que traduzem a vida no lugar (ruas, praças etc.) – visto que serão criados outros significados que vão se refletir ou condicionar a sua leitura em um segundo nível. Pode-se pensar também que estas representações vão se refletir na construção das esferas públicas e privadas no cotidiano. O segundo nível é aquele que se relaciona à cognição e à percepção e – no presente trabalho, mais especificamente, à construção das imagens mentais –, seria um tipo de representação não “visível”. Neste nível, as imagens/representações vão compor o imaginário dos indivíduos e se referem, ainda mais que no primeiro nível, às leituras e interpretações subjetivas das paisagens e da realidade. Pode-se citar as representações que as pessoas fazem de seus espaços, das suas memórias de cidade ou das intervenções citadas como exemplos do primeiro nível. Aqui, as representações partem da percepção e cognição do indivíduo para tornarem-se concretas, e assim compor o imaginário coletivo, sendo sempre descritas pelos seus efeitos.27

26

27

Para Zukin (2000a), os agentes ou grupos sociais mais economicamente “privilegiados” gozam de um “poder assimétrico” na construção do sentido visual da paisagem, pois projetam a partir de um repertório potencial de imagens e desenvolvem uma sucessão de paisagens reais e simbólicas que definem cada período histórico, incluindo a pós-modernidade. Segundo essa autora, a paisagem “dos poderosos” convive com a paisagem “vernacular” – formada por meio das atividades diárias e os rituais sociais vinculados, indiscutivelmente, ao “lugar”. De modo complementar, Ferrara (1993, p. 252) afirma que “A imagem da cidade não é, portanto, espontânea, mas, ao contrário, coercitiva e autoritária. Essa imagem codificada opera como uma norma, lei ou símbolo de como a cidade deve ser vista, atua como signo suporte da noção urbana que quer transmitir; na realidade, trata-se, não só da imagem da cidade, mas de uma imagem cultural que utiliza a primeira como um suporte.” Alguns autores defendem que o imaginário não se reduz à cultura, mantendo certa liberdade, mas, nele, “[...] entram partes de cultura, pois, embora o imaginário tenha autonomia, como se trata de algo imponderável e só existe no coletivo, ou seja, imaginário coletivo, estabelece vínculos e é um cimento social.” (MAFFESOLI, 2001 apud FERREIRA, 2006, p. 288). De forma complementar, vale considerar que: “Cada um está vinculado aos outros por uma rede complexa de relações. Diferentes arquiteturas sociais são possíveis. Elas são capazes, mas não com a mesma eficiência e o mesmo estilo, de assegurar o funcionamento e a dinâmica do conjunto.” (CLAVAL, 2007, p. 109). Para Kohlsdorf (1996) “A imaginação é entendida como uma atividade composta pela coordenação de imagens mentais, e que aparece quando o indivíduo adquiriu certo desenvolvimento cognitivo que lhe permite simbolizar.”

41

Ainda que, necessariamente, a imagem mental se forme a partir da percepção, uma primeira diferença entre o espaço percebido e a imagem construída a seu respeito é que essa última não pressupõe a presença e a proximidade física do objeto, diferentemente da primeira (KOHLSDORF, 1996). O processo de formação dessas imagens se relaciona ao plano do vivido, o que coloca em relevo o ponto de vista do indivíduo, para quem o espaço se constitui enquanto lugar – fundamentalmente simbólico, com sentidos próprios tanto do indivíduo quanto de uma coletividade –, onde se desenrola a vida em todas as suas dimensões, o habitar e as relações que ele implica e revela. As articulações locais se configuram por intermédio das relações travadas na vida cotidiana (relações entre vizinhos, de solidariedade etc.) e o tempo é o tempo do vivido. As articulações entre o primeiro e o segundo níveis de representação pressupõem também o reconhecimento de diferenciais de modernização econômica e cultural assim como a identificação dos processos de acentuação das diferenças: exclusão e segregação intra-urbana. Estas articulações se dão por meio do movimento de constituição das sociedades ao longo da história, principalmente, com o desenvolvimento das técnicas e o aprimoramento das redes, pois este movimento gera novas espacialidades que se refletem localmente na vida dos indivíduos. O que se afirma, de certo modo, é que as paisagens não são dependentes ou constituídas somente de histórias introvertidas, mas são arranjos particulares em situações específicas de uma realidade, materializada em determinado recorte espacial. Ambos os níveis guardam a potencialidade de produzir paisagens materiais e/ou simbólicas. Nesse sentido, poder-se-ia deduzir que as imagens se constituem de forma dialética e têm como função “[...] a produção da comunhão, da coesão social, produzindo intensos sentimentos coletivos, pela partilha das imagens, possibilitada pelos diversos meios de comunicação em ação nas sociedades [...]” (FERREIRA, 2006, p. 286).28 28

Note-se que a reprodução das imagens se dá por meio das mídias, mas também das relações interpessoais. A esse respeito, analogamente, podemos citar a ideia de nação e todas as suas representações, por meio de objetos, tais como a bandeira, o hino, os monumentos, entre outros. Como se sabe, essa ideia tem, enfim, a intenção de criar vínculos dos indivíduos com um determinado recorte espacial. Para Zukin (2000a, p. 96),

42

Diante disso, afirma-se que uma forma de entendimento da imagem urbana, de acordo com as opções realizadas, se refere à percepção que dela têm os moradores, pois são profundamente relacionadas com as práticas e com as experiências desses indivíduos. De modo complementar, O espaço urbano é apreensível a partir de suas manifestações externas, em etapas de sucessão cognitiva onde se desenvolve um movimento de objetivação de informações. [...] As características sensíveis dos lugares são manifestações externas do fenômeno urbano, ocasionadas por certas determinações geralmente não explícitas. Para identificá-las, é preciso definir o espaço urbano como fenômeno social específico que se vincula, de maneira dialética e equânime, às demais esferas analíticas da sociedade. (KOHLSDORF, 1996, p. 50-51).

O ser humano percebe o espaço simultaneamente por meio de todos os sentidos. Segundo Rodrigues (2001), ao considerar as contribuições de Bartley (1978) e de Tuan (1980), o organismo humano apresenta dez modalidades sensoriais por meio das quais contata o mundo externo. São elas: a visão, a audição, o tato, a temperatura, a sinestesia, a dor, o gosto, o olfato, o sentido vestibular e o sentido químico.29 Tem-se, então, que cada sentido se especializa em captar parte da realidade e se combina com os demais para formar a percepção. “A circulação de imagens para consumo visual é inseparável das estruturas centralizadas do poder econômico. [...] com os meios de produção tão concentrados e os meios de consumo tão difusos, a comunicação dessas imagens torna-se um meio de controle tanto do conhecimento quanto da imaginação: uma forma de controle social.” 29 Rodrigues (2001) citando Bartley (1978) e Tuan (1980) assim explica cada uma das modalidades sensoriais dos seres humanos: “[...] Com a visão enxerga todos os objetos. A visão binocular auxilia o homem a ver as coisas nitidamente como corpos tridimensionais. Distingue a forma dos objetos, a ordem em que se sucedem na paisagem, suas cores, seus brilhos e movimentos. Através do deslocamento do observador, usando o sentido sinestésico, modificam-se as fronteiras do campo visual, os objetos mudam de direção, um eclipsa o outro, certos detalhes são perdidos, ao passo que outros são realçados. A visão é seletiva e reflete a experiência. Assim cada pessoa vê diferentemente de outra, dependendo do direcionamento da sua observação, subordinada aos seus interesses individuais. Nesse sentido a visão ultrapassa o aspecto puramente sensorial. O olfato, captando o odor da paisagem, é importante na formação da imagem e na sua memorização. A recordação de imagens da infância não raro vem acompanhada dos seus cheiros. Da mesma forma, os sons são muito importantes para a evocação de uma paisagem. Segundo Yi Fu Tuan (1980, p. 10) somos mais sensibilizados pelo que ouvimos do que pelo que vemos. O som da chuva batendo contra as folhas, o estrondo do trovão, o assobio do vento, um grito angustiado excitam tão intensamente quanto uma imagem. Por intermédio do tato, se pode perceber a textura das coisas que vemos ao tomar contato com elas. Há dois sentidos de tato – um ativo (tocar) e outro passivo (ser tocado), ambos igualmente importantes para completar a imagem da paisagem. Por exemplo, ao caminhar por uma trilha, pisar no solo, tocar as árvores, roçar as folhas, o caminhante, movido pelo sentido sinestésico, amplia suas sensações, enriquecendo sua experiência com a paisagem. O sentido vestibular que se localiza na parte auditiva do ouvido interno, captando a sensação de equilíbrio, é responsável pela vertigem das alturas

43

[...] é apenas na percepção que se iniciam os processos cognitivos, porque a partir de então ocorre a reprodução intelectual da realidade. [...] A peculiaridade do processo perceptivo pode ser definida por sua ligação estrutural à consciência e à memória, mas, principalmente, ao grau de desenvolvimento da inteligência dos indivíduos. Esse fato configura a ação perceptiva como uma síntese entre sensações e o complexo inteligente, conferindo-lhe caráter de globalidade. [...] Nos apropriamos dos fenômenos quando a percepção nos oferece um espetáculo tão variado quanto claramente articulado, e quando suas intenções motrizes recebem e desenvolvem as respostas que esperam do meio ambiente. Essas considerações esclarecem que a percepção do espaço físico se apóia na unidade entre sujeito e objeto. Trata-se de uma relação com um meio, real ou lógico, que não se caracteriza por ser o lugar onde as coisas estão colocadas, mas o meio pelo qual sua disposição se torna possível. Passa-se, portanto, da noção idealista de espaço passivo e neutro para um conceito de espaço ativo, que se consubstancia na referida unidade sujeito-objeto, na medida em que é a presença do corpo humano no mundo que o mantém vivo, animado, visível e passível de conhecimento. (KOHLSDORF, 1996, p. 56-58).

As experiências, em conjunto com as habilidades sensoriais e a imaginação, desempenham, assim, importante papel no desenvolvimento da visão de mundo, pois o contato direto com o ambiente permite ao indivíduo constituir seu espaço perceptivo. Para Kozel (2007), a imagem de algo reflete uma construção simbólica e o espaço percebido pela imaginação não pode ser um espaço indiferente, sendo este, um espaço vivido, com todas as parcialidades que ele possui. Nesse sentido, para Tuan (1980), experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele.30 De forma complementar, Jordana (1992) citado por Pires (1999) ressalta que a percepção se dá a partir dos estímulos recebidos do ambiente, é um ato de criação que está condicionado a três fatores: quando se observa um precipício. A sensação térmica dada pelo contato do corpo com o sol, com a água, com o ar, é muito importante na percepção da paisagem. Completam a percepção a dor, o gosto e o sentido químico. A dor funciona como proteção do indivíduo; o gosto, quando ocorre provar o sabor de uma fruta ou a sensibilidade da água; o sentido químico, ao ter reações alérgicas mediante o contato com alguns vegetais ou animais [...]. (RODRIGUES, 2001, p. 46-47). 30 Como dito anteriormente, o espaço vivido ou experienciado, empregado pela fenomenologia, é um espaço construído material e simbolicamente e, por isso, comunica intenções, ideias, pensamentos que são apreendidos e percebidos pelas pessoas que interagem de formas diferentes a determinados aspectos desse espaço. Segundo Xavier (2004, p. 88), o mundo vivido é “sempre um espaço rico e complexo, que é ordenado com referência às intenções e experiências humanas, porque nele o ser humano está imerso e nele se prolonga através de suas ações, percepções e sonhos.”

44

- fatores inerentes ao próprio indivíduo (forma de ser, capacidade imaginativa, mecanismos de associação etc.); - fatores educativos e culturais imprimidos pela sociedade, condicionantes da sensibilidade e atitudes do observador; e - fatores emotivos, afetivos e sensitivos, derivados das relações do observador com o ambiente. (JORDANA, 1992 apud PIRES, 1999, p. 163-164).

Desse modo, a visão de mundo é construída a partir do repertório cultural do indivíduo, permeada pelo imaginário, por seus pensamentos e por seus sentimentos, envolvendo também a experiência individual, consciente e inconsciente. Há que se considerar, enfim, que essa experiência é mediada por todo o referencial préconcebido do indivíduo e, por isso, ele apreende a realidade a partir de seus próprios valores e construções. Deste modo, segundo o princípio da intencionalidade da consciência, sustenta-se que perceber é conceber, à medida que o indivíduo projeta uma imagem própria a respeito da realidade captada desde o exterior. Segundo Kozel, [...] o processo de desenvolvimento mental passa por etapas que se realizam, mais cedo ou mais tarde, em função das experiências e do meio onde o indivíduo adquire mais informações que se refletem diretamente na percepção. (KOZEL, 2007, p.117).

Mais que isso, completa a autora que o espaço não é somente apreendido através dos sentidos, ele referenda uma relação estabelecida pelo ser humano emocionalmente, de acordo com as suas experiências espaciais. Assim, o espaço não é somente sentido, percebido ou representado, no acréscimo de todas essas dimensões ele se torna vivido, desse modo, as “imagens que as pessoas constroem estão impregnadas de recordações, significados e experiências.” (KOZEL, 2007, p.117). 31 31

De forma extensiva, a percepção de tempo é motivada pelo contexto de cada época e pelo ambiente em que cada indivíduo se insere. A esse respeito, vale ressaltar que várias pesquisas publicadas nas últimas duas décadas apontam para uma mudança na percepção da passagem do tempo relacionada com a idade e com a época em que a pergunta foi formulada. Os resultados da pesquisa de James Tien e James Burnes (2002) salientam que hoje se percebe o tempo passar muito mais rápido do que alguém da mesma idade percebia no passado. Acredita-se que o “estado de espírito” das pessoas, bem como, o nível de complexidade das tarefas desenvolvidas, e até mesmo o contexto socioeconômico global e/ou local influencie na percepção da passagem do tempo. Algo similar parece ocorrer, mas não com a mesma frequência e intensidade, em relação aos espaços, ainda que a noção de distância seja relativizada, pois parte de um dado concreto,

45

A partir da experiência acumulada em sua biografia, o indivíduo procura vivenciar e compreender o espaço em que se insere, aprender formas de ação para seu uso, sua valorização e, quando necessário, para tomar atitudes em relação a ele. A capacidade de assumir uma atitude frente ao mundo é formada por uma longa sucessão de percepções e de experiências associadas, ou seja, as atitudes adotadas pelas pessoas espelham os seus interesses e os seus valores e refletem a sua visão de mundo. (TUAN, 1980). 32 Acredita-se, desse modo, que Um ser humano percebe o mundo simultaneamente através de todos os seus sentidos. A informação potencialmente disponível é imensa. No entanto, no dia a dia do homem, é utilizada somente uma pequena porção do seu poder inato de experienciar. Que órgão do sentido seja mais exercitado varia com o indivíduo e sua cultura. Na sociedade moderna, o homem tem que confiar mais e mais na visão. Para ele, o espaço é limitado e estático, um quadro ou matriz para os objetos. Sem objetos e sem fronteiras, o espaço é vazio. É vazio porque não há nada para ver, embora possa estar cheio de vento. (TUAN, 1980, p. 12-13).

A percepção, ao se constituir, além de permitir a interação do indivíduo com o espaço, permite também que se elaborem respostas apropriadas às mudanças e às incertezas que o meio oferece, respostas essas, que se evidenciam pela cognição e pela inteligência e que se devem, em parte, às representações e às imagens subjetivas que se tem do espaço. Sobre essas últimas, Kevin Lynch (1988) afirma que são produtos da percepção imediata, da memória e da experiência passada habituada a interpretar informações e a comandar ações. A necessidade de conhecer e estruturar o

menos abstrato que o tempo. Chama-se a atenção, ainda que de forma superficial, para a noção da física quântica sobre o passar do tempo. Para a física quântica, não existem passado, presente e futuro – pois estes diferem, sobremaneira, do tempo da natureza –, mas, sim, lembranças e memórias parciais de acontecimentos, o instante vivido e perspectivas de potenciais acontecimentos. Ressalte-se também que o tempo “psicológico” difere do tempo “natural” e do tempo “quântico”, pois se relaciona às experiências vividas e ao tempo biológico/fisiológico do corpo humano. A fenomenologia parece corroborar a ideia de que os tempos seriam tantos quanto os espaços, uma vez que declara que cada indivíduo percebe o seu espaço vivido de forma diferenciada. Como observa Amorim Filho (1999b), o novo modo de encarar e valorizar o ambiente no qual vivemos é um dos fenômenos mais significativos da história humana contemporânea. 32 A respeito da constituição de valores referentes ao espaço, Anne Buttimer (1982) afirma que são múltiplos e relativos ao olhar individual e que se relacionam às construções simbólicas e apropriações culturais. Para Claval (2007) os valores estruturam-se em conjuntos de crenças e de normas abstratas de comportamento que são do domínio da religião ou da metafísica.

46

nosso meio é tão importante e tão enraizada no passado que esta imagem tem uma grande relevância prática e emocional na vivência do presente do indivíduo. Para ele, As imagens do meio ambiente são o resultado de um processo bilateral entre o observador e o meio. O meio ambiente sugere distinções e relações, e o observador – com grande adaptação e à luz dos seus objectivos próprios – seleciona, organiza e dota de sentido aquilo que vê. A imagem, agora assim desenvolvida, limita e dá ênfase ao que é visto, enquanto a própria imagem é posta à prova contra a capacidade de registro perceptual, num processo de constante interacção. Assim, a imagem de uma dada realidade pode variar significativamente entre diferentes observadores. (LYNCH, 1988, p.16-17). 33

Kohlsdorf (1999, p. 43) acredita que a percepção é “[...] parte integrante de qualquer processo de conhecimento. No caso da cidade, ela é abordada segundo sua componente visual (apesar de ocorrer pela síntese de todos os sistemas sensoriais)”. Destarte é relevante ressaltar, que as coisas percebidas só compõem um significado se estiverem no contexto cultural dos indivíduos. Do ponto de vista fenomenológico, as coisas, em si mesmas, não significam coisa alguma. Elas só são o que são porque podem acoplar múltiplos significados que não lhes são intrinsecamente inerentes, mas lhes vêm desde o mundo, dos relacionamentos interpessoais, das construções coletivas. Critelli sustenta que [...] é à existência que a significação pertence. Nunca às coisas nelas mesmas. Em si mesmas as coisas não passam de meros troços. Os significados das coisas apenas são, à medida que mantêm e estabelecem a ligação dos homens entre si e com o mundo. (CRITELLI, 1996, p. 45).

De modo complementar, Critelli (1996) afirma que não se deve se referir aos objetos como meras coisas que estão disponíveis no mundo, mas entes que reúnem, que conservam, que guardam em si e no que são, os modos humanos de se habitar o mundo e de se cuidar da vida. 33

Lynch (1988) divide as imagens da cidade entre aquelas de topo e aquelas de base. As primeiras são relacionadas aos grandes volumes construídos, obras de engenharia que colocam as técnicas a serviço das construções magnificentes, que se impõe à vista de qualquer um. As imagens de base seriam aquelas mais sutis, que servem para ensinar aos indivíduos as regras de se portarem nos espaços públicos, sobretudo. Andar nas passagens adequadas, não pisar na grama, apreciar as esculturas, entre outros. Afirma ainda que as imagens da cidade são funcionais, pois apresentam-se também como pontos de referência que marcam os indivíduos e, a partir de seus esquemas mentais, impedem que eles se percam ou se desorientem na cidade.

47

Os gestos, desencadeando outros, vão, então, construindo uma teia de relações humanas, uma trama que vai, ao longo do tempo, se consolidando ou pela habitualidade, por exemplo, ou pela tradição... Mas esta teia, por mais desejada ou idealizada em sua forma final, é sempre imprevisível. Esta trama é tão fugaz quanto a vida humana, igualmente insólita. Sua chance de solidez está fora dela mesma, no registro das leis, documentos, monumentos e, mais imediatamente, nos objetos de uso, bens de consumo, obras-de-arte. [...] Os gestos e os discursos (cada um deles), através dos quais o quem alguém é pretende alguma objetivação, mesmo se registrados devidamente, findam quando finda seu testemunho. Enquanto os objetos de uso, de consumo e as obras-de-arte permanecem como corpos tangíveis, cada gesto e cada discurso acabam tão logo termina seu pronunciamento. Simultaneamente, não sobram (salvo se devidamente registrados) como coisas tangíveis em si mesmas para o testemunho, como um pacote de farinha ou uma espátula. Só a rememoração desses feitos e discursos registrados, em que se reaviva o sentido que tiveram, pode retirar esses feitos e falas registrados da condição de meras coisas. [...] Objetos de uso, bens de consumo, obras-de-arte revelam através de si modos dos homens habitarem seu mundo: mundanizando, preservando a vida e atendendo às necessidades vitais, coexistindo, cuidando de ser quem singularmente são. Eles são as possibilidades de segurar, neles mesmos, a objetividade pretendida, mas impossível ao ente homem em sua existência. (CRITELLI, 1996, p. 115-117).

Sem serem significadas pelo ser humano, as coisas são vazias, embora latentes de significações. As coisas são aquilo que elas significam e como elas realizam esta significação, pois os objetos, em sua “coisidade”, sem seus significados construídos e que se tornam a eles subjacentes, são absolutamente incompreensíveis aos homens. Ruiz afirma que Qualquer conhecimento do mundo implica uma construção de sentido. As coisas não se apresentam para ele [indivíduo] de forma imediata, natural ou objetiva. Ele as recria por meio do sentido, transformando-as de elementos insignificantes em objetos carregados de significado cultural. O mundo do ser humano é sempre um sentido do mundo. Desse modo, o sentido reflete o mundo como se fosse uma rede de significados culturais por meio dos quais se compreende e transforma a realidade. Ele não conhece as coisas de forma imediata; para aceder a elas, precisa sempre de uma mediação ou hermeneusis. Essa mediação é constituída pelo sentido que a pessoa cria para tudo o que a rodeia. (RUIZ, 2004, p. 59).

A possibilidade do conhecimento é um processo de aproximação à realidade objetiva, que se propõe a reproduzi-la em pensamento e admite formas diversas e 48

não-excludentes, tais como senso comum, conhecimento científico e ideologia existindo elos fortes entre eles (KOHLSDORF, 1999). Ainda que algum desses modos de conhecimento leve vantagem sobre os outros, a percepção parece conter a possibilidade mais efetiva de ligação. O nível de percepção apresenta larga viabilidade de entendimento da realidade por ser papel de base genética do aprendizado, que a responsabiliza pela seleção de informações a serem posteriormente elaboradas e pela capacidade de produção de conhecimento abrigada por seu mecanismo. Integra, com o nível de formação da imagem mental, o modo de apreensão sensível do espaço urbano (KOHLSDORF, 1989). É nela que ocorre o encontro entre informações captadas e a inteligência, construindose o espaço da cidade em seus atributos qualitativos de forma. Aprendizado e conhecimento exigem certas qualidades cognitivas dos indivíduos e condições para a sua realização por parte do meio ambiente (por exemplo, iluminação adequada). Entretanto, baseiam-se na dinâmica entre assimilação e adaptação, que fundamentam seu mecanismo. Ela tanto estimula o observador a aceitar informações, saindo de seu repertório, quanto lhe garante a permanência de vínculos consigo, pela acomodação do que foi recebido às suas condições. A explicação dos fenômenos dá-se, portanto, de modo a assegurar afirmação e segurança emocionais ao observador, em resposta à angústia frente ao desconhecido. (KOHLSDORF, 1999, p. 4445).

Para Machado (1999, p. 104) “[...] a atividade perceptiva enriquece continuamente a experiência individual e por meio dela nos apegamos, cada vez mais, ao lugar e à sua paisagem, desenvolvendo sentimentos topofílicos.” Paul Claval (2007) afirma, ainda, que o que se lê no mundo e na sociedade é o que se aprende a ler e, por isso, as sensações não são jamais puras, pois os indivíduos vivem numa sociedade, utilizam um vocabulário de formas e de cores que predeterminam o que percebem do mundo através dos parâmetros de leitura que receberam. O olhar procura sempre apreender os recortes que evocam as palavras que lhes foram transmitidas e as construções mentais que as complementam. A apreensão do real reveste-se sempre de uma dimensão simbólica, na qual os significados e imagens que vêm da coletividade ajudam os homens a estruturar e a pensar seu meio e a lhe dar um sentido, mas os impedem, com frequência, de ver alguns de seus traços – às vezes os mais óbvios, para o observador “outsider”. Das 49

representações, passa-se a conjuntos de ideias que organizam o mundo, a conceitos abstratos, a teorias, que estariam na base do saber (CLAVAL, 2007). De modo complementar, Anne Buttimer (1980), chama a atenção para a visão do insider e do outsider em relação à construção de significados para os lugares. Enquanto o primeiro encontra na vida cotidiana o significado do lugar, por meio do fazer mais que do pensar, o segundo descreve o lugar por meio do uso da terra, do fluxo de atividade, da fronteira política, entre outros substantivos. Neste último caso, existe um distanciamento da realidade vivida pelo insider, este que “[...] incorpora a experiência de alcance em sua existência cotidiana” (BUTTIMER, 1980 apud FERREIRA, 2002, p. 58). Nesse sentido, a armadilha do outsider está, muitas vezes, em que ele procura compreender a realidade através das imagens, mapas e modelos formados anteriormente, o que o leva a encontrar nos lugares aquilo que, previamente, pretendia encontrar. Na definição de Relph (1980) citado por Ferreira (2002), o outsider teria uma atitude “inautêntica” em relação ao lugar, o que se manifestaria na ausência de sentido do lugar, não na preocupação com as expressões simbólicas dos lugares, com suas identidades, sendo esta atitude não-autoconsciente, representando uma aceitação acrítica dos valores de massa, ou Kitsch.34 O insider, por sua vez, acaba “pecando” por imergir intensamente nas particularidades do cotidiano e, muitas vezes, não perceber a necessidade de questionamento mais amplo da realidade do lugar. O grande desafio dos planejadores, neste caso, seria buscar um diálogo entre estas duas visões de mundo. 35

34

35

O Kitsch, para Relph, abordaria o lugar como coisa da qual o homem é alienado e onde os lugares são recriados, perdendo sua autenticidade e ganhando qualidades artificiais e/ou superficiais e sendo medidos, quase sempre, pelo seu valor econômico. O processo de “perda de valor de autenticidade” é definido por Relph (1980) apud Ferreira (2002) como “deslugaridade” (placelessness). Esse processo é transmitido, segundo ele, pela comunicação de massa, pela cultura de massa, pelos grandes negócios, pela “autoridade central” ou o Estado e pelo sistema econômico. Seria a perda do “sentido de lugar” e a consequente aniquilação da diversidade e singularidade das paisagens associadas a esses lugares. A propósito disso, Jane Jacobs discorre, em Morte e Vida de Grandes Cidades, a respeito de um grande gramado instalado em um conjunto habitacional de Nova York pelo qual os moradores nutriam particular repulsa: “[...] há um aspecto ainda mais vil que a feiúra ou a desordem patentes, que é a máscara ignóbil da pretensa ordem, estabelecida por meio do menosprezo ou da supressão da ordem verdadeira que luta para existir e ser atendida”. Neste caso, a ordem que predominava no lugar era muito diversa daquela imposta aos moradores, o que pôde ser captado por Jane Jacobs (2000) na fala de uma moradora: “Ninguém se

50

Dito isso, importa considerar que, por apresentarem peculiaridades em relação à construção de suas práticas espaciais, as cidades oferecem referenciais diferenciados de paisagens de outras naturezas para o seu entendimento. Por isso, a sua percepção também se opera de forma peculiar, o que caracterizaria a percepção urbana. A percepção urbana, segundo Ferrara [...] é uma prática cultural que concretiza certa compreensão da cidade e se apóia, de um lado, no uso urbano e, de outro, na imagem física da cidade, da praça, do quarteirão, da rua, entendidos como fragmentos habituais da cidade. Uso e hábito, reunidos, criam uma imagem perceptiva que se sobrepõe ao projeto urbano e constitui o elemento de manifestação concreta do espaço. (FERRARA, 1988, p. 3)

Podemos dizer, deste modo, que a percepção informa sobre o espaço urbano e que, por meio de sua leitura, é possível decodificar as imagens ou representações que predominam junto à população local ou aos seus agentes externos, bem como, os interesses e ideologias que os orientam. As informações perceptivas, tomadas em conjunto com a contextualização do espaço, permitem interpretar o que dizem as imagens urbanas e se colocam como uma exigência metodológica no estudo da constituição das paisagens urbanas. A imagem urbana, neste caso, tem papel de mediação entre a realidade estudada, vivida pelo indivíduo pesquisado e o pesquisador. Assim, toda imagem representada “[...] é uma codificação do mundo, um simulacro do universo e, portanto, uma informação cultural diferenciada.” (FERRARA, 1988, p. 8). Com a contribuição dos estudos da semiologia, da arquitetura, da filosofia, da própria geografia cultural e humanista, entre outros tantos campos disciplinares fronteiriços nas ciências sociais, parece haver-se elucidado pelo menos parte do tratamento das imagens no que se refere ao urbano, o que inclui tanto as representações da paisagem “física” da cidade, quanto o que se relaciona ao

importou com o que precisávamos! Mas os poderosos vêm aqui, olham para esse gramado e dizem ‘Que maravilha! Agora os pobres têm de tudo!’” (JACOBS, 2000, p. 14).

51

imaginário que se constitui a despeito delas, incluindo, neste caso, a consciência implícita ao homem.36 Para Ferrara [...] decodificar esse urbano, entender sua lógica, supõe o reconhecimento da sintaxe, do modo de formar que o identifica, das faixas de linguagem que se combinam na sua constituição, da possibilidade de romper aquela homogeneidade a fim de projetar elementos de predicação, de qualificação. (FERRARA, 1988, p. 3).

Assim, tomando-se a percepção individual ou coletiva como uma fonte de “leitura” das imagens urbanas, afirma-se que existe a escrita de um texto “nãoverbal”, que se dá na imbricação daqueles dois níveis de representação tratados anteriormente.

36

37

37

A especificidade deste texto consistiria na não-linearidade dos

A semiologia remete, primeiramente, à filosofia empirista do século XVII, com John Locke – semiótica, para uma citação mais fiel – mas tem seus maiores desenvolvimentos com Charles Sanders Peirce, no início do século XX, sendo o termo “semiologia”, sugerido por Saussure no mesmo período, neste caso, englobando a linguística (Santaella, 1980). “A semiologia se desenvolveu como teoria, instrumento e metodologia de análise aplicável enquanto sistema de descrição, de diferenciação, de classificação, de comunicação” (FERRARA, 1988, p. 42). A semiologia peirciana enraíza suas definições (e classificações) de signos em categorias cognoscitivas que partem de uma minuciosa pesquisa sobre as operações da representação e que são comprovadas logicamente pela sua teoria dos grafos. Pecando pela inevitável simplificação da complexa teoria peirciana, destaca-se no presente trabalho, a relação dialética entre a tríade objeto, signo e interpretante. O signo seria uma representação do objeto e do significado enquanto elemento essencial do conhecimento, mas incluiria uma terceira dimensão: o interpretante. O relacionamento entre esses três elementos produziria uma sintaxe. Para Ferrara (1988; 1993), decodificar quaisquer sistemas significa reconhecer o signo e a sintaxe que os identificam. Signo e sintaxe, nessa acepção, remetem, respectivamente, a algo que representa alguma coisa, seu objeto e, à apreensão do signo. A semiologia se aproxima da fenomenologia no que se refere à consciência que, segundo Peirce, está no homem. Esta afirmação que pode parecer simples aos desavisados, guarda uma proposta inovadora: “o homem só conhece o mundo porque de alguma forma o representa e só interpreta essa representação numa outra representação que Peirce chama interpretante da primeira. Daí que um signo seja uma coisa de cujo conhecimento depende o conhecimento de uma coisa outra – que chamamos mundo ou realidade, ou seja lá o que for.” (Santaella,1980, p. 14). A semiologia guarda outras aproximações explícitas com a fenomenologia, quando Peirce, citado por Santaella, propõe que “[...] antes de qualquer ciência normativa deve haver uma ciência que não trace distinção entre bom e mau em qualquer sentido; mas que contemple os fenômenos como tais, abra os olhos e simplesmente descreva o que se vê, nem mesmo distinguindo o real da ficção, mas descrevendo apenas o objeto como fenômeno e enunciando aquilo que é semelhante em todos os fenômenos. Peirce concorda com Hegel em chamar a esta ciência fenomenologia, embora não a restrinja, como faz Hegel, à observação e análise da experiência, mas estende-a à descrição de todos os traços comuns ao efetivamente experienciado e ao que pode pensar-se como tendo essa possibilidade.” (SANTAELLA, 1980, p 15). No caso específico da semiologia aplicada aos estudos urbanos, procurou-se pesquisar a relação entre três operações básicas e interdependentes: a percepção, a leitura e a interpretação das paisagens. Nesta abordagem, a percepção é a primeira etapa de um processo complexo que toma a imagem urbana como fonte de informação sobre a cidade (FERRARA, 1988). A esse respeito, consulte-se os estudos recentes de Kozel (2007); MACHADO (1999) e trabalhos de FERRARA (1988, 1993) entre outros.

52

signos, em um aglomerado de signos, em diferentes faixas de linguagem. Nesse sentido, ruas, praças, casas, parques, rios, equipamentos urbanos, fazem parte de um texto pronto a ser lido por meio de suas imagens e de suas representações.38 No sentido de texto utilizado por Ferrara (1988) – também uma metáfora da produção urbana do espaço – e em concomitância com o tratado anteriormente, as cidades são “escritas” o tempo todo pelos sujeitos que as habitam e, além deles, pelos diversos agentes que nela atuam, internamente ou externamente. O interesse nessa metáfora, convém frizar, se justifica à medida que ela permite levar em consideração a “leitura” da dimensão dos sentidos impressos na cidade, uma vez que apresenta a sua paisagem como um documento aberto às múltiplas interpretações (MONDADA; SÖDERSTRÖM, 2004a). Essa “escrita” do espaço é feita pelos seus usuários e, muitas vezes, imposta pelos seus planejadores – poderes público e privado – e acaba por produzir, de forma simultânea, representações que tomam forma e sentido com o uso e com o não-uso, com a apropriação ou com o estranhamento/rejeição do espaço. De modo complementar, os usos e os hábitos são os responsáveis por reproduzir a vida simbólica das coisas e dar sentido aos lugares na escrita do urbano. Pelo exposto até aqui, é possível concluir que a “escrita” da cidade não se dá de forma simples, mas, como dito anteriormente, por meio de lutas simbólicas, que se estabelecem a partir do conflito entre objetivos distintos: o de fixar novos valores e novas visões de mundo e o de manter os anteriormente adotados, de acordo com os interesses então vigentes.

38

Essa concepção do urbano se aproxima, em alguma medida, da proposta de Duncan (2004), um dos pioneiros no tratamento da paisagem como texto. Para este autor, a interpretação da realidade, por meio do texto escrito, depende da construção intelectual e opções epistemológicas do pesquisador/autor. Quando este constrói seu texto verbal sobre a cidade, por exemplo, utiliza-se de figuras de linguagem que expressam, por fim, essas construções intelectuais e opções epistemológicas, além de sua visão de mundo. Duncan (2004) relaciona as interpretações do urbano, mais especificamente da cidade, elaboradas pelos autores, com as figuras de linguagem. Como exemplo, cita os textos positivistas que estariam impregnados de metáforas das ciências naturais (cidade como organismo vivo), os textos marxistas revelariam sinédoques (cidade como parte de um todo: o capitalismo) e a crítica pós-estruturalista revelaria ironia (cidade interpretada como impossibilidade de interpretação). Afirmando, portanto, que a cidade tem sido descrita, por meio de textos verbais ou escritos, carregados de figuras de pensamento e de linguagem. Nesse sentido, Corrêa (2006) observa que os estudos de Hayden White argumentam que um texto geográfico pode apresentar-se de modo ficcional tal como romance, comédia, tragédia e ironia ou por figuras de linguagem tais como metáforas, metonímias e sinédoques.

53

Para que esse sentido criado e vivido pelos indivíduos seja apreendido pelo pesquisador é necessário que sejam utilizadas mediações, tais como as falas e os discursos, que figuram como forças que emergem de um contexto histórico específico e efetivam mudanças que são ao mesmo tempo simbólicas e muito concretas. Assim, os discursos moldam o nosso sentido mais profundo de ser e, ao mesmo tempo, dão origem a regimes específicos de tratamento e de estilo de vida, tornam-se parte integrante do imaginário da mídia popular e, consequentemente, do senso comum, e estão mobilizados, ainda que de forma patente, para modificar ou apoiar uma variedade de construções sociais e políticas. Cosgrove (2004b) considera que a produção e a reprodução das imagens urbanas não se dá de forma consciente para todos os indivíduos e grupos sociais, mas são potencialmente capazes de serem trazidas a um nível de consciência que permite refletir sobre elas. De forma complementar, Lynch (1988, p. 17) afirma que “Cada indivíduo cria e sustenta a sua própria imagem, mas parece haver uma concórdia substancial entre membros [do mesmo grupo]”, o que nos leva a considerar relevante que, ao se percorrer as imagens urbanas e representações que foram constituídas ao longo da construção/escrita da paisagem urbana, por meio da percepção que se tem dessas paisagens, seja possível conhecer a sua linguagem e reconhecer elementos comuns e captar os modos de sua reprodução.

Diante do exposto, a seguir, optamos por contextualizar o recorte espacial selecionado, com vistas a facilitar e subsidiar a compreensão das representações e imagens urbanas captadas durante as entrevistas com os sujeitos conhecedores daquela realidade.

Para maiores informações sobre o livro completo confira em: https://www.morebooks.de For more information about the complete book please check: https://www.morebooks.de 54

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.