Iustitiae defensor, ora pro nobis – Afirmação do popolo paduano e a canonização de Antônio de Pádua (1220-1232)

May 27, 2017 | Autor: Gustavo Gonçalves | Categoria: Hagiography, Canonization and sanctity, History of the Franciscan Order, Italian communes
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Iustitiae defensor, ora pro nobis – Afirmação do popolo paduano e a canonização de Antônio de Pádua (1220-1232).

Gustavo da Silva Gonçalves. Orientador: Prof. Dr. Igor Salomão Teixeira.

Prezados e prezadas, boa tarde. Meu nome é Gustavo da Silva Gonçalves, estudante do décimo semestre do curso de História. Esta comunicação faz parte de nosso trabalho de conclusão de curso, mas também sendo resultado de aproximadamente três anos de pesquisa desenvolvidas junto ao prof. Dr. Igor Salomão Teixeira. Estando atrelada ao projeto “Histórias da Península Itálica: crônicas, hagiografias e sermões (Séculos XIII e XIV)”,a apresentação é, portanto, decorrente de leituras, discussões e reflexões desenvolvidas no período de 2013 até o presente momento. O objetivo da comunicação consiste em analisar o atrelamento de diferentes personagens históricos conglomerados sob o conceito de popolo, e a canonização do frade franciscano Antônio de Pádua, realizada em 1232. Para a realização deste trabalho, valemo-nos das hagiografias sobre o santo, mas também do Estatuto de Pádua e de crônicas do período, como as obras realizadas por Salimbene de Adam e Rolandino de Pádua. Propomos, nesta apresentação, realizar a seguinte interrogação: por que Antônio de Pádua possui um “tempo de santidade” menor, se comparado a outras santidades? Buscando uma provisória resposta, o argumento proposto baseia-se na hipótese de que a atuação do santo no interior de Pádua foi elementar para a afirmação social do popolo, em um período que a experiência comunal paduana possibilitou maiores inserções nas instâncias decisórias da cidade. Em troca, tal grupo – bem como seus correlegionários, tiveram uma destacada atuação no negotiumde Antônio de Pádua. Mas quem compunha o popolo? É possível estabelecer uma datação para o seu surgimento?

Patrick Gilli, ao realizar uma análise abrangente das cidades na Itália medieval, afirmou que “até os anos 1230, o grupo social dominante é sem contestação a militia; em seguida, uma alquimia social singular se opera no controle do governo urbano em torno da noção institucional de popolo, com contornos claramente menos aristocráticos”i. Este panorama geral – que conglomera a região norte da Itália, também é aplicável à Pádua. Opuseram-se aos milites, os quais podem ser caracterizados como as velhas forças da cidade, embora não tenham sido totalmente exclusas no decorrer do século XIII. Mas isso ainda pouco diz sobre o conceito. Neste ponto as análises de Sante Bortolami e Gerard Rippe nos auxilia a uma melhor compreensão: mesmo que haja divergências quanto ao caráter das transformações na cidade, ambos entendem que houve um alargamento das instâncias decisórias no controle de Pádua. Essa maior abertura inseriu tanto os comerciantes, os quais eram tributários do aumento das rotas comerciais, quanto os especialistas no direito, que produziam as regulamentações e leis em Pádua. Opuseram-se aos magnates, os antigos grupos que, cabe assinalar, não foram totalmente suplantados do poder. Decorrente disso optouse pela escolha de um podestade estrangeiro, tido para o período em análise como um perito “neutro” para os assuntos comunais, na tentativa de dirimir os conflitos e mediar as tratativas inter-grupais. Em resumo: a partir da virada do século, Pádua vivenciou o surgimento de novos grupos sociais em diferentes instâncias em seu interior. Vinculando-a com um panorama mais amplo de transformações econômicas, políticas e sociais no Norte da Itália, pode-se defender que houve o emergir de novos grupos sociais em virtude do aumento das rotas comerciais e das modificações institucionais. O surgimento do regime comunal em Pádua, a partir de 1205, possibilitou um alargamento das instâncias decisórias na cidadeii. Antes de deter-nos sobre a especificidade do culto a Antônio, tecemos algumas considerações sobre trabalhos outrora desenvolvidos sobre as santidades.Publicado em 1978, o

livro “Reason and Society in the Middle Ages”, escrito por Alexander Murray, possui um capítulo dedicado a analisar a importância dos santos na Idade Média. Ao longo da argumentação realizada por Murray viu-seo argumento de que a santidade era um ser “sem classe social”. Esta característica foi, consoante as proposições do autor, decorrente da capacidade dos santos em “falar com as pessoas ou diferentes classes com uma igual facilidade, imperturbável por uma consciência de classe”iii. Em nosso entender, esta análise possui importantes contribuições, mas comete o erro de afirmar que a santidade não possui classe. Vê-se que o cerne da argumentação se contradiz: ao afirmar que o santo é um ser que não possui classe, Murray acabou por realizar a mistificação e a transcendência deste personagem. Destoando do caráter iminentemente histórico e social destes personagens, o maior mérito do autor, que foi o entendimento de que a santidade é uma construção a partir de relações de poder socialmente localizáveis, foi contraditoriamente anulado. Como contraponto a esta abordagem, entendemos que a canonização de Antônio de Pádua deve ser compreendida a partir de uma perspectiva oposta. Apontando para processos divergentes – mas não excludentes entre si, a emissão da bula Cum dicat dominus, em 1232 na cidade de Espoleto, foi o ponto nodal em que se confluíram as expectativas do papado e do popolo paduano. A convergência dos interesses resultou em um brevíssimo tempo de santidade, se comparado com a canonização de outros santos. Conforme pontuou Igor Teixeira, o “tempo de santidade” é uma categoria a qual se permite analisar a canonização de qualquer santo em seus aspectos particulares. Ela também possibilita analisar o período de construção da santidade, a partir da abertura da inquisitioiv. No caso de Antônio, a celeridade da canonização esteve, em nosso entender, atrelada a uma espécie de “reconhecimento” realizada tanto pela Cúria Romana quanto pelo popolo, já que Antônio intercedeu por diferentes momentos nas contendas de Pádua tendo maior inclinação ao popolo. Para se compreender destes grupos à

“causa antoniana”, deve-se compreender a atividade deste frade in vita, em um período de expansão da Ordem dos Frades Menores e sua intercessão nas cidades italianas. Atuando ao longo da Marca Trevigiana, pregando a pacificação nas cidades da região – sendo lícito defender que tal atividade foi o prelúdio da Grande Devoção de 1233, o frade avizinhou-se de Pádua, segundo a Legenda Assídua, por “indicação divina”v. Para o período, esta cidade se localizava em um eixo nodal para as relações estabelecidas com a Santa Sé, em um preciso momento de contestação ao seu poder. Se os vínculos de Pádua com a Cúria Romana remetiam a períodos que antecederam a chegada do frade à cidade, necessitava-se um aprofundamento desta relação, tarefa realizada por Antôniovi. No entanto, no momento de sua chegada, os “novos ricos” já despontavam nas instâncias decisórias da cidade. A necessidade de conciliação era iminente. A ênfase dada à pregação no século XIII entre os diferentes grupos sociais se atrelou à “nova experiência” da Ordem Franciscana. A abordagem de Antonio Rigon aponta que Antônio foi o representante de um novo modelo dentro da Ordem dos Frades Menores, sem que houvesse uma ruptura total com os ideais de pobreza defendidos por Francisco de Assis.vii. Sua inserção nas cidades do norte da Itália e a aproximação com os propósitos defendidos pela Santa Sé, a saber, a libertas ecclesia e o embate contra Frederico II e seus correlegionários, fizeram da oratória e da pregação um importante elemento do frade em Pádua. Se a pregação era importante para a vida comunal, devemos interrogar: para quem? A pregação, conforme analisou André Miatello, valendo-se do testemunho de Tomás de Espalato, “incluía a defesa da política cívica baseada na concio”viii. Eis um primeiro indicador: a indissociabilidade da pregação com o espaço comunal. A concio, prossegue o autor, “consistia numa exortação ou admoestação com finalidade política, geralmente pronunciado nas assembleias citadinas por autoridades cívicas, como o podestà”ix. Possuindo um relevante papel na Itália comunal, a atividade pregoeira, ainda de acordo Miatello, interligava o poder espiritual

e o temporal, que se coadunavam em visas à “implantação da moral cristã em todos os seguimentos da prática individual e social”x. Mesmo que seconsidere a atuação do frade frente a um ideário de reforma preconizado pela Igreja, enfatiza-se que Antônio tambémoutorgou legitimidade ao popolo. É expressivo nesse sentido sua ativa intercessão na redação do Estatuto da Cidade de 1231, em que se lê: “A pedido do venerável Frei Antônio da Ordem dos frades menores, foi estabelecido e ordenado que ninguém, por causa de algum ou de muitos débitos pecuniários, do passado, do presente ou do futuro, fique retido na prisão [...]E quando a fraude não puder ser comprovada de modo evidente, estará sob o julgamento do podestà”. Ao delegar a Estefano Badoer – podestade neste período, a palavra final sobre as instâncias conciliatórias da Comuna, Antônio - direta ou indiretamente, outorgou legitimidade aos “novos ricos” da cidade, emergentes no controle das instâncias decisórias paduanas. Pouco tempo depois Antônio faleceu, em Arcella, em 1231. No momento de seu óbito ocorreu a tensão pela posse de seu corpo, sendo que Estefano Badoer ainda era podestade de Pádua, sendo reeleito e governando até 1232xi. Neste momento de disputas pela posse do corpo de Antônio, Badoer interferiu diretamente, convocando a população para a discussão no interior do palácio comunalxii. Conforme assinalou Vergílio Gamboso: “A universitatem civium convocada pelo podestà é a concio do popolo que se tinha no palácio comunal, mais tarde tido como palácio da razão [palazzo della ragione]”xiii. É a partir de tal citação que se pode entrecruzar, tal como propôs André Miatello, o secular e o “religioso”: a concio era, no entender deste autor, admoestações realizadas pelos grupos dirigentes – e também pelo podestade, nas cidades no norte da Itália. Ora, se a concio possuía um fim em si – isto é, a tentativa de persuasão, no caso de Pádua ela se atrela aos novos ricos na medida em que as oratórias eram realizadas no Palazzo della Ragione, símbolo máximo do advento dos novos ricos.

Os combates para a detenção do corpo de Antônio e o posterior translado apontam, portanto, a uma incipiente devoção realizada por estes setores sociais antes mesmoda canonização. Relata a Assídua que “O Bispo da cidade com todo o clero e bem assim o Podestà com um grande número de cidadãos vão a Arcella e, organizadas as procissões, ao som de hinos, aplausos e cânticos religiosos, com o admirável júbilo de toda a gente, transportaram o corpo do bem-aventurado António”. A partir deste relato é possível identificar diferentes grupos ao redor da reverência ao frade. Em outro importante fragmento, com o corpo já em Pádua, é possível identificar a divisão por quarteirões no ato de devoção a Antônioxiv. Sabe-se, a partir dos estudos de Gerard Rippe, que os diferentes grupos sociais emergentes na cidade, que se aglutinavam em torno do conceito de populus, dividiam-se em “bairros” para representarem-se nas instâncias de poder da cidadexv. De acordo com o autor, a partição da cidade em quatro grandes quarteirões é verificada a partir de 1202 que, em seu entender, possibilitou maior repreesentação do popolo frente aos antigos membros magnates e membros da militia. Pode-se inferir que a divisão da cidade serviu para instaurar mecanismos de representação para o populus. Ora, a partir desta “devoção particionada”, é sugestiva a devoção destes grupos a Antônio, cujo qual intercedeu a favor daqueles frente aos antigos grupos que não foram totalmente suplantados das relações sociais da cidade. Por fim, desejamos realizar um breve comentário sobre as transformações ocorridas em Pádua. Além da emergência de novos grupos, viu-se a criação da Universidade, em 1222. Em um primeiro momento pode-se estranhar a destacada articulação do studium paduano na defesa da canonização de Antônio. No entanto, esta atitude se relaciona com a própria emergência destes novos setores na Comuna, adquirindo um claro caráter de intelectualidade no interior da cidade atrelada aos interesses do popoloxvi. Na busca e fixar normas no interior da comuna,visando a limitação dos poderes dos aristocratas em u

m período posterior a 1200,

constituiu-se um grupo que, de acordo com Gerard Rippé, tinha uma maior autonomia e preponderância no interior da cidade. Deste modo, a universidade exerceu um papel de aproximação e colaboração com as “novas” entidades e personagens na cidade, possibilitando fundamentar – a partir da auctoritas do espaço universitário, o processo de canonização de Antônio de Pádua. Sante Bortolami afirmou que a Universidade atuou em estreita colaboração com a Comuna de Pádua, havendo uma ampla produção jurídica na cidade. Em contrapartida, a cidade garantiu plenos direitos e poderes à Universidade, estabelecendo um vinculo colaborativo entre estas esferas.xvii Fomentada pelos setores emergentes em Pádua, entende-se que a canonização de Antônio serviu a estes grupos frente aos antigos magnates da cidade. A atuação do frade no interior da cidade foi um fator determinante para a defesa da canonização por parte do populus. Atrelados a estes, os intelectuais da universidade local realizaram a recomendação da canonização, o que conferiu maior solidez à solicitação de promulgar Antônio no rol de santos da Igreja. Sendo a segunda canonização mais rápida da história da Igreja e causando espanto por conta da agilidade de seu negotium, Antônio foi um “defensor da justiça” para o período, mesmo que esta justiça estivesse inclinada para os grupos despontantes na cidade.

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GILLI, P. Cidades e sociedades urbanas na Itália medieval (séculos XII-XIV). Campinas/Belo Horizonte: Editora da Unicamp/UFMG, 2011, P. 98. ii BORTOLAMI, S. Fra “alte domus” e “populares homines”: il Comune di Padova e il suo sviluppo prima di Ezzelino. In: RIGON, A. (org.). Storia e cultura a Padova nell'età di Sant'Antonio. Pádua: 1985.; iii MURRAY, A. Reason and society in the Middle Ages. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 386 iv TEIXEIRA, I.S. O tempo da santidade: reflexões sobre um conceito. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 32, nº 63, p. 207-223, 2012, pp. 210-211. v “Postquam ergo divino nutu ad civitatem Paduanam pervenit”. VITA PRIMA DI S. ANTONIO O ASSIDUA (c. 1232). Introdução, texto crítico, versão italiana e notas por Vergílio Gamboso. Pádua: Edizioni Messaggero Padova, 1981, p. 330. vi Como exemplo a esta vinculação da cidade à Santa Sé antes da presença de Antônio, menciona-se a carta enviada por Inocêncio III ao podestà de Pádua, Marinus Zeno, possivelmente registrada em dezembro de 1213: “Nos Marinus Zeno Padue Potestas cum sapientibus ejus Civitatis et universo popolo divina gracia inspirante ad sedandas discordias et inimicitias, et pacem et tranquilitatem faciendam in tota Marchia multis vigiliis”. Cf. VERCI, G. Storia degli Ecelini.Veneza: Giovanni Briseghel, 1841, P. 178. vii “Egli è il modello dei nuovi venuti, dotti e chierici [...] che non necessariamente si ricollegavano in modo esclusivo alla scelta radicale del Vangelo”. viii MIATELLO, A.L.P. Santos e Pregadores nas cidades medievais italianas: Retórica cívica e hagiografia. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013, p. 141. ix IDEM, Ibidem. x IDEM, Ibidem, p. 164. xi Cabe salientar que Badoer era veneziano, reafirmando o papel do podestade estrangeiro às contendas da cidade. CRACCO, G. BADOER, Stefano. Disponível em: http://www.treccani.it/enciclopedia/stefanobadoer_(Dizionario-Biografico)/. Acesso em 29 de novembro de 2016. xii “Nam et potestas civitatis, seditionempopuli ferre non sustinens, universitatem civium voce preconia ad palatiumvocavit ac, coacto concilio, partem illam que pontem fregerat ad australem civitatis plagam separans” xiii “L’universitatem civium convocata dal podestà è la concio del popolo che tenevasi nel palacium comunale, più tardi detto palazzo della ragione”. VITA PRIMA DI S. ANTONIO O ASSIDUA (c. 1232), Op. Cit., p. 401, grifos nossos. xiv “Nomsolum autem ipsi, sed et universitas civitatis per partes distancia, statutisdiebus, eodemprocessionisscemateveniebatdiscalciata”. IDEM, Ibidem, p. 408. xv RIPPE, G. Passim. xvi Vale-se das reflexões desenvolvidas por Antonio Gramsci sobre o conceito, aplicando-o para a especificidade temporal e geográfica do objeto abordado. Em sua abordagem: “Por intelectuais deve-se entender não somente aquelas classe comumente relacionadas com esta denominação, mas em geral todo o estrato social que exerce funções organizativas em sentido lato, seja no campo da produção, seja naquele da cultura e no políticoadministrativo: [...] Para analisar a função político-social dos intelectuais, é preciso investigar e examinar sua atitude psicológica em relação às classes fundamentais que eles põem em contato nos diversos campos: possuem uma relação “paternalística” para com as classes instrumentais? Ou se consideram uma expressão orgânica? Possuem uma relação servil para as classes dirigentes ou se consideram, eles mesmos, parte integrante das classes dirigentes?” Cf. GRAMSCI, A. Quaderni degli carcere (caderno 19). Disponível em: http://dl.gramsciproject.org/quaderno/19/nota/26. Acesso em 29 de novembro de 2016. xvii “um tipo de incondicional colaboração com as autoridades comunais como contrapartida de uma garantia plena de respeito a seus direitos”. Cf. BORTOLAMI, S., Communauté estudiantine, société citadine et pouvoir politique à Padoue aux XIIIe-XIVe siècles. In: BLEVEC, D.L; GILLI, P.; VERGER, J. Les universités et la ville. Cohabitation et tension. Leiden-Boston: Brill, 2007, p. 185.

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