IV Conferência Ministerial do Fórum de Macau: Novo Ciclo, Novas Oportunidades

June 3, 2017 | Autor: I. Carneiro de Sousa | Categoria: China, Forum de Macau, Macau Forum, China and the Portuguese-speaking countries
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Inaugura-se hoje em Macau com muita solenidade e redobradas expectativas a IV Conferência Ministerial do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa. Conhecido mais simplesmente por Fórum de Macau, este instrumento multilateral tão original como pertinente de cooperação comemora dez esforçados anos muito positivamente consagrados ao desenvolvimento de um dos objectivos maiores traçados pelo governo central da República Popular da China para a progressiva afirmação internacional da RAEM: a sua continuada transformação e especialização em plataforma de serviços entre a China e os Países de Língua oficial portuguesa (PLP). A cerimónia de abertura desta IV Cimeira do Fórum de Macau reúne ao Vice-Primeiro Ministro da República Popular da China, Wang Yang, o Vice-Presidente do Brasil, Doutor Michel Temer, o Vice Primeiro-Ministro de Portugal, Dr. Paulo Portas, o Vice Primeiro-Ministro de Timor-Leste, Dr. Fernando Araújo, o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Moçambique, Dr. Oldemiro Baloi, o Ministro do Turismo, Indústria e Energia de Cabo Verde, Dr. Humberto Santos de Brito, e a Secretária de Estado para a Cooperação de Angola, Dra. Ângela Bragança mais a original

lusofonias nº 17 | 05 de Novembro de 2013 Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente

COORDENAÇÃO: Ivo Carneiro de Sousa

TEXTOS: • Os Desafios da República Popular da China • Os Desafios aos Países de Língua Portuguesa • Os Desafios do Fórum de Macau • O sucesso de muito trabalho

Dia 11 de Novembro: Carlos de Oliveira, da Casa na Duna (1943) à Abelha na Chuva (1953): o novo romance português do século XX

APOIO:

IV Conferência Ministerial do Fórum de Macau Novo Ciclo, Novas Oportunidades

IV CONFERÊNCIA MINISTERIAL DO FÓRUM DE MACAU: Novo Ciclo, Novas Oportunidades Ivo Carneiro de Sousa

I

naugura-se hoje em Macau com muita solenidade e redobradas expectativas a IV Conferência Ministerial do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa. Conhecido mais simplesmente por Fórum de Macau, este instrumento multilateral tão original como pertinente de cooperação comemora dez esforçados anos muito positivamente consagrados ao desenvolvimento de um dos objectivos maiores traçados pelo governo central da República Popular da China para a progressiva afirmação internacional da RAEM: a sua continuada transformação e especialização em plataforma de serviços entre a China e os Países de Língua oficial portuguesa (PLP). A cerimónia de abertura desta IV Cimeira do Fórum de Macau reúne ao Vice-Primeiro Ministro da República Popular da China, Wang Yang, o Vice-Presidente do Brasil, Doutor Michel Temer, o Vice Primeiro-Ministro de Portugal, Dr. Paulo Portas, o Vice Primeiro-Ministro de Timor-Leste, Dr. Fernando Araújo, o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Moçambique, Dr. Oldemiro Baloi, o Ministro do Turismo, Indústria e Energia de Cabo Verde, Dr. Humberto Santos de Brito, mais a original presença do Ministro angolano da Justiça e dos Direitos Humanos, Dr. Rui Mangueira. O único Primeiro Ministro presente é o da Guiné-Bissau, Dr. Rui Duarte Barros, à frente de uma delegação abundante de cinco ministros de um governo que, como se sabe, continua a carecer de legitimidade nacional e internacional, sendo, por isso, tão pouco reconhecido como convidado. A uma primeira leitura que, certamente, virá a alimentar muitos artigos de imprensa e opiniões as mais variadas, esta IV Cimeira não parece ter mobilizado os estadistas de topo que se reuniram em 2010 em Macau para uma III Cimeira verdadeiramente histórica, associando à muito simpática figura do anterior Primeiro Ministro da China, Wen Jiabao, o então Presidente da República de Timor Leste, os Primeiro Ministros de Portugal, Moçambique e Guiné Bissau (neste caso, eleito democraticamente...), mais o ministro da Economia de Angola, o Ministro de Estado e das Infraestruturas, Transportes e Telecomunicações de Cabo Verde, mais ainda o Vice-Ministro para os Assuntos Económicos e Tecnológicos do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. A diferença de representações de alto nível entre as duas cimeiras é evidente, mas não se cura rigorosamente de tema de polémica, antes significando que, dez anos depois, o Fórum de Macau deixou felizmente de ser apenas excitante novidade para entrar em idade mais produtiva, exigente, incluindo a repetida rotina que, sempre acompa-

nhando as instituições multilaterais de cooperação devidamente instaladas, deixa normalmente de atrair as primeiras figuras das governações que, entre calendários apertados e obrigações muitas, tendem a privilegiar as grandes novidades irrepetíveis. Em boa verdade, Presidente e Primeiro-Ministros à parte (com o devido respeito), esta IV Cimeira apresenta duas outras importantes presenças muito mais do que simbólicas: a do Vice-Presidente do Brasil, naturalmente, a que se soma a participação mais discreta como convidado do Ministro do Plano e das Finanças de São Tomé e Príncipe, um dos quatro países africanos que ainda mantém relações diplomáticas com Taiwan, não sendo, por isso, membro participante do Fórum de Macau. Seja como for, aproveitando com felicidade a sua deslocação oficial à República Popular da China, esta IV Cimeira ficará marcada pela presença sonante do Vice-Presidente do Brasil, uma das mais experientes personalidades políticas do maior país de língua oficial portuguesa, várias vezes eleito Presidente da Câmara dos Deputados, líder há mais de uma década do maior partido político brasileiro, o PMDB, presidente justamente da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Cooperação e Concertação (COSBAN), para além de ser doutorado em Direito, advogado, professor e um dos mais distintos constitucionalistas da grande nação americana. Espera-se, assim, que esta participação venha a contribuir para ampliar o interesse e participação que se quer muito mais activa do Brasil nos projectos do Fórum de Macau, ao mesmo tempo que se aguarda poder vir um dia a contar também com a inclusão de São Tomé e Príncipe, completando-se plenamente a filiação de todos os países soberanos de língua oficial portuguesa neste mecanismo de cooperação inaugurado em 2003. Apesar da importância, sobretudo política, das solenes sessões de aberturas de cimeiras como as do Fórum de Macau, em rigor, planos, projectos, medidas e objectivos decidem-se como se sabe ao longo de muitos meses de pacientes negociações e trocas de perspectivas entre países, afinal, livres e soberanos, neste caso reunidos em torno de um importante projecto comum de desenvolver relações de cooperação de mútuo interesse centradas no crescimento económico e no desenvolvimento da presença comercial global da segunda maior economia do mundo, a República Popular da China. Logo, a mobilização de ministros e vários outros responsáveis das áreas económicas, comerciais e de cooperação é absolutamente congruente com os objectivos do Fórum de Macau e deverá passar a ser a norma tranquila da participação da China e dos Países de Língua Portuguesa nestas cimeiras

que, regularmente, de três em três anos, sempre constituem o acontecimento político mais importante de Macau. Acresce ainda que a IV Cimeira do Fórum de Macau é muito mais do que uma sessão solene de abertura, pese embora todo o seu impacto político e mediático. O Fórum desdobra-se numa constelação de reuniões multilaterais e bilaterais, multiplica-se por várias reuniões de trabalho bem mais precisas e concretas, aprofundando redes de contactos, conhecimentos, interesses e oportunidades comuns que se alargam dos responsáveis políticos às áreas mais vibrantes das empresas, empresários e projectos a fazer. Quase sem se dar por isso, natural e muito operacionalmente, o papel de plataforma de Macau plasma qualificadamente todas estas realizações, proporcionando um ambiente único em que se fala e realiza também na língua portuguesa, traduzindo-se com competência entre mandarim e português, da simples conversa aos textos técnicos mais exigentes, exibindo-se ainda uma paisagem em que se podem apreciar as lusofonias singulares instaladas pela RAEM, da gastronomia ao folclore, das culturas aos muitos serviços técnicos que a sociedade macaense foi especializando através do seu bilinguismo em franco desenvolvimento. Muitos e mais do que atarefados quadros superiores e médios, técnicos e assistentes, estudantes mobilizados para o evento, grupos etnográficos de todos os PLP com os seus velhos trajes folclóricos ciosamente guardados para estas solenes ocasiões proporcionam os apoios imprescindíveis permitindo a qualquer responsável político ou empresário dos PLP encontrar um conterrâneo, rever velhas tradições, recordar histórias comuns, assim se gerando um contexto absolutamente singular mais do que justificando plenamente a fixação do Secretariado Permanente do Fórum em Macau. Agora a comemorar o seu décimo aniversário e, certamente, a preparar-se para uma nova década de trabalho em que um novo ciclo e novas oportunidades comparecem pautados por exigências complexas e várias especializações que obrigam a mobilizar ainda mais esforço técnico e uma colecção importante de renovados serviços de inteligência comercial, estudo e investigação, apoio à cooperação e consolidação da rede de conhecimentos culturais, económicos e empresariais que compete ao Secretariado Permanente do Fórum de Macau e ao seu Gabinete de Apoio transformar em actividades pertinentes e úteis ao conjunto das relações económicas e comerciais entre a China e os PLP. Esquece-se também com frequência que, apesar de sediado em Macau, o Fórum é sobretudo um mecanismo operacional de cooperação entre a China e os PLP. Mais ainda, o Fórum não se destina prioritariamente a promover Macau, mas antes a oferecer serviços muito especializados para uma relação que, maiormente comercial, aparece claramente estribada no formidável crescimento económico e social da China que, transformando o país na segunda maior economia do mundo e em imprescindível parceiro comercial global, obriga cada vez mais à especialização de formas permanentes de comunicação internacional organizada de que a FOCAC ou o Fórum de Macau são exemplos especialmente bem conseguidos da presença liderante da China tanto no comércio mundial quanto nas parcerias de desenvolvimento que também os PLP procuram agarrar. Acontece, porém, que os próximos anos se apresentam ao Fórum de Macau marcados verdadeiramente por um novo ciclo económico que se desenha agora de forma evidente na República Popular da China, convocando uma nova etapa de outras decisivas reformas económicas. Um novo ciclo a tentar brevemente captar em todas as suas profundas exigências e formidáveis desafios.

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II

terça-feira, 05 de Novembro de 2013 • LUSOFONIAS

lusofonias

Os Desafios É

possível que a ratificação de um amplo plano de reformas económicas com profundos impactos sociais, políticos e institucionais se venha a poder concretizar já na 18ª terceira reunião plenária do Comité Central do Partido Comunista Chinês (PCC) prometida para este mês de Novembro. A tradição joga a favor destes terceiros plenos que sempre se sucedem aos congressos de mudança de lideranças: na terceira reunião plenária do 11º Comité Central do PCC, em 1978, Deng Xiaoping lançou as grandes reformas que abriram a China ao mundo e estribaram o seu espantoso crescimento económico; no terceiro pleno do 14º Comité Central, em 1993, Zhu Rongji concretizou o famoso modelo do socialismo de mercado (muito deficientemente compreendido pelas inteligências e políticos ocidentais...), combinando operacionalmente economia de mercado e estado para firmar um impressionante crescimento industrial. Agora, os desafios para um novo ciclo de reformas encontram-se identificados em toda a sua exigente complexidade: a transição de uma economia dirigida pelo investimento e pelas exportações para uma economia de consumo, inovação e tecnologia, mutação fundamental para poder vir a transformar a China de país de rendimentos ainda apenas medianos em nação

lusofonias

da

República Popular

de altos rendimentos. Aguarda-se, por isso, uma vaga de novas reformas que pode acontecer num período em que, entre 2016 e 2020, a China reúne todas as condições objectivas para passar certamente a ser a maior economia do mundo. A pergunta central a que os dirigentes chineses procuram dar uma resposta positiva é especialmente difícil: pode a República Popular da China evitar a célebre armadilha dos rendimentos médios que, durante décadas a fio, tem vindo a negar altos rendimentos às populações dos países latino-americanos, Brasil incluído, a muitos países asiáticos como a Tailândia ou a Malásia e à quase totalidade das nações africanas largamente mergulhadas ainda em rendimentos baixos? Na verdade, muitos deste países têm vindo continuadamente a crescer, assentando também num modelo económico centrado em investimento, tantas vezes estatal, e muito mais em exportações primárias, dos recursos naturais às manufacturas de baixo valor acrescentado, mas sem conseguirem elevar os rendimentos das suas populações ainda condenadas a padrões medianos e com frequência aos baixos salários com que se vende barato produtos baratos num mercado cada vez mais global e competitivo. O anunciado 18º terceiro pleno do comité central do PCC pode ser

o culminar de um processo de cuidadas e prudentes deliberações de reformas apostadas decididamente em transformar a China definitivamente em país de altos rendimentos. O que convoca os mais sérios desafios: alta produtividade, produções de alto valor acrescentado, economia baseada no consumo doméstico, reforma do mercado de trabalho, especialização de serviços, muito mais reformas institucionais, administrativas e jurídicas. Mudanças várias sem as quais

Mais ainda, a China distribui verdadeiramente capitais pelo mundo e o seu impressionante portfólio de 110 biliões de dólares americanos em empréstimos desde 2000 rivaliza já com o próprio Banco Mundial. parecem irrealizáveis algumas das metas que têm vindo a ser preparadas pelos mais altos dirigentes da República Popular: duplicar os rendimentos médios per capita até 2020, chegar a 70% de urbanização em 2025 e ter à roda de 2030 o maior mercado de licenciados e

da

China

pós-graduados do mundo com as suas implicações decisivas na ampliação e especialização tanto do mercado como da divisão social do trabalho. Transformações extremamente profundas em que a limitação do peso económico do capital e do investimento, largamente orientado pelo estado, será compensado por um trabalho muito mais qualificado progressivamente melhor remunerado para poder colaborar em consumo, produtividade e serviços nesse salto qualitativo em direcção a um país de altos rendimentos. Caso estas reformas sejam devidamente realizadas, a China não apenas chegará à posição de maior economia mundial como pode igualmente alcançar, por volta de 2025, um estatuto de nação de altos rendimentos que, com um PIB per capita em torno de 20.000 dólares, permitirá a um bilião de chineses viver moderadamente prósperos, assim realizando o que o Presidente Xi Jinping tem vindo apropriadamente a designar por Sonho Chinês. Um sonho historicamente possível: na primeira década deste nosso século XXI, a China transformou-se no maior produtor manufactureiro mundial; em 2009, ultrapassou a Alemanha para se tornar o maior exportador do mundo; em 2010, passou mesmo os EUA como maior CONTINUA NA PÁGINA SEGUINTE >

LUSOFONIAS •Terça-feira, 05 de Novembro de 2013

III

< CONTINUADO DA PÁGINA ANTERIOR

produtor global de automóveis. Agora, nestes últimos anos, ainda antes dessa próxima etapa de reformas e modernização que se anuncia, a diversificação económica tem vindo a avançar decididamente na China que se encontra gradualmente a reduzir o seu papel como maior produtor de bens de baixo valor acrescentado e tecnológico. Por isso, na percentagem dos rendimentos nacionais, os serviços acabam nos últimos meses de ultrapassar o peso anteriormente dominante das manufacturas industriais e, desde 2011, o consumo tem contribuido mais para o crescimento do que o investimento. No futuro, a China vai também depender cada vez menos das exportações para o Ocidente precisamente quando as exportações para os países em desenvolvimento se anuncia que duplicaram, chegando no ano passado a 25% do total. Mais ainda, a China distribui verdadeiramente capitais pelo mundo e o seu impressionante portfólio de 110 biliões de dólares americanos em empréstimos desde 2000 rivaliza já com o próprio Banco Mundial. Sejam quais forem os rumos, tempos e modos da nova vaga de reformas que pretende erguer firmemente a China à dupla condição de maior economia do mundo e país de altos rendimentos, não se pode olvidar que, ao longo de 35 anos, o crescimento económico da República Popular baseado nas exportações foi oceânico, praticamente na regular média de 10% ao ano, tendo sido um dos grandes responsáveis por retirar 500 milhões de chineses da pobreza, uma transformação social com uma escala jamais vista na história económica e social do mundo. Em contraste, é rigoroso que a produtividade e o rendimento individuais estão ainda longe dos padrões dominantes nos países industrializados ocidentais, mas os responsáveis chineses estão conscientes de que a limitação do crescimento, actualmente em torno de 7,5% (número ainda assim invejável...) corresponde ao fim de um ciclo económico pautado pela massiva produção manufactureira primária de baixo valor tecnológico, baixos salários, limitada protecção social e fraca produtividade. As reformas em direcção a um modelo económico renovado em torno de produções de alto valor acrescentado, mais tecnologia, mais design, mais serviços, muito mais inovação e criatividade deverão originar transformações sócio-económicas nunca vistas à escala mundial: o recente relatório China 2030 realizado pelo Banco Mundial e os serviços de investigação do Conselho de Estado chinês prevêem a perda gigantesca de 80 milhões de postos de trabalho entre os actuais 130 milhões de trabalhadores que ainda se concentram nas indústrias manufactureiras. Mais do que provavelmente, muitos destes milhões de postos de trabalho serão transferidos para países de baixos salários e rendimentos na Ásia e na África, do Bangladesh ao Quénia. Importa, no entanto, avisar que o sucesso da China não depende exclusivamente dos seus domésticos sucessos: o seu crescimento e modernização depende também do continuado crescimento da economia mundial. E aqui as incertezas são muitas quando se discutem os mercados dos países mais desenvolvidos: o Japão não parece poder crescer mais do que escassos 1,8% ao ano até 2025, sendo as previsões semelhantes ou mesmo piores para a União Europeia, enquanto os EUA podem chegar a um crescimento anual de pouco mais de 2% no mesmo período. É provável que por 2025, a Ásia que é já o maior produtor mundial se venha a tornar também no maior consumidor do mundo. Mas ainda não é o caso. Vivemos tempos de transição, incerteza, reordenamento da economia e da geografia comercial globais. E em tempos de incerteza e desafios, amizades, parcerias e, sobretudo, cooperação estável e continuada são ainda mais necessárias. É precisamente o que a China encontra desde 2003 nas relações económicas e comerciais com os PLP: crescimento continuado, seguro e promissor.

IV

terça-feira, 05 de Novembro de 2013 • LUSOFONIAS

Vice-Primeiro-Ministro

de

Portugal, Paulo Portas

Os Desafios O

crescimento das trocas comerciais entre a China e os PLP tem sido impressionante. Na III Cimeira do Fórum de Macau, em 2010, traçava-se a meta quantitativa de 100 biliões de dólares americanos em comércio até este ano de 2013. Foi ultrapassada logo em 2011 quando o total do volume comercial chegou a mais de 116 biliões de dólares. Aumentando significativamente no ano passado para 128,79 biliões de dólares que se prevê virem a ser ainda mais generosos no final de 2013. Assim, desde a criação do Fórum de Macau, em 2003, as trocas comerciais entre a China e os PLP praticamente multiplicaram-se por 11 quando se situavam então em modestos pouco mais de 10 biliões de dólares. Em termos seriais, o conjunto do comércio entre a China e os PLP não se encontra já muito longe dos 198 biliões de dólares a que, também no ano passado, chegou o total do comércio entre a China e a África, tema das mais variadas opiniões de políticos e media ocidentais sobre a alegada ofensiva chinesa no representadamente desprotegido continente africano. O que não significa a completa ausência das mesmas polémicas e dos mesmíssimos argumentos em certos sectores, imprensa e blogs muitos dos PLP, igualmente incomodados com a evidente (tão feliz como conveniente) multilateralização de um processo de globalização bem mais plural do que havia sido previsto pelos liberais ideólogos das teorias da mundialização do modelo económico ocidental que, pelas décadas finais do século passado, ainda se apresentava como monolítica referência global, logo, a seguir e a imitar. Quando se desfibram mais rigorosamente os volumes das trocas comerciais entre a China e os PLP, o modelo desenvolvido na última década parece claro e em continuado alargamento, reflectindo-se nos volumes comerciais de 2012: o comércio bilateral entre a China e o Brasil foi de pouco mais de 75 biliões de dólares, cerca de 60% do conjunto de todo o comércio entre a China e os PLP; mais do dobro das trocas China-Angola (37,502 biliões em 2012) que, por sua vez, são praticamente dez vezes o valor das transacções comerciais entre a China e Portugal (4.019 milhões em 2012), esclarecendo quase quatro vezes os intercâmbios entre a China e Moçambique  (1.344 milhões em 2012), sendo depois o total somado do conjunto das trocas comerciais da China com Cabo Verde, Guiné-Bissau, Timor-Leste e São Tomé e Príncipe quase marginal, chegando apenas a 1480 mi-

aos

Países

de

lhões de dólares em 2012. Assim, o comérc com o Brasil e Angola representa 90% das comerciais da República Popular com os PL procura e encontra tanto em Angola como n recursos energéticos, sobretudo petróleo, e rias-primas indispensáveis para saciar o seu co crescimento industrial e enormes necess consumo público e doméstico de energia. P balança comercial favorece os dois países l o que não acontece com os outros países oficial portuguesa em que, Portugal e Moça parte, os volumes dos tratos comerciais per extremamente modestos mas muito gener favoráveis às exportações chinesas. No geral, descobre-se uma relação com tre a China e os PLP em que o total das ex para o mercado chinês chega quase a 60% do trocas contra 40% de importações de produ ses. E neste últimos domínio, os números de enganam: no total das exportações chinesa mercados dos PLP quase 46% das vendas da ca Popular são realizadas em produtos me eléctricos, sobretudo veículos, geradores, ria industrial e os muito procurados teleco dos os tamanhos e feitios. O que tem vindo problemas de competição aos países mais in zados, como Portugal e o Brasil, este últim tando mesmo sérios problemas de desindu ção e de excessivo crescimento de uma prim económica com que se alimentam os volum fego comercial para a China em minérios e alimentares de baixo valor acrescentado. A tempo, este modelo comercial não deixa d algumas interrogações aos outros PLP agor zados para processos de industrialização meios urbanos quanto nos sectores agrários Em contraste, investimentos e cooperaç ses nos PLP são importantes, esforçados, m relativamente modestos. Assim, em 2012, investimento directo não financeiro da Chin ficava-se pelos 1,97 biliões de dólares, en volume de empréstimos foi ainda mais baix cendo 2,66 biliões RMB. A China tem, contu se sabe, participado muito activamente n trução e construção de infraestruturas vita em África e em Timor-Leste, concretizando obras de vulto na habitual edificação de dimentos públicos, palácios governamenta parlamentares, grandiosos estádios e alg

lusofo

e

Vice-Primeiro-Ministro

de

Timor-Leste, Fernando

de

Araújo

Vice-Presidente

Língua Portuguesa

cio chinês s relações LP. A China no Brasil os e as matéu gigantessidades de Por isso, a lusófonos, de língua ambique à rmanecem rosamente

mercial enxportações o total das utos chinee 2012 não as para os a Repúbliecânicos e maquinaoms de too a colocar ndustrialimo enfrenustrializamarização mes de tráe produtos Ao mesmo de colocar ra mobilitanto nos s. ção chinemas ainda o total do na nos PLP nquanto o xo, ofereudo, como na reconsais nos PLP o também empreenais, sedes guns bem

onias

mais precisos hospitais. A cooperação técnica é limitada, conquanto a circulação de médicos e agentes de saúde chineses seja relevante, a par com alguns projectos bem conseguidos nas áreas agrícolas. Uma cooperação em que a República Popular ofereceu ainda mais de 1100 bolsas, treinou mais de 2200 responsáveis, funcionários e agentes dos estados dos países de língua portuguesa. Infelizmente, pese embora a formal existência de uma muito sossegada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), os estados soberanos lusófonos têm muito pouco em comum quando se trata de economia, comércio e investimentos. O Brasil e Portugal são mesmo concorrentes mesmo em mercados de outros PLP, pelo que parcerias e estratégias comuns são poucas. O Fórum de Macau oferece uma oportunidade rara para os PLP se articularem, gizarem estratégias comuns e procurarem tirar os melhores benefícios das relações económicas e comerciais com a China. O que naturalmente obriga a muito maior empenho dos PLP no Fórum de Macau e no trabalho diário do seu Secretariado Permanente, reunindo delegados dos PLP generosamente apoiados, ainda assim com limitações, pelo orçamento do governo da RAEM. Instrumento técnico e orgânico fundamental do Fórum de Macau, o Secretariado Permanente exige delegados activos e comprometidos a tempo inteiro com as suas muitas realizações, reuniões, compromissos, visitas e decisões. O que ainda não acontece com o Brasil e Portugal cujos delegados ao Secretariado Permanente são precisamente os muito atarefados cônsul-geral brasileiro em Hong e Macau e cônsul-geral de Portugal na RAEM. Delegados com formação nas áreas económicas e comerciais, experiência de cooperação e gestão de projectos de desenvolvimento são necessários e tanto o Brasil como Portugal terão certamente recursos qualificados para concorrerem continuadamente para as muitas acções do Secretariado Permanente do Fórum de Macau. Na verdade, em termos panorâmicos, fica a sensação de que o conjunto dos PLP ainda não tira todo o partido do Fórum de Macau que, como se sabe, tem muito pouco influência nas relações económicas e comerciais bilaterais, sendo as suas funções bem outras, mobilizando informação, inteligência comercial, facilitando, preparando, apoiando em serviços e convocando competências técnicas em português, em mandarim, em qualificado bilinguismo se for preciso. Isto Macau pode e sabe fazer.

do

do

Brasil, Michel Tember

Os Desafios Fórum de Macau

O

s desafios do Fórum de Macau para os próximos anos são mais do que exigentes ao obrigarem a adaptar uma relação sobretudo comercial de base bilateral ao novo ciclo de reformas económicas da República Popular da China, à transformação profunda do seu modelo de crescimento económico, correndo a par com as necessidades comuns aos PLP de mais diversidade económica e, nos países membros da África e da Ásia, ainda mais urgência na concretização de efectivas parcerias para o desenvolvimento, assim obrigando comércio, investimentos e cooperação a comprometerem-se definitivamente com o progresso social e a elevação da qualidade de vida das suas populações. Equação complexa com várias incógnitas e contas por fazer, mas que se pode resolver em benefício de todas as partes (o famoso win-win tão repetido por responsáveis políticos e pela literatura académica chinesa da especialidade…) se o Fórum de Macau souber desenvolver nestes próximos anos um conjunto coerente de actividades suficientemente capaz de concretizar os seguintes 8 pontos fundamentais de reorientação para um novo ciclo pejado de novas oportunidades:

• Promoção do desenvolvimento sustentável do comércio entre a China e os PLP; • Incremento dos níveis de investimento e cooperação financeira; • Reforço da cooperação em agricultura, agro-indústrias e segurança alimentar; • Investimento e gestão sustentada da construção de infra-estruturas; • Mais cooperação técnica e formação de recursos humanos; • Mais cooperação trilateral e multilateral; • Muito mais cooperação em investigação, programas inter-universitários e intercâmbio educativo; • Lançamento de programas continuados de cooperação cultural, em indústrias criativas e em comunicação. Em rigor, estas oito áreas configuram uma sorte de programa comum em que se projectam tanto as transformações da economia e da sociedade chinesas como as expectativas de desenvolvimento dos PLP na próxima década. Trata-se, sobretudo, de passar de uma relação esmagadoramente comercial para intercâmbios em que investimentos e cooperação deixam de ser meros sucedâneos e apoios imediatos do modelo de comércio. O aumento do volume de investimentos, créditos, empréstimos, entrada em capitais de empresas e aquisição mesmo de companhias ou posições maioritárias por capitais chineses públicos e privados pode oferecer ajuda importante de desenvolvimento aos PLP que, certamente, se tornarão progressivamente mais exigentes em acautelar imCONTINUA NA PÁGINA SEGUINTE > LUSOFONIAS •Terça-feira, 05 de Novembro de 2013

V

< CONTINUADO DA PÁGINA ANTERIOR

pactos sociais positivos. E, neste campo, de Angola a Timor-Leste, da Guiné-Bissau a Moçambique, os investimentos em desenvolvimento agrícola, agro-indústrias e clusters ligando o alimentar e o industrial, a distribuição e a exportação serão cada vez mais requisitados como pré-condições de avisado investimento. A que convém, por isso, somar a continuação dos investimentos fundamentais da China na construção de infra-estruturas vitais em muitos PLP, mas que é agora urgente saber gerir e sustentar. O que implica muito mais cooperação técnica e formação de recursos humanos que se deve convenientemente estender ao interior dos próprios países membros do Fórum. Mas compreendendo que países como o Brasil e Portugal têm uma experiência acumulada de cooperação que, especialmente em África, deve ser convocada para programas qualificados de formação de recursos humanos. O que convida a assumir o Fórum de Macau não apenas como um simpático décor de relações comerciais essencialmente bilaterais, passando a mobilizar este mecanismo para formas de cooperação trilaterais e multilaterais em que vários países cruzam as suas competências técnicas e serviços especializados. O que deve mobilizar nos próximos anos muitos mais estudos sérios e investigações rigorosas com que se identifiquem sucessos e disfunções, se destaquem comparações e contrastes, preparando cientificamente os caminhos do futuro. O que se pode também conseguir com mais programas de intercâmbio inter-universitário, circulação de investigadores, professores e estudantes, um farto domínio de oportunidades que

todos os participantes do Fórum e, muito especialmente, a RAEM estão ainda muitíssimo longe de concretizar nas suas imensas potencialidades. Mais bolsas de estudos, mais cooperação científica e académica são necessárias, a estender a muitos outros domínios da educação, incluindo a educação rural e sub-urbana para a qual tanto a China como o Brasil têm uma experiência única, alicerçada em desafios difíceis, certamente a ensinar e a partilhar no âmbito do Fórum de Macau. Que animado também deve ser. Com trocas culturais, artísticas, criativas, entre inovação e

dos participantes do Fórum. Assim compreendendo definitivamente que Macau não é rigorosamente o Fórum, mas por aqui está (e bem) sediado o seu Secretariado Permanente. Generosamente suportado pelo governo da RAEM através de um activo Gabinete de Apoio, infelizmente tão insuficiente em pessoal técnico como apertado pela sua ainda limitada dotação orçamental. A rever e ampliar com a máxima urgência já que os desafios colocados ao Secretariado Permanente e ao seu Gabinete de Apoio são da maior responsabilidade nos próximos anos. É que Secretariado e Gabine-

Ministro as muitas oportunidades abertas pela planetária comunicação das miríades de redes sociais. Um intercâmbio cultural que Macau tem sabido fazer, mas que deve alargar-se multilateralmente a todos os horizontes geográficos

terça-feira, 05 de Novembro de 2013 • LUSOFONIAS

Negócios Estrangeiros

te têm de estudar mais, analisar criteriosamente e investigar rigorosamente o que impõe a rápida organização de um Gabinete de Estudos com pessoal muito qualificado. Indispensável para melhorar os serviços de inteligência

Ministro do Turismo, Indústria e Energia de Cabo Verde, Humberto Santos de Brito

VI

dos

Ministro

dos

comercial de um organismo que não desenvolveu ainda os directórios e a informação comercial especializada que o futuro do Fórum necessita. Para isso, Secretariado Permamnente e Gabinete de Apoio devem reunir os serviços especializados que as relações entre a China e os PLP demandam nos domínios jurídicos, técnicos, estatísticos, informativos, linguísticos e comerciais. O que pode encontrar-se com vantagens em muitos departamentos públicos e instituições privadas de Macau em que se foram maturando quadros de expressão portuguesa e bilingue esperando apenas a sua mobi-

de

Moçambique, Oldemiro Baloi

lização para esse objectivo maior de transformar e desenvolver através de Macau a plataforma de serviços pertinentes para o adequado crescimento das relações comerciais, investimentos e cooperação entre a China e os PLP.

Negócios Estrangeiros

de

Moçambique, Oldemiro Baloi

lusofonias

o SUCESSO de muito trabalho A

IV Conferência Ministerial do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa que hoje se abre com pompa e circunstância em Macau só pode mesmo ser mais um sucesso importante. Desde logo porque mobiliza a extraordinária aventura de desenvolvimento e reformas da China. Agora muito mais preparada para assumir responsabilidades mundiais em prol da paz, do desenvolvimento, do ambiente e da qualificação das pessoas. Na verdade, as experiências chinesas, por exemplo, na criação e implementação de zonas económicas especiais pode e deve ser matéria importante de investimento e cooperação com os PLP. A China está também mais capaz de multiplicar bolsas de estudo, receber mais estudantes dos PLP nas suas universidades, cruzar ainda mais investigação em ciência e tecnologia. O paradigma da urbanização chinesa acumula sucessos, desafios e até mesmo problemas complexos que devem ser partilhados, ensinados e cruzados com os PLP. A China pode ampliar investimentos, empréstimos e créditos ao desenvolvimento dos PLP, das infra-estruturas ao agrícola, do industrial aos serviços. A China encontra-se também preparada para alargar cooperação médica e sanitária, em segurança alimentar e em promoção de capacitação institucional e administrativa. A China precisa também de cruzar e partilhar, ensinar e aprender com as muitas experiências em energias alternativas que se realizam com sucesso em Portugal ou no Brasil, na gestão ambiental, no aproveitamento de recursos hídricos e marítimos e muito mais que seria compendioso inventariar em todas as suas potencialidades. E existe esse espaço ainda mais nobre em que se decide o reconhecimento da diversidade cultural, o entendimento e respeito pelo outro, espaço multiplicado em línguas, culturas, artes, cinemas, teatros, literaturas em que rigorosamente todos devem aprender com todos. Um objectivo maior de cooperação cultural que Macau, pela sua história, equidistância e lusofonia singular está especialmente bem apetrechado para fazer ou não fosse na

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Não estou rigorosamente certo que a RAEM e o seu governo reconheçam verdadeiramente o esforço e o trabalho deste punhado de funcionários mais do que dedicados do Gabinete de Apoio ao Secretariado Permanente do Fórum de Macau. Fica aqui a admiração que é reclamação de exigência de reconhecimento. longa duração do seu passado, ao mesmo tempo, a única cidade europeia na China e uma muito antiga cidade chinesa, única, fabulosa, por aqui se preservando tanto arcanos monumentos coloniais como lugares da memória imperdíveis das velhas culturas populares e eruditas das várias antigas Chinas. A fechar, afigura-se obrigatório sublinhar que esta IV Conferência Ministerial do Fórum só

pode ser mesmo um sucesso em muito graças ao trabalho árduo e à dedicação quase heróica de coordenadores, técnicos, assistentes e pessoal auxiliar, vindos sobretudo do Gabinete de Apoio ao Secretariado Permanente do Fórum. Descobrindo-se essa gente única do antes quebrar que torcer, trabalhando até à exaustão, quase sem horários, noites mal dormidas, famílias esquecidas, divertimentos e lazeres

Ministro

da

Justiça

e dos

continuadamente adiados. Pessoal, ainda por cima, mais do que escassíssimo para tantos e tão variados afazeres: viagens intercontinentais muitas, reuniões abundantes, traduções para ontem, contabilidades para o próprio dia, mais arremedos de diplomacias, constantes boas maneiras, mais essa forma única de receber que pauta a singular hospitalidade de Macau. Não estou rigorosamente certo que a RAEM e o seu governo reconheçam verdadeiramente o esforço e o trabalho deste punhado de funcionários mais do que dedicados do Gabinete de Apoio ao Secretariado Permanente do Fórum de Macau. Fica aqui a admiração que é reclamação de exigência de reconhecimento. Que o governo da RAEM, a China e os Países de Língua Portuguesa saibam reconhecer que por detrás dos muito bem conseguidos cenários e do muito glamour com que se vai emoldurando esta cimeira se encontra trabalho muito e pessoas dedicadas ainda poucas sem as quais não haveria mesmo Fórum de Macau.

Direitos Humanos

de

Angola, Rui Mangueira

LUSOFONIAS •Terça-feira, 05 de Novembro de 2013

VII

Ladrão por equívoco

Publica

textos de estudo e opinião sobre a diversidade cultural das Lusofonias

Ideias

Raúl David*

“Nos litígios, naturais ou provocados, nas queixas de brancos contra os negros, a autoridade espreitava sempre, naquela altura, a apanha de mais elemento a “exportar” sob senha de malandro, fonte rendosa de largos angolares, de partilha entre angariador e chefe de posto. Para Kutapala fechava aqui a quadra da sua vida em Angola, sua terra natal, como se poderá ver.”

VIII

C

orria o ano de 1934, quando era chefe de posto do Quissanje o português Américo Salles Costa, alcunhado de Txikulumula (sentenciador imediato, Chiculumula, na pronúncia dos brancos), sentenciador de makas sem delongas e canalizador marcante de pretos para S. Tomé e Príncipe. Miguel Martins, transmontano de naturalidade, comerciante e agricultor com crédito nos armazéns de Benguela, os de maior nome na praça, como Simões Coelho, Belport, Dias de Figueiredo, etc., presidente da comissão local da União Nacional, gozava da fama de abastado. Era casado com D. Maria Martins, senhora que dividia as obrigações domésticas com o trabalho de balcão onde era caixeira presente. Transtornada também, aliava a rudeza à fraqueza das gentes de além Douro e Minho, diferenciando-se do marido apenas nos dotes literários que possuía em maior grau. Este casal intervém no papel principal do caso que passamos a descrever. Kutapala viera à povoação, com outros companheiros da aldeia do Chicole, margens do rio Cubal de Quissanje, para vender umas puas de ricino. Vendido o produto, comprou um pano para a mulher e meteu na kurimba o dinheiro restante da venda. Depois de beber a garrafa de vinho que a caixeira lhe deu por “bikato” (espécie de brinde dado pelo funante), pediu mais uma dose. Com o álcool ingerido em jejum, às dez da manhã, ficou estonteado. Amigos que entraram e venderam também os seus produtos beberam com ele. Pouco tempo passado, a gentalha cantava e cadenciava o ritmo batendo rijamente com os pés no chão da loja. D. Maria, quase ensurdecida com a barulheira, mal podendo ouvir os fregueses que atendia, intimou os bebedores a irem para o fundo do quintal. Ali cantaram à vontade, dançaram, falaram de afinidades genealógicas, ao mesmo tempo que um companheiro cambaleante e com o pano a cair pela cintura abaixo, ia comprar mais vinho. Ia tudo em beleza, com soe dizer-se. O aldeão, ao descer ao povoado comercial, faz feriado, dando largas à sua alegria. Ao lado da casa de Martins ficava a do Figueiredo, comerciante de poucas falas com talho e bomba de gasolina onde se abasteciam quase todos os veículos-automóveis do local e dos belgas em trânsito para Teixeira de Sousa, Katanga, Kolwezi e Kamina, em verdadeiras caravanas de carros luxuosos e que carros!... Eram “Plymouth”, “Chrisler”, “Pontiac”, “Buick”, “Ford” e “Chevrolet”, em modelos de verdadeiro insulto à pobreza. Era ao tempo a única loja que dispensava clientela negra porque, para lucros, bastava-lhe a venda de carnes, combustíveis e lubrificantes. Voltemos aos bebedores da loja do Martins. O Kutapala e alguns amigos não deixaram o quintal senão depois das cinco da tarde. Àquela hora, mais ou menos, Kutapala saiu com dois companheiros. Nasce aqui a sua triste história que se resume em poucas linhas. A lavadeira de D. Maria, como de hábito, fora lavar a roupa da casa no rio “Kalohumbula” (rio de doenças venéreas), pusera-a a secar estendida na margem relvada e foi para o telheiro anexo à cozinha, passar a ferro. Durante a sua ausência, um indivíduo que por ali passou e cujo nome aparecerá adiante, ao ver lençóis reluzentes de brancura, expostos ao sol sem olhos vigilantes, não se fez esperar. Roubou-os e meteu-se na mata sem deixar qualquer pista. Quando a lavadeira chegou para a recolha das peças que deixara, pôde apenas verificar a falta delas, como o chão vazio a dizer-lhe que seria inútil procurá-las naquele lugar. Assustada, foi dar parte do sucedido à patroa e esta mandou dois serventes procurar, não tivessem voado para longe no redemoinho que se forma, às vezes, durante os dias de ventania em tardes de Agosto.

terça-feira, 05 de Novembro de 2013 • LUSOFONIAS

Os homens procediam à busca quando encontraram o Kutapala a dançar despreocupadamente com os outros. Por estar mais à mão de ser agarrado, pegaram nele e perguntaram-lhe onde estavam os panos do branco. O homem, turvado pelo vinho, não ligou nenhum ao caso. Os companheiros escaparam-se, pé aqui, pé ali, moita adentro, logo que pressentiram os gestos pouco meigos dos serventes do branco. Aos empurrões e maus tratos, levaram Kutapala até à loja onde continuou a ser torcido de todas as maneiras para o obrigarem a confessar o roubo. Já noite, foi entregue ao cipaio-carcereiro, que o viu maltratado, sim, mas muito bêbado também. No dia seguinte foi levado à presenca do chefe para interrogatório e julgamento, ao toque da palmatória e chicote do costume. O homem sangrou pelas unhas, das mãos aos pés, gemeu, gritou, torceu-se, mas de confissão nada conseguiram tirar dele. Como epílogo do julgamento foi sentenciado ao envio para S. Tomé, com outros já aguardando vez de transporte. Nos litígios, naturais ou provocados, nas queixas de brancos contra os negros, a autoridade espreitava sempre, naquela altura, a apanha de mais elemento a “exportar” sob senha de malandro, fonte rendosa de largos angolares, de partilha entre angariador e chefe de posto. Para Kutapala fechava aqui a quadra da sua vida em Angola, sua terra natal, como se poderá ver. Decorridos poucos dias seguiu para o Lobito com guia para o agente do curador dos indígenas. A ração e vestuário para este lote de homens desterrados, ficava a cargo do Salema, angariador oficializado de pessoal para aquela ilha. Chegado o barco “28 de Maio” embarcaram todos. Pertenciam, a partir daí, à carga humana que se completava com a fuba, feijão e peixe bolorento, expedido pela firma Costa & C.ª, da praça do Lobito, fornecedora acreditada de mantimentos para os contratados de S. Tomé e Príncipe. Ter-se-iam passado cerca de seis a oito meses, após o embarque de Katapala, quando certo dia apareceu na loja de D. Maria um homem que trazia dois couros de boi, verdes, para vender. Pô-los na balança e depois da senhora os pesar, ao examiná-los, descobriu casualmente que o negro trazia um pano que, mesmo sujo como estava, se distinguia a ser branco com bordado a ponto de cruz num dos rebordos. Não lhe ficou a menor dúvida em apurar que se tratava do seu lençol roubado tempos atrás, com outros, à sua lavadeira. Discretamente simulando buscar qualquer coisa esquecida na residência, chamou dois serventes. A um sinal que lhes fez, num ápice, Katiavala ficou preso pela cintura. Não foi difícil descobrir que fora ele o verdadeiro gatuno e não o infeliz Kutapala que fora apenas vítima de doloroso erro de justiça administrativa com a intervenção directa da queixosa. O mal estava feito e consumado, apesar de tudo, porque o ladrão antecipara-se ao inocente caído na armadilha, acabando por morrer no desterro forçado, poucos meses depois de lá chegar. O chefe Txikulumula foi quem ganhou, mais uma vez, na partilha da “peça” vendida para a ilha, consumidora, desde tempos remotos, de braços angolanos, em proveito dum sistema condenável sob muitos aspectos. Kutapala, pastor e agricultor desde a nascença, num dia de boémia, engrossou, com a sua morte em S. Tomé, a lista interminável dos escravizados do século, aos olhos dos companheiros que o choraram. A notícia do seu fim longe da terra, foi recebida pelos parentes muito tempo depois da prisão de Kativala. Este teve apenas o efeito de tirar toda a dúvida que prevalecia nalguns sobre a sua inocência. *Escritor angolano. (Abril de 1918-Fev 2005) Nasceu na Ganda, província de Benguela. In: Cultura. Jornal Angolano de Artes e Letras, nº 39.

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